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O que é EREM?

O EREM, Encontro Regional dos Estudantes de Medicina, é um espaço onde se reúnem estudantes de cada regional da DENEM (no nosso caso, a REGIONAL NORDESTE 1, que conta com as escolas de medicina da Bahia, Sergipe e Alagoas) para debater temas que não são vistos ou que são pouco vistos em sala de aula e que são fundamentais para a nossa formação acadêmica. O encontro ocorre uma vez ao ano, sempre em uma cidade diferente que tenha curso de medicina, dentro desses 3 estados. É um evento feito por estudantes para estudantes de forma dinâmica e ativa, pois durante todos os momentos, todos têm a possibilidade de construírem os espaços do EREM.

Encaixamos no EREM temas que são sempre atuais tais como o debate sobre sistemas de saúde, educação médica, sistemas de avaliação etc. Nele vemos a formação profissional e cidadã, por assim dizer, na sua visão mais ampla, ampliando a clássica visão “biopsicossocial”, que geralmente é vista nas escolas de forma restrita, colocando no EREM na direção da interligação com os demais setores da sociedade como trabalho, educação, cultura e arte, produção científica. Também sempre há atividades culturais e festas para a integração dos estudantes.

Apesar disso, cada EREM é um espaço único, em seu contexto. Teremos esse ano o tema: “Que médico vou ser quando crescer? Uma questão permanente”. Para conhecerem mais, contamos com a presença de todos os interessados. Dessa forma, em 2010 nos encontraremos em Ilhéus-BA, de 03 a 06 de Junho.

Rafael Correia de Sousa da Silva, DAM - UESB

Integrante da Comissão Organizadora EREM NE1 (CoEREM) – 2010

Regional Nordeste 1 da DENEM – CAs/Das dos cursos de medicina da Bahia, Sergipe e Alagoas:

Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC;

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB-Campus Vitória da Conquista;

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB-Campus Jequié;

Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS;

Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública – EBMSP;

Universidade Federal da Bahia – UFBA;

Faculdade de Tecnologia e Ciências - FTC;

Universidade Tiradentes – UNIT;

Universidade Federal de Sergipe – UFS;

Universidade Federal de Alagoas – UFAL;

Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas – UNCISAL.

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ÍNDICE

2. O que é EREM?

3. Programação Científica

4. A ideologia nos cursos de medicina

14. O Humanismo na Perspectiva de Estudantes de Medicina da UFAL

23. Para Autor, Ser Homossexual É Vício como Fumo

24. Reflexões sobre Preconceito – Em Busca de Relações mais Humanas

27. Ato Médico – Sim

32. Ato Médico – Não

36. A Morte da Saúde

37. Extensão Universitária

39. Conceitos Básicos sobre o Trabalho

43. A Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e a proposta de instituição de um Exame de Habilitação para o Exercício da Medicina no Brasil

46. O Modelo de Gestão do SUS e as Ameaças do Projeto Neoliberal

60. Ligas Acadêmicas

63. A Universidade e o “Rito de Passagem”

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A ideologia nos cursos de medicina

Marco Aurélio Da Ros

Da Ros MA. A ideologia nos cursos de medicina. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC (Orgs.). Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 224-244.

A proposta de redigir um trabalho com esse título pode apontar diversos caminhos. O entendimento que tive foi o de que o grande objetivo deveria ser colaborar para entender os porquês das dificuldades de introduzir (de fato) uma mudança na formação dos médicos.

Temos, hoje, o discurso e prática da Ministério da Saúde, dos municípios, e o consenso dos dirigentes do ensino de medicina sobre as necessidades de mudança. Redes de apoio do porte da Abrasco (Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva) ou da Rede Unida também participam ativamente, e mesmo assim as modificações são mais lentas que o desejado.

Como pano de fundo para justificar essa lentidão, surge a pergunta: seria a questão da ideologia na medicina um determinante? A proposta que me pareceu mais apropriada foi a de começar a dissecar isso.

Partindo do princípio de que a ideologia, se não é a única, representa uma causalidade muito importante, a abordagem do tema se ateve à tentativa de: entender um pouco do que significa ideologia, especialmente numa relação hegemonia/contra-hegemonia; a história dos movimentos que caracterizam essa relação, como determinante do pensar médico; uma pequena reflexão sobre a forma como se produz o conhecimento (epistemologia); uma tipificação caricatural sobre o médico “não mudancista”; e como podemos pensar em transformação com esse espectro desenhado. Tento usar uma linguagem que beira o coloquial, a fim de facilitar a compreensão do tema, e me parece apropriado iniciar por ideologia.

Alguns entendimentos sobre ideologia

Da profusão de autores que tratam o tema, Marilena Chauí1 me pareceua a mais adequada, por estudar diversos autores e apontar alternativas para quem quer se aprofundar mais no assunto.

O termo, segundo a autora, surge em 1801 na França, na tentativa de justificar a gênese das idéias no período napoleônico. A partir daí, foram surgindo outros usos e significados para o termo. Marx, por exemplo, afirma que o ideólogo é o que inverte as relações entre as idéias e o real; Comte assume novos entendimentos para embasar o positivismo; Durkheim o retoma para descrever as regras do método sociológico. Chauí afirma que:1

Ideologia não é sinônimo de subjetividade oposta à objetividade (...) não é um pré-conceito nem pré-noção, mas um “fato” social, justamente porque é produzida pelas relações sociais (...) possui razão muito determinada para surgir e se conservar (...) é uma produção de idéias por formas históricas determinadas das relações sociais.

Adota e aprofunda a concepção marxista de ideologia, afirmando, para explica-la, que a consciência está indissoluvelmente ligada às condições materiais de existência e que as idéias nascem, em última instância, das atividades materiais. Como cada um dificilmente pode escapar da atividade que lhe é imposta socialmente, todo o conjunto de relações sociais aparece nas idéias como se tivesse origem por si mesmo, e não fosse conseqüência das ações humanas. Nasce, assim, a ideologia, propriamente dita, que é sempre a da classe dominante:1

(...) o sistema ordenado de idéias ou representações, e das normas e regras como algo separado e independente das condições materiais, visto que seus produtos - os teóricos, os ideólogos e os intelectuais - não são diretamente vinculados à produção material das condições de existência (...) As idéias aparecem como produzidas somente pela pensamento (...).

Para relacionar o tema ideologia com a prática médica e com a sua resistência às mudanças, ainda tomo as idéias de Chauí, a partir de Marx & Engels.2 Ela afirma que a ideologia (entenda-se como dominante ou hegemônica) é possível em função da alienação:

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(...) enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar a prática imediata dos homens. Enquanto a experiência com a vida for mantida sem crítica e sem pensamento, a ideologia dominante se manterá.

Ora, é justamente o que penso que ocorre com a categoria médica hegemonicamente. Ela conhece a história da prática de sua profissão (a não ser para alguns contra-hegemônicos) apenas como mera sucessão de datas, personagens e inventos, descontextualizada e sem o entendimento das condições materiais da existência dos homens e duas relações naquelas épocas. Pios ainda: está convencida de que não tem de entender isso. Que já chegou à verdade científica. A alienação gerada pela ideologia dominante a faz pensar que sua vida e sua prática são dirigidas pela ação de entidades como a natureza, os deuses ou a razão (como se esta não fosse histórica também).

Marx & Engels2 dizem que “as idéias da classe dominante são em cada época as idéias dominantes (...) e aos trabalhadores é dada a alienação”. Buss3 confirma a mesma lógica e o papel do Estado nessas circunstâncias, aplicando-a aos profissionais de saúde. Ou seja, lhes é dado a imaginar que é natural e verdadeiro que as coisas sejam pensadas da forma como são.

É claro que se torna muito determinista e mecânico imaginar que o pensamento atual do senso comum, e dos médicos por extensão, seja dado somente porque é assim que o capitalismo ou neoliberalismo preconizam (já que é neste modo de produção que vivemos). Isto seria reducionismo.

Para entender melhor, Gramsci4 nos apresenta o conceito de hegemonia: a forma como o poder dominante se mantém. Mas isso não significa homogeneidade. Dialeticamente, há que pensar na construção de um contrapoder: noutra forma de pensar, que luta contra aquela e que desnuda a vida real dos homens. No neoliberalismo, a contra-hegemonia. 5,6,7

Como não pretendo um tratado sobre a questão ideologia-hegemonia-contra-hegemonia, e sim um entendimento com base na prática médica historicamente localizada, acredito que, se desvendarmos um pouco da história, do século XIX para cá, a compreensão do pensamento tanto hegemônico como contra-hegemônico ficará mais clara. A construção do pensamento na lógica interna será exposta no item “Um pouco de epistemologia”, após o entendimento do que ocorria na história nessa época (contada com óculos contra-hegemônicos, é claro).

O início desta história - século XIX

(...) a prática médica está ligada à transformação histórica do processo de produção econômica. A estrutura econômica determina, como acontece com todos os componentes da sociedade, a importância, o lugar e a forma da medicina na estrutura social.

Esta afirmação de Almeida8 confirma o que tentava discutir na questão ideológica. Há que se reportar á história.

No início do século XIX, o capitalismo já uma forma hegemônica da organização da produção no mundo desenvolvido da época - o europeu. E este capitalismo funcionava com uma superexploração da força de trabalho. Filmes como Germinal ou Daens mostram a vida do trabalhador da época. Também Engels9 descreve jornadas de trabalho de dezesseis horas/dia, grávidas tendo filhos na fábrica, crianças com menos de sete anos impulsionando teares em troca de comida (se chegavam a oferecer tanto). O exército industrial de reserva era abundante, e a mortalidade, inimaginável para os padrões de hoje. Nas fábricas não havia janelas, nem vasos sanitários. Os trabalhadores comiam no chão. A idéia era aproveitar até a morte a força de trabalho, depois... o exército industrial de reserva os substituiria. Nesse contexto, a teoria prevalecente da origem das doenças ainda era algo semelhante a miasmática, que eludia as questões sociais. Nessas condições, a contra-hegemonia gesta movimentos de transformação social, de caráter socialista. No seio desses movimentos sociais é que os médicos desenvolvem um novo conceito do processo saúde-doença. Esse movimento, chamado de medicina social, acompanha as tentativas de transformação social entre 1830 e 1870, tornando-se a explicação hegemônica para a ciência médica da época.

Em 1848, Virchow - considerado o pai da medicina social - afirmava que as doenças eram causadas pelas más condições de vida e, com Neumann, propõe mudanças nas leis prussianas, objetivando superar a exploração da força de trabalho e garantir melhores condições de sua reprodução, colocando no Estado a obrigação de suprir estas necessidades. 10 leubuscher e Villermé, na França, Chadwick, na Inglaterra, e Grotjahn, na Bélgica, trabalham simultaneamente com concepções semelhantes.

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Entre 1870 e 1900, com o desenvolvimento de diversos campos do conhecimento, aparentemente díspares, como patologia, histologia, química, fisiologia e, principalmente, microbiologia, eclode verdadeira revolução no conhecimento médico. A partir daí, seja por interesse do capital e/ou do complexo médico industrial, ou porque o conhecimento na área inicia sua fragmentação de fato, ou porque as tentativas de transformação social fossem derrotadas, ou mesmo por todos esses motivos, perde força, na Europa, o entendimento da saúde como questão determinada socialmente. 11

Behring, em 1898, segundo Rosen10, sintetiza a ruptura com o modelo de medicina social, dizendo que, graças à descoberta das bactérias, a medicina não precisaria mais perder tempo problemas sociais. A partir desse discurso de Behring e simultaneamente à teoria dos germes de Pasteur, a unicausalidade fica assentada.

A hegemonia, definitivamente, não gostava das pesquisas e investigações da medicina social, que apontavam invariavelmente para mudanças sócias, quer dos capitalistas ou do Estado que os representava. Teriam que aumentar salários, conceder direitos sociais aos menores e às grávidas, diminuir a carga horária de trabalho, garantir alimento e moradia decente, saneamento, lazer, etc. Já a unicausalidade descarregava a culpabilidade do poder e abria a possibilidade de culpar a vítima - “não usou equipamentos, não usou sapatos, não lavou as mãos, etc.” -, abrindo a porta ao higienismo na saúde pública e ao desenvolvimento de tecnologia de investigação para “unicausas” e para os medicamentos que erradicassem aquela “causa”.

Esta forma parece ser um exemplo típico de como a hegemonia instala ideologicamente um jeito de pensar (não se pensa mais na questão da sociedade). Na Europa, o pensamento bacteriano convive com o da medicina social em declínio, mas nos Estados Unidos, por condições particulares quer da formação social, quer do modelo médico preexistente, o terreno da unicausalidade rapidamente se torna hegemônico. Os médicos norte-americanos, enfim, faziam as pazes com a ciência.11 E esta ciência se pautava na possibilidade de o capital amealhar grandes dividendos.12 Instalavam-se as bases para o chamado complexo médico industrial:13 de aparelhos de investigação, com microscópios cada vez mais poderosos, a exames hematológicos cada vez mais sofisticados; de medicamentos sintomáticos a antibióticos; hospitais especializados cada vez maiores e mais equipados.

Sua base científica era a das ciências exatas. Abandona definitivamente a possibilidade de ser também uma arte.11 A medicina sempre tentou-se valorizar-se como ciência exata.14 Portanto, o biológico era o único pensamento aceitável enquanto pudesse ser convertido em dado matemático.11 Nestas condições de desenvolvimento do capitalismo norte-americano, de possibilidades de lucro no setor saúde/doença, com uma teoria que justificava esta lógica, o terreno era fértil para que ocorresse uma “revolução científica”, na linguagem de Kuhn.15

O modelo norte-americano

Em 1910, Flexner, professor da Johns Hopkins University, financiada pela Rockefeller Foundation,11 é contratado para realizar uma investigação sobre o ensino médico nos Estados Unidos. No início do século XX, havia cerca de 150 faculdades de medicina nos E.U.A., com toda espécie de ensino e qualidade, mais de vinte delas ensinando homeopatia, por exemplo. Flexner produz com sua equipe um relatório sobre essas faculdades, que aponta um modelo padrão, o da Johns Hopkins University. Embora aparentemente fosse um avanço para a época, mais tarde esse modelo seria caracterizado como negador de uma forma ampla dos aspectos psicológicos e sociais.16 Cutulo,17 em sua tese sobre educação médica, disseca profundamente o conteúdo desse relatório. Vejamos o que pode ser um resumo das principais idéias ali contidas:

(...) A ênfase do ensino deve ser dividida entre básico (dentro do laboratório) e profissionalizante (dentro de hospitais) (...) denuncia as chamadas seitas médicas como a homeopatia (...) discrimina negros e mulheres (...) hipervaloriza o ensino de anatomia (...) não há menção ao ensino de saúde mental, saúde pública ou ciências sociais. A base diagnóstica deverá ser física e biológica (...), e o melhor ensino é por especialidades. Sua concepção de ciência é manifestadamente positivista.

O chamado modelo flexneriano - e chamar dessa forma é mais um mecanismo ideológico para alienar - poderia ser chamado de medicina positivista ou modelo unicausal, ou modelo da Johns Hopkins, ou modelo da Rockefeller Foundation, ou modelo norte-americano, ou modelo da medicina do capital. Consolida-se nos E.U.A., e culpa-se hoje um homem, escondendo de novo, dessa forma, as relações sociais e econômicas embutidas na proposta.

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Esse modelo rapidamente torna-se hegemônico nos E.U.A., possibilitando o desenvolvimento das bases para o capitalismo auferir lucros com a doença - o chamado complexo médico industrial. Em poucos anos, expande-se para as Américas do Norte e Central, mas encontra dificuldades de hegemonia na América Latina.11

O complexo médico-industrial no Brasil e o Movimento Sanitário

O modelo flexneriano aporta com toda a força no Brasil em função do golpe militar de 1964. Já andava entre nós desde 1950, mas não era hegemônico. Nosso país baseava sua formação no modelo europeu-eclético.

Com o golpe a algumas de suas conseqüências - como a reforma universitária de 1968, a criação do Inamps, a expansão das faculdades de medicina (de 26 em 1963, para 56 em 1973) -, com o conteúdo curricular determinado pelo governo militar, atendendo aos interesses do capital, com a supressão do ensino da terapêutica, com a obrigatoriedade do ensino centrado no hospital, entrávamos, enfim, na “modernidade”. Era, então, criado o modelo que formou quase todos os professores de nossos atuais cursos de medicina - o modelo flexneriano.

O modelo de saúde imposto pelo governo militar restringia em muito as verbas para prevenção (de 8% do orçamento em 1963, apara 0,8% em 1973), e sua ênfase era posta na atenção à doença, privilegiando o uso de tecnologia. Financiava-se com dinheiro público a construção de hospitais privados. Pagava-se por ações realizadas, e, quanto mais utilizassem equipamentos, melhor pagamento recebiam. Isso destacava as especialidades de tal modo que a formação das universidades se voltava para esse novo mercado.18 O local de trabalho dos sonhos passava a ser o hospital, bem equipado, com muitos laboratórios e abundância de medicamentos.

A intervenção era curativa, e o Inamps privilegiava cada vez mais a compra de serviços em detrimento dos antigos serviços próprios dos IAPs (Institutos de Aposentadoria e Pensões).11 Os setores que se devolvem são a Federação Brasileira de Hospitais, a Abifarma (Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica), a medicina de grupo (Abrange - Associação Brasileira de Medicina de Grupo) e os produtores de equipamentos. Hipertrofiam-se as faculdades de medicina, onde não se ensina mais terapêutica. Fragmenta-se o curso em múltiplas disciplinas/especialidades, as aulas são ministradas pelo especialista mais atualizado (e não por quem entende de educação). O estereótipo do profissional subproduto desse modelo será visto no item “Um pouco de epistemologia”. Os antigos trabalhadores dos IAPs e do Ministério da Saúde reivindicam a volta de melhores condições de trabalho, exigindo mais verbas para prevenir doenças e serviços próprios, gerando movimentos denominados, respectivamente preventivistas e publicistas. A estes se somam o renascimento do movimento estudantil na área da saúde (os ECEM - Encontro Científico dos Estudantes de Medicina) e os intelectuais das universidades, que pleiteiam a democratização do país e desenham modelos alternativos de saúde, organizando-se em grupos como o Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), de caráter nacional. A eles se juntam o movimento popular de saúde, capitaneado pela Igreja, e o nascente movimento de medicina comunitária (Murialdo, no RS, as experiências de Londrina) e a organização da categoria médica no Reme (movimento de Renovação Médica).19,13

O que os irmanava era a luta contra a ditadura, contra a forma de atenção do complexo médico-industrial e a necessidade de associar prevenção com cura em um só ministério.

Na segunda metade da década de 1970, esses movimentos isolados se unem e constituem um grande ator social coletivo, chamado Movimento Sanitário ou Movimento pela Reforma Sanitária.

As políticas de saúde, a partir daí, são resultantes do confronto entre essas duas forças (complexo vs. Reforma), com evidente vantagem para a política dominante até o fim da ditadura militar.

Quanto a macrotendências ideológicas na medicina, o final dos anos 1980 mostra esses dois blocos: complexo médico-industrial vs. movimento sanitário.

No governo Tancredo/Sarney, realiza-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde - grande palco para a demonstração de força do Movimento Sanitário em Brasília. Dela se desenha a necessidade de construir o SUS e resgatar as bandeiras do movimento de medicina social europeu do século XIX - que a saúde fosse direito de todos e dever do Estado.

Do SUS ao Programa Saúde da Família

A aprovação da nova Constituição em 1988 e das Leis Orgânicas em 1990 garante legalmente um sistema público de saúde que deve ter equidade, integralidade, universalidade, controle social e hierarquização da

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assistência. A contra-hegemonia descobre, a duras penas, que a escrita do texto legal não é suficiente para o enfrentamento de uma hegemonia sanitária capitalista. Cada palavra destacada nos remte pensar na extrema dificuldade de sua implantação num país sem tradição de cidadania garantida.

Uma entre as múltiplas constatações é a de que as universidades têm de formar outro tipo de profissional. Um profissional que praticamente inexiste na atenção primária/básica. As filas nos hospitais são enormes em função disso. E a leitura que a hegemonia faz é de que devem ser construídos mais hospitais. O aparato ideológico tenta demonstrar sempre que o serviço público é ineficaz, que é só para pobres. As tentativas de reversão da tendência hegemônica são para reforçar o controle social, assumir a administração de municípios, elaborar portarias e normas operacionais, criar programas, fomentar mudanças na trajetória de formação. As histórias dessas tentativas podem ser simbolizadas pelas lutas da ABEM desde a década de 1970, mas muito mais fortemente a partir dos anos 1980. E 1991, cria, com outras entidades, a CINAEM, para agrupar essa contra-hegemonia na formação e apontar um modelo formador diferenciado.20

Os anos 1990 trazem perspectivas de algum grau de mudança, seja pelos dirigentes das instituições de nível superior na medicina ou por se iniciar em 1993 (governo Itamar) uma proposta de ênfase ministerial na atenção básica/primária/integral da família com a criação do Programa Saúde da Família (PSF).

A criação e a manutenção do PSF - que não deveria mais ser chamado Programa Saúde da Família, mas, sim, de Estratégia de Atenção Básica, porque é estruturante do SUS - permitem redimensionar a organização dos serviços de saúde municipais.

A viabilização de maior aporte de recursos para o PSF, a partir de 1997, por sobre a verba irrisória do Piso de Atenção Básica (PAB), estimula os municípios a contratarem, por salário mais digno, médicos que tenham alta resolubilidade e queiram trabalhar oito horas por dia, em equipe multidisciplinar, promovendo saúde e trabalhando com grupos terapêuticos nas comunidades onde se localiza o Centro de Saúde, fazendo educação e se vinculando a uma população adstrita.

Pois bem, aí se põe a contradição em evidência. Os municípios precisam de um profissional que as faculdades de medicina, na grande maioria, não estão formando, e não querem um especialista, nem trabalho no hospital.

O que nos pode parecer estranho na verdade tem uma razoável explicação. O capitalismo internacional, no interesse de garantir o pagamento de dívidas externas dos países aos bancos, passa a se interessar por colaborar com os países que queiram investir em atenção básica. O entendimento é que esta atende melhor, com menor custo. Isto permite que algumas diretrizes do SUS tenham financiamento internacional. Este fato, associado à luta do movimento sanitário, começa a criar outra hegemonia na área da saúde.

Surgem financiamentos internacionais para garantir um novo modelo de formação de profissionais de saúde, em especial o médico. Mas não se pense que o complexo médico-industrial não luta pela sua manutenção. Ou que o Banco Mundial e o Movimento Sanitário pensem da mesma forma.

Ora, se entendemos estes movimentos na área da saúde, entendemos que cada qual tenta manter sua hegemonia, impregnar sua ideologia.

Os movimentos que propugnam a mudança (que também não pensam exatamente da mesma forma), como ABEM, Rede Unida, Abrasco e CFM, pressionam o MEC em busca de mudanças. E estas surgem, como por exemplo, a aprovação das diretrizes curriculares em 2001, para modificar os cursos da área da saúde até 2004.

As sucessivas gestões do Ministério da Saúde aportam mais e mais recursos para colaborar com a mudança, seja por intermédio do PROMED ou agora com os Pólos de Educação Permanente, trabalhando em todos os níveis: desde parcerias com o serviço às residências ou mestrados profissionalizantes.

Mesmo assim, nas faculdades de medicina, a mudança é lenta; com muitas dificuldades. Parece haver uma tendência a não mudar, e isto nos remete a pensar nas teorias do conhecimento.

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Um pouco de epistemologia

Fleck,21 médico epistemólogo, ao estudar estilos/coletivos de pensamento, nos explica como se dá a instauração de um estilo, como dentro de um coletivo ele se mantém e granjeia novos “adeptos”, e como um estilo tende a persistir e a não dialogar com os diferentes.

Na gênese da mudança de um estilo de pensamento, vários autores adotam, na lógica construtivista, maneiras semelhantes. Já nos parece suficientemente explicado que a determinação é externa, social e ideológica; mas é preciso esclarecer um pouco mais a lógica interna. Autores como Kuhn,15 falando de revolução científica para mudança de paradigmas, Bachelard,22 tratando de rupturas epistemológicas, ou Piaget,23 dizendo das desequilibrações para construir um novo pensar, nos trazem as dificuldades estruturais internas de mudança no pensar.

Esquematicamente, podemos dizer que há três níveis de dificuldade para mudança:

a) Estruturais externas - as que envolvem o capitalismo internacional e nacional. Da organização Internacional do Comércio ao complexo médico-industrial. As do governo, como a estrutura do MEC, a lógica do Ministério da Ciência e Tecnologia;

b) Estruturais internas - dependentes do contexto social: como se constrói um estilo de pensamento;

c) Conjunturais - GED (gratificação das universidades federais); não-contratação de mais professores; professores que não acreditam em educação; falta de disponibilidade horária para reuniões; não haver dedicação exclusiva; a estrutura dos guetos departamentais; a não-prática acadêmica; a separação básico-profissionalizante; o reconhecimento de liderança para chamar uma reunião só se for do “seu time”.

