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Um encontro entre Marcelo Gleiser e Gianfranco Ravasi À ESCUTA DO INFINITO ESTAMOS MAIS PERTO DE DEUS?

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Um encontro entre Marcelo Gleiser e Gianfranco Ravasi

À ESCUTA DO INFINITOESTAMOS MAIS PERTO DE DEUS?

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Um encontro entre Marcelo Gleiser e Gianfranco Ravasi

À ESCUTA DO INFINITOESTAMOS MAIS PERTO DE DEUS?

Curitiba2019

Curadoria da ColeçãoFabiano Incerti

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Incerti, FabianoÀ escuta do infinito: estamos mais perto de Deus? /

Fabiano Incerti, coordenador ; tradução: Natan Marinho Junior. – Curitiba : PUCPRESS, 2018.

64 p. ; 21 cm ISBN: 978-85-68324-77-6 1. Deus. 2. Religião e ciência. 3. Diálogos. I. Gleiser, Marcelo II. Ravasi,

Gianfranco. III. Título CDD 20. ed. – 231

I36e2018

© 2018, Fabiano Incerti 2018, PUCPRESS 2019 – 1ª reimpressão

Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa por escrito do Editor. As opiniões, hipóteses, conclusões ou recomendações emitidas neste material são de responsabilidade dos entrevistados.

PUCPRESS / Editora Universitária ChampagnatRua Imaculada Conceição, 1155 - Prédio da Administração - 6º andar

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Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPRBiblioteca Central

ReitorWaldemiro Gremski Vice-reitorVidal Martins Pró-reitor de Missão, Identidade e Extensão Ir. Rogério Renato MateucciDiretor do Instituto Ciência e FéFabiano Incerti Gerente de Identidade InstitucionalJosé André de AzevedoCuradoria da ColeçãoFabiano IncertiTraduçãoNatan Marinho JúniorRevisão TécnicaDouglas Borges CandidoMariana Vidotti

PUCPRESS / CoordenaçãoMichele Marcos de OliveiraEditorMarcelo ManducaPreparação de textoLara Padilha Marcelo ManducaRevisãoCamila Fernandes de SalvoJuliana Almeida Colpani FerezinMarcelo ManducaCapa, projeto gráfico e diagramaçãoRafael Matta CarnascialiImagem de capa e miolo Fotolia 108947649ImpressãoGráfica Capital

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A noite de 11 de abril de 2016 ficará marcada para a Pontifícia Universidade Católica do Paraná. No palco do Teatro Universitário (TUCA), um dos maiores intelectuais e influentes pensadores católicos, o cardeal Gianfranco Ravasi, senta-se para uma conversa franca e transparente com um dos mais respeitados astrofísicos agnósti-cos da atualidade, o professor brasileiro Marcelo Gleiser. O tema que os provoca e os aproxima é a pergunta por Deus. Partindo de perspectivas di-ferentes e igualmente profundas, na medida em que a interlocução avança, eles dão o exemplo do que parece ser a urgência para esses nossos tempos: é preciso dialogar. E ambos nos ensinam que antes de ser uma concessão, o diálogo é um exercício que exige abertura, aprendizagem e o reconhecimento de que o outro, ao mesmo tempo que me desinstala, é quem me completa.

Esse é o espírito do projeto Átrio dos Gen-tios, do Pontifício Conselho para a Cultura do Va-ticano: crentes e não crentes em diálogo sobre temas fundamentais para a existência humana, e desta em relação à cultura, à ciência e à fé. Realizado em espaços simbólicos de diferentes

APRESENTAÇÃO

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cidades do mundo, ele reúne personalidades do universo das artes, da economia, das ciências, da política, da academia. São as palavras de Bento XVI à Cúria Romana, em dezembro de 2009, que inspiram essa iniciativa criativa e instigante, que tem gerado, desde lá, encontros reais e uma escuta ativa: “ao diálogo com as religiões deve acrescentar-se hoje sobretudo o diálogo com aquelas pessoas para quem a religião é uma rea-lidade estranha, para quem Deus é desconhecido e, contudo, a sua vontade não é permanecer simplesmente sem Deus, mas aproximar-se d’Ele pelo menos como Desconhecido”.

Foi a parceria com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com a Arquidiocese de Curitiba e com a FTD Educação que possi-bilitou que o Instituto Ciência e Fé, da PUCPR, realizasse a primeira edição do Átrio dos Gentios em terras brasileiras e inaugurasse, com a publi-cação desta obra, sua primeira coleção de livros.

Que as páginas que se seguem sejam ins-piradoras para novos tempos, onde o simples gesto de sentar-se à mesa para boas conversas seja o sinal das mais poderosas convergências humanas e espirituais.

Boa leitura!

Fabiano Incerti e Rogério Renato MateucciCuritiba, verão de 2018.

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Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.

João 8:32

Os filósofos têm toda razão de di-zer: só podemos compreender a vida voltando-nos sobre o passado. Mas se esquecem desta outra posi-ção não menos verdadeira: a vida só pode ser vivida projetando-se para o futuro.

S. Kierkegaard

É temerária a convicção de que o conheci-mento nos conduz ao melhor dos mundos; ela se assenta, na maioria das vezes, em escolhas valora-tivas de caráter ideológico que tendem a eliminar as diferenças. O melhor dos mundos pressupõe uma espécie de pureza eugênica e tendenciosa, condição de uma desejada emancipação do ho-mem a qualquer custo. Sob essa perspectiva, a ra-zão conhecedora arbitra sobre o certo e o errado, cria e destrói, emancipa e condena. A história nos tem dado motivos suficientes para, com prudên-cia, desconfiar do progresso reduzido a produtos de uma racionalidade objetiva.

O nosso tempo, assentado sobre a hege-monia de uma razão triunfante, dominado por uma visão tecnocientífica, especializou-se na

PREFÁCIO

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8 À ESCUTA DO INFINITO: Estamos mais perto de Deus?

compreensão descritiva do mundo e perde, dia a dia, a intimidade primeira com o encantamento. O mundo comunga, hoje, de uma convicção re-sultante do triunfo das luzes da Razão fazendo recuar definitivamente mitos, superstições e reli-giões. O homem “liberto” vivencia certezas pro-féticas como aquela de Espinosa a mostrar que ele, tomado por seus medos e esperanças, não se comporta mais “como se a natureza com ele delirasse”, assume a tarefa proposta por Bacon para tornar seu Saber um Poder e empenha-se no projeto sugerido por Descartes para ser “mes-tre e possuidor da natureza”. Este mesmo homem se tem convencido com Hobbes de que “pensar é calcular” e com Planck na certeza de que “só é real o que pode ser medido”, e todos veem nesse quadro programático o penhor de uma suposta emancipação humana acreditando num poder so-berano e indiscutível da ciência.

O conhecimento, no entanto, nos deve con-duzir, antes, ao insuperável sentido do homem e este é, em sua essência, mistério. Antes de nos relegar aos limites da impotência, o mistério é a condição primeira de nossa busca. Nossa sede de saber não se sacia jamais com a posse, mas com o desconforto oportunizado por aquilo que ainda não somos e ainda não temos. O cultivo do espírito é, por sua natureza, avesso à lógica de lucros seletivos e, por isso, o conhecimento que se exalta numa pretensa posse da verdade é o mesmo que realiza suas exéquias.

Por certo, o céu estrelado se apresenta tanto ao poeta quanto ao cientista; não certamente mais sobre este do que aquele. Uma descrição físico-química-mecânica de uma noite estrelada,

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dela não lhe retira o enigma do êxtase. Não há supremacia do cientista sobre o poeta, mas gran-deza excepcional no encontro de ambos. O co-nhecimento, por falar à essência misteriosa do homem, resiste a compartimentalizações redu-cionistas e arbitrárias tão reivindicadas por este tempo desencantado e laico, dominado pelo ins-trumental e funcional.

Em um ensaio de 1904, intitulado O valor da Ciência, Henri Poincaré oportunizou uma dis-tinção entre os homens de conhecimento. De um lado os “práticos intransigentes” e de outro, os “curiosos quanto à natureza”. Dos primeiros afirmava que nada se podia esperar senão um pensamento voltado para uma economia de lu-cros e ganhos. Dos demais, emerge um exercício sincero, pois buscam compreender de que modo podem indagar para conhecer. Uma perspectiva apenas utilitarista para o conhecimento reduz a verdade a resultados imediatos e instrumentaliza a busca engessando as possibilidades. Quando, no entanto, a busca alimenta o conhecimento, a dimensão estética se desdobra na tessitura dos recônditos do coração humano maravilhado com o mundo.

Há algum tempo a miopia cognitiva dividiu não só os objetos como também os homens de ciência. De um lado, os bons objetos e seus cul-tores em busca do prático para a sempre urgente e insaciável necessidade de coisas; de outro, os “objetos sem importância” e seus incômodos ad-miradores. Ciência, técnica, tecnologia e coisas de um lado; e Arte, Literatura, Religião de outro. O banquete do conhecimento, ao separar, não mais integra, não mais reúne, e as vozes dissonantes

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perdem, no ocultamento, o rosto desejoso do homem.

O mistério do homem não comporta di-visões e separações. A busca responsável pela verdade, que alimenta o dito mistério, não su-porta partidarismos. A ânsia pelo conhecer dis-pensa a métrica pois é da ordem do inesperado. O mistério que envolve a plenitude do sentido humano é o horizonte do conhecimento. Já deve ir longe o tempo das separações. Só existe pleno conhecer quando, reunidos num esforço sincero e responsável, reconhecermos os nos-sos limites e, de mãos dadas, enfrentarmos a ti-rania das exclusões. Nada mais humano do que o Diálogo. Mas o mesmo diálogo que aproxima, também distancia. A aproximação que liquida o diferente por meio da cooptação, instaura a maior das violências. A aproximação produzida pelo diálogo não pressupõe identidades apaga-das nem suprimidas. O diálogo efetivo promove a vida e nele se protagoniza o autêntico projeto de esclarecimento humano.

A arte de um autêntico Diálogo é o que en-contraremos nos textos a seguir. Marcelo Gleiser e Gianfranco Ravasi são dois homens de cultura comprometidos com o Mistério que circunda a Vida e os auspícios humanos. O primeiro, formado nas terras da ciência, renomado físico e astrô-nomo, descreve os contornos da necessária restituição do humano no universo e revela, recuperando a metáfora da ilha de certeza, o vas-tíssimo oceano do desconhecido que a circunda. O segundo, eminente cardeal da Igreja Católica, competente no refinado exercício de escuta, não se esquiva da árdua tarefa de sempre retomar o

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universo polêmico dos enfrentamentos entre o natural e o sobrenatural, entre o Homem e Deus. O que os desafia neste salutar encontro não são, certamente, suas convicções particulares, mas a possibilidade de que, ao término, seja celebrada a certeza de que, mais do que a posse, o que importa é a busca do sentido que não se deixa aprisionar por esta ou aquela posição ideológica e sectária.

Ao tratar dos desdobramentos da relação entre a Fé e a Razão, dos feitos da Ciência e do lócus da Transcendência, os autores, com maes-tria, mostram o irrevogável serviço prestado à hu-manidade pela matriz racional do conhecimento, mas não se rendem aos encantos do mais fácil. O melhor dos mundos não é construído com reser-vas dogmáticas. Desse diálogo podemos apren-der que sabotar o conhecimento implica em sa-botar o próprio futuro da humanidade.

Bortolo Valle

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Um encontro entre Marcelo Gleiser e Gianfranco Ravasi

À ESCUTA DO INFINITOESTAMOS MAIS PERTO DE DEUS?

Curitiba2019

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MARCELO GLEISER

O ser humano é um paradoxo. Nós somos um paradoxo porque somos animais capazes de refletir sobre o tempo e entender que temos uma dimensão finita neste planeta. Nós somos cria-turas que nascemos, crescemos e, finalmente, morremos. Mas também somos capazes de ver um ciclo no qual a própria natureza repete essa ordem. Toda forma de vida repete essa fórmula: nascer, crescer e, finalmente, morrer. Ou seja, existe um ponto de criação e de destruição no universo e nós somos partes desse ciclo. Por-tanto, uma das grandes indagações do espírito humano é tentar compreender de onde nós vie-mos: por que nós estamos aqui? Qual é o sentido

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da nossa existência? Nós somos os únicos ani-mais capazes de formular esse tipo de pergunta. É possível, contudo, que existam outras inteli-gências espalhadas pelo universo, como supunha o filósofo italiano Giordano Bruno (1548-1600), todavia seus modos de expressão serão comple-tamente outros.

Uma das lições que aprendemos com a ciência moderna, que julgo ser essencial, porém pouco discutida, é a da exclusividade do ser hu-mano no universo. Dito isto, posso assegurar que não há outro ser humano no universo. Ou seja, é impossível que, dentre a vasta existência dos planetas que existem no universo, possa ter ha-vido outro planeta que tenha tido uma evolução e uma história similar à do planeta Terra – com mais de 4,5 bilhões de anos – e que tenha for-jado a emergência de outra espécie primata se-melhante à nossa. Desta forma, aquilo a que me refiro é algo muito importante, isto é, apenas a nossa espécie existe como ser humano. Ainda que haja outros seres extraterrestres bípedes e com uma simetria bilateral, eles não serão huma-nos, eles serão diferentes. Porque a história da vida, em cada planeta, reflete a história da vida daquele planeta.

Portanto, o que houve aqui – e sabe-se que existe vida no planeta há algo em torno de 3,5 bilhões de anos – foi uma sucessão de aci-dentes cósmicos que fazem parte da história da Terra. O mais famoso desses acidentes é justa-mente aquele que extinguiu os dinossauros há 65 milhões de anos – a queda de um asteroide com aproximadamente dez quilômetros de diâ-metro, no México, que acabou com 45% da vida

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no planeta. Caso isso não houvesse ocorrido, por exemplo – afinal, trata-se de um acidente cósmico que provocou uma grande extinção do mesmo modo que outros tantos acidentes, como é possível verificar a partir de documen-tações feitas através do uso de elementos ra-dioativos que nos permitem datar esses acon-tecimentos com alguma precisão –, a história da vida na Terra seria diferente e nós não esta-ríamos aqui. É muito importante compreender isto porque, de um modo metafórico, coloca o ser humano de volta ao centro do universo.

Se nos voltarmos a uma perspectiva histó-rica, por exemplo, a noção de um homem como Pedro Álvares Cabral (1467-1520) era a de que a Terra era o centro, imóvel, e que havia várias es-feras carregando os planetas, entre elas a esfera das estrelas, o primum mobile e a morada divina. Este era o universo de 1500. Em 1543, portanto, Nicolau Copérnico (1473-1543) propõe outro sistema, sem evidência empírica, que parecia fi-gurar mais como um conceito estético do que como uma obra científica. Todavia, após aproxi-madamente sessenta anos, entre Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630), houve uma mudança nessa concepção cósmica, ou seja, a Terra deixou de ser o centro do uni-verso para se tornar apenas mais um planeta. A própria etimologia da palavra planeta (do grego πλανάω: planáō: vagar) aponta para essa ideia de movimento celeste, isto é, essas concepções retiraram profundamente a centralidade do ser humano na criação.

Destarte, aquilo a que me refiro é, precisa-mente, a restituição da centralidade do humano

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no universo provocada pela ciência moderna. Nós somos, portanto, até segunda ordem, como o universo reflete sobre si mesmo porque temos a capacidade de imaginar o mundo e de tentar explicá-lo. De acordo com Albert Einstein (1879-1955), por exemplo, a emoção mais profunda que podemos experimentar é o Mistério. É a emoção que está no coração da verdadeira arte da ciên-cia. Aquele, portanto, que desconhece essa emo-ção e não sabe maravilhar-se está mais morto do que vivo, ou, como diz o físico alemão, “é como uma vela que se apagou”.

Sendo assim, qual é o propósito de Eins-tein? Colocar a arte e a ciência como expressões essenciais dessa ânsia humana que busca com-preender quem somos, desse engajamento com o não saber, com aquilo que está além da luz, com o Mistério. E muito da criatividade humana, em todas as suas manifestações, vem justamente dessa sedução do Mistério, dessa vontade que nós temos de entender cada vez mais. Hoje nós temos uma visão cósmica que é profundamente diferente daquela de Copérnico, de Cabral e mesmo daquela de Einstein. Nossa concepção acerca do universo mudou muito desde a morte deste cientista. Portanto, quando vemos uma imagem de campo ultra profundo do telescópio espacial Hubble, cada um daqueles pontos de luz são galáxias. Cada galáxia tem aproximadamente 200 bilhões de estrelas e hoje sabemos que a maioria delas possui planetas. Então, só na nossa galáxia, na via láctea, é possível dizer que há uma infinidade de mundos e que cada um desses mun-dos possui uma história e uma potencialidade de existência ou não de vida completamente

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distintas. Certamente, a vida no universo é muito rara, a vida inteligente é ainda mais rara, e não é óbvio que haja outra forma de vida inteligente em nossa galáxia. É possível, mas não é óbvio.

Carl Sagan (1934-1996), por exemplo, dizia que a “ausência de evidência não é evidência de ausência”, ou seja, o fato de nunca termos visto um extraterrestre inteligente não implica sua não existência. Com isso, a ciência não consegue desprovar aquilo que não vemos, ela só conse-gue provar aquilo que vemos. É por isso que o ateísmo radical, por exemplo, é inconsistente com o método científico, porque essa forma de ateísmo consiste em acreditar em não acreditar. Portanto, o ateísmo, dessa forma, não funciona.