O caso que nos interessa examinar neste trabalho é a existência de dois grande blocos ideológicos e a diferença entre eles, para tentar caracterizar as dificuldades estruturais internas. O agrupamento a seguir radicaliza as diferenças, mas a partir delas poderemos pensar em matizes.24

Grosso modo, hoje as tendências ideológicas podem ser divididas assim:

MUDANÇA NÃO-MUDANÇA

Movimento pela Reforma Sanitária Atuação/valorização do complexo médico-industrial

Verdade como processo/provisioriedade Verdade absoluta

Valorização da pesquisa qualitativa Só interessa a pesquisa quantitativa

Valorização da psicologia e do cultural Valorização da célula e da química

Valorização da atuação multiprofissional/interdisciplinar

Todo poder ao médico

Valorização da pessoa como um todo Valorização do conhecimento fragmentado

Permeabilidade/humildade Onipotência

Flexibilidade Rigidez

Pensamento crítico político Alienação

Centro de saúde/comunidade Hospital/indivíduo

Inclui promoção de saúde Só trará o doente

Educação como relação sujeito-sujeito, na relação médico-paciente

Educação com o médico-sujeito e o paciente como objeto

10

Flexibilidade para outras racionalidades médicas

Fechamento para outras racionalidades (chamadas de charlatanismo, etc)

Valorização da saúde pública Negação à saúde pública

É claro que são estereótipos, mas servem como balizamento para entender os grandes confrontos ideológicos.

Acredito que uma caricatura de um exemplo prático seja a forma mais fácil de decodificar como se dá a entrada de um novo integrante num estilo de pensamento e como este vai reproduzi-lo depois. Tomemos um médico, que trabalha como professor vinte horas por semana num hospital-escola e outras vinte horas semanais em seu consultório privado, numa policlínica, em sua especialidade. Faz dois plantões em emergência por semana. Fez sua especialização num hospital em Ohio (E.U.A.), tendo morado lá durante quatro anos. É professor há dois anos, e seu salário como tal beira o ridículo. Um de seus alunos na décima terceira fase do curso pergunta sobre um detalhe anatômico raro num músculo que só uma cirurgia especializada consegue visualizar. O professor sabe a resposta, estudou muito sobre aquilo (aquele pedaço do corpo), já salvou vidas em função disto, ganha dinheiro com esse saber, fez um curso recente de atualização e aprendeu novos exames e medicamentos a recomendar. Ele não lembra o nome de seu paciente, também não sabe se tem família ou em que trabalha; refere-se a ele como “o do leito 14”. Lembra que suas aulas (quando ainda era aluno) eram para cem alunos, e ele tinha que estudar muito em casa para decorar novas inserções musculares (era isso que caía na prova); teve de “ralar” muito para conseguir fazer sua residência; teve de copiar o discurso de seus professores (estudando por cadernos), se não “rodava”. Lembra quando o professor disse que, se não usasse as palavras científicas, não seria aceito no coletivo. Lembra também quando ouviu o “rolar protodistólico” no leito 37, que o professor de semiologia tanto valorizou; seus colegas não ouviram (Ah! Que satisfação tão grande ganhar uma competição de conhecimentos...). Portanto, aprendeu um jeito de falar, teve reforço psicológico por ouvir de uma determinada forma, tirou notas boas por decorar técnicas, e em função disso foi aceito num coletivo. Acabava, dessa forma, de entrar no estilo de pensamento hegemônico, sem ao menos saber o que é hegemonia ou os grandes blocos históricos.7

Além disso, dentro do estilo de pensamento gerado, ele só será aceito e respeitado se cumprir algumas regras do coletivo, tais como: nossa verdade científica não aceita que possam existir outras verdades (a isso Fleck chama de incongruência/incomensurabilidade entre estilos de pensamento); os outros profissionais da saúde estudaram menos, sabem menos, tem menos responsabilidade, portanto quem deve tudo mandar é o médico. E, como conseqüência, trabalho interdisciplinar não cabe. Para manter o monopólio do conhecimento do fragmento, deve participar de muitos congressos de especialidade, onde não existem questionamentos sobre o caráter geral/social que a medicina deve ter.

Quando for professor vai fazer uma “suave coerção”21 para que os alunos tenham os mesmos rituais de iniciação, falem a mesma linguagem e reproduzam o estilo de pensamento, e que construam muros para não deixar entrar outras idéias “alienígenas”. E entende que, para ser bom professor, basta aprofundar o conhecimento técnico da especialidade e despejar este conteúdo no recipiente vazio, que é a cabeça do aluno.25

O objetivo é reproduzir o seu modelo (considerando que seja bem intencionado), e, portanto, será o da medicina privada, que lhe dá dinheiro. Pede muitos exames e receita muitos remédios porque senão diz que os pacientes não acreditam nele. E ainda, se não pedir e acontecer algum contratempo, poderá sofrer uma ação judicial. Fala uma linguagem de círculo esotérico/só para iniciados,21 o que lhe dá a impressão de que os pacientes e os alunos ficarão embevecidos de ouvi-lo. Tudo o que não esteja de acordo com o seu pensamento cartesiano é “falsa medicina”, perda de tempo ou politicagem. Não conhece o SUS, ou o que seja promover saúde. Saúde pública é para sanitaristas. Desconhece ou nega que epidemiologia é a base de seu raciocínio.26 Acredita que, se a maioria da categoria médica pensa de uma forma, nada vai mudar nas políticas de saúde (nem para ele), por isso não precisa estar atualizado nelas. O melhor lugar para pedir exames é uma clínica que já tenha laboratório ou um hospital. Ah! O hospital!!! Entende que não é possível saber toda medicina, então se aprofunda na parte (oportunamente na víscera). Acredita que sabe tratar prescrevendo: exercício, dieta, mudança de hábitos, medicamentos e cuidados. Mas atenção! É aqui que a falácia se estabelece:

- Onde ele aprendeu medicamentos? Na farmacologia da quarta fase? Como os representantes de laboratório? Copiando como verdade o que o professore do leito prescreve?

11

- O que sabe de dieta, se em seu curso não gastou mais que (no máximo) vinte horas estudando alimentos?

- Exercícios adequados ele aprendeu com fisioterapeuta ou com professor de educação física? Já que médico tem de ensinar médico, qual o médico que sabe disso?

- Para mudar hábitos há implicações pedagógicas. Onde aprendeu educação? Vendo os seus professores? As propagandas do Ministério? Já estudou alguma vez Paulo Freire ou pedagogia problematizadora ou PBL?

Existem, portanto, dois grandes blocos/macrotendências ideológicas. Dentro deles, diversas nuanças. O estereótipo acima pode até nem existir de forma tão radicalizada, mas... Faz pensar. Como se faz então para que a mudança, na direção que a contra-hegemonia deseja, possa acontecer?

As possibilidades de mudança

Se a ideologia está baseada nas condições materiais de existência, e estas produzem o pensamento hegemônico, a mudança do mercado de trabalho é um potente mecanismo indutor de mudanças. Com uma nova lógica de financiamento para a atenção básica e sendo o grande agente contratador os municípios - que recebem mais por terem médicos gerais que promovam saúde -, há um estímulo para que formação se dê de forma diferenciada.

Ao lado dessa questão estrutural, as forças que apostam na mudança têm de investir numa ruptura epistemológica/revolução científica/novo estilo de pensamento dentro das academias. Isso se dá sensibilizando os serviços/comunidades onde os alunos começaram a conviver, os diretores das faculdades e, principalmente, passando pela ideologia dos alunos e professores dos departamentos. Aí é que está o nó. Em sua maioria, os professores não abrem brechas em suas muralhas, não querem conversar, são impermeáveis, boicotam a mudança, pois esta os deixa inseguros (isso é a incongruência fleckiana de pensamento).

As possibilidades nas universidades estão no trabalho interdisciplinar; no ouvir os alunos; na inserção precoce destes, em contato com as pessoas das comunidades; na inclusão do conteúdo educação/pedagogia nos cursos; na criação de rodas de discussão (no começo só os permeáveis virão; é necessária a insistência permanente na abertura aos outros, às diferenças).

Portanto, ouvir o outro, respeitar opiniões diferentes, permitir-se considerar que seu pensamento não está pronto - que não há um jeito de olhar, que existem possibilidades boas de atuações diferentes da sua, que as respostas que temos dado podem ser muito melhoradas.

O problema é que quem admite essas premissas já está permeável ou em processo de mudança, pois está construindo o novo modelo. Os que não aceitam isso é que não querem o novo modelo.

Para trabalhar a questão, que é fundamental, temos que entender cada vez mais como funcionam “as cabeças” dos médicos do modelo tradicional. Não adianta iniciar as discussões por filosofia/epistemologia, porque eles nem virão se o tema for este. Só admitirão reconhecer esses assuntos como importantes se sua “verdade médica” for abalada. É o que Cutulo17 chama de criar ou buscar complicações para este raciocínio linear do positivismo. Desestabilizar as “verdades”. Portanto, trabalhar com o desmonte dessas verdades médicas que não incorporam o psicológico, o cultural e o social.27 Desconstruir o “paradigma” biologicista. Desmascarar as certezas (saber remédios, dietas, exercícios, cuidados; onde aprenderam?).

Será necessário formar novos profissionais, mesmo que o grupo contra-hegemônico seja minoritário, para que estes sejam os novos professores. O Ministério da Saúde tem feito a sua parte, estimulando as rodas de Educação Permanente, também como fonte de financiamento para projetos. A Portaria 198 do Ministério da Saúde de fevereiro de 2004 (MS-2004) caracteriza a Educação Permanente como a continuidade da luta pela reforma sanitária e a ruptura dos monopólios do saber; não é a academia que tudo sabe, nem o serviço, porquanto fruto também dessa academia, mas a interface dos dois, com os atores do controle social, que pode apontar as verdadeiras necessidades da população.

Teremos de continuar a pressionar o MEC, ampliando o número de aliados nesta direção, para rever sua política de pós-graduação, compatibilizar as necessidades da população com as residências médicas (aliás, por que não multiprofissionais?), contratar novos professores, mudar a graduação, etc.

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Não se trata de abandonar a prática médica clínica tradicional, mas redimensiona-la, ressignificá-la, enquadra-la numa prática humanizada, crítica, reflexiva, que veja a pessoa como um todo nas suas relações e que amplie as possibilidades de resolubilidade. Em suma, contribuir para que o povo reaja às situações de opressão física, mental e social, e possa ser mais feliz. E isso inclui as possibilidades para que o médico também possa ser.

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O Humanismo na Perspectiva de Estudantes de Medicina da UFAL

Cristina Camelo de Azevedo1; Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro1; Sylvia Helena Souza da Silva BatistaI2

1Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Brasil

2Universidade Federal de São Paulo, Santos, Brasil

Revista Brasileira de Educação Médica

Rev. bras. educ. med. vol.33 no.4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2009

RESUMO

Este artigo apresenta uma pesquisa que analisa as concepções de humanismo e suas contribuições para a formação médica, na ótica discente, no âmbito do curso de Medicina da Universidade Federal de Alagoas, no período compreendido de novembro de 2006 a julho de 2007. A metodologia escolhida foi a de realização de cinco grupos focais, nos quais foram coletados os depoimentos de 73 estudantes, analisados posteriormente por meio de referencial sobre as práticas discursivas. Os resultados encontrados destacam três aspectos acerca do que o estudante observa e vivencia: na relação com a instituição, o curso e os sentimentos que surgem no seu processo como aprendiz; sobre a relação aluno-professor no curso médico; e, por fim, sobre a relação médico-paciente e demais pessoas com quem o médico interage em seu exercício profissional. Surgiram elementos indicativos de um aprendizado entremeado de sinais de contrariedade, irritação, impaciência e intolerância com os professores e seus métodos e com a instituição. A humanização não é sentida nas práticas pedagógicas da formação médica, embora seja priorizada nos espaços formais iniciais do curso médico.

Palavras-chave: Humanismo; Humanização da assistência hospitalar; Estudantes de Medicina; Educação médica; Relações médico-paciente

INTRODUÇÃO

“A educação é um ato intransitivo, quer dizer, o educador não pode transformar a outrem que não esteja se transformando no próprio trabalho de ensinar”. Álvaro Vieira Pinto1

Ingressamos no século 21 incentivados a analisar as condutas ético-humanistas que vêm sendo motivo de interesse e preocupação de profissionais e estudiosos que analisam a formação para a área de saúde e as práticas nela realizadas. O termo humanismo e seus equivalentes nas várias línguas surgiram em meados do século 15, no período do Renascentismo. Para os autores latinos, humanitas era uma palavra que significava algo próximo à educação e formação do homem, à semelhança do que os helênicos queriam expressar com o termo paideia. Para o filósofo francês André Comte-Sponville2, a palavra humanismo significa considerar a humanidade um valor supremo. Para ele, a verdadeira questão é saber se devemos crer no homem (humanismo teórico) para querer o bem dos indivíduos ou se podemos querer seu bem (humanismo prático) mesmo tendo todas as razões para não nos iludir quanto ao que são [...] Não é porque os homens são bons que devemos amá-los, é porque não há bondade sem amor [...] Não é preciso crer no homem para querer o bem dos indivíduos e o progresso da humanidade (p. 285-286).

Outro modo de pensar que contribuiu para a compreensão da complexidade que reveste a humanização das relações humanas é a que toma como base a filosofia do diálogo de Martin Buber3, que investiga a relação de reciprocidade existente entre o binômio EU-TU ou EU-ISSO, em que TU é o Outro com quem nos relacionamos como pessoa e por intermédio dele nos desenvolvemos, e ISSO é a experiência objetal. Durante todo o processo de educação do ser humano, a presença do Outro, nas mais variadas formas de interação, contribui, altera ou reforça o Eu, mesmo quando essa relação também se estabelece de forma utilitária, por dominação ou controle, como é o caso do binômio EU-ISSO.

No contexto da formação para a área de saúde, Nogueira4 recomenda que, para alcançar uma meta diferenciada no campo da humanização das relações assistenciais, deve-se investir, desde o início, na formação dos futuros profissionais. Programas de recepção a estudantes no início dos seus cursos, visando facilitar sua integração a um novo e complexo ambiente como a universidade, têm constituído uma medida positiva para que esse novo profissional, ao ser acolhido, possa compreender a importância de replicar essa prática posteriormente. No decorrer do curso, devem fazer parte do currículo os conteúdos humanísticos que incitem discussões sistemáticas sobre

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conteúdos bioéticos, morais, culturais, psicossociais, alimentados, com o passar dos anos, pelas práticas vividas pelos alunos. Ainda hoje é comum a desconsideração a manifestações psíquicas do paciente, levando o médico a optar por condutas pouco adequadas para o atendimento das necessidades do paciente. A autora também sugere que se disponibilize para os docentes um programa de preparação pedagógica, que não tem sido priorizado nos ambientes universitários.

Batista e Silva5 refletem que "quando o docente estrutura sua tarefa, precisa pensar no outro que aprende". E numa investigação realizada com pós-graduandos acerca dos atributos de um bom professor em saúde, identificaram características vinculadas às seguintes dimensões: domínio científico, ter experiência como profissional, ter conhecimentos didático-pedagógicos, ter atitudes humanizadoras com os estudantes, saber ouvir, ter paciência com o não saber do aluno, estimular a pesquisa e gostar de ensinar. Para Maia6, "os currículos tradicionais na área da saúde seguem uma lógica positivista, em consonância com a visão mecanicista do homem que perpassa as concepções dos formadores".

Ao fazer a leitura desses recortes teóricos e estabelecer uma vinculação com as competências desejadas para o profissional de medicina, descritas no artigo 5º das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina7, vê-se que a preocupação com o desenvolvimento de um médico saudável de corpo e mente, comprometido com a comunidade em que está inserido e educador por concepção, tem atravessado os tempos.

O processo de preparação para a reestruturação do currículo médico da Universidade Federal de Alagoas iniciou-se em 1999, contando com a participação de docentes, técnicos e alunos. Em 2002, foram realizadas várias oficinas de diagnóstico do curso. Nessas oficinas, apareceram como elementos dificultadores, apontados pelos próprios professores, o descompromisso do docente ou profissional médico com os alunos, identificado por meio do descuido com a definição, elaboração e manutenção do espaço de aprendizagem; a inabilidade, caracterizada por um descaso com a dor e a vergonha do outro por estar doente, no trato com pacientes atendidos nos campos de práticas; e a estimulação proposital do medo do aluno para com o fracasso e o erro, transformando o ato de aprender em uma tortura. Emergiu, também, a conduta individualista do médico enquanto membro de uma equipe multiprofissional.

Neste contexto, realizou-se uma investigação sobre a questão do humanismo no curso de Medicina da Ufal com o objetivo central de analisar as concepções de humanismo e suas contribuições para a formação médica, na procura de compreender quais os sentidos que permanecem para os estudantes sobre o que eles aprendem e vivenciam no curso médico.

A PESQUISA

A pesquisa foi divulgada no âmbito do curso, no período compreendido entre novembro de 2006 e fevereiro de 2007, mediante reuniões da Faculdade com os alunos, no Centro Acadêmico e nas salas de aula. Dos cinco grupos focais constituídos participaram 73 estudantes, sendo 29 do primeiro ano, 10 do terceiro, 17 do quarto e 17 do sexto ano. Cada reunião teve a duração de duas horas, perfazendo um total de dez horas de coleta de informações. Dois estudantes do curso de Psicologia da Ufal foram capacitados para acompanhar, gravar e anotar as falas, condutas e outros aspectos significativos das reuniões.

Segundo Nogueira-Martins e Bógus8 o processo de coleta de dados - grupo focal - pode ser utilizado para identificar conceitos, crenças, percepções, expectativas, motivações e necessidades de um grupo específico e, posteriormente, essas informações podem ser aproveitadas para subsidiar programas de intervenção.

Foi usado um roteiro simples de quatro perguntas, previamente testado: O que lhe vem à mente quando se fala em humanismo? Que ideia de humanismo tem sido desenvolvida no curso de Medicina? Durante o curso, que experiências ou situações você considera que têm contribuído para a formação humanista do/a estudante? Como foi participar dessa discussão?

A constituição dos grupos focais foi alcançada após a superação de algumas dificuldades iniciais em função de o horário disponível dos estudantes ser dificultado pelo número de horas investidas no curso. Foi solicitada a ajuda de alguns professores, que nos cederam seus espaços de sala de aula para realizar a pesquisa com os alunos que se oferecessem para isto. Todas as reuniões foram realizadas em ambientes da Ufal, previamente preparados para garantir a manutenção da privacidade e o afastamento das demandas externas, que geralmente prejudicam a atenção dos grupos.

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O referencial metodológico que fundamentou a análise das falas desenvolvidas nos grupos focais foi o das práticas discursivas de Spink9, conceituado como a "linguagem em ação, isto é, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas". As falas foram transcritas e analisadas, considerando-se inclusive as observações feitas sobre gestos, interpolações de resistência entre duas ou mais pessoas, exacerbação de emoções, dificuldades de compreensão das perguntas, imprecisão ou assertividade das respostas, ansiedades de cada um dos grupos. Por último, foi elaborado um mapa descritivo das falas, no qual se destacaram seis categorias gerais, a partir das quais os conteúdos foram organizados, tendo-se o cuidado de preservar a sequência das falas, evitando, assim, descontextualizá-las. As seis categorias foram: 1. Expressão de valores virtuosos; 2. Influências do processo de educação em geral; 3. Relação médico-paciente vivenciada (ou interpretada) a partir da formação médica; 4. Relação aluno-professor; 5. Reconhecimento/convivência com perspectivas e limites profissionais, sentimentos e emoções; 6. Influências do contexto mercantilista na prática médica.

A seguir, exemplificamos como os mapas foram formados:

Para a compreensão do mapa, é importante observar que a leitura vertical das colunas possibilita a leitura dos repertórios, enquanto a leitura horizontal permite a compreensão da dialogia. Após a formação do mapa, foi realizada uma leitura mais ampla dos sentidos nele expressos, por meio das categorias estabelecidas. O material coletado foi volumoso e, por conta disso, das quatro perguntas feitas aos alunos, aprofundamos, até o momento, apenas as duas primeiras, por terem fornecido um corpo de ideias suficiente para procedermos à reflexão acerca do tema humanismo no curso médico e dos objetivos que nos propusemos alcançar.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Três aspectos ficaram visíveis, tanto durante a realização dos grupos focais, quanto na análise das falas. Em alguns momentos, não foi possível fazer recortes precisos na análise desses aspectos, visto que as relações entre eles estavam ora imbricadas, ora interdependentes.

O que os alunos observam acerca da instituição, do curso e sobre si próprios no papel de aprendizes

Este aspecto mostra um ato de aprender entremeado de sinais de contrariedade e irritação por estarem na situação de aprendizes, emoções essas que foram captadas por meio das palavras e tonalidade das vozes, ora intensas, ora contidas, ora impacientes, ao abordarem as diferentes situações, vividas e atribuídas às condutas dos professores, a seus métodos ou à forma indiferente como percebem que a instituição trata das demandas ou solicitações dos discentes.

[...] A universidade está tentando formar profissionais humanos... Ela está sempre focando a relação médico-paciente, que o médico tem que ser humano. Só que em minha opinião é uma hipocrisia, porque, na verdade, ela só fala, mas quando chega ao final, temos mil coisas pra fazer, vários trabalhos... estamos cansados e vamos por obrigação para as aulas que deveriam ser humanizadas. (1º ano)

[...] Temos visto a Faculdade como um lugar de muito trabalho, muito estresse e de grande cobrança, mesmo não sendo formados ainda. Não temos o tempo necessário para cuidar de nós mesmos. (6º ano)

Milan et al.10, ao analisarem o universo psíquico do estudante de Medicina, verificaram que os estudantes dos primeiros anos, após uma fase de euforia, ocorrida logo após o ingresso na Faculdade, passam para a fase de desencanto com as aulas, com os professores, queixando-se da "má didática das aulas, ao volume excessivo de estudo e à pouca utilidade dos cursos, vistos por eles como teóricos e afastados da Medicina em si" (p. 78). Para esses autores, o desencanto do estudante aumenta porque ele não consegue perceber que enfrenta uma fase de transição nunca experimentada, na qual passa de um sistema paternalista de ensino para outro mais autônomo, em que precisa criar seu próprio método de estudo.

Essas críticas persistiram nos grupos de alunos do quarto ao sexto ano. Tassara e Damergian11, ao estudarem a construção da subjetividade do sujeito, refletem sobre o quanto tem sido difícil afirmar a identidade psíquica e social, manter a autonomia e participar criticamente da realidade dentro das condições que a sociedade atual impõe. As trocas indispensáveis à subjetividade são marcadas pela rejeição, pelo ódio, pela indiferença. Os investimentos afetivos na sociedade contemporânea são, em grande parte, da mesma ordem, ou seja, falta amor, fundamento para a bondade e o caráter. As pessoas são coisificadas, e as coisas, personalizadas.

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Para o aluno, a coisificação das pessoas e a personalização de coisas acontecem no curso e na universidade quando ele sente que seu cansaço, suas reivindicações e seu adoecimento não importam tanto quanto o cumprimento de prazos de entrega de trabalhos e a frequência assídua às atividades acadêmicas.

[...] Temos vivenciado situações de perder provas devido a doenças, mas, mesmo assim, não temos o direito de fazer segunda chamada. O professor é médico, nos tem visto doentes, mas ainda assim não nos permite fazer uma reavaliação. Quando conseguimos fazê-la, temos que enfrentar uma burocracia enorme, precisando que alguns alunos recorram à junta médica [...] Nós não nos sentimos humanos aqui. Temos

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vivenciado aquela famosa frase: "interno não é gente, residente não é médico". Esse é o lema do humanismo aqui dentro. (6º ano)

Em outros momentos, os estudantes se veem impossibilitados de aprender condutas humanizadoras, ora porque se consideram tolhidos pelo que vivenciam no curso, ora porque acreditam que chegaram à escola com um saber já constituído sobre essa questão durante seus estágios anteriores de vida.

[...] Isso não se ensina... [...] Mas eu acho que não leva a nada. Eu acho que, por mais que se ensine a ser humano, tem que partir da pessoa. (3º ano)

[...] O humanismo também vem da sua educação e da sua vivência. Por exemplo, uma pessoa que tem algum tipo de preconceito não vai conseguir nunca ser humana. [...] Mesmo que ela escute na Faculdade, milhões de vezes, que ela deve tratar as pessoas de forma igual, ela não vai conseguir. (1º ano).

Para compreender essas visões dos alunos sobre a descrença na capacidade da escola em ensinar condutas humanísticas, nos reportamos aos estudos de Barrere e Martuccelli12, que apresentam a escola como um campo que se vê, hoje, incapaz de reconhecer a legitimidade das preocupações éticas contemporâneas acerca das relações do sujeito consigo próprio, com o outro e com a sociedade. Para os autores, a modernidade produziu um relativismo moral que deu espaço ao fortalecimento do individualismo e do utilitarismo como ideais pessoais.