Ou seja, nós somos como um peixe dentro do aquário. O peixe consegue ver através do vi-dro que há outro mundo, mas ele não consegue alcançá-lo. O peixe tem uma vivência limitada daquilo que existe, assim como nós. O escritor francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), em seu livro O pequeno príncipe, escreve, no diá-logo do menino com a raposa, que “o essencial é invisível aos olhos”. Isto é absolutamente verdade, tanto na ciência quanto na fé. A ciência é, de certa forma, uma janela que abrimos ao invisível, ao desconhecido, ao que está além da percep-ção, porque nossos cinco sentidos nos dão uma visão muito limitada acerca dos acontecimentos. As sensações que nossos órgãos captam e trans-formam numa noção de realidade é uma fração ínfima daquilo que ocorre ao nosso redor. Por exemplo, se eu pudesse vê-los através de uma visão infravermelha eu veria um mar de pessoas brilhando, porque todos vocês estão irradiando.

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Todavia, o olho humano não evoluiu a esse ponto, então eu não consigo ver essa parte da reali-dade. Além disso, temos as ondas de rádio, as micro-ondas dos celulares etc., todas essas coi-sas estão à nossa volta e nós não conseguimos ver. Cada um de vocês, por exemplo, está sendo atingido por um trilhão de neutrinos – partículas que vêm do coração do sol e viajam quase na ve-locidade da luz – por segundo. Essas partículas atravessam quase tudo e por isso são chamadas de partículas fantasmas. Portanto, o fato de não sermos capazes de ver um trilhão dessas par-tículas passarem por nós por segundo as torna menos reais? Não. Só é preciso utilizar os ócu-los certos e ampliar nossa visão da realidade que conseguiremos ver isto também.

A questão essencial na conversa de hoje é: quanto nós podemos ver? A resposta do filósofo francês Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757), do final do século XVII, que escreveu um livro chamado Diálogos sobre a pluralidade dos mundos, em 1686, considerando a possibilidade de vida em outros planetas, na forma de um diá-logo fictício, é a de que toda filosofia é baseada em apenas duas coisas: curiosidade e miopia. Por-que nós temos a curiosidade de ir além dos cincos sentidos, os instrumentos, por exemplo, ampliam a noção de realidade, mas nós somos míopes, nós só podemos ver até certo ponto. Nesse sentido, toda a história da ciência pode ser contada como uma história dos instrumentos. Esses instrumen-tos transformam nossa visão do mundo. Mas ainda assim esses instrumentos, inclusive o Hubble, são limitados. Eles também não conse-guem ver tudo, existe sempre aquilo que está

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além do visível, o Mistério de que falava Einstein. Portanto, esse apetite pelo saber é justamente uma relação com o Mistério.

Quando eu fui convidado para vir a este evento, pediram-me que colocasse algumas provocações em minha fala. Eu não vou fazer nenhuma provocação ao cardeal Ravasi (1942), mas posso colocar algumas questões interessan-tes sobre as quais as pessoas devem refletir. Uma das questões que se coloca nas discussões entre ciência e religião é a relação do natural com o so-brenatural. Farei, então, uma alegoria: suponha-mos que eu vá hoje para meu quarto no hotel e veja um fantasma. O fantasma é essencialmente uma entidade sobrenatural, porém, se eu vejo um fantasma é porque ele está emitindo ondas eletromagnéticas, que é um fenômeno perfeita-mente físico e que podemos entender. Portanto, ver um fantasma ou interagir com um fantasma, através de uma troca de energia qualquer, trans-forma aquele fantasma numa entidade natural. Misteriosa, sim; desconhecida, provavelmente, mas não sobrenatural. Então, a questão é como relacionar o que é natural com aquilo que é so-brenatural, e como podemos lidar com o sobre-natural dentro de um discurso natural.

Existe uma péssima história, na discussão entre ciência e religião, que em português se chama “Deus das lacunas” (God of the gaps). A ideia básica é de que aquilo que não entende-mos, Deus explica. E que se não podemos com-preender a origem da vida, deve-se atribuir a uma entidade divina.

Existe também uma posição, com a qual eu não concordo, que se chama cientificismo.

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Basicamente, trata-se de uma concepção filosó-fica que crê que a ciência é capaz de evidenciar todas as formas de compreensão humana da rea-lidade, ou seja, que a razão humana é capaz de des-vendar todos os mistérios. Isto é uma falácia. Por quê? Voltando à questão da nossa miopia, aquilo que nos é dado fazer é construir visões de mundo e a ciência é uma narrativa construída a partir daquilo que vemos. Ela é, portanto, uma descri-ção da realidade. Precisamente por isso, a ciência é uma história que contamos sobre o mundo, e a diferença entre esta história e as outras histórias reside no fato de existirem regularidades e leis na natureza que a ciência capta e transfere para o nosso conhecimento sobre mundo de modo que possamos manipular energias imateriais visando à melhoria da vida humana.

Então, por que a ciência tem sido tão bem-sucedida nos últimos séculos? Existe um exagero retórico que acredita que a ciência po-derá conquistar tudo. Mas isso é epistemologi-camente impossível por conta da nossa miopia. É por isso que no meu último livro eu construí essa metáfora da “ilha do conhecimento”, que me deixou muito orgulhoso, até eu perceber que o Friedrich Nietzsche (1844-1900) já havia pensado nisso, assim como várias outras pes-soas já haviam pensado sobre isso. Eu acho uma metáfora razoável, afinal nós vivemos numa ilha, nessa “ilha do conhecimento”, e ela cresce à me-dida que conhecemos mais sobre nós mesmos e sobre o mundo. Mesmo quando nós temos uma explicação errada sobre a natureza e, eventual-mente, a corrigimos posteriormente, ela conti-nua crescendo. Porém, como toda boa ilha, ela

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é cercada por um oceano e, nesse caso, trata-se do oceano do desconhecido, daquilo que não sa-bemos sobre o mundo. Por ventura, muito desse desconhecido nos será dado conhecer. É assim que caminha o conhecimento humano.

Todavia, existem partes desse oceano que são incognoscíveis, ou seja, partes que a ciência não consegue explicar. Existem, portanto, aspec-tos do mundo natural, baseado numa explicação que eu chamaria de racional-determinista, que mantém uma relação de causa e efeito, que a ciência jamais entenderá ou acreditará piamente que possui uma resposta. Por exemplo, a origem da vida na Terra. Para um cientista, a vida sur-giu da não-vida, ou seja, num dado momento – perto de 3,5 bilhões de anos atrás – houve uma transição da química inorgânica para a química orgânica. E a partir dessa transição da não-vida para a vida, passados pelo menos 3 bilhões de anos, nós estamos aqui tentando entender a origem da vida no laboratório; tentando recriar esses processos que transformam a química da não-vida na química da vida.

Ainda que consigamos fazer essa experiên-cia com êxito, nós jamais saberemos se foi de fato assim que surgiu a vida aqui na Terra. Por quê? Porque nós não teremos informações sufi-cientes sobre os processos ocorridos há 3 ou 4 bilhões de anos para saber se foi precisamente esse o caminho metabólico, bioquímico, que a vida utilizou para se manifestar neste planeta. Portanto, a pergunta sobre a origem da vida na Terra é uma pergunta irrespondível pela ciência, graças a uma questão metodológica do seu fun-cionamento. Sendo assim, podemos afirmar que

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existem questões sem resposta. O ponto é o que fazemos com isso. Essa é a escolha de cada um. Você pode usar a fé, você pode acreditar nesse cientificismo, que para mim é uma fé equivocada na ciência, ou você pode aprender a viver sem saber, entendendo que há coisas que estão além da nossa capacidade de compreensão. Einstein, por sua vez, ainda que tratasse muito do Mistério, não gostava nem um pouco dessa possibilidade. Ele achava que a natureza deveria ser essencial-mente compreensível e racional. Toda vez que houvesse alguma teoria vulnerável, ela seria tão somente parcial e algum dia se atingiria uma explicação total acerca daquilo.

Por fim, novamente, aquilo a que me refiro é justamente ao fato de não haver problema em abraçar o Mistério, em abraçar o não-saber. Com isso, tal atitude não significa a assunção de uma posição derrotista. O importante aqui é valorizar o processo, é o querer entender que atribui sig-nificado às nossas vidas. A essência fundamental do apetite humano é essa curiosidade pelo saber, qualquer que seja ele. A ciência é apenas um dos canais que utilizamos para conhecer o mundo e também a nossa essência.

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GIANFRANCO RAVASI

Ainda que eu seja um cardeal, não farei um sermão, principalmente porque os desafios pro-vocados hoje pelo professor Marcelo Gleiser são, na verdade, um grande estímulo capaz de recu-perar dois horizontes que se encontram, não so-mente no decorrer da história do ocidente, mas na história destes últimos séculos. São semelhantes a uma imagem criada por um filósofo do século XIX, onde dois globos de luz, por recusarem um ao outro, encontraram-se com a finalidade única de se explodirem reciprocamente.

Dentro da narrativa do diálogo entre ciência e fé temos várias etapas, que frequentemente se conflitam. Eu diria que houve um momento que

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se costuma usar como símbolo: o caso Galileu Galilei. Mas há outros momentos nos quais tanto a ciência quanto a teologia se comportaram de maneira fundamentalista. É fácil compreender isso no caso do chamado concordismo fideístico, quando se quis assumir que as sagradas escritu-ras fossem quase como uma espécie de manual científico.

Santo Agostinho (354-430) já havia pressentido que esse não seria o melhor caminho a percorrer. Escreveu, num diálogo com um maniqueísta, que não se lê no evangelho que o Senhor tenha dito “vos mandarei o Paráclito, o Espírito Santo, que vos ensinará sobre o sol e a lua”. Ele queria formar cristãos, não matemáticos. Portanto, Santo Agostinho, já no século IV, intui a impossibilidade dessa forma de concordismo.

Por outro lado, no entanto, havia também uma atitude fundamentalista por parte da ciên-cia. Pensemos, por exemplo, na frase de Auguste Comte (1798-1857), um filósofo que se julgava da ciência positivista e que diz que “a legitimidade de toda interrogação que vai além da física deve ser negada”. Ainda outros filósofos da ciência, de forma mais tênue, afirmaram que sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar. Consideravam, nesse caso, principalmente a teologia. Há, dessa forma, um momento de tensão no passado que devemos recordar realisticamente.

Em seguida, entramos noutra etapa, mais próxima ao nosso tempo. Uma etapa que nos permite a realização de um momento como este, por exemplo. Um momento que tem a possibili-dade de fazer uma espécie de alusão ao tema, não podendo, infelizmente, por uma questão de

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tempo, desenvolver um diálogo mais amplo e ra-mificado. As perguntas que o professor Gleiser me pôs como provocações exigiriam, na prática, um ano inteiro de reflexões, no qual as duas par-tes, com suas visões e identidades, poderiam dar continuidade a este diálogo.

Creio, portanto, que houve outra etapa ainda, após aquela de rejeição e quase impos-sibilidade de se olhar de frente para os fatos, que foi quando surgiu uma teoria chamada teoria dos dois níveis. Esta teoria permite que eu me aprofunde em uma categoria pela qual tenho grande predileção e que foi evocada na fala do professor Gleiser: o conhecimento, um gênero de tamanha importância ao aprimora-mento epistemológico, e que é fundamental para que todos nós apreendamos.

A maior tentação do primeiro dos níveis da teoria que acabei de mencionar é aquela de afirmar que existe apenas um conhecimento vá-lido. Como puderam perceber, Comte diz que fora da Física todas as outras interrogações ou respostas não são válidas. A consciência que to-dos nós temos é de que o conhecimento é, por sua natureza, polimorfo e pluralista. Não apreen-demos através de um único canal. Temos o canal da ciência, que possui uma epistemologia, uma metodologia clara, que, de certo, está em contí-nua evolução. Temos outro canal, também muito importante, que é aquele da estética. Quando estamos dentro da Capela Sistina e vemos no teto a representação da Criação feita por Miche-langelo (1475-1564) que por sua vez, tenta dar uma interpretação do ser e do existir – visto que há uma humanização naquela perspectiva – ali

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vemos um modo de explicar a explicação, isto é, um modo de buscar um sentido além da ciência, que também é importante.

Pensemos, por exemplo, que para descre-vermos a figura de um homem ou de uma mu-lher, como foi definida de modo admirável pelo professor Gleiser, é fundamental usarmos a força da poesia. Pensemos, por exemplo, em obras--primas da humanidade escritas por Dante Ali-ghieri (1265-1321) ou Shakespeare (1564-1616). Chegaremos à conclusão de que precisamos de um outro canal do conhecimento se quisermos o horizonte completamente definido.

Mas seria isso suficiente? Não. Pensemos, por exemplo, quando um homem e uma mulher se conhecem, e, por um misterioso complexo de eventos – que certamente têm uma dimensão química, neurológica etc. – apaixonam-se. O olhar de um cientista apaixonado para o rosto da sua amada não é somente aquele de alguém que a co-nhece, por exemplo. Todos os fatores biológicos representados naquele rosto são muito mais que a simples definição de componentes orgânicos; são alguma outra coisa, ao mesmo tempo inde-cifrável e decisiva. Assim como podem ser dra-máticos os sinais de um rosto ao descobrir uma doença grave, é verdade também que é dramático para um cientista apaixonado se sua amada o abandone, traia ou se afaste e desapareça.

Podemos afirmar que por causa do diálogo entre fé e ciência existe uma nova possibilidade através da teoria dos dois níveis. Há muitos séculos existe a teologia e a filosofia, que são um tipo de conhecimento diferente daquele da ciência, embora igualmente necessário à

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humanidade. Os dois níveis são evidentes. O cientista se interessa, sobretudo, pelos fenôme-nos, pelo que observa. A pergunta que ele se faz é: como ocorre tudo isso? Como se pode deci-frar essa realidade à nossa volta, que nos envolve de tal forma que, muitas vezes, passa a nos domi-nar? Por outro lado, qual é a pergunta a qual se propõe o teólogo, o filósofo e também o artista? A pergunta mais frequente é sobre o fundamento: que sentido há nisso tudo?

Pensemos em todas as questões existen-ciais. Por exemplo, questões sobre o mal, a dor, a morte; todas elas têm explicações científicas. Mas a humanidade acredita que no morrer há algo a mais; que sentir dor não é uma questão puramente cerebral, psicológica – no senso psi-cofísico –, neurológica ou biológica, mas que também tem algo a mais. Tanto é verdade que, quando a humanidade nasceu, consciente de si mesma, qual foi seu primeiro ato?

Há uma enorme discussão entre os antro-pólogos sobre qual teria sido o primeiro elemento constitutivo do ser humano que traspassa dos primatas e adentra no horizonte que vivemos hoje, através do processo evolutivo. O aumento da caixa craniana? O peso maior do cérebro? Hoje, por outro lado, a tendência é dizer que a humanidade naquele momento se tornou sim-bólica. Nas cavernas, e mesmo antes disso, provavelmente com símbolos muito rudimen-tares, nós já encontramos uma evolução muito avançada que começa a produzir sinais que não possuem uma serventia concreta. Símbolos que não serviam, por assim dizer, para alimento, para sobrevivência, para o desenvolvimento corporal.

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Começa-se, naquele momento, a interrogar-se sobre um sentido ulterior.

O pensador japonês Okakura Kakuzo (1863-1913) escreveu em seu livro intitulado O livro do chá, de forma puramente simbólica e narrativa, que “o verdadeiro homem surgiu sobre a face da terra, tornando-se plenamente homem, quando ele pegou algumas flores, fez uma coroa e colocou-a no pescoço de sua mulher”. Ou seja, quando ele realizou um ato gratuito. E, de fato, também esta é uma das grandezas da arte e da religião. Henry Miller (1891-1980), um escritor norte-americano profundamente ateu e afasta-do de qualquer moral cristã, escreveu em um de seus pequenos ensaios que a religião, assim como a arte, não serve para nada, exceto para mostrar o sentido da vida. Certamente, isto não é pouco.

O segundo nível é aquilo que formulou o filósofo e cientista norte-americano, Stephen Jay Gould (1941-2002), por meio de um famoso acrônimo que frequentemente é citado, NOMA (Non-overlapping magisteria, “magistérios não--interferentes”). Trata-se de uma grande con-quista no diálogo entre ciência e fé, reconhecer que existem magistérios diversos.

Todavia, existe também um terceiro nível que acredito que se possa propor a partir daquilo que está acontecendo nesta noite, quando agora começo a recuperar os questionamentos lança-dos pelo professor Gleiser, assim como também farei questionamentos a ele. Este é o momento do diálogo, do entrecruzamento, porque essas duas linhas não são perfeitamente paralelas. Não podem ser porque ambos nos interessamos pela mesma realidade. Tanto o ser humano quanto o

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cosmos são assuntos comuns, no entanto, por razões que citei anteriormente, nossos canais de conhecimento são distintos, mas são diferentes também dentro de nós, porque eu, enquanto es-cutava aquilo que ele dizia a respeito do ponto de vista científico, percebia meu horizonte inte-lectual se abrir, compartilhar e participar.