[...] Tem aluno que já chega com o pensamento de que vai cursar medicina para ganhar dinheiro, ficar rico, ganhar status e esquece o lado humanista. Tem alunos que chegam... que são esforçados, querem ajudar, tudo isso. A realidade é essa. Tem muitas pessoas que, infelizmente, estão no curso por status, só pra ganhar dinheiro. (3º ano).

Para esses autores, a modernidade desenvolveu um individualismo vazio, centrado em duas grandes concepções de individualismo: uma é centrada no desempenho, na capacidade de domínio do ambiente, uma racionalidade que é instrumental e estratégica; a outra se baseia na expressão, no desejo de fazer valer sua autenticidade.

Esse duplo individualismo aparece claramente nos discursos dos discentes, alternando as ideias que se voltam ora para a preocupação com o desempenho, ora para a vontade de ser autêntico, mantendo a integridade do ser e não precisando se metamorfosear para participar da realidade vivida. Algumas falas expressaram as ocasiões em que a preocupação com o desempenho prevalece, tal como:

[...] a técnica que a gente vai adquirindo no curso diminui também o humanismo. Por exemplo, no primeiro ano, a gente disseca cadáveres... "Minha filha, você vai abrir o cadáver... você tem que ter respeito" (a aluna recorda o que disseram a ela). Tem que ter respeito, mas chega um momento que está uma coisa tão técnica, está-se tão preocupada em saber como funciona, que você termina esquecendo que ali existia um ser humano [...] Numa aula prática de Semiologia, eram dez pessoas. Tem condições de dez pessoas apalparem o mesmo paciente? Todo mundo estava vendo aquele paciente como um objeto. (3º ano)

As questões éticas e humanísticas dos alunos continuaram a surgir nos discursos quando criticaram o curso médico pelo excesso de exigências voltadas para o aumento da competência técnica, incitando-os a participar de uma luta acirrada para serem os melhores.

[...] é muito concorrido o curso de Medicina. O estágio... eu sinto que tem uma concorrência entre os alunos [...] A própria instituição estimula a concorrência. Por exemplo, quem passou em primeiro lugar no vestibular ganha uma bolsa de um ano. Em vez de estimular a estudar, estimula a concorrer com seu amigo, seu colega [...] São os seis anos assim! (3º ano)

Ou então, quando percebem que terão que ser persistentes para manterem os valores éticos que referendam o que é ser uma "boa pessoa" ou ter uma "boa vida", embora pensem que o que se passa no contexto social não é de sua responsabilidade:

[...] Eu penso em humanismo como uma relação mais harmônica em toda a sociedade, evitando essa relação tecnicista, mecanicista que o homem tem hoje, e buscar uma relação mais de conforto e vivência, uma relação mais de acolhida, diminuindo um pouco as intrigas, a concorrência... porque a gente não faz isso porque quer, mas porque nos obrigaram a isso... a ter essa visão tecnicista, a identificar as pessoas através de números, o doente através da doença. (3º ano)

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Com as linhas do rosto endurecidas e a tonalidade da voz demonstrando indignação e recriminação, um aluno expressa:

[...] O humanista é visto como um cara esquisito. O cara que perde seu tempo com a questão social é considerado um idiota. O humanista também é em menor número. E essa maioria que o considera esquisito deve concordar com a desigualdade que o sistema provoca, com as crianças morrendo de fome, com a privatização da universidade... Ser humanista é muito difícil. (1º ano)

Segundo Piaget13, a noção de igualdade evolui junto com o indivíduo e aos poucos ele descobre que pode mudar as regras sem que isso se torne uma transgressão, como antes era percebido. Nesse estágio, a pessoa descobre que pode elaborar, em parte, suas próprias normas. Essa passagem demarca a transição da heteronomia (moral externa, imposta pelas autoridades) para a autonomia (consciência individual).

La Taille14 afirma que, assim como a racionalidade e a moral, o tema das virtudes é universal, está presente nas conversas do cotidiano entre os adultos, e entre as crianças. Elas fazem parte do quadro de referências a partir do qual cada um se entende como ser humano, por possibilitarem a todo ser humano uma leitura valorativa de si próprio e dos outros.

O que o estudante tem observado e como tem vivenciado a relação aluno-professor no curso médico

Considerou-se também como docente o profissional médico dos serviços, pois, no momento em que este se relaciona com o aluno para lhe mostrar as práticas médicas, ele assume o papel de professor, de orientador. Nessa relação, o estudante se sente desconsiderado e pouco acolhido pelos professores em geral. As falas revelaram uma relação distante, que o aluno não quer reproduzir quando estiver formado. Ele percebe também que a universidade como instituição estimula essa maneira de agir dos docentes, quando elabora regras que reforçam os atos "desumanos" do docente para com ele.

[...] Infelizmente o que a gente vê é o que a gente não quer ser [...] Aí é onde está a experiência de ensino. A gente pensa em ser humanista, mas se espelha num profissional que não tem nada de humanista e acaba sendo influenciado por ele [...] A gente pensa que pode mudar e quando chega a hora de fazer, a gente faz do mesmo jeito que eles (professores ou profissionais do serviço) fizeram. (3º ano)

Apesar da existência de posicionamentos como os citados acima, um ou outro professor do curso de Medicina foi tido como descomprometido ou "fácil de enrolar" quando ensejou desenvolver ações mais humanizadoras com o paciente ou com o aluno, tais como compreender a dor do paciente e adiar, naquele momento, o acesso dos estudantes a este, ou então, quando, diante das queixas dos alunos acerca do pouco tempo para estudar as matérias anatomofisiológicas, concluiu a aula mais cedo ou liberou os alunos.

Bohoslavsky15 declara que passou por experiências no sentido de modificar as relações tradicionais professor-aluno baseadas no vínculo de dependência, e as resistências enfrentadas foram, em maior grau, por parte dos alunos. Não é à toa que essas relações estabelecidas há séculos, fomentando a verticalidade e não a cooperação complementar, mantiveram-se sem avanços significativos.

Ramos-Cerqueira16 afirma que na relação professor-aluno não existe lugar para a subjetividade, para o afeto, e este fato parece ser mais nítido na escola médica, na qual o modelo autocrático e hierárquico predomina do ciclo básico à pós-graduação. É evidente, na relação professor-aluno, a relação entre desiguais, em que ter o saber empresta poder a quem o tem e desqualifica aquele que não o possui, levando a um estilo de aprender em que a passividade e a atitude crítica são as marcas.

[...] Tanto na sala de aula quanto nos ambulatórios, a gente percebe que o médico não tem paciência com o paciente, nem com a gente. A gente fica chocada, nos entreolhamos, mas ninguém chega a falar nada para o professor. Isso fica só entre a gente porque o professor é superior a nós. (4º ano)

[...] A relação aluno-professor é a pior possível [...] O professor A é muito bom no que ele faz, dá uma excelente aula, nos cobra bastante, mas dizer que a relação que ele mantém com a maioria das pessoas é saudável não é não. (6º ano)

Para Bohoslavsky15, como a relação professor-aluno é desenvolvida sob o vínculo da dependência e da submissão, espera-se do professor que ele saiba mais que o aluno, o proteja para que ele não cometa erros, determine a legitimidade de seus interesses e defina o conteúdo, tempo, espaço e condutas dessa relação. Ver o

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aluno como um eixo central do trabalho pedagógico gera o compromisso de ser mais autêntico e coerente e, por conseguinte, auxiliar os alunos a serem também sujeitos mais autênticos. [...] eles são inacessíveis e o que eles dizem é lei. "Não discuta!", diz uma aluna imitando o jeito de um professor falar. É perder sua nota. (6º ano)

Nogueira4 refere que, entre os desafios para a humanização das relações assistenciais, encontra-se o da exposição dos estudantes a professores e profissionais que nem sempre funcionam como efetivos modelos positivos e estimulantes de atitudes de respeito à vida e à pessoa humana, de compreensão da natureza humana, de valorização dos aspectos psicoemocionais e do entendimento das relações sociais.

[...] Eu vou dar um exemplo sobre o que aconteceu no ano passado, que não depende de uma preparação psicológica, pedagógica. Há um professor que sempre dizia que devíamos tratar o paciente bem, com respeito. Um dia, durante uma aula prática, nós estávamos atendendo determinado paciente, e um outro, num leito ao lado, começou a passar mal e ele (professor) ficou impaciente, incomodado com a situação e não abriu espaço para atender o paciente. (4º ano)

Não obstante a existência de críticas, por parte dos alunos, sobre a prática da docência, eles também observaram a contradição existente entre as condições de trabalho do professor e a convocação feita pela instituição para que este se sinta como elemento essencial da melhoria da qualidade do ensino e do progresso social e cultural17: [...] Muitos professores aqui no HU não tiveram um curso de pedagogia, de técnicas e recursos sobre como ensinar ao aluno. (4º ano)

O que e como o estudante tem observado e aprendido sobre a relação médico-paciente e demais pessoas com quem se relaciona, tais como a família e a equipe multidisciplinar com a qual o médico está sempre em contato

Apareceram, de forma enfática, falas que valorizaram a ação do médico ou professor de atender o paciente dispensando-lhe atenção, cuidado com o ouvir:

[...] Muitas vezes, o paciente precisa apenas de um conselho... Às vezes, não é nem do remédio que ele está precisando [...] é apenas escutar, porque o paciente chega com um problema e não quer sair com outro [...] mesmo que você não consiga resolver o problema dele como um todo, ele sabe que pode confiar em você. (3º ano).

Segundo Salimon18, todo homem é um ser capaz de se aperfeiçoar, e a humanização é um processo pessoal, solidário e holístico que se realiza no sujeito em três níveis de consciência: de si mesmo, de pertencer e de optar.

[...] Você às vezes vai para o médico e ele diz que você tem que ir ao Posto Salgadinho pegar uma ficha para ir a outro médico, que o encaminha para outro e outro, e o paciente fica perdido, sem saber aonde ir. Aí você chega, conversa e pergunta: o que é que você tem? O que é que a gente pode fazer? E isso resolve sem necessidade de tantos encaminhamentos. O médico acha que só ele não pode perder tempo... não entende que o paciente também tem os afazeres dele... (3º ano)

Rego19 descreve uma pesquisa que realizou no ano de 2000 numa Faculdade de Medicina, com alunos do quarto ano de graduação, acerca dos valores que os estudantes achavam que deveriam ser assegurados pelo código de ética do médico, ou seja, beneficência, confiabilidade, honestidade, humildade, justiça, paciência, respeito, responsabilidade e solidariedade.

[...] é tratar o paciente com dignidade e respeito, sem faltar com a verdade, também não sendo grosso, respeitando suas vontades e desejos. (3º ano)

[...] é praticar o bem, olhar as pessoas de forma igualitária, mas nunca será possível se despir de todos os preconceitos [...] ter a humildade de pedir desculpas, de reconhecer os erros [...] é preocupar-se com o outro [...] é ser sensível, ser mais coerente com as coisas, ser menos egoísta, ser mais comunicativo, mais educado... Tudo isso está presente na vertente humanista. (1º ano)

Algumas falas dos estudantes expuseram outra contradição vivida em seu processo de formação médica: ao tempo em que pensam no humanismo como a prática do bem, tratar com equidade, ser humilde, polido, respeitar o paciente, experimentam, na relação médico-paciente, situações que não os auxiliam a reforçar esses valores como profissionais, tais como:

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[...] Eu faço um estágio onde os profissionais de saúde, inclusive o médico, não tratam o paciente pelo nome [...] às vezes se passa um medicamento adequado para a doença do paciente, mas que ele não pode comprar. O médico tem que conhecer a história do paciente e passar um remédio adequado para a sua realidade. (4º ano)

Os estudantes também se referiram à precarização da assistência à saúde, que dificulta mais ainda a realização de práticas humanizadas de trabalho, tanto nos hospitais quanto nas unidades de saúde. Entretanto, as falas denotam dúvida sobre se essa precarização aniquila a vontade do profissional de prestar um atendimento cuidadoso, humanizado.

[...] O profissional médico, em alguns locais, é pressionado para atender tantos pacientes! [...] Se você atender rápido, o paciente acha ruim. O que você vai fazer? Vai deixar uma fila interminável e gastar uma hora para cada paciente, se você só vai ter quatro horas numa tarde ou numa manhã? [...] Você pode atender em cinco minutos e o cara achar que você é a pessoa mais humanista do mundo [...] Não é o tempo que conta, mas sim a forma de medicar, de tratar, de dar atendimento. (3º ano)

Sobre o relacionamento que o médico mantém com outros profissionais da área da saúde, os estudantes referem que isso não é comentado durante o curso, pois essa temática só apareceu porque foi provocada pela pesquisadora. [...] Não se fala no curso que nós vamos trabalhar em equipe com nutricionista, psicólogo, enfermeiro[...] Quando você chegar lá (na prática) é que você vai saber. (3º ano)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Humanismo não é apenas um tema transversal, ele está entranhado na vida em forma de uma rede abrangente de significados que envolvem e entremeiam todas as relações vividas na formação e prática de todas as profissões.

Sobre as principais reflexões feitas ao longo desta pesquisa, a primeira diz respeito às condutas humanísticas descritas pelos estudantes, que falam, na maioria das vezes, da (des)humanidade da prática pedagógica realizada pelos docentes ou pelo médico que lida com alunos, ou ainda pelos funcionários de outras profissões. Algumas falas repercutiram mais do que outras, dentre elas a que aponta a contradição entre a prática e a teoria do docente que age de forma desumanizada. O estudante questiona "como podemos querer ensinar humanismo, praticando atos desumanos na escola". Essa avaliação crítica do aluno nos faz pensar que ensinar a humanização das práticas médicas não tem levado a uma reflexão sobre nossas próprias práticas enquanto docentes. Existe uma preocupação da escola médica com o desenvolvimento de um processo de avaliação contínuo do corpo docente sobre suas práticas pedagógicas e o efeito delas sobre os estudantes?

Por outro ângulo, André Langaney (apud Morin20) ressalta que, no atual estado dos programas de ensino, o estudante não estuda a si mesmo. E isso também é grave. Tudo aquilo que pode ajudar a pensar sobre o que somos é tratado apenas de maneira clandestina por certo número de ensinamentos. Ao que parece, não é apenas o estudante que não se estuda, mas também os docentes, os demais profissionais responsáveis pelas práticas, os gestores do ensino e dos serviços. Enfim, todos os envolvidos no contexto da formação estão mais interessados em estudar o outro e não a si mesmos. Não há como falar em humanização da formação sem abordar o contexto de sociedade em que vivemos atualmente, repensar e repassar em conjunto - gestores, professores, alunos, profissionais e gestores dos serviços - as lições sobre a ética humanística, que abrange a ética da responsabilidade, da justiça, da generosidade, do respeito ao outro, e discutir profundamente sobre como estão sendo praticados esses valores.

Outra reflexão diz respeito ao fato de a orientação humanista requerer uma visão mais sistêmica de mundo, de pessoa, de profissão. No curso médico, pelos dados coletados, essa orientação é desenvolvida (e de forma precária) apenas na relação médico-paciente. O estudante ainda não se vê sendo estimulado a observar e se observar em outros contextos, tais como a sala de aula, os laboratórios, a instituição universitária, os hospitais, as unidades de saúde, as comunidades, a família, a cidade, nos quais todo ser humano pratica a sua humanidade e que são também focos do adoecer humano.

Os estudantes não fizeram praticamente nenhuma menção ao "outro" constituído pela equipe multidisciplinar. O "outro" parece ainda não caber como ser de importância, porque não pode ser reconhecido dessa maneira se "eu" antes não me reconheço como tal. As experiências de ensino relatadas pelos alunos mostram a ausência do encontro como fenômeno télico, que consiste na capacidade de a pessoa se sentir atraída ou rechaçada por pessoas

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e objetos21. Para o autor, a relação médico-paciente requer sensibilidade télica, que compreende o desenvolvimento e expressão de sensibilidade, reciprocidade e mutualidade. "é o 'clique' intuitivo entre os participantes de uma relação" (p. 19). Essas experiências traduzem um aprendizado voltado mais para o acúmulo de informação (primeira etapa do conhecimento) e carentes de tempo ou propósitos para realizar-se a reflexão (no mínimo) sobre atitudes e ações. Esse tipo de ensino cria um estudante disperso, defensivo, com pouca reflexão interior sobre si e quase nenhuma visão acurada do outro, seja ele seu colega, o docente ou o paciente. São experiências de aprendizagem que se voltam mais para ver o outro como um objeto, baseadas na relação EU-ISSO3.

A humanização da formação médica necessita, dentre outras demandas, de "um outro professor e um outro estudante", mais preocupados em se desenvolverem como "pessoas em sua totalidade", e não apenas nos papéis fragmentados que exercem. Os espaços de escuta dos discentes devem ser cada vez mais ampliados e devemos instituir os espaços de escuta dos docentes, nos quais se possa ter a condição de refletir e decidir que docentes queremos ser.

Por fim, é necessário compreender a humanização como uma política permanente do curso médico, cujo desenvolvimento não se esgota, mas se aprimora com o passar dos anos, mediante avaliações contínuas e inovação das estratégias para fazê-la acontecer.

Para Autor, Ser Homossexual É Vício como Fumo22

Reportagem FOLHA DE S. PAULO/SP 16 de março de 2010

DO ENVIADO A CAMPALA

Autor do projeto que prevê a pena de morte para alguns casos de prática homossexual, o deputado David Bahati, 35, diz que a família de Uganda corre riscos decorrentes do ativismo dos gays. Casado e com três filhos, o deputado diz que seu projeto tem apoio do governo.

FOLHA - Por que a família de Uganda está sob ameaça?

DAVID BAHATI - Temos nossos valores. Isso não inclui a homossexualidade. Acreditamos que a pessoa não nasce com isso. É algo que é aprendido e pode ser "desaprendido". É como fumar. Torna-se um vício.

FOLHA - Baseado em quê o sr. diz isso?

BAHATI - Há muita evidência, cientistas estudaram isso. Há outro ponto: se você é gay, tem três vezes mais chances de ter Aids que um ser humano normal.

FOLHA - Quem diz isso?

BAHATI - Pesquisas sobre a Aids. Além disso, a homossexualidade pode reduzir a expectativa de vida em quase 20 anos. Você pode destruir seu reto. Alguns precisam usar fraldas, como crianças.

FOLHA - A vida sexual não é uma questão privada?

BAHATI - Em Uganda, há uma tendência que ameaça nossas crianças. Vemos pessoas usando dinheiro para recrutá-las em escolas e promover uma agenda de homossexualidade. Qualquer sexo entre homem e homem não é sexo, é abuso do sexo.

FOLHA - Muitos países avançados vivem bem tendo gays, como EUA e europeus. A sociedade deles não parece ameaçada. Por que seria diferente aqui?

BAHATI - Não é certo que o tecido moral dos EUA esteja bem. Foi destruído. Se o homem se desvia do caminho para o qual Deus o criou, há algo errado.

FOLHA - Por que o sr. incluiu a pena de morte no projeto?

BAHATI - Essa é uma proposta. O ponto-chave é focar nos princípios. A homossexualidade é correta?

FOLHA - O sr. pede pena de morte para "criminosos seriais". Quem define isso?

BAHATI - É uma pessoa que já foi condenada por homossexualismo, um sujeito mal. Vamos focar no núcleo da proposta. Homossexualismo é um direito humano? Acredito

que não deva ser.

FOLHA - Prevê-se morte para quem administrar substância "estupefaciente". Uma cerveja antes do ato conta?

BAHATI - Estamos falando aqui sobre drogas específicas. Cerveja é droga?

FOLHA - Mas fala-se em "coisa" que cause esse efeito. Cerveja é uma "coisa".

BAHATI - A lei será seguida de maneira razoável.

FOLHA - Prisão perpétua para a prática do homossexualismo não é um exagero?

BAHATI - Que punição você daria para alguém que tenta destruir nossas crianças?

FOLHA - Essa lei não pode ser usada de maneira abusiva?

BAHATI - Não temos histórico de abuso da lei aqui.

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FOLHA - Mas pode acontecer uma caça às bruxas...

BAHATI - Caça as bruxas acontece só quando alguém está fazendo algo certo. Se alguém está fazendo algo errado, não é caça as bruxas.

FOLHA - O seu projeto defende abertamente a censura.

BAHATI - Sim. Nossas crianças devem acessar informação em TV, ou na internet, livre de conteúdo gay.

FOLHA - Não é retrocesso?

BAHATI - Não há liberdade absoluta. Mesmo o vento sopra numa direção.

FOLHA - Um jornalista em Uganda poderia escrever uma matéria num jornal sobre a Parada Gay de São Francisco?

BAHATI - Não. Seria mostrar um lado positivo dos gays.

FOLHA - Mas seria apenas relatar que houve a parada.

BAHATI - Mas qual a razão para isso? Nada dessa bobagem será autorizado.

Reflexões sobre Preconceito – Em Busca de Relações mais Humanas

Mônica Mastrantonio Martins

Parte-se do pressuposto de que preconceito é uma apropriação distorcida da realidade, produzida sócio-historicamente e subjetivamente nas múltiplas e complexas relações entre os homens. O preconceito apresenta-se como construção enviesada do “outro” (nesse caso, outro ser humano, grupo ou sociedade), não baseada em princípios reais, mas na configuração de uma relação na qual sujeito e objeto dessa relação estão dissociados e as determinações do sujeito frente ao objeto são autoritárias, unilaterais e não passíveis de serem transformadas por esse “outro”. Nesse tipo de relação, sujeito e objeto encontram-se cindidos, assim como o homem, de suas relações sociais.

Portanto, estudar e pesquisar o preconceito é tarefa árdua, mas urgente. Árdua, porque quando se aborda o preconceito, também deve-se tratar de como os seres humanos apropriam-se da realidade e agem frente a ela. Urgente, porque o preconceito é uma construção deturpada da realidade, presente nas ações e emoções do cotidiano.

Nos estudos de Crochík (1995 e 1996), o preconceito é apontado como desvio da razão (também chamado de “má consciência” ou “irracionalidade”). Nesse caso, o preconceito também aparece como produto da irracionalidade da sociedade atual, visto que esta produz indivíduos dissociados de si mesmos e que não se identificam com diferentes seres humanos. Se não há identificação do sujeito com os demais seres humanos, esses tornam-se alvos fáceis do preconceito pela projeção de fatores negativos sobre eles. De acordo com Crochík (1996, p. 59): “À medida que a contradição entre sociedade e indivíduo se amplia, a contradição interna do indivíduo também aumenta”. Isso propicia que o preconceito torne-se dominante nas intermediações das relações sociais e subjetividade.

Dessa forma, o preconceito pode ameaçar a autoconservação humana, por não garantir a racionalidade presente em relações sociais mais humanas; mas incentivar a competição, rivalidade, oposição e combate dos seres humanos entre si.

Relações sociais que são unilaterais, imediatistas e autoritárias também estão presentes no preconceito. Esse aspecto também é conseqüência da falta de reflexão sobre si mesmo e sobre os outros, de um pensar rígido sobre si mesmo de forma positiva, e de forma negativa do “outro”.

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Muitas vezes, o preconceito é uma forma de defesa diante do “outro”, que é visto como uma ameaça ao sujeito. É o falseamento da realidade através de uma relação determinista, unilateral e imutável imposta pelo sujeito. Nesse caso, ocorre um empobrecimento da multiplicidade das relações humanas, pois esse “outro” é impossibilitado de se diferenciar ou transformar tal preconceito.

Para Crochík (1996, p. 44) “A tipificação dos indivíduos, na realidade, não é fruto das categorias científicas, mas da própria transformação social: os indivíduos tornaram-se propícios a serem tipificados”. Ou seja, a tipificação de comportamentos e atitudes pode ser preconceituosa quando impossibilitar a transformação das mesmas.

A tipificação preconceituosa dos sujeitos está presente em nossa sociedade, quando indivíduos são tipificados de maneira estanque, descontextualizada e a-histórica. Ela pode estar presente na ciência ou mesmo na Psicologia: mas não se restringe a essas. O principal problema nesse caso é que tais tipificações restringem multiplicidade e complexidade humanas, alienando o homem da possibilidade de existir fora dessas tipificações e classificações.

Quando Adorno e Horkheimer (1985, p. 205) dizem que “A classificação é a condição do conhecimento, não o próprio conhecimento, e o conhecimento por sua vez destrói a classificação”, eles apontam que o sujeito do conhecimento constrói classificações para a compreensão de um determinado objeto, mas não deve ficar preso a essas classificações, padronizações e tipificações. O indivíduo só pode existir enquanto sujeito de si mesmo e de suas relações sociais quando construir uma sociedade que não tipifique, padronize e classifique o ser humano em categorias fixas e rígidas, sem a possibilidade de transformação das mesmas.