Desta forma, a partir de um diálogo que tivemos antes de pisarmos neste palco, tenho certeza de que o professor Gleiser possui den-tro de si uma dimensão poético-espiritual, vamos chamá-la assim, que é a parte fundamental daqui-lo que devo dizer. Uma descrição que ele me fez, foi a da experiência de descer uma montanha. É uma experiência física, sem dúvida. Mas aquela experiência, como ele me descreveu, já pos-suía marcas de poesia. Uma, ao mesmo tempo, precisava da outra. É por este motivo que expe-riências distintas se entrecruzam dentro de nós. Digo, pois, que a teologia precisa da ciência e a ciência precisa da teologia.

Penso agora em Einstein e nas categorias tempo e espaço, deixando de lado o ponto de vista científico, e pensando na forma com a qual ele chegou à formulação destas catego-rias, que, em certo modo, deve algo à filosofia. A filosofia deu-lhe uma instrumentação para que ele pudesse, então, percorrer seu itine-rário. Do mesmo modo, acredito que seja im-portante para nós teólogos – ainda que pareça paradoxal – a contribuição da evolução, pois nos permite compreender melhor inclusive o conceito de criação, liberando-o dos esquemas do passado. Claro que para dizer isto, devo explicitá-los.

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É por isso que creio que esses três momentos são momentos de uma história que chega aos dias de hoje. No tempo do processo de Galileu, seria impensável que o professor Gleiser e eu, um cardeal, estivéssemos ambos sentados aqui; isto, claro, por causa de uma in-compreensão recíproca. Nós dois deveríamos estar separados. O público ouviria duas exposi-ções, duas leituras da realidade completamente diferentes. Pensemos, para entendermos melhor esse caso, que ele poderia começar a apresen-tar, como quando apresentou aquela imagem extraordinária do telescópio Hubble, que coisa significa aquela pesquisa que está fazendo a astronomia dentro daquele horizonte. E é uma pesquisa fascinante.

Contudo, ao mesmo tempo, eu poderia pro-por também uma modalidade poético-simbólica com a qual as religiões definiram este horizonte que nos circunda. Por exemplo, não há dúvida que todo mundo deve considerar como importante na história da humanidade o modo como a Bíblia de-fine a criação. Afinal, trata-se de um modo muito particular, diferente de outras cosmologias. Se to-mamos as primeiras linhas da Bíblia, e escutamos no original em hebraico, percebemos que são ri-madas, principalmente o terceiro verso, que diz, na tradução em português: Disse Deus: Haja luz, e houve luz.

Vocês percebem que neste caso se apre-senta a luz, algo muito complexo para a ciência, ao mesmo tempo que fundamental para a reli-gião, pelo aspecto simbólico-religioso. Mas há igualmente este elemento, por assim dizer, para que se possa entender simbolicamente: o big

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bang teológico, que é a palavra. Adentramos en-tão ao ser humano, tão extraordinário e retum-bante como foi evocado anteriormente, e ao seu mecanismo, que é a palavra.

Eu tive o prazer de me encontrar e conversar com o professor Noam Chomsky (1928), um dos grandes estudiosos da relação entre o cérebro e a palavra, e ele mesmo me disse que, dado que o nosso cérebro é como uma galáxia, abrindo nossa caixa craniana e olhando a via láctea, em certa me-dida, nós estamos ali, porque nós temos dentro da cabeça centenas de milhares de neurônios. E isso é, portanto, uma realidade quase interplane-tária, uma realidade astral imensa dentro de nós. Mesmo assim, neste complexo tão extraordiná-rio, nós ainda não podemos compreender muito bem como funciona este mecanismo pelo qual nasce a palavra, a palavra com sentido, a palavra que muda, a sintaxe, a gramática etc. É por isso que existe também a necessidade de ouvir uma voz, que no passado parecia mítica ao cientista, como disse anteriormente o professor Gleiser, mas que é indispensável.

Há também a possibilidade de encontro pleno onde se dialoga e se aprende reciproca-mente, no qual, também, não se fala separada-mente, crentes e não crentes escutam um ao outro, reconhecendo uma dignidade na visão de cada um.

Gostaria de finalizar com isso, tendo cons-ciência de que meu discurso foi mais plano; diria até, menos expandido que o horizonte que foi proposto anteriormente, com aquele jogo irides-cente que o professor Gleiser foi capaz de criar. O meu discurso foi mais acadêmico, mais didático.

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Gostaria, portanto, de finalizar usando uma de suas considerações, quando falou da importância das perguntas, e quando disse também que exis-tem perguntas sem resposta. A respeito disso, citarei uma frase de Oscar Wilde (1854-1900) que dizia que “qualquer um é capaz de dar res-postas, mas para fazer as perguntas é preciso um gênio”. Portanto, o elemento fundamental que une a fé à ciência é o ato de interrogar-se (o ars interrogandi). Uma pergunta leva sempre à outra. Percebam que as perguntas de uma criança são relevantes justamente porque, como o poeta, é capaz de continuamente repetir por quê. Porque quer saber tudo.

Um teólogo afirma que existe o inefável, o infinito, o eterno, o mistério e o divino, mas é interessante também ver que esta mesma impo-tência, diria inclusive esta grandiosa humildade que o professor Gleiser testemunhou, esteja dentro da ciência. Por quê?

E aqui, professor, eu termino com aquela imagem da ilha que o senhor usou. Essa imagem, na verdade, está presente também numa obra fundamental, do século passado, tanto para a filosofia da ciência quanto para a filosofia em geral, que é o Tractatus Logico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein (1889-1951). No prefá-cio, Wittgenstein diz aquilo que queria fazer, na verdade, era descobrir os contornos de uma ilha. Pensem num atol, numa ilha pequena. É possível circulá-la no decorrer de um dia caminhando pela praia. Existem aqueles que quando caminham olham apenas para a areia. O que eu descobri, diz sempre Wittgenstein, no final das contas, foram as fronteiras do oceano. Se eu caminho olhando

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apenas para a praia, vejo a realidade finita, mas se eu caminho olhando para o todo, vejo o oceano batendo na praia.

Eu penso que sobre nossa pele, não sobre nosso horizonte terreno, mas até mesmo so-bre o universo, batem as ondas metafísicas que têm o nome de infinito, de eterno. São forças, últimas fronteiras, que para nós serão sempre intransponíveis.

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DIÁLOGO

Bortolo Valle

Permitam-me expressar minha alegria por tomar parte neste colóquio. Sinto-me, ao mesmo tempo que tocado profundamente, pequeno como uma criança diante de seus heróis. Aprendi, ao longo da minha caminhada acadêmica, a ad-mirar o professor Gleiser pela responsabilidade com que trata os temas aos quais se propõe a debater. E também aprendi a admirar o cardeal Ravasi, principalmente após ter tido a oportu-nidade de ler uma de suas obras, Breve storia dell’anima, que me tocou profundamente. Uma obra, inclusive, que utilizo para trabalhar com os meus estudantes, porque talvez seja um mapea-mento dos mais interessantes de toda a possi-bilidade humana de compreender o mistério da alma. Este momento, portanto, coloca-me em frente a pessoas que aprendi a admirar.

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O cardeal Ravasi faz referência a uma pes-soa da academia que me é muito querida, motivo pelo qual o estudo desde 1991, que é o filósofo Wittgenstein. O filósofo alemão disse, em uma de suas obras, que ainda que a ciência resolva todos os problemas do mundo, o problema da vida ficará por ser resolvido. Além disso, ele diz que os problemas da ciência são problemas da ordem do como as coisas são, enquanto os pro-blemas da vida são da ordem do quê as coisas são. Certamente, há muito mistério em como as coisas são. E a perspectiva científica é ir lenta e gradativamente adentrando este mistério e re-velando como as coisas são. Isso não significa, evidentemente, que o fato de se adentrar o mis-tério resolva o mistério. Penso que quanto mais sabemos, menos sabemos. Esta é a peça que o conhecimento nos prega. Penso também que o sacramento oitavo seria a ignorância, afinal, quem não sabe, não tem necessidade. E nós, ao desvendarmos o mistério, abrimos, certamente, outros tantos mistérios.

Todavia, o problema que toca profunda-mente Wittgenstein e que o faz dizer, ao tér-mino do Tractatus, de que daquilo que não se pode falar deve-se calar, é, de fato, a poética da existência, a poética daquilo que a vida é em si mesma. Isto, de fato, coloca-nos numa perspec-tiva de uma pergunta infinita, de uma pergunta que nunca quer calar.