Mesmo que nas afirmações preconceituosas possam haver elementos verdadeiros com relação ao “outro”, esse continua sendo objeto do preconceito porque seus aspectos subjetivos, dinâmicos e históricos não são levados em consideração. Desse modo, o que é psicossocial torna-se natural e imutável, pelo fato de não se considerar possibilidades de transformação desses aspectos.

Com o preconceito, existe uma relação de dominação de um ser humano frente a “outro”, pela imposição de características distorcidas da realidade. Nesse caso, sujeito e objeto permanecem prisioneiros de uma situação que não possibilita reflexões, transformações ou construções de relações mais igualitárias.

Enquanto produção psicossocial, o preconceito está relacionado com uma cultura que usufrui desse para obtenção de lucros e ganhos. É o caso da sociedade pautada na propriedade privada, cuja subjetividade é fundamentalmente construída através dessa propriedade, resultando em um empobrecimento das relações sociais. Conseqüentemente, a identificação dos seres humanos com a humanidade fica em segundo plano, e busca-se a posse e identificação dos sujeitos com objetos da propriedade. A competição diante da propriedade privada pode facilitar a dissociação entre sujeito e objeto, principalmente se as relações entre os homens tornam-se apenas meios para o alcance de outros fins.

Adorno em seu texto “Educação após Auschwitz” (1986, p. 42) descreve a frieza e a indiferença com que os homens vivem suas relações na atualidade. É comum indivíduos encontrarem dificuldades para amar, entregar-se, ou parar de se defender diante dos outros em uma sociedade que incentiva o narcisismo, o culto do “eu” e de relações individualistas, nas quais o “outro” só aparece como elemento figurativo de si próprio.

Enfim, uma sociedade que produz e reproduz relações preconceituosas é a mesma sociedade que produz indivíduos pouco críticos, que facilmente aceitam e reproduzem seus dogmas. A falta de questionamentos e a construção de discursos que justificam o próprio preconceito são produtos da “má consciência”. A “má consciência” é a consciência deformada por um saber aleatório e deturpado diante do outro, da realidade e de si próprio.

Embora preconceito e ideologia não sejam sinônimos, podem estar relacionados. Ideologia é um falseamento da realidade que justifica contradições existentes na sociedade e explica o sofrimento diante da realidade. Preconceito é o falseamento e deturpação da realidade pela atribuição de elementos conflitantes ao “outro”. É a projeção de aspectos negativos frente a um objeto quando não se consegue lidar com esses aspectos em si próprio, atribuindo tal fragilidade ao “outro”. Preconceito pode ser correlacionado com ideologia quando justifica contradições e diferenças sociais existentes segundo classificações e tipificações de raça, cor, religião, sexo, entre outras.

A competitividade dessa sociedade favorece relações hostis e de anulação do outro ser humano, principalmente quando a supremacia de um sobre o outro significa a própria sobrevivência.

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As perseguições exemplificam o quanto o preconceito abarca elementos destrutivos em nossa sociedade e o quanto esse está presente nas mortes diárias dos pobres, meninos de rua, andarilhos, sem-terra, judeus, presos, ladrões, aidéticos, idosos, entre outros; desqualificados dos aspectos humanos e apresentados como objetos que os homens não assumem em si mesmos.

Contudo, os espaços e situações que proporcionam relações mais calcadas no esclarecimento, na ética e no respeito ao “outro” pelo que ele é, e não pelo que se quer que ele seja, são raros. Isso nos leva a pensar que o preconceito tem se tornado um modo dominante de deturpação da realidade e do “outro” na sociedade atual, pelo fato de atribuir a esse “outro” características e classificações que são subjetivas e aleatórias. Isso configura relações pautadas pelo medo, incerteza, indiferença, frieza e hostilidade, principalmente quando o “outro” não é mais visto como ser humano com quem se identifica e constrói a realidade. Aspectos como esses também estavam presentes na sociedade de Hitler e não estão distantes da atualidade. O fato crucial talvez seja que construímos uma sociedade na qual os homens não se identificam entre si e buscam mais eliminar diferenças do que respeitá-las.

Uma ação não preconceituosa só será possível quando cada indivíduo for visto como um ser em particular e, ao mesmo tempo, representante do gênero humano, pois “só é solidário aquele que se permite ver como o outro, ou seja, identificar-se com este outro sem anular ou ocultar esta identificação” (Crochík, 1995, p. 106).

Por último, refletir sobre a questão do preconceito é pensar na dificuldade de assumir a própria desumanização e tentar transformá-la. Mas isso requer não só humildade na aceitação de que não se constrói o mundo sozinho, como também ética para respeitar o “outro” como ele é e não como se gostaria que ele fosse; política para não aprisionar o “outro” pelo poder, autoritarismo ou escravidão; psicologia para compreendê-lo como sujeito único, assim como todos somos seres particulares; e sabedoria para analisar criticamente as relações atuais e construir uma sociedade na qual a vida valha ser vivida.

“Eu não sou você –mas você não medará uma chance,não deixará eu ser eu.Se eu fosse você –mas você sabeEu não sou você,ainda assim você nãodeixará eu ser eu.Você atrapalha, interferenos meus negócioscomo se eles fossem seuse você fosse eu.Você é injusto, e não é sábiotolo em pensar,que eu possafalar, atuare pensar como você.Deus me fezEle fez vocêPelo amor de DeusDeixe-me ser eu mesmo.”

Tombekai Dempster, 1978

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Ato Médico – Sim

A lei da regulamentação da medicina e a defesa dos direitos dos cidadãos (Resumo)

Versão completa em: http://www.portalmedico.org.br/atomedico/arquivos/Cartilha_%20Ato_Medico.pdf

Desde que os princípios do ato médico sejam explicados de forma muito clara e enriquecido com exemplos claros a população entende muito bem o significado da Lei do ato médico, por exemplo, com perguntas práticas:

Com que a mulher prefere fazer seu parto – com médico ou parteira? Com quem uma gestante prefere fazer o pré-natal – com médico ou enfermeira? Quem adoece espera ser atendido por médico ou outro profissional? Quem é aluno em faculdade de medicina quer ter aulas de assuntos médicos com enfermeiros, bioquímicos

ou médicos? Quem deve operar um apendicite – um médico, um enfermeiro ou um odontólogo?

Nessas situações a resposta obviamente será a mesma. Todos sabem o que os médicos fazem e quando são necessários em suas vidas.

A sociedade precisa ter uma lei regulamentando a Medicina, para salvaguardar os interesses do cidadão, antes do que para defender os interesses da classe médica.

OBJETIVOS DA LEI

Atualmente, são 12 as profissões de saúde. Excetuando-se a Medicina que é a mais antiga delas, todas as outras já foram regulamentadas por leis específicas, que definem suas atribuições e competências.

Art. 4º São atividades privativas do médico:

I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica;

É objetivo da Lei do Ato Médico:

Garantir o direito do cidadão de contar com um médico para o correto diagnóstico e tratamento de seu problema de saúde;

Proteger a sociedade do charlatanismo ou exercício ilegal da Medicina – impedindo que pessoas de má fé exerçam atividades privativas dos médicos;

Definir as responsabilidades exclusivas dos médicos, sobre atos • que somente são ensinados em faculdades de medicina e nas pós-graduações médicas;

Resguardar o exercício de prerrogativas médicas intransferíveis, como: Receitar medicamentos; Internar e dar altas hospitalares; Atestar doenças ou condições de saúde; Emitir laudos diagnósticos (anatomopatológicos e o citopatológicos), endoscópicos e de imagem; Realizar procedimentos cirúrgicos ou invasivos; Sedar, anestesiar; Realizar perícias médicas; Atestar óbito.

“Com a regulamentação da Medicina ficará claro, em lei, as atribuições dos médicos, as coisas que só eles fazem e que só eles estão preparados para fazer. Isto não só impedirá que outras pessoas exerçam atividades típicas dos médicos, como também exigirá dos próprios médicos maior responsabilidade na execução de suas funções.” (Comissão Nacional em Defesa do Ato Médico).

O maior beneficiado com a aprovação da Lei do Ato Médico será a sociedade brasileira, com uma assistência à saúde mais qualificada, promovida pelo trabalho harmonizado das equipes multiprofissionais, em sintonia com os dispositivos estabelecidos em lei.

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“O projeto de lei simplesmente aprova o que a sociedade já sabe e espera dos médicos” (Comissão Nacional em Defesa do Ato Médico)

Um questionamento importante a ser feito é: O atual projeto de lei para Regulamentação da Medicina acaba com a autonomia dos demais profissionais da saúde e criminaliza vários cuidados hoje por eles exercidos, prejudicando a população beneficiária desses serviços?

Não. As treze outras profissões de saúde:

Têm suas competências estabelecidas nas leis que as regulamentaram anteriormente. Elas são autônomas dentro desses limites;

Não podem utilizar o • PL 7703/2006 para estabelecer novos escopos para as suas atividades; Para manter-se na legalidade, devem assegurar à população assistida que os cuidados oferecidos

por seus profissionais estão previstos nas suas próprias leis;

A aprovação do PL 7703/2006 em nada mudará o status de legalidade das demais profissões da saúde, conforme os vários parágrafos do artigo 4º:

§ 2º Não são privativos dos médicos os diagnósticos psicológico, nutricional e socioambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial, perceptocognitiva e psicomotora.

§ 6º O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação.

§ 7º São resguardadas as competências específicas das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional, técnico e tecnólogo de radiologia, e outras profissões correlatas que vierem a ser regulamentadas.

A aprovação do PL 7703/2006 pode dificultar o atendimento multiprofissional dos pacientes pelas equipes de saúde?

NÃO. No texto atual do PL 7703/2006, não existe qualquer referência que coloque os demais profissionais da saúde em posição subalterna aos médicos. Nenhum profissional será excluído do sistema de saúde. Em relação ao atendimento multidisciplinar, a lei em nada mudará as práticas de atendimento vigentes, seja no SUS seja na atividade privada. O PL 7703/2006 exige que o trabalho médico seja realizado por médico, não prescindindo da intervenção competente dos demais profissionais da saúde – cada um na sua área específica, em benefício do paciente.

O projeto de lei para Regulamentação da Medicina restringe as atividades das outras profissões?

NÃO. Muitos procedimentos médicos podem ser realizados por outros profissionais. Estão relacionados no artigo 4º do PL 7703/2006:

§ 5º. Excetuam-se do rol de atividades privativas do médico:

I – aplicação de injeções subcutâneas, intradérmicas, intramusculares e intravenosas, de acordo com a prescrição médica;

II – cateterização nasofaringeana, orotraqueal, esofágica, gástrica, enteral, anal, vesical, e venosa periférica, de acordo com a prescrição médica;

III – aspiração nasofaringeana ou orotraqueal;

IV – punções venosa e arterial periféricas, de acordo com a prescrição médica;

V – realização de curativo com desbridamento até o limite do tecido subcutâneo, sem a necessidade de tratamento cirúrgico;

VI – atendimento à pessoa sob risco de morte iminente;

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VII – a realização dos exames citopatológicos e seus respectivos laudos;

VIII – a coleta de material biológico para realização de análises clínico-laboratoriais;

IX – os procedimentos realizados através de orifícios naturais em estruturas anatômicas visando à recuperação físico-funcional e não comprometendo a estrutura celular e tecidual.

Os diagnósticos são atos exclusivos dos médicos?

As treze profissões da saúde já regulamentadas (parceiras da Medicina) têm seus escopos direcionados para:

Ato de cuidar Ato terapêutico Educação em saúde As ações da Medicina são direcionadas também para: Diagnóstico de doenças Indicação terapêutica

Essas competências estão muito bem definidas nas práticas assistenciais vigentes, que estão perfeitamente assimiladas no novo texto legal (PL 7703/2006):

Artigo 4º São atividades privativas do médico:

I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica;

Para dirimir qualquer dúvida, o diagnóstico nosológico ou diagnóstico das doenças está definido na própria lei:

§ 1º Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por no mínimo 2 (dois) dos seguintes critérios:

I – agente etiológico reconhecido;

II – grupo identificável de sinais ou sintomas;

III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.

Existem diagnósticos que devem ser realizados por outros profissionais da saúde. Esses diagnósticos não são nosológicos, não identificam doenças, havendo ressalvas sobre tais práticas no parágrafo segundo do artigo 4º:

§ 2º Não são privativos dos médicos os diagnósticos psicológico, nutricional e socioambiental e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial, perceptocognitiva e psicomotora.

É correta a afirmação de que a Lei do Ato Médico poderá desestabilizar o SUS?

NÃO. Com relação aos programas de prevenção de câncer do colo uterino, não haverá impedimento para a participação de profissionais não-médicos na realização dos exames colpocitológicos (Papanicolaou). Ao médico, entretanto, caberá a responsabilidade pelo diagnóstico.

As milhares de pacientes do sistema SUS, beneficiadas com os programas de prevenção do câncer do colo uterino não ficarão desasistidas, porque a lei garante que os exames citopatológicos preventivos (Papanicolaou) poderão também ser realizados de forma multidisciplinar, com a participação de médicos e de outros profissionais habilitados para compartilhar esse trabalho.

O Art. 4º diz o seguinte:

§ 5º Excetuam-se do rol de atividades privativas do médico:

VII – a realização dos exames citopatológicos e seus respectivos laudos.

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No SUS ou na medicina privada, há situações nas quais a consulta médica deve obrigatoriamente anteceder o tratamento com outros profissionais de saúde?

SIM. Alguns dos exemplos a seguir provam que é necessário consultar um médico antes de tratamento com:

FISIOTERAPEUTAS, exemplo: vícios de postura, dores na coluna podem ser causados por câncer na coluna.

NUTRICIONISTAS, exemplo: a obesidade pode refletir disfunções hormonais ou metabólicas.

PSICÓLOGOS, exemplo: transtornos mentais podem exigir utilização de tratamento medicamentoso.

FONOAUDIÓLOGOS, exemplo: rouquidão pode resultar de cisto de prega vocal ou mesmo câncer.

Nessas situações, o tratamento não-médico além de ineficaz poderá protelar a necessária assistência médica e até reduzir as chances de cura de uma doença grave.

Biomédico pode atuar plenamente em Laboratório de Patologia (Anatomia Patológica)?

A Anatomia Patológica é uma especialidade médica. Biomédicos que atualmente trabalham em laboratórios de Patologia desempenham funções técnicas, na preparação de lâminas histológicas ou como auxiliares de macroscopia. Não são autorizados ao estudo dos exames, interpretação de resultados ou a assumir responsabilidades pelos laudos correspondentes.

Como será beneficiada a população pela Lei de Regulamentação da Medicina?

A regulamentação das atividades humanas é instituída na sociedade moderna para salvaguardar os interesses da população, beneficiando-a com a formação de profissionais competentes e responsáveis.

A regulamentação já produziu efeitos positivos em várias profissões, como a abolição de “práticos” em atividades da Odontologia ou de auxiliares operacionais em serviços de Enfermagem.

“A população passa ser a grande beneficiada com a mudança, pois contará com uma linha de cuidados integral e articulada dentro de princípios de competência e responsabilidade. Isso trará maior segurança e proteção aos pacientes ao contribuir para evitar distorções que colocam a vida e o bem estar de todos em risco. As recomendações e prescrições passarão a serem implementadas segundo critérios rígidos e científicos que asseguram que o individuo será avaliado de forma holística, integral, e não apenas em função de sinais e sintomas que nem sempre refletem a real dimensão de uma doença ou agravo de saúde.” (Roberto Luiz D’Ávila, presidente do Conselho Federal de Medicina. Folha de São Paulo, em 12/11/09)

O PL 7703/2006 estabelece:

Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.

Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção à saúde para:

I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;

II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;

III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências

O ensino de atos médicos, em cursos de graduação ou pós-graduação é atividade privativa dos médicos?

SIM. O PL 7703/2006 estabelece como atividade privativa de médicos o ensino de disciplinas médicas, bem como a coordenação de cursos médicos, em nível de graduação ou pós-graduação.

Art. 5º São privativos de médico:

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III – ensino de disciplinas especificamente médicas;

IV – coordenação dos cursos de graduação em medicina, dos programas de residência médica e dos cursos de pós-graduação específicos para médicos.

Parágrafo único. A direção administrativa de serviços de saúde não constitui função privativa de médico.

A aprovação da regulamentação da profissão médica na Câmara dos Deputados, acompanhando decisão anterior do Senado, constitui passo fundamental para a qualificação da assistência á saúde de milhões de brasileiros. Longe de interpor-se nas atribuições das profissões regulamentadas, o Projeto de Lei 7703/2006 define o escopo da Medicina, garante a transparência quanto às responsabilidades dos diferentes profissionais e harmoniza o trabalho em equipe.

Apesar disso, há quem levante contradições imaginárias. Por desatenção ou flagrante má-intenção, há quem diga que o PL 7703/2006 interfere nas atividades de cirurgiões-dentistas, de médicos veterinários e de outros profissionais de saúde.

Alegar que a regulamentação da medicina limite a Odontologia é inverdade explícita. Visto que no artigo 4º parágrafo 6º do projeto aprovado lê-se com todas as letras: “O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação”. É também óbvio que o projeto em questão aplica-se a medicina humana e não à veterinária. Da mesma forma, em relação aos demais, expressa o artigo 4º do parágrafo 7º: “são resguardadas as competências das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional e técnico e tecnólogo de radiologia”. Não há, portanto, qualquer razão para interpretar o PL 7703/2006 como restritivo.

Tentam transformar em polêmica um assunto já cristalizado, pois o PL o não ofende ou sobrepõe-se às demais profissões da saúde. Buscando cooptar adeptos, falsas lideranças desta ou daquela categoria profissional tentam impingir aos que lhes dão ouvidos que a regulamentação da Medicina colocaria os demais profissionais de saúde em posição subalterna. As profissões não são mais ou menos importantes, porém há competências e especificidades que tem de ser respeitadas.

Isto posto, cabe agora esclarecer à sociedade sobre o real conteúdo do Projeto de Lei, rebater falsos argumentos e aguardar a manifestação definitiva do Senado e da Presidência da República.

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Ato Médico – Não

Carta aberta aos excelentíssimos senhores senadores da República Federativa do Brasil (Resumo)

Versão completa em: www.cressmt.org.br/upload/arquivo/carta_aberta.doc

As lideranças de governo, juntamente com o Ministério da Saúde, representado pela Sra. Maria Helena Machado e “apoiados” na minoria de lideranças médicas, lograram aprovar o Projeto de lei nº 268/2002 no Senado substitutivo ao Projeto de lei nº 7.703/2006 na Câmara dos Deputados, dando a 340 mil médicos a exclusividade de exercer atos privativos de 3 milhões de profissionais da saúde (biomédicos, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas, profissionais da educação física, psicólogos, técnicos em radiologia e terapeutas ocupacionais).

Em especial, ambos os projetos de lei estabelecem que caberia aos médicos o direito de realizar o diagnóstico das doenças (nosológico) e a prescrição terapêutica (tipo de tratamento). A realidade é que as consultas médicas realizadas nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) duram no máximo 5 minutos, o que impossibilita a realização de qualquer diagnóstico. A incapacidade do SUS em fazer um diagnóstico clínico completo das doenças e disfunções é a razão pela qual o Estado realiza anualmente 1 bilhão de consultas médicas e meio bilhão de exames. Apesar dessa extensa cobertura, temos 50 milhões de doentes crônicos e ainda vivemos uma década a menos do que deveríamos, resultados inaceitáveis para uma gestão pública.

Para adquirir as habilidades e competências para fazer o diagnóstico e as respectivas prescrições terapêuticas nas 13 áreas das profissões regulamentadas, os médicos teriam que estudar no mínimo mais 50 anos. Assim, ao delegar aos médicos o exercício de atos privativos para os quais eles não possuem treinamento, o Estado coloca em risco a saúde e engessa o desenvolvimento das profissões da saúde.

Por outro lado, as virtudes desses 3 milhões de profissionais não estão sendo colocadas a serviço da vida. Os raros profissionais da saúde contratados pelo SUS recebem menos de R$ 7 por tratamento. Desta forma, os alarmantes aumentos dos custos na saúde devem ser atribuídos à indústria bilionária da doença, representada pela realização indiscriminada de exames e prescrição de medicamentos.

Para resolvermos os graves problemas de saúde da população, é necessário que o Estado contrate e coloque as virtudes desses profissionais a serviço da vida. Fazendo isso, poderemos conquistar a vida estendida com saúde e bem-estar, além de reduzir os custos com doença.

Todos os profissionais da saúde realizam diagnóstico nosológico, ou seja, diagnóstico da doença. Cada profissional da saúde também efetua a respectiva prescrição terapêutica em sua área de formação e experiência. Na forma aprovada pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTASP), pela Comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJC) e pela Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), a população teria que primeiro obter um diagnóstico nosológico e a respectiva prescrição terapêutica, emitida por um médico, para só depois poder ser atendida por um profissional da saúde. Se fosse aprovado esse regramento, a Câmara dos Deputados estaria prestando um enorme desserviço à saúde da população.

O Estado não pode admitir que os 3 milhões de profissionais da saúde socorram a vida sem ao menos saber diagnosticar as doenças as quais eles se propõem a tratar. As principais doenças que afligem a humanidade possuem múltiplos fatores causais e cada profissional da saúde é treinado para identificar o efeito de alguns desses fatores. Portanto, o Estado não pode atribuir apenas ao médico a função do diagnóstico nosológico. É por isto que a Comissão de Educação e Cultura (CEC) teve a sensibilidade de preservar as habilidades e competências dos demais profissionais ao mudar a redação para “formulação do diagnóstico nosológico médico e sua respectiva prescrição terapêutica”. Para garantir os interesses da vida e da população, o Estado deve exigir que os profissionais da saúde saibam reconhecer os problemas que colocam em risco a vida saudável.

O Estado não pode também admitir que os médicos façam prescrições terapêuticas em áreas nas quais não possuem treinamento. Fazer isso seria violar o direito de 3 milhões de profissionais da saúde de exercerem livremente e na plenitude seus atos privativos. Porém o mais absurdo seria admitir o fato de um profissional prescrever um atendimento sem que ele tenha as habilidades e competências necessárias. A esse propósito, o Ministério da Educação estabeleceu de forma clara e objetiva as habilidades e competências de cada profissional da saúde. Desta forma, dar ao médico o direito de prescrever tratamento que ele não conhece seria instalar o caos e a irresponsabilidade nos serviços de saúde do país. É por isto que o PL 7.703/2006 deve restringir o ato privativo do

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médico ao diagnóstico médico e à respectiva prescrição terapêutica médica. Todos os outros profissionais da saúde indicam e executam procedimentos diagnósticos, terapêuticos ou estéticos e é preciso garantir os seus direitos à execução desses atos. Os médicos não são os únicos profissionais da saúde com habilidade e competências para emitir diagnósticos anatomopatológicos e citopatológicos.

As propostas de mudança em relação ao texto do PL são as seguintes descritas abaixo:

PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 268, DE 2002Dispõe sobre o exercício da medicina.

SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 7.703-C, DE 2006Dispõe sobre o exercício da Medicina.

Art. 4º São atividades privativas do médico:I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica;Solicitação e justificativa:  Solicitamos que esse regramento seja suprimido pelo Senado ou então mudar a redação para:

"I - formulação do diagnóstico nosológico médico e respectiva prescrição terapêutica médica". Todos os profissionais da saúde realizam diagnóstico nosológico considerando a sua área de competência, ou seja, diagnóstico da doença. Cada profissional da saúde também efetua a respectiva prescrição terapêutica em sua área de formação e experiência. Na forma aprovada, os Conselhos Federal e Regionais de Medicina podem recorrer ao Poder Judiciário para tentar obrigar a população a primeiro obter um diagnóstico nosológico e a respectiva prescrição terapêutica, emitida por um médico, para só depois poder ser atendida por um profissional da saúde. O Estado não pode admitir que os 3 milhões de profissionais da saúde socorram a vida sem ao menos saber diagnosticar as doenças, as quais eles se propõem a tratar. As principais doenças que afligem a humanidade possuem múltiplos fatores causais e cada profissional da saúde é treinado para identificar o efeito de alguns desses fatores. Portanto, o Estado não pode atribuir apenas ao médico a função do diagnóstico nosológico.  Para adquirir as habilidades e competências para realizar o diagnóstico e a prescrição terapêutica nas 13 profissões da saúde, os médicos precisariam estudar pelo menos 50 anos a mais.O Estado não pode também admitir que os médicos façam prescrições terapêuticas em áreas nas quais não possuem treinamento. Fazer isso seria violar o direito de 3 milhões de profissionais da saúde de exercerem livremente e na plenitude seus atos privativos. A esse propósito, o Ministério da Educação estabeleceu de forma clara e objetiva as habilidades e competências de cada profissional da saúde. Desta forma, dar ao médico o direito de prescrever tratamento que ele não conhece seria instalar o caos e a irresponsabilidade nos serviços de saúde do país.