Neste sentido, eu gostaria de fazer uma re-ferência ao fato de que no diálogo entre ciência e fé estabelece-se, com muita frequência, uma espécie de cultura ateísta. É quase um dogma o fato de que para ser um cientista bem-sucedido

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seja necessário diminuir, esquecer ou eliminar as referências à fé, ao mistério, ao religioso. Portanto, eu gostaria de dizer que estou plenamente con-victo de que a cultura ateísta que cresce à nossa volta não é apenas um fenômeno intelectual que expressa uma descrença em Deus, mas também um fenômeno moral que envolve um distanciar-se de Deus.

A questão de Deus, hoje, de fato, tornou-se inevitável. A afirmação técnico-científica que propõe que Deus seja “evitável” só se afirma por meio da criação de um vazio. Este vazio abre-se à nossa frente quando destruímos o rosto, não apenas o humano, mas o rosto do mundo tam-bém. O vazio sem Deus é aquilo com o que nos defrontamos quando nossos ambientes perdem o rosto. Por detrás da cultura ateísta de nossa época, apresenta-se o desejo de escapar do olho que julga.

É nesse sentido, portanto, que eu gostaria de provocar tanto o cardeal Ravasi, quanto o pro-fessor Gleiser com a seguinte questão: até que ponto apagar o rosto de Deus significa apagar o rosto humano?

Gianfranco Ravasi

Creio que esta seja uma pergunta mais en-fática, não necessariamente ao teólogo, porque neste momento me considerarei apenas um ho-mem de cultura, na tentativa de num certo sen-tido poder representar também aqueles que não creem. A imagem que ele usou como símbolo foi

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o rosto e, como sabemos, o rosto se tornou uma das categorias relevantes para a filosofia do sé-culo passado. Levinas (1906-1995) já dizia, mas antes dele Martin Buber (1878-1965) também já havia dito, para enfrentar um problema capital da antropologia que é a relação. Partirei da Bíblia, como teólogo, mas apenas como um grande có-dice da cultura ocidental.

No capítulo dois, do livro de Gênesis, descreve-se o homem como colocado solitário, inicialmente, diante de uma árvore. Uma árvore que, por sua vez, não é registrada na taxonomia botânica: a árvore do conhecimento do bem e do mal. Essa pessoa está ali, evidentemente, diante da árvore da moral. Esqueçamos, por ora, o as-pecto de leitura banal sobre essa árvore e use-mos a leitura autêntica do autor, que fala de um modo mítico, simbólico.

Pois bem, essa árvore possui frutos. E Deus diz: “Desses frutos não podeis comer. Não podeis usar como quiseres”. Qual é, portanto, o signifi-cado desta expressão? Evidentemente, a moral é, por natureza, transcendente, precede-nos e excede-nos. Mas não podemos decidir o que é o bem e o mal segundo nossos interesses, segundo a percepção do momento. Sendo assim, que coisa faz o homem em sua liberdade? Decide romper, ou seja, decide ele mesmo aquilo que é o bem e o mal, livremente, criando, assim, de maneira contí-nua. Portanto, essa criatura que se vê, é a criatura que cancelou todo conceito de transcendência, todo conceito que suponha um Outro.

A mesma página do Gênesis apresenta outra dimensão. E esta outra dimensão é a da relação. Isto é, esse Outro para nós não é uma

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realidade extrínseca, senão uma realidade que nos interpela, que conquistamos, com a qual entramos em contato. Sendo assim, há três re-lações. Em primeiro lugar, como diz o Gênesis, olhamos para cima, isto é, em direção ao divino, a um Outro, ao oceano de Wittgenstein. Depois, também olhamos para baixo, a uma realidade material, afinal o homem é feito a partir do pó, ou seja, da materialidade; dá nome aos animais, que também são parte de um outro, porque nós vivemos como animais, possuímos uma dimen-são animal.

Percebam, porém, ainda que o homem é in-completo. A humanização ainda não aconteceu. Quando acontece, diz o Gênesis, o homem não olha mais apenas para cima e para baixo, mas começa a olhar também para frente, olhos nos olhos. E o que isso significa? Significa a mulher. É o Outro que possui os mesmos sentimentos que o Eu. Minha dor torna-se a dor do Outro, minha alegria torna-se a alegria do Outro. Há, portanto, uma transposição completa. Pois bem, encerro aqui este prólogo para ir de encontro à sua per-gunta, porque a considero muito mais vasta que a simples negação de Deus.

O grande pecado da humanidade é o de ne-gar algum desses três Outros. Percebemos que começamos a anular o rosto do Outro material, da natureza, do mundo que nos circunda. Pensemos, por exemplo, no sentido da guerra, senão como ato de anular o Outro. Ou seja, perdemos aquela beleza de dizer algo através do amor. E aqui e agora eu entro na minha função de professor, na exe-gese do texto bíblico, sobretudo do Cântico dos Cânticos. Pensemos na figura daquela mulher,

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que é a protagonista do texto, que diz uma frase clara, inclusive em hebraico, sobre aquele Outro que não se deve perder, “o meu amado é meu, e eu sou sua, e eu sou do meu amado, e o meu amado é meu”. Vocês compreendem que essa frase é um sofismo? E digo isso talvez num certo sentido, como introduziu o professor Gleiser, de que é uma perda a destruição do Outro através da violência e da solidão, mas também é uma perda abandonar a visão do transcendente. Ou seja, compreender que nós não explicamos tudo, que há um Outro.

Um escritor francês, Georges Bernanos (1888-1948), disse que o drama do nosso tempo não é tanto a ausência de Deus, pois uma ausên-cia, paradoxalmente, pode ser uma presença se é percebida como essência. Quando nos sentamos à mesa, por exemplo, após perdemos algum ente e vemos aquele lugar que a pessoa ocupava enquanto estava entre nós, pois bem, nesse momento aquela pessoa ainda está, em certo modo, ali presente, mesmo que fisicamente não esteja mais.

Tantos ateus ou agnósticos têm um inte-resse em Deus mais vivo que muitos crentes que vão à missa no domingo. No entanto, às vezes, infelizmente, existe o vazio. E o vazio é nulo, sim-bolicamente.

Marcelo Gleiser

Eu serei breve. O que me preocupa em rela-ção a essa questão é saber sobre qual Deus você está falando, se é um Deus metafórico ou um

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Deus cristão. Qual é o seu Deus? Isso me deixa feliz, porque eu acho impossível o ser humano viver sem esse mistério. Mesmo o ateu mais fer-renho vai encontrar uma forma de expressar sua espiritualidade. É possível que não seja através de uma transcendência pelo divino, mas certa-mente será através do engajamento com alguma coisa. Com a poesia, com a arte. O fato é que vai haver uma necessidade de transcender a dimen-são humana. Nós precisamos disso.

Eu comecei minha apresentação dizendo que nós somos criaturas do tempo. Para mim, este é o grande drama da existência humana. É o fato de sabermos que o nosso tempo nesta vida é limitado. E o que podemos fazer com isso, com essa consciência? Afinal, é uma consciência que, convenhamos, é terrível, porque a vida é muito boa, nós sempre queremos mais da vida.

Então, para mim, esse é o ponto, essa ne-cessidade de transcender essa condição humana que é escrava do tempo é absolutamente inerente ao nosso ser. Portanto, creio que não teremos esse problema.

Márcio Campos

Eu gostaria de ressaltar duas observações, dois alertas que o professor Gleiser e o cardeal Ravasi fizeram sobre duas manifestações de uma mesma pretensão, eu não diria propriamente da ciência, mas de alguns cientistas. O professor Gleiser falou sobre a pretensão da ciência de ter todas as respostas e o cardeal Ravasi falou

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sobre a crença de que o único conhecimento vá-lido seja aquele que venha por meio da ciência. Estes são alertas fundamentais a serem feitos, sobretudo nesse ambiente universitário.

É sobre esse ambiente acadêmico que eu gostaria de formular uma pergunta. Como vocês veem o papel da universidade no fo-mento desse diálogo entre ciência e religião? Não apenas de uma universidade confessional, como esta em que estamos hoje, mas de uni-versidades laicas, especialmente aquelas em que existe, no ambiente acadêmico, um pre-conceito claro contra qualquer coisa que re-meta à religião.

Marcelo Gleiser

As universidades são muito diferentes, nos diversos lugares do mundo. É muito difícil dar uma resposta geral a isso, porque elas possuem hierarquias e estruturas muito diferentes. Por exemplo, na Universidade Católica – eu fui aluno da PUC-Rio, sou formado em Física por lá – nós tivemos aula de ciência e fé, ética cristã. Isto não acontece em outras universidades.

No modelo americano, por exemplo, cha-mado de educação liberal, você vai ao college du-rante quatro anos, e para se formar você precisa cursar 33 disciplinas. Destas disciplinas, 12 ou 14 são sobre o seu bacharelado, o restante é sobre outras áreas. Portanto, se você vai se formar em

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teatro, você vai precisar estudar Matemática, Fi-losofia, Literatura, algum curso sobre Mitologia, história da religião.