Art. 4º São atividades privativas do médico:I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica; Solicitação e justificativa: idem

IV – intubação traqueal; IV – intubação traqueal;

V – coordenação da estratégia ventilatória

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V – definição da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como as mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas;VI – supervisão do programa de interrupção da ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;Solicitação e justificativa: Solicitamos que sejam suprimidos os incs. IV, V e VI. Um estudo revela que, em 90% dos hospitais do Brasil, o fisioterapeuta planeja, supervisiona, executa a ventilação mecânica e realiza a desintubação. Também, não raro, o fisioterapeuta realiza inclusive a intubação. Portanto, aprovar esse regramento seria privar as pessoas que recorrem aos centros de terapia intensiva de ter uma boa oportunidade de sobrevivência. Ademais, vários estudos revelam que a atuação dos fisioterapeutas nesses centros reduz o tempo de internação do paciente, além de reduzir os custos com medicamentos.

inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como as mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas, e do programa de interrupção da ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;

Solicitação e justificativa: idem

VIII – emissão de laudo dos exames endoscópios e de imagem, dos procedimentos diagnósticos invasivos e dos exames anatomopatológicos;

Solicitação e justificativa:Solicitamos que seja suprimido o termo “exames anatomopatológicos”. A matéria não tem legislação federal. O que disciplina a atividade são as resoluções dos Conselhos Federais de Biomedicina, Farmácia e Medicina. Os exames podem ser realizados, desde que por profissionais devidamente capacitados, como médicos, biomédicos e farmacêuticos. Consequentemente, não pode ser atividade exclusiva dos médicos, como está no projeto. O Conselho Federal de Medicina publicou no D.O.U. de 31 de agosto de 2007 a Resolução CFM nº 1.823/2007, que “disciplina responsabilidade dos médicos em relação aos procedimentos diagnósticos de Anatomia Patológica e Citopatologia (...)”, na qual, em seu Art. 7º, determina: “É obrigatória, nos estudos anatomopatológicos e citopatológicos, a assinatura e identificação clara do médico que realizou o exame”. Diz o Art. 8º: “O médico assistente deverá orientar os seus pacientes a encaminharem o material a ser examinado para o médico patologista inscrito no CRM de seu estado”. E o Art. 9º vai mais longe: “Os médicos solicitantes dos procedimentos diagnósticos devem observar a identificação prevista no Art. 7º desta resolução, recusando-se a aceitar laudos assinados por não-médicos, sob pena de assumirem responsabilidade total pelo resultado obtido”.

VII – emissão de laudo dos exames endoscópios e de imagem, dos procedimentos diagnósticos invasivos;VIII - emissão dos diagnósticos anatomopatológicos e citopatológicos;

Solicitação e justificativa: Solicitamos que sejam suprimidos os incs. VII e VIII.

IX – indicação do uso de órteses e próteses, exceto as órteses de uso temporário;Solicitação e justificativa: Solicitamos que seja suprimido o inc IX ou seja mudada a redação para:"IX – indicação do uso de órteses e próteses, exceto as órteses de uso temporário e externo".

IX – indicação do uso de órteses e próteses, exceto as órteses de uso temporário;Solicitação e justificativa: idem

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Os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais prescrevem e executam com sucesso próteses e órteses externas ao corpo desde 1969.  Essa redação apenas alimentaria ações corporativistas dos conselhos de Medicina.

X – prescrição de órteses e próteses oftalmológicas;Solicitação e justificativa: Solicitamos que seja suprimido o inc. X ou que a redação seja mudada para:"X – prescrição de órteses e próteses oftalmológicas, exceto as externas".

X – prescrição de órteses e próteses oftalmológicas;

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A Morte da Saúde

Dênis Giovani Quim Roveri, 4° Semestre de Psicologia, Universidade Católica Dom Bosco

Hoje é um dia triste. Hoje, entristecidos e inconformados, assistimos à perda de um componente muito importante para o equilíbrio da nossa sociedade: A Saúde. Assassinada a sangue frio, de forma cruel e desumana, foi vítima de uma conspiração covarde, anti-ética e escancaradamente corporativista. Anunciamos a morte da saúde. Anunciamos a legalização da prática de um crime. Crime praticado por uma classe que, por mais surreal que pareça, pouco parece se sensibilizar com a saúde: A Classe Médica. Uma classe que se julga auto suficiente e única. Uma classe que não respeita nem reconhece a autonomia, merecidamente conquistada, dos profissionais da área da saúde, tampouco o direito de escolha do cidadão comum. E que comete o crime nefasto de priorizar interesses comerciais, tornando a promoção da saúde um interesse secundário. A saúde não é patrimônio único da Medicina. Não podemos retroceder e voltar no tempo, jogar fora, nas poucas linhas de um projeto criminoso, o que levamos tantos anos para conquistar. Não podemos admitir a idéia de nos submetermos a profissionais muitas vezes menos qualificados que nós para a prática profissional. Não podemos permitir que nos reduzam à humilhante condição de “Empregados do Médico”. Por mais absurdo que pareça isso está perto. Esse é Projeto de Lei do Ato Médico. Um projeto que não fere apenas os profissionais da saúde e nós, acadêmicos, mas também a sociedade no geral. Não apenas o Fisioterapeuta, o Psicólogo, o Terapeuta ocupacional, o Fonoaudiólogo, o Nutricionista são lesados com esse projeto. Uma das maiores afetadas é a sociedade. É o seu o José, que, impedido de escolher, entrega sua Síndrome do Pânico a destino de um cardiologista. É a dona Maria, que tem que deixar que sua dieta seja elaborada segundo a ordem de um neurologista. É patético. É ridículo. É desumano, mas é um Projeto Federal. Um projeto criminoso que torna atos privativos do médico a formulação do diagnóstico e a prescrição terapêutica de doenças. Enfim, antes de passar pelos outros profissionais da saúde, o paciente tem que passar obrigatoriamente pelo médico, que decide o destino do mesmo. Isso torna em vão anos e anos que passamos nos dedicando à vida acadêmica. A pergunta se torna inevitável: Qual o sentido de nós estudarmos tanto e consolidarmos nossas profissões se, no fim das contas, teremos que nos submeter à ordem médica? Esse projeto institui o monopólio e torna a saúde uma mercadoria, um bem a serviço da classe médica. E quando falamos em saúde, estamos diretamente nos referindo à vida de pessoas, e não podemos tratar a vida de pessoas como se fossem mercadorias. Não podemos permitir que todos os problemas de saúde sejam restritos à procedimentos de uma única categoria. A categoria médica tem sua função e suas atribuições claramente reconhecidas, porém, não porta todas as práticas para a promoção, proteção e recuperação da saúde. O Projeto de Lei do Ato Médico institui o monopólio e converte todos os outros profissionais ligados à área da saúde a subordinados. Prioriza interesses de mercado. Tira das pessoas o direito de escolha. Tira dos profissionais da saúde a autonomia. Brinca com a promoção da saúde. E diante desse crime nos restam apenas duas opções: Nós, acadêmicos e profissionais da saúde, nos mobilizarmos e unirmos nossas forças, lutando contra a possível aprovação desse projeto, ou então, apenas assistirmos à saúde desfalecer à nossa frente e apenas dizer: Descanse em Paz!

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Extensão Universitária

Trechos retirados de um bate papo entre Paulo Freire e pessoas que estavam envolvidas direta ou indiretamente com o trabalho de Educação Popular que ocorreu na CEB CATUBA (Vila alpina SP) em 23 de janeiro de 1982.

Com a palavra, Paulo Freire...

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“Em primeiro lugar, o moço ali tem razão, quando afirma que não se pode ficar só na teoria. O que ensina a gente é fazer as coisas. É a prática da gente. É claro, não faz mal nenhum que se leia um livro ou outro. Há um livrinho ai muito bom, escrito pelo professor Brandão, “O que é o método Paulo Freire” (Coleção Primeiros Passos), por exemplo. Mas o que é fundamental é fazer. É lançar-se numa prática e ir aprendendo-reaprendendo, criando-recriando, com o povão. Isso é que ensina a gente. Agora, se há possibilidade de bater um papo com quem tem prática ou com quem já teve prática, ou com quem tem uma fundamentação teórica, a proposta da experiência é excelente. Mas eu me comprometo a fazer isso. Eu acho válido. A minha acessoria tem certo sentido. Agora, o que é preciso é fazer. Assim a gente vai tendo a sensação agradável de estar descobrindo as coisas com o povo. Então ai eu tenho a impressão de que hoje não caberia uma palestra sobre método. Não é para isso que eu vim até aqui.

Mas eu tenho a impressão que poderia colocar a nós e não a vocês porque eu coloco a mim também alguns elementos, chamemos até de princípios. Esses princípios são válidos não apenas pra quem está metido com alfabetização, mas também pra quem está participando em qualquer tipo de pastoral. Não importa se está fazendo alfabetização de adultos ou trabalhando na pastoral operária, qualquer uma que seja. É válido até para quem é médico e trabalha com o povão.”

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“Vou dar um exemplo bem concreto: Quando eu tinha sete anos eu já não acreditava que a miséria era condição de Deus pra quem tinha cometido um pecado. Então vocês hão de convir comigo que já faz muito tempo que eu já não acredito nisso, então vamos admitir que eu chegue pra trabalhar numa certa área cujo nível de repressão e opressão, de espoliação da comunidade é tal, que por necessidade, inclusive de sobrevivência coletiva, essa comunidade afogue-se em toda uma visão alienada do mundo. Nessa visão, Deus é o responsável por aquela miséria, e não o sistema que está aí. Nesse nível de consciência, de percepção da realidade, é preciso às vezes acreditar que Deus é mesmo, por que sendo Deus o problema, passa a ter uma causa superior. É melhor acreditar que é Deus, por que ai não se tem necessidade de brigar com medo de morrer, do que acreditar que não é Deus.

Esta é uma realidade que existe. Eu não sei como é que os jovens de esquerda não percebem esse treco ainda, sô! Então não é possível chegar a uma área como essa e fazer o discurso sobre luta de classes, não dá, mas não dá mesmo! É absoluta inconsistência teórica científica. É ignorância da ciência, fazer um treco desses. É claro que um dia vai chegar o negócio da classe, mas é impossível enquanto não se desmontar a visão mágica, a compreensão mágica. Por que vê bem, se houvesse uma possibilidade de participação ativa, de uma prática política imediata, essa visão se acabaria.

‘Então é uma violência você querer esquecer que a comunidade ainda não tem a possibilidade de um engajamento imediato.’

Aí então o que acontece é que você vai falar À comunidade e não COM a comunidade. Você faz um discurso brabo danado. E o que você faz com esse discurso? Cria mais medo, mete mais medo na cabeça da população. Quer dizer, que o que a gente tem que fazer é partir exatamente do nível em que a massa está.

Diante de um caso como esse há 2 possibilidades:

A PRIMEIRA é a gente se acomodar ao nível da compreensão que a comunidade tem, e a gente passar a dizer que na verdade é Deus mesmo que quer isso. Essa é a primeira possibilidade de errar.

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A SEGUNDA possibilidade de errar é arrebentar com Deus e dizer que o culpado é o imperialismo. Vejam a falta de senso desse pessoal. Por que no fundo isso é a falta de compreensão do fenômeno humano, da espoliação e das suas raízes. É engraçado, se fala tanto em dialética e não se é dialético (dialética é o processo de conhecimento pelo qual se acerta o caminho certo, através de um processo de reflexão em cima da realidade ou prática).

Vamos ver o que acontece na cabeça das pessoas. Se Deus é o responsável, e Deus é um caboclo danado de forte, o criador desse treco todinho, o que é que não pode gerar na cabeça de um cara desses se a gente chega e diz que não é Deus. A gente tem que brigar contra uma situação feita por um ser tão poderoso como este, e ao mesmo tempo tão justo. Essa ambigüidade que tá ai significa pecar, então a gente ainda mete mais sentimento de culpa, só na cabeça da massa popular.

O que agente tem que fazer num caso como este é aceitar. E eu me lembro, por exemplo, que antes do golpe de estado, quando eu trabalhava no nordeste, de um bate–papo que eu tive com um grupo de camponeses, em que a coisa foi essa: dentro de poucos minutos os camponeses se calaram, e houve um silêncio muito grande, e em certo momento um deles disse: ‘O senhor me desculpe, mas o senhor é quem devia falar e não nós’. Eu disse: ‘Por quê?’. Ele disse: ‘Porque o senhor é quem sabe e nós não sabemos’. Eu então disse: ‘OK, eu aceito que eu sei e vocês não sabem. Mas por que é que eu sei e vocês não sabem?’. Então vejam: eu aceitei a posição deles em lugar de me sobrepor à posição deles. Eu aceitei a posição deles, mas ao mesmo tempo indaguei a posição sobre ele. Eles voltaram ao papo e aí respondeu um camponês e disse: ‘O senhor sabe por que o Sr foi à escola e nós não fomos’. Eu disse: ‘Eu aceito, eu fui à escola e vocês não foram, mas por que é que eu fui à escola e vocês não foram?’. ‘Ah! O senhor foi por que os seus pais puderam e os nossos não’. Eu disse: ‘Muito bem eu concordo, mas por que os meus pais puderam e os seus não puderam?’. ‘Ah! O senhor pode por que tinha condição, bom trabalho, tinha bom emprego, e os nossos não’. Eu aceito, mas por que os meus pais tinham e os de vocês não?’. ‘Ah! Por que os nossos eram camponeses’. Aí um deles disse: ‘O meu avô era camponês, o meu pai era camponês, eu sou camponês, meu filho é camponês, meu neto vai ser camponês! (Aí vem a concepção fatalista da história) ‘O que é ser camponês?’ – ‘Ah! Camponês é não ter nada. É ser explorado’ Eu disse: ‘Mas que é que explica tudo isso?’. Ele disse: ‘Ah! É Deus! É Deus que quis que o senhor tivesse e nós não’. Eu disse: ’Ok, eu concordo. Deus é um cara bacana! É um sujeito poderoso! Agora, eu quero fazer uma pergunta: quem aqui é pai?’. Todo mundo era. Olhei assim prá um, e disse: ‘Você, quantos filhos tem?’ Ele disse: ‘Tenho seis’. Eu disse: ‘Vem cá, você era capaz de botar cinco aqui no trabalho forçado e mandar um pra Recife, tendo tudo lá? Comida, hotel, pra estudar e ser doutor e os cinco aqui morrendo no porrete no sol?’. Ele diz: ‘Eu não fazia isso não’. ‘Então você acha que Deus que é poderoso e que é pai, ia tirar essa oportunidade a vocês? Será que pode?’. Ai houve um silêncio e disseram: ‘É não, não é Deus nada, é o patrão!’. Quer dizer, aí sim. Seria uma idiotice minha se eu dissesse que era o patrão imperialista Yanque. E o cabra ia dizer: ‘O que é, e onde mora esse homem?’.

Olha, a transformação social se faz com ciência, com consciência, bom senso, humildade, criatividade e coragem. Vê que é trabalhoso, né? Não se faz isso na marra, no peito. O voluntarismo nunca fez revolução em canto nenhum. Nem o espontaneísmo. Implica em COM-VIVÊNCIA COM AS MASSAS POPULARES e não distância delas. Então esse é o outro princípio que eu deixaria aqui.

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“Um outro princípio que a gente tira daquele COM e daquele A, é o seguinte: ‘É que NINGUÉM SABE TUDO, NINGUÉM IGNORA TUDO’. O que equivale dizer: não há, em termos humanos, sabedoria absoluta nem ignorância absoluta.

Eu me lembro, por exemplo, de um jogo que fiz no Chile, no interior, numa casa camponesa, onde os camponeses também estavam inibidos sem querer discutir comigo, dizendo que eu era doutor. Eu disse que não e propus um jogo que era o seguinte: eu peguei um giz, fui pro quadro negro e disse: ‘Eu faço uma pergunta a vocês, e se vocês souberem, eu marco um gol. Em seguida vocês fazem uma pergunta pra mim, e se eu não souber, vocês marcam um gol’.

Quem vai fazer a primeira pergunta sou eu, eu vou dar o primeiro chute. Então de propósito eu disse: ‘Eu gostaria de saber o que é a hermenêutica socrática?’. Já disse mesmo um treco difícil, um treco que veio de mim, um intelectual. Eles ficaram rindo, não sabiam lá o que era isso. Ai eu botei um gol pra mim. Agora é vocês. Um deles se levanta de lá e me faz uma pergunta sobre semeaduras. Eu não entendi pipocas! Como semear num o que... Ai eu perdi, foi um a um. Ai eu disse segunda pergunta: O que é alienação em Hegel? Aí, dois a um. Aí eles levantaram de lá e me fizeram uma pergunta sobre praga. Foi um negócio maravilhoso. Chegou a 10 a 10, e os caras se convenceram no final do jogo que, na verdade ninguém sabe de tudo e ninguém sabe de nada.”

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Conceitos Básicos sobre o Trabalho

Marise Nogueira Ramos

Introdução

Este texto aborda o trabalho., experiência estruturante de nossas vidas, sobre a qual certamente temos muito o que contar. Mas quantos de nós paramos para pensar sobre o que é o trabalho? Ou, por que trabalhamos? Ou, ainda, refletimos se haveria outras formas de organizarmos nosso cotidiano? Por que encaramos o trabalho como obrigação? E por que temos que dispor tanto tempo para o trabalho e tão pouco para o lazer e o descanso? Se não fazemos essas perguntas frequentemente, esperamos que este texto nos provoque a fazê-las, quiçá, a respondê-las. Isto porque vamos analisar, primeiramente, que essa forma que o trabalho assume de obrigação, de imposição, às vezes, de sacrifício, é contraditória com o potencial de criação, de satisfação e de produção que o ser humano possui e que se realiza pelo trabalho. De fato, o ser humano é um ser de necessidades, pois ele precisa produzir sua própria vida. Como diria o professor Frigotto (2005), somente se nós nos transformássemos em “anjos” é que poderíamos parar de trabalhar, pois não há como suprirmos nossas necessidades, desde as mais básicas, vindas do corpo (a fome, o frio, a proteção etc.), até as necessidades do espírito (o desejo, o prazer e a estética, por exemplo), se não produzirmos os meios para fazê-lo. Mas a superação de necessidades potencializa também a liberdade, pois quando satisfazemos uma necessidade, libertamo-nos dela e conquistamos condições para realizarmos outras coisas. Ou seja, o ser humano é um ser de necessidades, mas é superando-as que conquistamos a liberdade. E é pelo trabalho que esse movimento de passagem da necessidade para a liberdade acontece.

O Trabalho em Saúde como Mercadoria: trabalho produtivo ou improdutivo

Para refletirmos se a força de trabalho empregada no processo de trabalho em saúde é uma mercadoria tal como a força de trabalho empregada na indústria, temos que, primeiro, compreender o que é o trabalho diretamente produtivo para o capital e o trabalho não diretamente produtivo ou trabalho improdutivo.

Para isto, teremos que visitar o conceito de mais-valia. Sabemos que o valor de toda mercadoria é determinado pelo quantum de trabalho materializado em seu valor de uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. Assim, conforme vimos, o valor da força de trabalho corresponde ao tempo de trabalho necessário à sua produção e reprodução (comer, vestir, morar etc.), que é pago na forma do salário. A mais valia é produzida quando o trabalhador realiza uma jornada maior do que aquela paga pelo capitalista para garantir a produção e a reprodução de sua força de trabalho. Com isto, ele agrega à mercadoria um valor maior do que aquele correspondente ao valor pago pela sua força de trabalho. É essa a diferença que gera a mais-valia; ou seja, a mais-valia é extraída do trabalho realizado não pago. A esta mais-valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho, Marx (1989: 237) chama de mais-valia “absoluta”. Não obstante, revoluções técnicas e sociais do processo de trabalho aumentam a força produtiva, reduzindo o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir a mercadoria. Com isto, reduz-se também o valor da força de trabalho. Esse tipo de maisvalia, a qual Marx chama de “relativa”, não decorre do aumento da jornada de trabalho, mas sim do aumento da capacidade de trabalho não pago.

Dessa análise, podemos concluir que o produto por excelência da produção capitalista é a mais-valia. Então, somente é produtivo para o capital aquele trabalho que seja consumido diretamente no processo de produção com vista à valorização do capital. Em outras palavras, só é produtivo para o capital o trabalhador que possua capacidade de trabalho diretamente produtor de mais-valia.

Marx (1969: 109-110) esclarece ainda que, do ponto de vista do processo de trabalho em geral, é trabalho produtivo aquele que se realiza em um produto, mais concretamente em uma mercadoria. Do ponto de vista do processo capitalista de produção, junta-se uma determinação mais precisa: é produtivo aquele trabalho que valoriza diretamente o capital o que produz mais-valia. Trata-se, portanto, de trabalho que serve diretamente ao capital como instrumento da sua “autovalorização”, como meio para a produção de mais-valia.

Como vimos, quando analisamos o trabalho abstrato, o agente real do processo de trabalho capitalista não é o trabalhador individual, mas sim o trabalhador coletivo- massa de trabalhadores da qual o trabalhador individual é somente um elo. Sendo assim, são diversas forças de trabalho que se articulam e participam diferentemente no processo produtivo em seu conjunto. Alguns assumem mais o manejo técnico de ferramentas; outros elaboram o

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projeto do que deve se produzido; outros supervisionam a produção; outros a dirigem etc. De fato, são cada vez em maior número as funções da capacidade de trabalho incluídas no conceito imediato de “trabalho produtivo”, diretamente explorados pelo capital e “subordinados” em geral em seu processo de valorização e de produção. Por isto, Marx nos diz que, se consideramos o “trabalhador coletivo”, a sua atividade combinada realiza-se materialmente e de maneira direta em um produto total que, simultaneamente, é uma massa total de mercadorias, sendo absolutamente indiferente que a função deste ou daquele trabalhador esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto. Importa é que a atividade desta capacidade de trabalho coletivo promove diretamente a valorização do capital.

Existem, porém, várias atividades que não promovem tal valorização diretamente. É o caso dos serviços. Quando se compra o trabalho para o consumir como “serviço” e não para colocá-lo no processo capitalista de produção, o trabalho não é “produtivo” e o trabalhador assalariado não é trabalhador “produtivo”. O seu trabalho é consumido por causa do seu “valor de uso” e não como trabalho que gera “valores de troca”.

Neste ponto, as situações citadas por Marx são expressivas dessa diferença. Diz ele:

uma cantora que canta como um pássaro é uma trabalhadora improdutiva. Na medida em que vende o seu canto é uma assalariada ou uma comerciante. Porém, a mesma cantora contratada por um empresário que a põe a cantar para ganhar dinheiro é uma trabalhadora produtiva, pois produz diretamente capital. Um mestre-escola que é contratado com outros para valorizar, mediante o seu trabalho, o dinheiro do empresário da instituição que trafica com o conhecimento é um trabalhador produtivo. (Marx, 1969:115 . grifo do autor).

A conclusão sobre se os serviços são ou não são produtivos para o capital é a seguinte: os trabalhos que só se desfrutam como serviços não se transformam em produtos separáveis dos trabalhadores, embora possam ser explorados de maneira diretamente “capitalista”. É o caso, por exemplo, dos trabalhadores de saúde vinculados a instituições privadas. Este tipo de trabalho é produtivo porque produz diretamente capital para o proprietário da instituição, porém tem uma especificidade diferente da força de trabalho empregada na produção industrial posto que o produto do trabalho não se separa do trabalhador como as outras mercadorias que podem ser consumidas independentemente dele. Se esses trabalhadores se vinculam a instituições públicas, financiadas pelo Estado e, portanto, por um fundo público, esse trabalho não produz capital. É, portanto, um trabalho improdutivo.

Esta análise demonstra que, por mais que a privatização dos serviços de saúde submeta o processo de trabalho à mesma lógica capitalista, a atenção e o cuidado em saúde não podem se transformar em mercadorias diretamente valorizáveis para o capital, a não ser no estrito limite de que esse trabalho atua também na reprodução da força de trabalho e, portanto, influencia no seu valor. Esta é uma das razões, a propósito, pela qual os serviços de saúde tendem a ser públicos ou providos diretamente pelos empregadores, fornecendo aos trabalhadores, por exemplo, planos de saúde. O custo pela manutenção da saúde do trabalhador destinado à reprodução de sua força de trabalho, desta maneira, ao invés de ser ressarcido diretamente ao trabalhador no montante de seu salário, é pago indiretamente por meio dos sistemas públicos ou planos privados de saúde. Isto é um exemplo do que chamamos de “salário indireto”, e, se reconhecidos como direitos sociais, são assumidos pelo Estado. A contradição de considerar a saúde como direito ou como mercadoria está no cerne da concepção e do modelo de Estado: se de direito ou se neoliberal. Este, porém, é um assunto a ser abordado em outro texto.