Com isso, você tem uma formação muito mais ampla e essas disciplinas são estruturadas como uma discussão. O professor senta numa mesa com quinze alunos e trata sobre algum assunto. Por exemplo, na universidade na qual eu leciono, eu dou uma disciplina intitulada “Ques-tione a realidade!”, que se trata, precisamente, sobre aquilo que estamos discutindo hoje, ou seja, o curso é sobre isso; nesse curso se fala o tempo todo sobre a relação entre ciência e reli-gião, sobre a questão do Mistério. E assim, exis-tem outros cursos em outras universidades que fazem coisas muito parecidas.

Acredito que seja uma questão de iniciativa, e aqui na PUC você já tem uma área sobre ciên-cia e fé. Com isso, imagino que nessa área esse debate já seja feito. Todavia, ampliar esse modelo a outras universidades seria muito difícil, afinal, você tem toda a razão, os magistrados que não se superpõem são muito fortes na academia.

Sendo assim, se você cursa Engenharia, você acredita que não tem nenhuma relação com Filosofia. Você não tem um curso de Filoso-fia na grade curricular. E isso é uma coisa que eu acho lamentável aqui no Brasil.

Portanto, se eu fosse professor aqui no Brasil, e lecionasse aulas de Física, que é a minha área, eu recomendaria aos meus alunos de En-genharia e Física lerem Filosofia, pois isso só lhes faria bem.

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Gianfranco Ravasi

Eu só gostaria de acrescentar algo que com-partilhei com o professor Gleiser quando nos conhecemos. Há quinze dias, na Universidade da Catânia, conversei com um colega e amigo seu, o professor Rovelli (1956), da Universidade de Marselha, justamente sobre os temas comuns aos nossos pontos de vista, neste caso, não apenas o ponto de vista de um teólogo e de um cientista, mas com uma explícita premissa, por parte do professor Rovelli, da sua participação àquele hori-zonte chamado de não crente, ou ateu, ou agnós-tico, é sempre difícil porque são todas definições curiosamente negativas. Devemos encontrar uma que tenha um caráter positivo para representá--las. Geralmente, em inglês, se prefere o termo humanist (humanista), mas não acho que seja uma boa opção, porque eu também me considero um humanista. Assim, eu me passaria por um ateu se essa categoria fosse nomeada dessa forma.

Devo dizer que em face ao ponto de vista do passado, seria muito difícil que houvesse este diálogo entre fé e ciência, entre Teologia e cultura, nas Universidades, sobretudo nas do Estado. Pois bem, agora, também através desta experiência no Átrio dos Gentios, a tentativa de diálogo é muito mais fácil. Estou admirado diante dessa plateia tão numerosa e atenta, mesmo frente às questões levantadas, que são mais teó-ricas, mais parecidas à crítica literária, mas que encontram a acolhida de um público semelhante. Não se esqueçam que os primeiros locais do Átrio dos Gentios foram em Paris, na Sorbonne, na UNESCO, na Academia da França e na Praça de

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Notre-Dame; um ambiente extremamente laico, ainda mais na França. A segunda experiência foi realizada dentro da Academia Real das Ciências da Suécia, onde se atribui o prêmio Nobel de ciências. Um lugar extremamente afastado de qualquer interesse de tipo filosófico ou teológico, sobretudo. O presidente da Academia Real das Ciências da Suécia, em Estocolmo, enquanto esperávamos para entrar na sala que já estava lotada, disse: “o senhor é o primeiro cardeal que coloca os pés aqui”. Essas coisas acontecem. Portanto, sou muito otimista; tenho a convicção de que diálogos deste tipo podem acontecer em todos os lugares extremamente laicos.

Kleber Candiotto

Quero parabenizar o cardeal Ravasi pela ini-ciativa de participar de debates como este mundo afora e que, salvo engano, agora, no sexto ano, nós o temos pela primeira vez no Brasil e hon-rosamente aqui na nossa universidade, PUCPR. Parabenizo também o professor Marcelo Gleiser por essa abertura ao diálogo e que por ser um cientista, como ele reconhecidamente é, demons-tra algo um tanto incomum atualmente, tendo em vista que a condição de cientista parece ligar-se a uma indiferença à relação, por vezes em forma de ataque.

Podemos, inclusive, fazer algumas menções rápidas: Sam Harris (1967), com sua obra O fim da fé; Daniel Dennett (1942), com Quebrando o en-canto: a religião como fenômeno natural; e, talvez,

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o ápice desse grupo de ateus radicais, como mui-tas vezes são denominados, com Richard Dawkins (1941), em sua obra Deus, um delírio, na qual busca, através de uma postura cientificista, fazer um re-ducionismo exacerbado acerca da ideia de uma teoria que dê conta de explicar tudo no universo, sobre as categorias de Darwin como explicação a tudo aquilo que existe no universo, desconside-rando, portanto, aquele princípio máximo de que a curiosidade nos leva, necessariamente, à miopia. Sobretudo porque a partir de uma perspectiva evolucionista não é possível preencher algumas lacunas, aquilo que de alguma maneira é chamado de o “elo perdido” – e muitos esquecem de algo fundamental, de que esse elo é perdido, ou seja, não é possível recuperá-lo.

Por outro lado, há autores que buscam, de um ponto de vista da ciência, mostrar que há um duplo domínio, ou seja, dois domínios de com-preensão da realidade e de como nossa mente pode compreender a realidade; e nesse ponto o cardeal Ravasi citou muito bem Stephen Jay Gould, sobretudo a obra Pilares do tempo: ciência e religião na plenitude da vida, na qual ele apresenta a categoria dos “magistérios não interferentes” (NOMA, sigla em inglês), enten-dendo que esses magistérios são formas de ten-tar entender o mundo, que possuem perspectivas diferentes, sendo que uma busca lidar com os fa-tos, enquanto a outra está no campo da moral.

Foi citado também hoje o nome de Galileu Galilei, afinal, quando se fala em ciência, é com-plicado esquecer este autor, sobretudo pelo fato dele buscar enfaticamente dizer que a Bíblia nos diz como se vai ao Céu, mas não como é o Céu,

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ou seja, que a Bíblia não é um tratado de astro-nomia; procurando, assim, evidenciar esse duplo domínio de compreensão a partir do qual nossa mente busca entender a realidade.

Passados quatrocentos anos, ainda temos a necessidade de mostrar que são dois magis-térios não interferentes e que um não anula o outro. Com isso, a minha pergunta é nesse sen-tido, passado todo esse tempo, nós ainda não encontramos essa abertura ao diálogo no meio intelectual, no mundo acadêmico que se fecha numa postura de não propiciar a compreensão de que são dois magistérios não interferentes. Estendo isso a outra questão: não seria, talvez, inclusive na proposta do papa Francisco (1936), em sua Encíclica Laudato Si’, hoje a questão da sustentabilidade como um elo, ou como uma necessidade, no qual ciência e religião inevita-velmente precisam dialogar?

Gianfranco Ravasi

Sem dúvida, a Encíclica Laudato Si’ está além do tema, que evidentemente é muito mais vasto. Pode ser lida em filigranas, com a sensibi-lidade do papa Francisco que é distinta daquela da teologia acadêmica, que é a minha, por exem-plo, sobre esses aspectos metodológicos. Pode ser lida, contudo, como um verdadeiro convite. E também como um campo importante, para ambos os lados, nos diálogos entre ciência e fé. O horizonte da Laudato si’ supõe, efetivamente,

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que nesse âmbito é possível, e inclusive necessá-rio, que ciência e fé dialoguem.

Mas eu diria que o problema que o profes-sor Candiotto propõe é outro. Nós, até agora, evitamos que houvesse entre nós uma questão que existe e que, bem ou mal, todos nós senti-mos. Existe, por um lado, ainda hoje, não diria um fundamentalismo, mas uma atitude agressiva por parte de ateus e crentes integralistas. Pre-cisamos reconhecer isto. E essas atitudes tor-nam, evidentemente, mais difícil a possibilidade do diálogo, sobretudo no nível popular, eu diria. Porque, na maioria das vezes, dentro da forma-ção intelectual nas escolas, há essa atitude de desdém de um professor cientista em relação à religião; assim como há o professor religioso que coloca a ciência como um perigo para a fé. Isso existe e devemos considerar este fenômeno. Po-rém, se consideramos como um fenômeno, não devemos compartilhar a renúncia.

Eu quero ler uma expressão que me parece propícia para definir o encontro desta noite e outros tantos parecidos que não debatem num sentido de enfrentamento. O diálogo, afinal de contas, é a razão de ser do Átrio dos Gentios. Eu peguei essa frase da obra O conhecimento do mundo físico, de Max Planck (1858-1947), que foi um cientista de grande relevo. Esta obra, acredito que seja da década de 1930. Ciência e religião, es-creve Planck, não estão em contraste. Mas, sim, necessitam uma da outra para completarem-se na mente de um homem que pensa seriamente.