À Guisa de Conclusão

O desenvolvimento e a reorganização do trabalho em saúde, ou, se preferirmos, a reestruturação produtiva desse trabalho, só pode ser compreendida quando se descobre a própria natureza da realidade social na qual se inscreve e que a redefine historicamente. Isso é o que demonstram os estudos de Donnangelo (1976), Rosen (1980), Luz (1988) e Mendes Gonçalves (1994), que, ao recolocar o trabalho em saúde como prática social, caminham no sentido oposto dos estudos que o definem como uma prática técnica neutra, interessada apenas no bem-estar e na extensão dos serviços de saúde para toda a população. Ao contrário, afirmam a sua integração e produtividade na consolidação da própria racionalidade moderna e, mais que isso, o seu comprometimento com a manutenção e reprodução da força de trabalho e participação no controle das tensões e antagonismos sociais. Para isso, lança mão da progressiva extensão dos serviços de saúde à população. Inicialmente, as práticas de saúde tomam como objeto de trabalho o “corpo coletivo investido socialmente”, produzido pela medicina social e sistematizado, mais tarde, pela epidemiologia, para, em seguida, subordiná-lo ao “corpo individual”, produzido pela clínica. A partir de então, ao privilegiar progressivamente a concepção de doença como alteração morfológica e/ou funcional do corpo humano, aliado ao enorme prestígio que as ciências naturais tiveram no seu interior, o trabalho em saúde participa mais

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diretamente do processo de reprodução das condições para a acumulação de capital, entre as quais, a reprodução da força de trabalho, na medida em que toma o corpo individual como seu objeto de trabalho privilegiado. As práticas de saúde se, por um lado, fazem parte do processo de produção da vida, também criam e recriam as condições materiais necessárias à produção econômica ao definir a capacidade física e ao normatizar as formas de utilização do corpo. Ao mesmo tempo, nesse processo, o trabalho em saúde participa também da determinação do valor de uso da força de trabalho, situando-se, portanto, para além dos objetivos tecnicamente definidos.

Dessa forma, essas práticas colaboram para aumentar a produtividade do trabalho ou a produção de mais-valia relativa, dado que a melhoria das condições de saúde do trabalhador contribui para a obtenção de um máximo de produtos em menor tempo de trabalho (Donnangelo, 1976). Em contrapartida, o desenvolvimento da bacteriologia, do arsenal terapêutico farmacológico, e o aparecimento da anestesia, aliados à organização das técnicas de cirurgia e à profissionalização do pessoal de enfermagem, foram condições fundamentais para que o trabalho em saúde se organizasse coletivamente no interior dos hospitais, no final do século XIX. Inicia-se, nesse momento, a segunda reestruturação do trabalho hospitalar. Os estudos de Foucault (1981) indicam que a primeira reestruturação produtiva dessa modalidade de trabalho em saúde ocorre ao final do século XVIII, a partir dos inquéritos hospitalares realizados na França e Inglaterra, que determinam uma importante reorganização administrativa e política, ou um novo esquadrinhamento do poder no seu interior. Entretanto, buscou-se, naquele momento, adotar as medidas necessárias para anular os efeitos negativos e a desordem do hospital, mais do que realizar uma ação positiva do hospital sobre o doente ou a doença. Uma desordem que diz respeito tanto aos efeitos patológicos das doenças, que podiam acometer as pessoas internadas e espalhar-se pela cidade onde estivesse situado, quanto à dimensão econômicosocial, isto é, como local de intenso tráfico de mercadorias, objetos preciosos, matérias raras, especiarias etc., trazidos das colônias pelos soldados, que escapavam ao controle econômico da alfândega e eram reclamadas pelas autoridades financeiras. Daí que, para Foucault, a reestruturação do trabalho hospitalar, nesse primeiro momento, foi realizada não a partir de uma tecnologia médica, mas a partir de uma tecnologia política - A disciplina.

Ao contrário, podemos dizer que, sem abandonar essa tecnologia política, no final do século XIX, a reestruturação do trabalho hospitalar toma como ponto de partida as ciências da vida e suas tecnologias, assim como o modo taylorista de organização do trabalho, isto é, é baseada nas potencialidades que essas ciências demonstram para prolongar a vida humana e na sua capacidade de repor mais rapidamente a mercadoria força de trabalho em circulação, o que as tornam produtivas para o capital. É nesse momento que o hospital se realiza como “máquina de cura”, o que pode ser demonstrado pelo exemplo americano, já que são nesses hospitais que os “cuidados funcionais” são organizados como meio de trabalho da enfermagem.

Assim como na grande indústria, os hospitais são invadidos pelos conceitos de administração científica e racional aplicados aos cuidados. Um tipo de organização na qual a preocupação central não é dar conta das necessidades de saúde, mas dar conta da grande demanda de cuidados, em conseqüência do maior fluxo de pacientes, com o objetivo de diminuir o tempo de internação, aumentar a rotatividade, e com isso os lucros das empresas de saúde, então em formação.

Starr (1991) demonstra que, nos Estados Unidos, entre 1870 e 1910, os hospitais se tornaram o centro da educação e do trabalho em saúde, passando de 178 para 4.000 estabelecimentos neste período, concentrando, no seu interior, as tecnologias que permitiram o avanço da assistência de enfermagem e da cirurgia médica, e, conseqüentemente, o atendimento em massa dos trabalhadores.

Do ponto de vista da educação profissional em saúde, ocorre que daí em diante não basta a experiência prática. A tendência será a progressiva exigência do aumento da escolaridade e da formação profissional, particularmente, dos(as) trabalhadores(as) técnicos de enfermagem. A incorporação de tecnologias médicas é outra face do trabalho em saúde que se exacerba com o desenvolvimento do capitalismo.

Donnangelo (1976) chama atenção para o fato de que o trabalho em saúde não apenas contribui para a produção de mais-valia relativa do trabalho industrial com a manutenção/reprodução da força de trabalho, mas também realiza a mais-valia produzida em diferentes setores, ao consumir as tecnologias das indústrias farmacêuticas e de equipamentos médicos, instaurando, assim, um vínculo direto e específico entre saúde e economia.

Esse desenvolvimento tecnológico e de capital na saúde, para a autora, está na base tanto da superação da clínica como meio básico de trabalho - na medida em que o toque e o olhar sobre o corpo são substituídos por uma infinidade de exames diagnósticos de custos cada vez mais elevados - quanto da criação de novas modalidades de organização da produção dos serviços de saúde, bem como do assalariamento médico e do conjunto dos

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trabalhadores de saúde. Com isso, o desenvolvimento tecnológico e a entrada de capitais no setor introduzem uma contradição importante nesse tipo de trabalho: a elevação progressiva dos custos do cuidado em saúde, decorrente da incorporação dos custos dos produtos industriais ao valor do cuidado, acaba tornando-se uma barreira à sua efetivação e principalmente à sua universalização. Essa contradição está na base das diversas iniciativas de racionalização do trabalho, tais como a proposta de medicina comunitária analisada por Donnangelo.

Entendemos que todas as questões aqui esboçadas são fundamentais e indicam que, para avançar na consolidação do Sistema Único de Saúde no país, se impõe, antes de tudo, a compreensão da natureza das mudanças societárias que ocorrem na atualidade e suas repercussões no trabalho em saúde. Um dos principais desafios que o SUS continua a enfrentar é a garantia de acesso e sua universalização para toda a população. Isso é particularmente importante em um contexto de ofensiva neoliberal, que busca recuperar os serviços sociais para as empresas privadas, propondo a remercantilização de tais serviços. Ainda que pequena, a contribuição que podemos dar é continuar a compreender esse processo, tentar desvendar os interesses que estão em jogo, com o compromisso de um pensamento crítico a favor da saúde pública.

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A Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e a proposta de instituição de um Exame de Habilitação para o Exercício da Medicina no Brasil

Prof. Dr. Milton de Arruda Martins, Presidente da ABEM. Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2005

A proposta de realizar um exame (ou exames) para médicos recém formados, seguindo o exemplo do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, tem sido muito discutida. Esta proposta tem várias versões e, de uma forma geral, trata-se de introduzir no Brasil a exigência de que o estudante de Medicina, após receber o seu diploma, tenha que se submeter a um exame e apenas no caso de ser aprovado poder registrar seu diploma no Conselho Regional de Medicina e ser habilitado a exercer a profissão de médico. Este exame tem sido chamado por vários nomes, “Exame de Ordem”, “Exame de Qualificação”, “Exame de Habilitação”, “Exame de Proficiência em Medicina”.

Existem projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, como o Projeto de Lei do Senado número 217, de 2004, que visa instituir o “Exame Nacional de Proficiência em Medicina” e o Projeto de Lei da Câmara Federal número 4342, de 2004, que visa instituir o “Exame de Habilitação para Exercício da Medicina”. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo decidiu realizar, em caráter experimental, um “Exame de Habilitação”, para alunos de Medicina que estejam cursando o sexto ano de faculdades localizadas no Estado de São Paulo e médicos formados há menos de um ano. Este exame terá duas fases, uma prova objetiva e uma avaliação prática, e a primeira fase será realizada no dia 9 de outubro próximo.

A ABEM tem discutido em profundidade o tema, em suas reuniões de diretoria, em seus encontros e congressos regionais, e com especialistas e dirigentes de outras entidades médicas e de estudantes de Medicina, e vem a público manifestar sua posição contrária à instituição no Brasil de qualquer tipo de Exame de Habilitação, realizado após o final do Curso Médico.

Reconhecemos a existência de vários problemas no ensino médico brasileiro que necessitam de urgente solução, principalmente a necessidade dos governos federal e estaduais de não autorizar a abertura de novas escolas médicas e de fechar as escolas médicas que não possuem condições mínimas de funcionamento e de formação de médicos de qualidade. Nos últimos anos, em especial durante a gestão do Ministro Paulo Renato, houve autorização pelo MEC para abertura de grande número de escolas médicas. Levantamento realizado pela Associação Paulista de Medicina revelou que durante o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso foram autorizados 42 novos cursos de Medicina, sendo 11 em instituições públicas e 31 em instituições privadas. Desde o início do Governo do Presidente Luis Inácio Lula da Silva já foram autorizados 21 novos cursos de Medicina, sendo 3 em instituições públicas e 18 em instituições privadas.

A ABEM reconhece, também, a necessidade de aperfeiçoar o sistema de avaliação das escolas médicas, e tem contribuído de forma intensa nesse sentido. Ao mesmo tempo, a ABEM considera muito importante aperfeiçoar as avaliações dos alunos feitas ao longo dos seis anos do curso médico. As escolas médicas só devem fornecer diploma aos estudantes que tiverem os conhecimentos, as habilidades e as atitudes estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Medicina, que são os princípios orientadores para a formação médica em nosso país.

À primeira vista, muitos problemas da formação médica no Brasil seriam resolvidos com a obrigatoriedade de um Exame de Habilitação. Só poderia exercer a profissão quem fosse aprovado nesse exame e a sociedade estaria protegida contra médicos de formação deficiente. Entretanto, uma análise um pouco mais profunda revela que essa solução pode, ao contrário, contribuir para piorar substancialmente o ensino médico em nosso país.

Um exame desse tipo terá um impacto muito importante no comportamento dos estudantes de Medicina, em especial nos últimos anos do curso. Preparar-se para o exame passará a ser a preocupação central de nossos alunos. É muito provável que haja proliferação de cursinhos preparatórios para o Exame de Habilitação e os alunos passem a estudar os conteúdos que mais provavelmente serão exigidos no exame e se dedicarão menos às atividades práticas, à sua formação integral, ao seu treinamento nos ambulatórios, enfermarias e unidades de emergência. Em vez de contribuir para melhorar a formação dos médicos, o Exame de Qualificação poderá contribuir para piorá-la. Há o exemplo próximo dos exames de Residência Médica: muitos estudantes dos últimos anos do curso, preocupados com sua aprovação nesses exames, acabam por dedicar-se mais a estudar para o exame do que com sua formação prática. Não pode ser esquecido também o brutal impacto que o vestibular tem sobre o ensino do segundo grau. Um exame influencia decisivamente o comportamento dos estudantes e seu conteúdo tem que ser

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discutido com muito cuidado e profundidade: pode pretender-se um impacto positivo e o resultado ser um impacto negativo sobre a formação.

Apesar de haver diferenças importantes entre a formação dos médicos e dos advogados, é inegável que a instituição do Exame de Ordem pela Ordem dos Advogados do Brasil fez com que diminuísse a preocupação com o número e a qualidade das escolas de direito em nosso país. Existem hoje numerosas escolas de direito de baixa qualidade e que dão enormes lucros a muitos empresários do ensino superior. A instituição de um Exame de Habilitação para o exercício da Medicina é de alto interesse para muitas empresas que se dedicam ao ensino superior. Muitos empresários desse setor imaginam que terão muito mais facilidade em obter autorização para abertura de novos cursos de Medicina ou para aumento de vagas dos existentes caso haja um Exame de Habilitação.

É fundamental, também, avaliar o que aconteceria com aquele que concluiu um curso de Medicina e não foi aprovado no Exame de Qualificação. Surgirá um novo personagem, o bacharel em Medicina. O que ele poderá fazer e o que ele não poderá? Os Conselhos Regionais de Medicina passarão a ter uma nova e intensa atividade, coibir o exercício ilegal da Medicina por parte desses profissionais. É importante ressaltar que o bacharel em direito tem várias opções profissionais, não apenas a de ser advogado: pode ser, por exemplo, juiz, promotor, delegado, havendo formação específica para cada uma dessas profissões.

Estabelecer que o critério decisivo para o exercício da profissão de médico seja a aprovação em um exame realizado após receber o diploma tira a responsabilidade das escolas médicas pela eventual formação insuficiente e elas devem ser as principais responsáveis por essa formação. A ABEM considera que há outras prioridades para tornar a formação de nossos médicos de melhor qualidade e de acordo com as necessidades de nossa sociedade:

Estabelecer o número de médicos que o Brasil realmente necessita formar por ano e adequar o número de vagas nas escolas médicas a essa necessidade. Existe um grande prejuízo à sociedade quando existem médicos em número insuficiente, mas também quando existem médicos em excesso.

Estabelecer o número de especialistas de cada área e formá-los com qualidade, nos programas de Residência Médica.

Aperfeiçoar cada vez mais o sistema de avaliação das escolas médicas - Aperfeiçoar a avaliação dos estudantes de Medicina pelas escolas médicas, com avaliações constantes e formativas de conhecimentos, habilidades e atitudes.

Incentivar e colaborar com todas as escolas médicas na implantação das Diretrizes Curriculares.

Talvez o mais importante seja os governos federal e estaduais assumirem o seu papel: não permitir a abertura de novas escolas médicas sem uma clara demonstração de sua necessidade, que inclua a aprovação pelo Conselho Nacional de Saúde. Devem, também, promover a avaliação adequada das existentes, determinar o fechamento das escolas que não tiverem condições mínimas de funcionamento e oferecer condições de excelência às escolas públicas, que são de sua responsabilidade direta.

Reconhecemos a atuação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo no sentido de contribuir para o aprimoramento da formação médica. Entretanto, consideramos que sua decisão de promover um “Exame de Habilitação” deveria ser revista. Não há necessidade de fazer um exame para avaliar se é possível fazer um exame desse tipo. Algumas das nossas mais tradicionais escolas médicas realizaram, neste ano, exames de residência com parte objetiva e parte prática, houve centenas ou milhares de candidatos e estas instituições provaram que é possível fazer uma avaliação prática bem feita, não há necessidade de demonstrar o que já foi demonstrado. Como experimento para avaliar os conhecimentos, habilidades e atitudes dos alunos do sexto ano das escolas médicas do Estado de São Paulo também há problemas. Há uma grande probabilidade de haver um vício de seleção, uma vez há um número importante de estudantes que não farão o exame por discordarem dessa proposta. Mas o problema mais importante é que se cria uma situação de fato, é criado um exame sem antes haver uma discussão mais profunda que envolva todas as entidades interessadas em aprimorar a formação médica. Cria-se, inclusive, um temor nos estudantes do sexto ano, que ficam preocupados em não fazer o exame porque ele poderia ser utilizado na seleção para algum programa de Residência Médica ou o seu resultado ser exigido por empregadores.

O caminho proposto pela ABEM é que a discussão sobre a implantação ou não de um Exame de Habilitação para médicos seja uma discussão nacional e não regional, e que envolva as entidades profissionais, as escolas médicas, os estudantes de medicina, médicos residentes e a sociedade. Essa discussão deve ter como princípio a busca da melhor alternativa para que a sociedade tenha acesso a médicos formados de acordo com as Diretrizes

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Curriculares, competentes, éticos, humanos, socialmente responsáveis e adequados às necessidades de nossa sociedade.

Avaliar em um único momento, no final de toda a formação, é uma estratégia de avaliação inadequada e anacrônica. A avaliação deve ser feita em vários momentos do curso médico, com variados instrumentos de avaliação, que possam medir a aquisição de conhecimentos, de habilidades e atitudes médicas. A avaliação deve ser formativa, o avaliado deve ter sempre um retorno de sua avaliação para que possa se recuperar e a instituição deve ser responsável por essa recuperação.

A ABEM propõe-se a liderar uma discussão nacional sobre o aprimoramento da avaliação do estudante de Medicina, com a criação de instrumentos de avaliação de conhecimentos, habilidades e atitudes que sejam aplicados em vários momentos do curso médico. O estudante que fosse insuficiente em uma dessasavaliações poderia se recuperar e ser novamente submetido a ela e o responsável pelo suporte e formação dos alunos seria, é claro, a sua escola médica.

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O Modelo de Gestão do SUS e as Ameaças do Projeto Neoliberal

Conceição A. P. Rezende

Texto extraido do Texto extraido do http://www.cress16.org.br/acervo/modelo_de_gestao.pdf

Apresentação

Este texto tem por objetivo defender a proposição do Sistema Único de Saúde (SUS), consagrado na Constituição Federal de 1988 e nas Leis Orgânicas n° 8.080 e 8.142 de 1990. Nesta direção, vai reforçar o conteúdo constitucional e levantar questões relativas aos modelos de gestão que se originaram a partir do Plano Diretor da Reforma do Estado (1995), elaborado pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), coordenado por Bresser Pereira no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, que aprofunda como idéias centrais a disciplina fiscal, a privatização e a liberalização comercial. Este plano vai apresentar como propostas para transformar a gestão pública as Organizações Sociais (1995) e, posteriormente, as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (1999). Para finalizar, vai-se tecer algumas reflexões sobre a proposta de Fundação Estatal de Direito Privado, considerando-a carregada de todos os vícios já vivenciados na área da saúde da relação público-privada.

A Gestão do SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS), conforme previsto na Constituição e na legislação vigente é uma estratégia consistente de reforma democrática do Estado. Tem como princípios, a Universalidade, a Integralidade e a Equidade no acesso aos serviços de saúde; a Hierarquização do Sistema e das ações e serviços de saúde; a Descentralização da Gestão, Ações e Serviços; a Participação da População na definição da política de saúde; o Controle Social da implementação da política de saúde e a Autonomia dos Gestores (gestão única em cada esfera de governo com a utilização de Plano e Fundo de Saúde para a gestão dos recursos orçamentários, financeiros e contábeis).

O Projeto Neoliberal e a Saúde Pública

O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, de 1995

No Plano da Reforma do Estado encaminhado ao Congresso Nacional em 23 de agosto 1995, o Governo FHC partia do princípio de que as Funções do Estado deveriam ser de coordenar e financiar as políticas públicas e não de executá-las. Defendia que “nem tudo que é público é estatal” e afirmava que “devemos socializar com a iniciativa privada a responsabilidade de diminuir as mazelas provocadas pelo mercado”. Avaliava ainda, que “se o Estado não deixar de ser produtor de serviços, ainda que na área de políticas públicas sociais, para ser agente estimulador, coordenador e financiador, ele não irá recuperar a poupança pública”. Àquele modelo de gestão do Estado, chamou de “administração gerenciada”. Em seu texto, o Governo defendia uma flexibilização nos controles da sociedade sobre as ações do Poder Executivo. Achava que “a constituição de 1988 exagerou neste aspecto, retirando do executivo a capacidade de iniciativa”. Em seu Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o Governo Federal concebeu o Estado, com 04 (quatro) setores importantes:

a) O Núcleo Estratégico

Entendia que o único papel exclusivo do Estado era o de preparar, definir e fazer cumprir as leis, e, estabelecer relações diplomáticas, além da defesa do território. Achava que o Estado deveria ter controle absoluto sobre estes setores que deveriam ter administração centralizada e verticalizada e de propriedade estatal. Eram eles: Poderes Legislativo e Judiciário; Ministério Público; Poder Executivo: Presidente da República, Ministros, auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas.

b) Os Serviços Monopolistas de Estado (atividades exclusivas do Estado)

Eram assim chamados, aqueles serviços, cujo principal usuário é o próprio Estado. “Não são atividades lucrativas” e, por isto, o Governo defendia mantê-los com o Estado, na forma de propriedade estatal, embora, para estes serviços defendesse o que chamou de “modelo de gestão gerencial”, como as “agências autônomas”, “serviços sociais autônomos”, com o objetivo de assegurar-lhes a flexibilização das relações de trabalho e dos controles da sociedade sobre as políticas públicas: de Fiscalização; Fisco do Meio Ambiente e do Aparelho Central da Seguridade

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Social (Saúde, Previdência e Assistência Social). Para este setor, o Governo propôs a transformação/qualificação dos Órgãos Públicos em Agências Executivas.

c) Os Serviços Sociais Competitivos

Para este setor, o Governo propôs a “livre disputa de mercado” entre as instituições privadas, com o objetivo de promover a “eficiência e menor custo dos serviços sociais oferecidos pelas instituições privadas”. Transmitia com isto, idéia do “desperdício na administração pública”. Estes serviços eram: Educação, Saúde, Cultura, Produção de Ciência e Tecnologia. Para estes setores, propôs a estruturação das Organizações Sociais (OSs), que seriam entidades de “direito privado”, “sem fins lucrativos”, que deveriam manter “Contratos de Gestão” com o Governo Federal, que entraria com o patrimônio (instalações/equipamentos), pessoal, recursos orçamentários e, em contrapartida, a entidade se responsabilizaria por um nível de atendimento da demanda social, podendo vender serviços conforme sua capacidade. Neste caso, a propriedade seria a “pública não-estatal”. O Governo FHC defendia que o Estado não deveria assumir novos serviços e que os mesmos deveriam ser ampliados, quando necessários, por meio das Organizações Sociais (OSs).

d) O Setor de Produção de Bens e Serviços para o Mercado

Seriam aqueles constituídos, na época, por empresas públicas que garantiam acesso da população a bens e serviços de infra-estrutura. O Governo entendia que deveriam ser transferidas para empresas lucrativas (para o mercado). Para este setor, o Governo defendia a propriedade privada, com sistema de regulação por meio de agências. O Governo entendia que “são atividades empresariais e devem ser transferidas integralmente para a iniciativa privada”. Eram eles: Serviços de Água, Luz, Correios, Bancos, Pesquisas, etc.

Para cada um destes quatro Setores do Estado, o Governo propôs o que chamou de “formas de propriedade”:

a) “Propriedade Estatal”, administração pública, composta por patrimônio público (administração direta e indireta, inclusive as agências);

b) “Propriedade Privada”, entidades privadas, compostas por patrimônio privado (entidades da sociedade civil, com finalidade explícita de lucro);

c) “Propriedade Não-Estatal”, constituída pelas organizações sem fins lucrativos, que não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e que são orientadas diretamente para o atendimento do interesse público.

Para implementar este Projeto de Reforma do Estado, o Governo apresentou várias Propostas de Emendas Constitucionais, que foram consolidadas no documento chamado PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL - Quadro Comparativo - elaborado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado - MARE. Neste documento, as principais propostas de mudanças da Constituição recaíram sobre o Capítulo da Administração Pública; das Políticas Sociais, principalmente, sobre a Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência Social), e desta, uma proposta de alteração constitucional na área da Saúde, a chamada PEC 32 - Proposta de Emenda Constitucional número 32, que pretendia acabar com a universalidade do SUS. Graças a uma grande mobilização nacional em defesa do SUS, esta PEC 32 acabou sendo retirada pelo Governo.

A Política de Administração Pública é um instrumento fundamental para a Gestão do SUS. Dependendo de como o Governo pretende administrar esta política, os equipamentos e os trabalhadores públicos, haverá sempre repercussões pró ou contra a universalização e a integralidade das Políticas Públicas de um modo geral, principalmente para a Saúde, porque o SUS foi instituído, não apenas como um novo modelo de atenção à saúde, mas enquanto um modelo de gestão do Estado, federalizado, descentralizado, com comando único em cada esfera de governo e com pactuação da política entre as mesmas, com financiamento tripartite, com participação da comunidade e com controle social, dentre outros.

As medidas mais importantes, operadas a partir do Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado, do Governo de FHC foram:

a) a aprovação da Emenda Constitucional 19/98;

b) a aprovação da Emenda Constitucional 21/98;

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c) a Lei Complementar 101/2000 (Lei da Responsabilidade Fiscal);

d) a Lei 9.801/99 da exoneração de servidores por excesso de despesas;

e) a Lei 8.03190, que instituiu o programa nacional de desestatização;

f) a Lei 9.401/97, que instituiu as agências executivas;

g) a Lei 9.637/98, que instituiu as Organizações Sociais, Contratos de Gestão e o Programa Nacional de Publicação;

h) a Lei Federal n.º 9.790, de 23 de março de 1999, que instituiu as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP.

As Organizações Sociais

As Organizações Sociais (OSs) foram concebidas no Brasil como instrumento de viabilização e implementação de Políticas Públicas, conforme entendidas no “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”

Em 1995 (junho/julho), o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) elaborou anteprojeto de lei e o Decreto de Regulamentação das Organizações Sociais. Estes documentos, que reafirmavam as posições dos documentos anteriores, afirmavam que “a garantia da eficiência e a qualidade dos serviços devem ser asseguradas pela descentralização da União para os Estados e destes para os Municípios, através de parceria com a sociedade, por Contratos de Gestão”.

Em 1997, por meio da Medida Provisória nº 1591, o governo estabeleceu critérios para definir, sob a denominação de “Organizações Sociais (OSs)”, as entidades que, uma vez autorizadas, estariam aptas a serem “parceiras do Estado”, na condução da “coisa pública”. Aprovou-se no Congresso Nacional a Lei n.º 9.637 de 15 de maio de 1998 que “dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências”.

O objetivo formal da chamada “Lei das OSs” foi o de “qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde” (art. 1º). Para dar conseqüência, institui o contrato de gestão (Art. 5º ao 10º), “observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade” (art. 7º), como instrumento a ser firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às OSs. E ainda (possivelmente o objetivo mais importante para o projeto político de governo da época), assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União (Art. 20), que atuem nas atividades previstas na Lei, por meio do Programa Nacional de Publicização (PNP), criado mediante decreto do Poder Executivo3.

As OSs podem contratar funcionários sem concurso público, adquirir bens e serviços sem processo licitatório e não prestar contas a órgãos de controle internos e externos da administração pública, porque estas são consideradas “atribuições privativas do Conselho de Administração”, que podem todo o mais, tal como “aprovar por maioria, no mínimo, de dois terços de seus membros, o regulamento próprio contendo os procedimentos que deve adotar para a contratação de obras, serviços, compras e alienações e o plano de cargos, salários e benefícios dos empregados da entidade”.

A autoridade supervisora (órgão público ao qual está vinculado a OS) nomeia comissão de avaliação que deve encaminhar relatório conclusivo sobre a avaliação, precedida do relatório de execução do contrato de gestão, contendo comparativo específico das metas propostas com os resultados alcançados, acompanhado da prestação de contas correspondente ao exercício financeiro.

Como pode ser observado, com esta Lei, instituíram-se garantias e condições para se programar o “estado mínimo no país” conforme proposto no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, por meio da terceirização/privatização de serviços públicos até então produzidos pelo Estado e da transferência de competências privativas da União, também para entes privados, que podem dispor de poupança, bens, patrimônio, créditos e servidores públicos para administrar seus próprios interesses e, ainda assim, serem declaradas como “entidades de

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interesse social e utilidade pública”, para todos os efeitos legais. Portanto, ao denominar estas entidades de organizações sociais, o Governo pretendia garantir um meio para retirar órgãos e competências da administração pública direta (programas, ações e atividades) e indireta (autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas) e, além disto, garantir a transferência de seu ativo ao setor privado.

No caso da Saúde, a Lei ressalvou que “a organização social que absorver atividades de entidade federal extinta no âmbito da área de saúde deverá considerar no contrato de gestão, quanto ao atendimento da comunidade, os princípios do Sistema Único de Saúde, expressos no art. 198 da Constituição Federal e no art. 7o da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990”.

A justificação do Governo, entre outras, era de que as “atividades não exclusivas de Estado” (termos e conceitos tomados de uma proposta de governo e não da Lei) podem ser transferidas à iniciativa privada, sem fins lucrativos, sob o argumento de parceria e modernização do Estado, porque esta transferência resultaria em melhores serviços à comunidade; maior autonomia gerencial; maiores responsabilidades para os dirigentes desses serviços; aumento da eficiência e da qualidade dos serviços; melhor atendimento ao cidadão e menor custo. Além disso, o governo entendia que o Estado havia desviado de suas funções básicas para atuar no “setor produtivo”, o que teria gerado a deterioração dos serviços públicos e aumentado a inflação.

Com base nesta concepção de Estado e nesta justificação, vários estados (Tocantins, Rio de Janeiro, Bahia e Roraima) e municípios (São Paulo, entre outros) passaram a transferir serviços de saúde a entidades terceirizadas tais como cooperativas, associações, entidades filantrópicas sem fins lucrativos (ou com fins lucrativos), entidades civis de prestação de serviços, etc., qualificadas como organizações sociais (OSs). Assim, por meio de contratos de gestão ou termos de parcerias, transferiu-se serviços diversos ou unidades de serviços de saúde públicos a entidade civil, entregando-lhe o próprio estadual ou municipal, bens móveis e imóveis, recursos humanos e financeiros, dando-lhe autonomia de gerência para contratar, comprar sem licitação, outorgando-lhe verdadeiro mandato para gerenciamento, execução e prestação de serviços públicos de saúde4, sem se preservar a legislação sobre a administração pública e os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde.

Houve inúmeras manifestações contrárias e impugnações em razão dessa terceirização de serviços de saúde públicos (quase todos os Conselhos Estaduais de Saúde, inúmeros Conselhos Municipais e conferências de saúde), além de representações junto à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e às Procuradorias Regionais dos Direitos dos Cidadãos nos Estados, por Confederações, Federações, Sindicatos, parlamentares, CONASEMS, entre outros. Em alguns casos, o Ministério Público apresentou ação civil pública contra esse tipo de terceirização (ex: Rio de Janeiro, Roraima e Distrito Federal).

No geral, este tipo de instrumento de gestão não teve a necessária legitimidade para se implantar e, afora os exemplos citados, pode-se afirmar que a implementação da experiência, em larga escala como haviam planejado, fracassou.

As Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs)

Em 1999, a Lei Federal n.º 9.790, de 23 de março, instituiu as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, na esfera Federal de Governo. Esta Lei propõe “a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, e institui e disciplina o Termo de Parceria”, tal como o Contrato de Gestão firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como Organização Social.

Instituiu-se o Termo de Parceria, considerado como o instrumento a ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, resguardada a consulta aos Conselhos de Políticas Públicas das áreas correspondentes de atuação existentes, nos respectivos níveis de governo. Prevê que a execução do objeto do Termo de Parceria deve ser acompanhada e fiscalizada pelo órgão do Poder Público da área de atuação correspondente, por meio de comissão de avaliação, composta de comum acordo entre o órgão parceiro e a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público que encaminhará à autoridade competente relatório conclusivo sobre a avaliação procedida, e ainda, pelos respectivos Conselhos de Políticas Públicas em cada nível de governo.

Estabelece que a OSCIP deva publicar regulamento próprio contendo os procedimentos que adotará para a contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público, observando-se os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência.

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As pessoas jurídicas qualificadas com base em outros diplomas legais, ou seja, as Organizações Sociais (OSs) poderão qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), sendo-lhes assegurada a manutenção simultânea dessas qualificações, até dois anos, contados da data de vigência desta Lei. No final deste prazo, a pessoa jurídica interessada em manter a qualificação prevista nesta Lei deverá optar por ela, fato que implicará na renúncia automática de suas qualificações anteriores. A não opção implica na perda automática da qualificação obtida nos termos desta Lei.

O objetivo deste dispositivo é, de fato, transformar as OSs em OSCIP porque estas possuem maior alcance e abrangência quanto aos seus objetivos e projeto político de terceirização e privatização de programas, atividades, ações e serviços públicos. Com a Lei das OSCIP, grande parte das ações de governo poderá ser transferida ao setor privado, conforme o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado/1995 (FHC), exceto as do chamado Núcleo Estratégico e Burocrático, que permanecem com o Estado e as do chamado Setor de Produção de Bens e Serviços que, o governo FHC entendia que “são atividades empresariais e devem ser transferidas integralmente para a iniciativa privada lucrativa”.

No caso das OSCIP, a prestação de serviços públicos, é transferida para as Organizações Não-Governamentais (ONGs), cooperativas, associações da sociedade civil de modo geral, por meio de “parcerias”, diferentemente do Programa de Publicização, que promove a extinção de órgãos ou entidades administrativas já existentes. Mas é caminho certo para que, em curto prazo, não sejam mais criadas ou mantidas entidades, na esfera pública, destinadas a prestação de serviços ou execução de atividades em diversas áreas. O Estado, enquanto tal, deixaria de estruturar-se, utilizando-se de uma forma contratual para atribuir, a entidades do setor privado, pré-existentes e que satisfaça os requisitos firmados nessa norma legal, a prestação de serviços à sociedade (Santos, 2000).

Os objetivos estabelecidos na “Lei das OSCIP” cumprem o previsto no Plano Diretor de Reforma do Estado, no qual, para os Serviços Monopolistas de Estado e para os Serviços Sociais Competitivos implementar-se-ia a gestão gerencial como as agências autônomas, os serviços sociais autônomos, as OSs e as OSCIPs, para garantir, especialmente, a flexibilização da força de trabalho, o enxugamento do Estado e a limitação do controle da social, mesmo que, como comprovado posteriormente, com descumprimento da Constituição Federal e das Leis vigentes.

Análise das Leis Federais do Ponto de Vista da Administração Pública e da Gestão do SUS

Do ponto de vista do regime jurídico do Direito Público, tanto as OSs quanto as OSCIPs são instituições de direito privado que, não fossem as leis específicas que as instituíram, poder-se-iam ser consideradas como pessoas jurídicas estranhas ao sistema jurídico administrativo nacional. Ademais, não tem encontrado respaldo ou legitimidade social onde quer que se tentem implantá-las.

As tarefas e competências fixadas pela Constituição Federal para a Administração Pública, a serem executadas sob o regime jurídico do Direito Público, somente podem ser alteradas por meio de emenda constitucional. Qualquer tentativa de burlar referidos limites configurará fraude constitucional, como ocorre com as organizações sociais (Santos, 2000) e com as OSCIPs.

E ainda, “não é difícil perceber-se que as qualificações como organização social que hajam sido ou que venham a ser feitas nas condições da Lei 9.637, de 15 de maio de 1998, são inválidas, pela flagrante inconstitucionalidade de que padece tal diploma” (Bandeira de Mello, 2002).

“Em relação à Administração Indireta, na qual se incluem as autarquias, as fundações (de direito público ou privado, mas instituídas pelo Poder Público), as sociedades de economia mista e as empresas públicas, o sistema jurídico-constitucional vigente impõe fiscalização e controle de seus atos pelo Congresso Nacional (art. 49, X); fiscalização contábil financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, também pelo Congresso e pelo Sistema interno de cada Poder (art. 70); orçamento previsto na lei orçamentária (art. 165, § 5º, I); limite de despesas com pessoal (art. 169, § 1º). O ingresso em seus cargos e empregos dar-se-á mediante concurso público (art. 37, II). As compras e contratações serão precedidas de licitação pública, assegurada a igualdade de condições entre os licitantes (art. 37, XXI e 175)” (Santos, 2000).

A possibilidade de cessão de servidores públicos com ônus para a origem (órgão do Poder Público), prevista na Lei que instituiu as OSs é totalmente inconcebível à luz dos princípios mais elementares do Direito, assim como obrigá-los à prestação de serviços a entidades privadas, quando foram concursados para trabalharem em órgãos públicos.

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Com relação às OSs e às OSCIPs, o que as diferenciariam, do ponto de vista do regime do Direito Administrativo, das autarquias, das fundações, das sociedades de economia mista e das empresas públicas, em seus objetivos sociais e administrativos, que as faz totalmente privilegiadas em termos de poder discricionário?

O que se pretende com o controle interno e externo da administração direta e indireta, com o estabelecimento de licitações públicas para compra de bens e serviços e com o concurso público é a garantia, respectivamente, da eficiência na aplicação dos recursos públicos, da livre concorrência entre fornecedores de bens e produtos e de prestadores de serviços e da igualdade de acesso aos cargos disponíveis com recursos públicos. Enfim, do imperativo da prevalência dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade na administração/ gestão da coisa pública.

Quando a Lei das OSs estabelece que sejam qualificadas nesta condição somente as entidades privadas sem fins lucrativos, assim como a Lei das OSCIP, mas concedem aos seus respectivos Conselhos de Administração a prerrogativa de dispor sobre o plano de cargos e salários e benefícios dos seus “empregados”, estão dispondo, em outras palavras, da possibilidade de utilizar-se de eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos ou bonificações, auferidos mediante o exercício de suas atividades, distribuindo-os entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores ou empregados, na forma de suas remunerações, tais como em salários, gratificações, auxílios e benefícios diversos. A simples referência “de mercado” para livre remunerar os cargos dessas entidades, conforme diz as citadas Leis, não oferece garantias de gestão compatível com o interesse público. Totalmente incompatível também é a discricionariedade autorizada (apenas por essas Leis, contrárias à Constituição) para livre contratar.

Sobre a inconstitucionalidade e a ilegalidade da terceirização, faz-se necessário lembrar ainda, que a Constituição Federal, em seu art. 196, estabelece que a saúde seja “direito de todos e dever do Estado” e nos arts. 203 e 204 (a Assistência Social) e 205, caracteriza-se a educação e o ensino também, como deveres do Estado, o que o impede (Estado) de desresponsabilizar-se da prestação destes serviços, restando ao setor privado o papel apenas de complementaridade, na forma da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993.

Conforme o art. 2º, da Lei n.º 8080/90: “Art. 2º - A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”

O SUS, composto por ações e serviços de saúde, “integra uma rede regionalizada e hierarquizada”, com descentralização, atendimento integral e participação da comunidade (art. 198, CF), assim definido na Lei n.º 8080/90: “Art. 4º - O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração Direita e Indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde – SUS.”

A iniciativa privada tem participação complementar na prestação de serviços de saúde ao SUS (Art. 196, da CF) que se caracterizam como serviços de relevância pública (art. 197, da CF). Quando a capacidade instalada do Estado for insuficiente, tais serviços podem ser prestados por terceiros, ou seja, pela capacidade instalada de entes privados, tendo preferência, entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos (§ 1º, art. 199 CF). Também, o art. 24 da Lei n.º 8080/90 estabelece que

“quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde – SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.”

O que ocorreu, de fato, com as terceirizações previstas na Lei das OSs foi a transferência, pelo Estado, de suas unidades hospitalares, prédios, móveis, equipamentos, recursos públicos e, muitas vezes, pessoal para a iniciativa privada.

Os Contratos de Gestão e os Termos de Parcerias Previstos entre o Estado, as Organizações Sociais e as OSCIPs, respectivamente

O art. 199, § 1º, estabelece que “as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.” Maria Sylvia Zanella di Pietro, ao analisar o art. 199, § 1º da CF, ensina:

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“A Constituição fala em contrato de direito público e em convênio. Com relação aos contratos, uma vez que forçosamente deve ser afastada a concessão de serviço público, por ser inadequada para esse tipo de atividade, tem-se que entender que a Constituição está permitindo a terceirização, ou seja, os contratos de prestação de serviços do SUS, mediante remuneração pelos cofres públicos. Trata-se dos contratos de serviços regulamentados pela Lei n.º 8.666, de 21.6.93, com alterações introduzidas pela Lei n.º 8.883, de 8.6.94. Pelo art. 6º, inc. II, dessa lei, considera-se serviço “toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse da Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais” (...) “É importante realçar que a Constituição, no dispositivo citado (art. 199, § 1º), permite a participação de instituições privadas “de forma complementar”, o que afasta a possibilidade de que o contrato tenha por objeto o próprio serviço de saúde, como um todo, de tal modo que o particular assuma a gestão de determinado serviço. Não pode, por exemplo, o Poder Público transferir a uma instituição privada toda a administração e execução das atividades de saúde prestada por um hospital público ou por um centro de saúde; o que pode o Poder Público é contratar instituições privadas para prestar atividade-meio, como limpeza, vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnico-especializados, como os inerentes aos hemocentros, realização de exames médicos, consultas, etc.; nesses casos, estará transferindo apenas a execução material de determinadas atividades ligadas ao serviço de saúde, mas não sua gestão operacional” (...) “A Lei n.º 8080, de 19.9.90, que disciplina o Sistema Único de Saúde, prevê, nos arts. 24 a 26, a participação complementar, só admitindo-a quando as disponibilidades do SUS “forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área”, hipótese em que a participação complementar “ser formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público” (entenda-se, especialmente, a Lei n° 8.666, pertinente a licitações e contratos). Isto não significa que o Poder Público vai abrir mão da prestação do serviço que lhe incumbe para transferi-la a terceiros; ou que estes venham a administrar uma entidade pública prestadora do serviço de saúde; significa que a instituição privada, em suas próprias instalações e com seus próprios recursos humanos e materiais, vai complementar as ações e serviços de saúde, mediante contrato ou convênio” (Pietro, 2002:123).

O Ministério da Saúde, em 26 de outubro de 1993 (DOU de 03.11.93) editou a Portaria MS n.º 1.286, que “dispõe sobre a explicitação de cláusulas necessárias nos contratos de prestação de serviços entre o Estado, o Distrito Federal e o Município e pessoas naturais e pessoas jurídicas de direito privado de fins lucrativos ou filantrópicos participantes, complementarmente, do Sistema Único de Saúde”.

O regime do Direito Administrativo no Brasil estabelece que as relações entre a Administração Pública e o Setor Privado devem ser estabelecidas quando e enquanto a capacidade de oferta do Estado estiver esgotada e devem basear-se nas necessidades da população, sendo formalizadas por meio de contrato ou convênio. Os termos “contrato de gestão” (OSs) e “termos de parcerias” (OSCIP), não podem ser nada mais, nada menos do que apelidos dos citados instrumentos jurídicos, devendo conter os itens mínimos necessários, conforme previstos nas normas vigentes e não garantem atalhos no cumprimento da Lei. Vejamos o que estabelece o parágrafo único do art. 2º da Lei 8.666, de 21/06/1993:

“Considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da administração pública e particulares em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.”

E ainda, o art. 166 da mesma Lei, assim estabelece:

“aplicam-se as disposições desta Lei, no que couberem, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração”.

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Outros Problemas Advindos da Adoção de OSs e OSCIPs para a Administração Pública e para o SUS

A introdução da administração gerenciada, como mecanismo de gestão para o SUS, é um subterfúgio para a terceirização e a privatização de serviços do setor saúde e se transforma em problemas previsíveis, como demonstra a história da saúde no Brasil:

a) transferência de “poupança pública” ao setor privado lucrativo;

b) repasse de patrimônio, bens, serviços, servidores e dotação orçamentária públicos a empresas de Direito Privado;

c) desregulamentação do Sistema Público de compra de bens e serviços (Lei 8.666/Lei das Licitações);

d) os Servidores Públicos, cedidos às OSs continuarão vinculados aos seus órgãos de origem, integrando um “Quadro em Extinção”, desenvolvendo atividades para o setor privado;

e) com as OSs e as OSCIP, vislumbram-se a implementação da terceirização de serviços públicos como regra e o fim do Concurso Público, forma democrática de acesso aos Cargos Públicos;

f) desprofissionalização dos Serviços, dos Servidores Públicos e desorganização do processo de trabalho em saúde;

g) flexibilização dos contratos de trabalho;

h) desmonte da Gestão Única do SUS;

i) recentralização da gestão de várias políticas públicas e da gestão do SUS nos Ministérios e nas Secretarias de Estado;

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j) a hierarquização dos serviços de saúde estará comprometida, na medida em que cada serviço terceirizado/privatizado tem em si a característica de autonomia em relação à Administração Pública e ao SUS. Fica comprometido o Sistema de Referência e Contra-Referência.

Em “Parecer sobre a Terceirização e Parcerias na Saúde Pública”, assim expressou o Subprocurador Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves:

a) “... face ao disposto na Constituição (art. 196 e seguintes) e na Lei n.º 8.080/90, o Estado tem a obrigação de prestar diretamente os serviços públicos de saúde;

b) a iniciativa privada (com ou sem fins lucrativos) participa na prestação de tais serviços quando a capacidade instalada do Estado (prédios, equipamentos, corpo médico, instalações, etc.) for insuficiente para atender a demanda;

c) dá-se preferência, pelas regras vigentes, às entidades filantrópicas ou sem fins lucrativos, que são chamadas a participar do Sistema Único de Saúde - SUS de forma complementar (e com sua capacidade instalada) para auxiliar o Estado no atendimento à população;

d) a saúde é livre à iniciativa privada que, mesmo fora do Sistema Único de Saúde, também exerce serviços de relevância pública;

e) a correta leitura do art. 197 da CF (e face às demais regras vigentes) é a de que a execução dos serviços de saúde deve ser feita diretamente (pelo Estado) ou por terceiros (hospitais e unidades hospitalares de entidades filantrópicas que venham a integrar o SUS), os quais comparecem com sua capacidade instalada e em caráter complementar, e por pessoa física ou jurídica de direito privado (consultórios médicos e hospitais privados não filiados ao SUS). Todos exercem serviços de relevância pública, mas aqueles prestados pelo Estado são de natureza essencialmente pública, integral e universal, caracterizando-se como direito fundamental e dever do Estado;

f) não é possível, face às regras vigentes, aos Estados transferirem a gestão, a gerência e a execução de serviços públicos de saúde de hospitais ou unidades hospitalares do Estado para a iniciativa privada;

g) a dispensa de licitação em qualquer caso, seja para a escolha de parceiros para o SUS, com exceção de casos especialíssimos de entidades filantrópicas (que atuarão não com a capacidade instalada do Estado, mas com seus próprios prédios e meios), seja para compra de material ou subcontratação, é ilegal e fere a Constituição;

h) não se pode confundir assessoria gerencial que se presta à direção de um determinado hospital público (que pode inclusive ser contratada pelo Poder Público mediante licitação) com a própria gerência desse hospital;

i) a atividade de prestação de serviços públicos de saúde rege-se pelo regime de direito público, com as implicações decorrentes. Isso se aplica aos contratos ou convênios realizados com o Poder Público;

j) as leis estaduais e municipais, que pretendem transferir à iniciativa privada a capacidade instalada do Estado em saúde, são ilegais e inconstitucionais;

k) a Lei n.º 9.637, de 15 de maio de 1998 (originária da MP nº 1.591/97), no que se refere à saúde, é inconstitucional e ilegal quando: dispensa licitação (§ 3º art. 11); autoriza a transferência para a iniciativa privada (com ou sem fins lucrativos) de hospitais e as unidades hospitalares públicas (ex.: art. 1º, quando fala em saúde; art. 18, quando fala em absorção e quando fala em transferência das obrigações previstas no art. 198 da CF e art. 7º da Lei nº 8080/90; e art. 22, quando fala em extinção e absorção);

l) a Lei nº 9.637/98 colide frontalmente com a Lei nº 8080/90 e com a Lei nº 8.152, de 28 de dezembro de 1990. Desconhece, por completo, o Conselho Nacional e os Conselhos Estaduais, que têm força deliberativa;

m) a Lei nº 9.637/90 nega o Sistema Único de Saúde – SUS como previsto na Constituição, já que introduz um vírus – organizações sociais -, que é a antítese do Sistema;

n) a terceirização da Saúde, seja na forma prevista na Lei nº 9.637/90, como nas formas similares executadas pelos Estados – e antes mencionadas – dá oportunidade a direcionamento em favor de determinadas organizações privadas, fraudes e malversação de verbas do SUS;

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o) a terceirização elimina licitação para compra de material e cessão de prédios, concurso público para contratação de pessoal e outros controles próprios do regular funcionamento da coisa pública. E pela ausência de garantias na realização dos contratos ou convênios, antevêem-se inevitáveis prejuízos ao Erário Público.”

E ainda, o Ministério Público Federal, pelos “Procuradores da Cidadania”, decidiu no V Encontro Nacional dos Procuradores dos Direitos do Cidadão7, que deve atuar em defesa do Sistema Único de Saúde – SUS, tal como concebido na Constituição de 1988 e na Lei nº 8.080/90, adotando as providências necessárias, a nível administrativo e judicial, para:

a) “coibir a terceirização ou transferência dos hospitais e unidades hospitalares públicos para a iniciativa privada, com ou sem fins lucrativos;

b) argüir a ilegalidade e inconstitucionalidade de tais transferências, tanto no seu aspecto macro (ação civil pública contra a lei estadual, por exemplo) como nas questões pontuais (falta de licitação e outros aspectos do contrato ou convênio).”