Pois bem, eu acredito que podemos, no final das contas, em vez de distinguirmos essas categorias entre crentes e não crentes, com

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todos os problemas que elas evidenciam, co-locar ao menos uma distinção, que eu cito de duas pessoas que conheci muito bem, o car-deal Martini (1927-2012) e Umberto Eco (1932-2016). O cardeal Martini disse, certa vez, que talvez a distinção primária que devemos fazer seja entre pensadores e não pensadores. Vol-temos, agora, pois, à importância daquilo que eu já havia dito, de possuir um conhecimento que seja um tanto quanto possível polimorfo e abundante; que não seja, em vez disso, estrei-tamente setorial através da sua ótica e que olhe apenas para seu próprio percurso e seu pró-prio modo de ver a realidade. Pois este nosso cérebro, pensando, é absolutamente belo e absolutamente livre.

Marcelo Gleiser

Para mim, a questão essencial da ciência e da religião que parece causar muita confusão é a insistência radical de ambas as partes no fato de existir apenas uma resposta. Essa ideia de que perguntas complexas possuem apenas uma res-posta não faz o menor sentido. Se você me per-guntar se tomar uma aspirina é bom para a dor de cabeça, ótimo, sim, mas essa é uma pergunta simples. Existem perguntas que requerem mui-tas respostas. Na física, por exemplo, existe um conceito que julgo muito importante e que eu gostaria de aplicar na conversa desta noite que se chama complementaridade.

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Sendo assim, a questão aqui é sobre a com-plementaridade do saber. Eu comecei minha fala dizendo que o homem não sabe nada, que nós somos seres profundamente ignorantes. Possuir a arrogância de achar que sabe mais porque foi bem-sucedido na carreira científica é um absurdo, afinal ao sairmos do nosso mundo começamos a fazer perguntas muito próximas à nossa área, por vezes até dentro dela, e percebemos que não sabemos nada. Para mim, então, os cientistas arrogantes são cegos.

Meu avô, por exemplo, dizia uma coisa muito interessante. Segundo ele, se você usar um cha-péu maior que a sua cabeça ele vai cobrir seus olhos. Eu acredito que essa seja a questão tanto na ciência quanto na religião. Nós precisamos, so-bretudo nessas questões mais fundamentais, de uma complementaridade do saber e uma com-plementaridade sobre como expressamos nossa curiosidade em relação ao mistério. Portanto, sobre esses ateus aos quais você se referiu, é importante dizer que Sam Harris acabou de escrever um livro sobre espiritualidade. O que ele está fazendo, que é uma coisa que eu tam-bém tentei antes dele, é resgatar o conceito de espiritualidade mostrando que isso é uma manifestação de uma coisa muito profunda do ser humano. Vejamos, por exemplo, Santa Teresa D’Ávila (1515-1582): vários santos, vá-rias pessoas místicas, em várias religiões dife-rentes, têm uma relação profundamente sub-jetiva com a espiritualidade. De certa forma, a essência da religião vem de dentro, e depois ela vai se manifestar de outras formas.

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Então, talvez essa busca que mantemos pela transcendência não precise ser respondida de um modo apenas. Ela possui várias respostas e todas elas são importantes e complementares. Por isso, não é necessariamente verdade que os cientistas são contra a religião. Vários cientistas, inclusive, são pessoas profundamente religiosas. Nossa pergunta, então, é: como é possível compatibilizar essa atividade de cientista com a fé? A resposta deles é imediata: quanto mais eu aprendo sobre o mundo, mais eu admiro a obra divina. E para eles não há nenhum problema nisso. Ou seja, há várias dimensões de crenças entre cientistas, do mesmo modo que em qualquer outro ambiente de traba-lho. Todavia, é evidente que a atividade científica costuma nos levar a um ceticismo racional e que isso faz parte da ciência. Porém essa é a resposta, aquela pergunta “de onde vem a curiosidade hu-mana?” é que junta todos nós.

Pensando na primeira pergunta que foi feita aqui, “de onde nós viemos?”, podemos dizer que todas as culturas que nós conhecemos possuem um registro de criação do mundo, alguma forma de narrativa sobre a criação do mundo. Mas a ciência também tem uma narrativa. Portanto, é a partir dessa vontade de saber que os magistérios não apenas se sobrepõem sem contato como tam-bém se entrelaçam. Creio que esse é o caminho.

Fabiano Incerti

Apesar do nosso tempo avançado, permitir--me-ei ainda uma última pergunta antes de

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encerrarmos. Durante as respectivas falas, ocorreu-me uma alegoria, a ideia do Édipo, de Sófocles (495 a.C. - 406 a.C.). Há uma coisa interessante nessa história, porque, diferente da leitura de Sigmund Freud (1856-1939), na qual Édipo tem um problema de falta, ele é incons-ciente daquilo que vai acontecer, acredito que o problema seja o excesso, ou seja, ele vê demais. Édipo é capaz de ver tudo. Enquanto ele não vê tudo, ele não encerra a busca. E lembrando-me disso eu pensei na miopia de que falava o professor Gleiser. Isto é, quando falamos sobre ciência e religião, o não ver tudo, de alguma forma, talvez não seja o único modo de nos garantir alguma lucidez?

Marcelo Gleiser

De fato, muita luz cega. Nós discutimos um pouco sobre isso, sobre o fato de que a arte, a ciência, a religião, a filosofia e todos os modos do conhecimento são justamente uma tentativa de enxergar um pouco mais, mesmo sabendo que nunca enxergaremos tudo.

Desse modo, eu não diria que se trata ne-cessariamente de uma lucidez, mas são gestos que somos capazes de fazer numa tentativa de viver melhor. Creio que no fundo o importante é isso: nós queremos viver melhor, queremos ter uma vida mais produtiva, mais útil, uma vida que faça sentido e que tenha sentido. Então, essa é a busca; e ela se manifesta de várias formas para pessoas diferentes. Um pintor, por exemplo, vai pintar um quadro e expressar

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alguma coisa que lhe seja importante; um cien-tista vai escrever ou resolver uma equação que seja importante para o seu experimento; o crente vai se ajoelhar e orar para expressar essa mesma magia do desconhecido. Portanto, cabe a cada um fazer a escolha de como com-binar essas coisas todas.

Gianfranco Ravasi

Eu quero apenas acrescentar uma coisa à pergunta do professor Fabiano, porque eu con-cordo plenamente com esta leitura. Gostaria, portanto, de fazer apenas uma consideração. A sorte de sermos homens e mulheres, a nossa ca-racterística, por assim dizer, é a de não vermos tudo. E esta é uma experiência extraordinária que Deus não possui, afinal Ele vê tudo na con-cepção. Não pode haver n’Ele, como em nós, esta dimensão de incompletude. É puramente parte das nossas limitações, mas ainda assim é uma aventura admirável.

Gostaria de fazer um referimento à cultura grega. Esta manhã quando iniciamos as ativida-des do Átrio dos Gentios, me referi a uma frase da Apologia de Sócrates. Uma vida sem busca, diz Sócrates, não merece ser vivida.

Qual era o pecado fundamental no mundo grego? A hybris. Na Bíblia, por exemplo, o pecado original é o homem querer ser igual a Deus. O que diz a serpente tentadora? Você será como Deus, conhecedor do bem e do mal. Este é o pecado fundamental, que não te deixa compreender tua

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própria identidade de criatura limitada e finita, cuja tarefa é sempre a busca, percorrer um cami-nho, um destino. Mesmo através da modéstia, em exemplos citados anteriormente, ainda ali existe algum tipo de busca; mesmo que se busque uma realidade, um prazer pequeno, um mínimo deleite, existe sempre uma busca. Como já assinalava Maurice Blondel (1861-1949), existe sempre uma vontade querente e uma vontade querida.

Eu concluo com uma imagem, de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), autor alemão ilu-minista do século XVIII, que em sua famosa obra Nathan, der Weise (Natan, O Sábio) agrada tanto a crentes quanto a não crentes. Natan, O Sá-bio, está diante de Deus, que lhe apareceu com dois dons nas mãos. Natan consegue perceber, através das palavras de Deus, o que são aqueles dois dons, e diz: “Ó, Senhor, na tua mão direita tu tens toda a verdade, e na tua mão esquerda tu tens a busca paciente, cansativa e contínua pela verdade. Pois bem, toda a verdade é tua. A mim, te peço poder andar carregando a busca pela verdade”.

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Esta edição foi composta pela Editora Universitária PUCPRESS e impressa em sistema offset, papel pólen bold 90g/m² (miolo) e

papel Supremo 250g/m² (capa).

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ISBN 978-85-68324-77-6