O Ministério da Saúde, também, solicitou à Consultoria Jurídica8 esclarecimentos “sobre o repasse de verbas da União para Estados e municípios que financiam projetos de gestão baseados em legislação local, como no caso de Organizações Sociais, com destaque para Lei Baiana nº 8.647, de 29 de julho de 2003, que fomenta a absorção, pelas Organizações Sociais Baianas, de atividades e serviços de interesse público atinente à saúde, entre outros”, que teve o seguinte entendimento:

“Leis que fomentam a absorção, pelas Organizações Sociais, de atividades e serviços de interesse público atinentes à saúde, como a do Estado da Bahia, Lei nº 8.647, de 29 de julho de 2003, são INCONSTITUCIONAIS.” (...) “as Organizações Sociais, de regra, não podem exercer serviço público delegado pelo Estado, mas, sim, atividade de natureza privada, com incentivo do Poder Público”.

Fundação Estatal de Direito Privado: novidade ou neoliberalismo requentado?

O Projeto de Lei Complementar 92/2007, apresentado ao Congresso Nacional, pelo Poder Executivo, em 13/07/2007, propõe regulamentar o inciso XIX do art. 37 da Constituição Federal, parte final, para definir as áreas de atuação de fundações instituídas pelo poder público. Propõe que, mediante lei específica, poderá ser instituída ou autorizada a instituição de fundação sem fins lucrativos, integrante da administração pública indireta, com personalidade jurídica de direito público ou privado, e, somente direito privado, para o desempenho de atividade estatal que não seja exclusiva do Estado, nas seguintes áreas: saúde, incluindo os hospitais universitários – neste caso, precedido de manifestação do conselho universitário -, assistência social, cultura, desporto, ciência e tecnologia, meio ambiente, previdência complementar do servidor público (art. 40, §§ 14 e 15, da CF), comunicação social, e promoção do turismo nacional.

Na Exposição de Motivos informa que a criação de fundação estatal dar-se-á por lei específica, que estabelecerá a sua personalidade jurídica, se de direito público ou privado. Destaca que a proposta apenas autoriza o Poder Público a criar a fundação estatal e que, no caso de fundação estatal de direito privado, o Projeto prevê que somente poderá ser instituída para desempenho de atividades que não sejam exclusivas do Estado (Bresser Pereira, 1995), de forma a vedar a criação de entidade de direito privado para exercício de atividades em áreas em que seja necessário o uso do poder de polícia.

O Plano Diretor (Bresser Pereira, 1995) estabelecia que os Serviços não-exclusivos do Estado, visam:

“transferir para o setor público não-estatal estes serviços (principalmente saúde), através de um programa de “publicização”, transformando as atuais fundações públicas em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorização específica do Poder Legislativo para celebrar contrato de gestão com o Poder Executivo e assim ter direito a dotação orçamentária; lograr maior autonomia e maior responsabilidade para os dirigentes desses serviços; lograr adicionalmente um controle social direto desses serviços...; lograr, finalmente, uma maior parceria entre o Estado, que continuará a financiar a instituição, a própria organização social, e a sociedade a que serve e que deverá também participar minoritariamente de seu financiamento via compra de serviços e doações; aumentar, assim, a eficiência e a qualidade dos serviços” (grifo nosso).

As diretrizes do Plano Diretor para o setor saúde eram:

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a) a contenção de gastos públicos e a flexibilização dos procedimentos de compras e contratações, especialmente da força o trabalho;

b) a focalização em detrimento das políticas universais (custo-efetividade);

c) a reorientação dos recursos públicos para o Setor Privado;

d) o controle do “corporativismo” - combate à organização (social e sindical especialmente).

e) a “Descentralização”: Estado –> Terceirização –> Privatização

f) o incentivo a mecanismos de competição.

O documento do Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão (MPOG), de 10 de junho de 2007, afirma que defende um “Estado forte para se defender do controle privado”. Como? Se a proposta é a criação de Entidade de Direito Privado com tudo o que ela agrega contrária aos princípios do SUS e carregada de desvios por demais conhecidos na área da saúde? A saúde pública é muito jovem no Brasil. Os instrumentos privatistas são por demais conhecidos no setor saúde.

Para quê e a quem interessa a autonomia gerencial da Fundação (uma entidade) se a gestão do SUS, nas três esferas de governo e as ações e serviços de saúde, inclusive os serviços contratados são, por natureza, interdependentes e intersetoriais, subordinados ao princípio da gestão única em cada esfera de governo?

Que autonomia orçamentária existiria na Fundação, dependente hierárquica e financeiramente da administração direta, se a maior parte dos recursos seria de origem estatal, repassados pelos gestores públicos, sujeitos a contingenciamentos orçamentários e a controles públicos, pela natureza de sua origem (públicos), assim como a arranjos de prioridades assistenciais? Se a falta de agilidade é uma das razões da falta de autonomia da administração direta, segundo o texto disponível no sítio do MPOG e se a administração pública não possui nenhuma autonomia, que autonomia terá um órgão dependente dessa estrutura para funcionar? Esta é uma falsa justificação para razões aparentemente visíveis...

Que patrimônio próprio é o que se pretende atribuir à dita Fundação, se adquirido por doação do Estado por benesse dos governantes de plantão?

A unicidade do sistema nacional de saúde e a gestão única em cada esfera de governo constituíram-se em princípios do SUS tão importantes nos debates durante a Constituinte que a concepção/acordo foi de que, em todas as esferas de governo, fossem extintos todos os órgãos e entidades da administração indireta existentes na época vinculados ao MS: INAN, INAMPS, LBA, FUNASA, etc. A previsão era de que o mesmo deveria ocorrer, em todas as esferas de governo, com as administrações indiretas vinculadas a estados e municípios. Inúmeros estados e municípios brasileiros haviam instituído fundações públicas de direito privado (especialmente na década de 1970) para gerir o sistema ou serviços de saúde. Naquele momento, estavam caracterizados os equívocos do modelo de Organização/Gestão/Gerência do setor saúde, pulverizadas em órgãos do Estado nas formas de fundações, autarquias, institutos, etc..

De acordo com a Constituição Federal e a Lei nº 8080/90 é obrigação do Estado:

a) prestar serviços de saúde diretamente;

b) quando a capacidade instalada do Estado for insuficiente, tais serviços podem ser prestados por terceiros, ou seja, pela capacidade instalada de entes privados, tendo preferência entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos (§ 1º, art. 199 CF) mas, jamais a entrega de capacidade já instalada pelo Estado, a terceiros;

c) pode prestar serviços de saúde por meio de entidades privadas, desde que estas se submetam às regras do SUS, de forma complementar e para que o Estado possa, no atendimento da Saúde pública, utilizar-se também da capacidade instalada destes entes privados.

d) O art. 199, § 1º, estabelece que “as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”

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e) O art. 24 da Lei nº 8080/90 estabelece que “quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde – SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.”

Para Meirelles, H. L. apud Gonçalves, W. (1998):

“Serviços próprios do Estado são aqueles que se relacionam intimamente com as atribuições do Poder Público (segurança, polícia, higiene e saúde pública, etc.) e para a execução dos quais a Administração usa da sua supremacia sobre os administrados. Por esta razão, só devem ser prestados por órgãos ou entidades públicas, sem delegação a particulares. Tais serviços, por sua essencialidade, geralmente são gratuitos”

O modelo de descentralização: Estado –> Terceirização –> Privatização, adotado pelo projeto neoliberal não é compatível com o modelo de descentralização do SUS: União –> Estado –> Município –> Rede de Ações de Serviços de Atenção à Saúde, cujo modelo foi tema da 9ª Conferência Nacional de Saúde (1992) – “Saúde: a Municipalização é o Caminho”.

No processo constituinte (1998), já se tinha a avaliação de que uma das principais mazelas da disfuncionalidade do sistema de saúde era a forma de gestão do trabalho vigente, um dos principais fatores que inviabilizava o funcionamento adequado do sistema. Nos dezenove anos de implementação do SUS, vários problemas identificados no setor saúde estão sendo enfrentados, tais como a descentralização, que está a caminho, embora a regionalização e a hierarquização do sistema sigam a passos lentos. O controle social do SUS e a participação popular que, embora com baixo grau de autonomia, vem se implementando país a fora. O processo de negociação intergestores bi e tripartite, freqüentemente tem procedido independente do controle social. O financiamento do SUS que, apesar de insuficiente, já se ampliou nos últimos anos, após a aprovação da Emenda Constitucional 29/2000. No entanto, a forma de gestão da força de trabalho do setor (quase escravagista), não só, não foi alterada, como foi amplamente precarizada e submetida a novos modos de degradação, tais como a ausência de concurso público, vínculos múltiplos e ilegais, ambientes de trabalho insalubres, construção de uma visão desqualificadora do trabalho no setor público, adoção de mecanismos nefastos de competitividade e valorização desigual dos trabalhadores em condições de trabalho idênticas, dentre outras.

Considerações Finais

Após avaliação a respeito da instituição de “novas” modalidades de gestão para o SUS e uma detida reflexão sobre a situação em que se encontrava a gestão do Estado brasileiro durante o período da Constituinte, é necessário que se leve em consideração os seguintes aspectos:

a) Ao proporem “novidades” para a reforma do Estado, especialmente para a gestão do SUS, que realizou umas das mais importantes reformas que o Estado brasileiro já fez (embora setorial), os gestores e governantes devem conhecer e incorporar a concepção filosófica de que a “administração gerencial”, na forma de “propriedade pública não-estatal” em todas as suas formas de apresentação, a exemplo do que foi proposto no Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado (1995), já rejeitada pelo Conselho Nacional de Saúde para o SUS; dos consórcios privados e da Fundação Estatal de Direito Privado, são maneiras, subterfúgios e apelidos de transferência de responsabilidade do Estado com relação à saúde para o setor privado e não se coaduna com o modelo de gestão do SUS, tal como definido constitucionalmente.

b) É importante refletir sobre as chamadas “áreas não exclusivas do Estado” e a Saúde: a Constituição Federal admitiu a prestação de serviços privados de saúde de forma complementar ao SUS e não substitutiva a serviços ou órgãos do SUS, principalmente, onde os serviços já são públicos, como são os Hospitais Universitários, os Hospitais Federais, Estaduais, Municipais, do Distrito Federal e quaisquer serviços existentes ou a serem instituídos com recursos públicos.

c) O documento Modelos de Gestão - Formas jurídico-institucionais da Administração Pública – Conceitos e Características principais – do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, não considerou o Modelo de Gestão do SUS, da Política de Assistência Social (SUAS) e de Segurança Pública (SUSP) vigentes no País. Não analisou seus modelos de gestão e seus processos de implementação, para concluir que o modelo de gestão de órgãos do SUS necessita ser alterado para se assegurar eficiência à sua gestão. Também não apresentou quaisquer análises da experiência/aventura administrativa que foi a adoção das OSs e as OSCIPs.

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d) O Sistema Único de Saúde realiza ações e serviços públicos de relevância pública, inclusive aqueles prestados pela iniciativa privada fora do SUS, a chamada Saúde Suplementar. As ações de saúde não são exclusivas do Estado, mas exigem, permanentemente, o exercício do poder e da autoridade estatal, ao contrário do que assegura o texto da Mensagem que encaminhou o PLP 92/2007 ao Congresso Nacional, para serem executadas conforme a necessidade da população, e não, de acordo os interesses privados e econômicos.

e) O modelo de gestão no SUS está inscrito na Constituição Federal de 1988 e nas Leis Federais nº 8.080/90 e nº 8.142/90.

f) As instâncias de Controle Social do SUS já deliberaram sobre propostas para gestão de órgãos do SUS, a saber:

• as Diretrizes das Conferências Nacionais de Saúde, em especial a 8ª, 10ª, 11ª e 12ª sobre o modelo de gestão do SUS;

• a Resolução do Conselho Nacional de Saúde de nº 223/1997, sobre as Organizações Sociais;

• a Deliberação do Conselho Nacional de Saúde nº 001 de 10 de março de 2005, com o seguinte teor: Posicionar-se contrário à terceirização da gerência e da gestão de serviços e de pessoal do setor saúde, assim como, a administração gerenciada de ações e serviços, a exemplo das Organizações Sociais (OS), das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) ou outros mecanismos com objetivo idêntico, e ainda, a toda e qualquer iniciativa que atente contra os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).

• O Conselho Nacional de Saúde recusou a proposta de Fundação Estatal para o Sistema Único de Saúde, em sua 174ª Reunião, de 13 de junho de 2007.

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Ligas Acadêmicas

Acd. Rodrigo Dantas da Cruz – DA ”2 de Maio” – UNCISAL

Nos últimos anos tem havido um considerável aumento do número de ligas acadêmicas atuantes nos cursos de graduação em medicina no Brasil. As Ligas acadêmicas foram inicialmente idealizadas num momento de grande tensão político-social. Os anos da ditadura. Então nesses 25 anos de redemocratização, de mudanças profundas na sociedade, de mudanças nas abordagens de Atenção a Saúde e de reformas curriculares, surgiram as ligas acadêmicas.

Idealmente, portanto, espera-se que as Ligas Acadêmicas (LA) constituam-se “espaços” onde o aluno possa atuar junto à comunidade como agente de promoção de saúde e transformação social, ampliando o objeto da prática médica, reconhecendo as pessoas como atores do processo saúde-doença, o qual envolve aspectos psicossociais, culturais e ambientais, e não apenas biológicos. Assim, propiciariam, além do desenvolvimento de senso crítico e raciocínio científico, uma prática mais ampla do exercício da cidadania, com o olhar voltado para as necessidades sociais e a integralidade da assistência à saúde

Muito temos discutido a respeito de Ligas Acadêmicas (LA) neste tempo em que repensamos o ensino médico. Diversas oficinas abordando este tema são realizadas em nossos encontros da DENEM e sempre existe procura por materiais sobre o assunto, desta demanda surge à idéia deste. Afim de esclarecer alguns destes pontos organizamos um espaço para discutirmos e nos capacitarmos sobre este tema como referência as pautas de lutas do Movimento Estudantil de Medicina.

O que é como deve funcionar uma liga acadêmica (LA)?

Não há exatamente um conceito sobre as Ligas Acadêmicas, mas linhas que estas devem adotar. Uma das características fundamentais destas é de ser uma entidade primordialmente estudantil e de ter a sua frente um grupo de estudantes que decide se aprofundar em determinado tema e sanar demandas da população. Os estudantes definem seus rumos ficando a cargo do professor a orientação das atividades desenvolvidas.

As ligas não são apenas grupos de estudo. Considero propicia e correta à comparação desta à própria universidade no que se refere ao tripé de sua concepção: ensino, pesquisa e extensão. Estas entidades devem necessariamente desenvolver, de maneira equilibrada, atividades nas três áreas citadas.

A promoção de saúde é um de seus principais objetivos. A liga deve pensar em maneiras de atuar nos vários níveis de prevenção e cura. Não devemos nos manter em redomas pensando estar alcançando nosso objetivo, devemos ter em mente nosso potencial de agentes de transformação social e nosso dever de exercício da cidadania.

Não há limite de tempo para o funcionamento de uma LA. Na verdade a estrutura destas deve ser pensada de forma a se prolongar pelas gerações seguintes de estudantes que nela ingressarem.

O tema deve ser definido com base em duas questões: a demanda da população e a demanda dos estudantes. Uma demanda não pode sobrepujar a outra, caso contrário haverá sérios riscos de que a LA não chegue a funcionar, ou que tenha vida curta. Patologias com grande prevalência na população devem ter preferência. Temas muito específicos devem ser evitados por restringir o trabalho do grupo a poucas pessoas da população e por gerar uma tendência a superespecialização precoce do estudante. Os temas devem despertar o interesse dos estudantes e como já fora dito contemplar as demandas da população.

O plano de ensino deve ser amplo visando integrar o tema da liga a outras patologias, ao Sistema Único de Saúde e formas de realizar extensão em comunidade respeitando seus costumes e obtendo uma boa resposta da mesma. A bioestatística, epidemiologia e outras áreas relacionadas a pesquisa também devem fazer parte das atividades de ensino.

Várias ligas têm em sua composição discentes e docentes de várias áreas. Esta transdisciplinaridade é excelente para o bom desenvolvimento das atividades previstas. Quando pensamos nos objetivos e depois nas atividades da entidade devemos imaginar quais seriam os atores mais capacitados a executá-las. Estudantes de enfermagem, psicologia, farmácia, e diversas outras áreas (inclusive de outras áreas que não da saúde) podem participar das atividades e da liga.

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A figura do orientador deve ser tida como fundamental, mas nunca como principal na LA. Orientar é diferente de coordenar, desta forma o trabalho não deve ser conduzido de acordo com os interesses do orientador. Devemos ter como principal norteador do trabalho do grupo a transformação social, através dos trabalhos de produção do conhecimento e extensão, além atividades de formação dos estudantes envolvidos.

Não limitar a atividade de extensão do grupo ao ambulatório é de extrema importância. A liga deve estar junto à população participando de campanhas de prevenção, visitas a comunidade procurando entender sua dinâmica e seus problemas para assim poder atuar de forma eficaz. Estas poderiam ainda participar dos conselhos municipais e estaduais de saúde expondo os conhecimentos adquiridos em seus trabalhos e ajudando na construção da nova realidade da saúde nas cidades e estados.

Em que contexto de nossa formação as ligas se encontram?

A discussão a respeito das ligas vai além de problemas pontuais nas escolas como pode se perceber nos últimos anos através do grande surgimento daquelas em todo país.

A partir da constituição de 1988, em que se elaborou o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, o papel das LA se fortaleceu. Criada em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) definiu o papel da educação superior na prática e na formação acadêmicas, destacando o estímulo ao conhecimento dos problemas do mundo presente, assim como os nacionais e regionais. O resultado prático seria evidenciado na prestação de serviços à comunidade e no estabelecimento de uma relação de reciprocidade com a mesma. Dessa forma, atividades de extensão universitária procuram fazer com que pesquisas e estudos acadêmicos cheguem mais rapidamente à comunidade por meio da prática profissional.

Vários são os problemas do produto da escola médica (médico formado) ao longo do processo de formação, devido as características da maior parte das escolas médicas: restrição do objeto da prática médica (centrado no individuo biológico), pouca inserção em espaços de formação adequados (atualmente muito voltados para os espaços intra-muros ), pouca oportunidade de produção de conhecimento ou outras atividades. Esses são apenas alguns dos problemas. No eixo curricular hegemônico não há prioridade sobre os principais problemas de saúde dos indivíduos e da sua macrovisualização coletiva, além de gerar profissionais de saúde inadequados para o sistema de saúde e o mercado de trabalho como um todo, com formação não terminal. Assim, não é difícil perceber a inadequação de grande parte das atividades das escolas (inclusive as ligas).

Por outro lado, é no estabelecimento de novas práticas transformadoras, com a devida orientação social e geradora de novos horizontes para a formação do profissional, de forma que aprendamos a valorizar o método cientifico conforme as demandas das práticas médicas, que está alicerçada, em última análise, nas necessidades sociais em saúde.

Muitas Ligas Acadêmicas se encontram montadas num tripé do aprender, produzir e atender, este tripé além de mostrar uma idéia assistencialista em relação ao atender, reproduz uma lógica do mercado neoliberal onde se pode entender o produzir como um discurso voltado para a competitividade, onde o mercado, a empresa, o lucro e o faturamento são preocupações marcantes desta visão. Talvez fosse necessário pararmos um momento e refletirmos para quem estamos sendo formados. Será que as escolas médicas estão formando médicos para atender as necessidades da população ou será que estamos sendo formados para privilegiar as classes dominantes, onde o curso médico não nos deixa parar para pensar nas necessidades sociais e sim nos coloca deste o início na tarefa de termos que ser os melhores, o mais especializado possível e não questionar nada, apenas aprender.

Como as Ligas podem contribuir em nossa formação?

As ligas acadêmicas podem contribuir com um saber fazer diferenciado. Além de suprir deficiências individuais podemos apontar para caminhos transformadores com fortes vínculos sociais e, inclusive, problematizando o atual processo de formação em vigência nas escolas. Ampliar o objeto da prática médica atingindo outras determinantes do processo saúde-doença (biopsicosocioambiental), além de dispor de novos conhecimentos úteis para a medicina e fazer com que tudo isso dê um novo sentido diante daquilo que fazemos como futuros.

As LA podem desempenhar um papel interessante na formação médica, devendo-se permanecer atento para que não caiam na armadilha de se configurarem como meras reproduções das distorções existentes na formação médica, mas na verdade se contraponham a estes problemas. Nelas, idealmente, os estudantes devem ter oportunidade de fazer escolhas de modo ativo e livre, ter iniciativas inovadoras, trocar experiências e interagir com

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colegas interessados nos mesmos assuntos e escolhidos por afinidade. Espera-se que, nesse contexto, possam adquirir conhecimentos práticos sem pressão, com mais satisfação e de modo mais significativo; desenvolver potenciais intelectuais, afetivos e relacionais, assim como a capacidade crítica e reflexiva; exercer a criatividade, a espontaneidade e a liderança, sendo mais atores e menos expectadores do processo ensino-aprendizagem.

Deste modo, as LA poderiam contribuir de fato para a adequada formação de um médico generalista humano e ético, reflexivo e crítico, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania; um profissional capaz de perceber e acolher o paciente em sua complexa integralidade biopsicocultural, capaz de trabalhar, respeitosa e construtivamente, em equipe multidisciplinar, e disposto a procurar ativa e permanentemente o conhecimento. Por fim, um profissional que não perca nunca de vista a necessidade de cuidar de sua própria saúde física e mental para poder ser um “cuidador” mais competente e satisfeito com seu papel profissional.

Qual o Papel dos CA\DAs?

Os CA/DA’s devem estar capacitados a orientar a criação e desenvolvimento das Ligas na escola médica. O CA/DA e a LA devem ter em mente que esta é uma associação onde os benefícios devem ser mútuos. O CA/DA lutando para a resolução de problemas das ligas, ajudando-as com financiamento, fóruns, simpósios, espaço físico e outros problemas que possam surgir. A LA com retorno aos estudantes (assim também ao CA/DA) o exemplo e a oportunidade de uma nova experiência transformadora da formação médica. O surgimento e bom funcionamento de atividades transformadoras da formação médica (como as ligas podem ser) apontam opções na formação de médicos mais capacitados e comprometidos com o real objetivo da prática médica, a saúde e qualidade de vida da população.

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A Universidade e o “Rito de Passagem”

Texto escrito por Adriana Cardoso Freitas, 6º período de medicina da Universidade Federal de Sergipe – UFS Coletivo “Seja Realista: Peça o Impossível”

Fim do Vestibular. Começa então o período de tensão, angústia e muita ansiedade com o resultado. O tão sonhado dia e finalmente você pode ver seu nome lá, na lista dos aprovados! Quanta felicidade! Agora é só comemorar com os amigos, a família e todos aqueles que fizeram parte de uma época tão sofrida e que se sentem tão vencedores quanto o estudante que acabou de ser aprovado!

Eis que chega o período de matrícula... e com ele começam as surgir milhões de dúvidas e receios com relação a esse mundo tão novo que é a universidade. Tudo agora é diferente: os amigos, os professores, a estrutura física da instituição de ensino, as disciplinas, as provas... enfim, tudo agora é novo! A sensação que dá é de que se chega em um outro planeta. Daí vêm os questionamentos: Será que vou me adaptar bem a essa nova realidade? Como será que vão me receber? O que vão achar de mim? Será que meus professores serão carrascos e vão me perseguir? Será que conseguirei fazer amigos ou serei isolado na faculdade?

Todas essas dúvidas certamente já passaram pela cabeça de uma grande parte dos estudantes universitários e é sobre elas que devemos refletir. O ingresso dos novos estudantes universitários de todo o país acontecem de incontáveis formas: trotes, semanas de recepção, calouradas... enfim... diversas são as atividades para recepcionar os novos colegas de curso. Mas afinal, pra quê tudo isso? Qual o objetivo da organização dessas atividades?

A resposta para tais perguntas envolve opiniões das mais diversas possíveis: para agregar os alunos, para conquistar a amizade dos veteranos, para não ser excluído das festas da faculdade, pra não ser “marcado” durante o curso, pra comemorar o ingresso na faculdade, para se divertir, pra se integrar melhor com a nova turma...enfim... cada um tem uma opinião diferente e não há como contemplar aqui o que todos pensam. No entanto, existe um fator substancial a ser considerado: Qual o objetivo de um Centro ou Diretório Acadêmico organizar uma atividade para os calouros?

Depende. Apesar de haver um componente histórico no qual nos leva a pensar que os membros dessas representações estudantis são pessoas politicamente mais conscientes e preocupadas com uma mudança social, os centros e diretórios acadêmicos de todo o Brasil são formados por pessoas, estudantes comuns que por um motivo ou outro acabam ocupando cargos representativos de uma maioria, sem necessariamente terem um acúmulo político ou um ideal transformador da nossa realidade.

Como podemos ver em vários exemplos por todo o Brasil, inúmeros centros e diretórios acadêmicos organizam calouradas e diversos tipos de trotes, muitos deles violentos e humilhantes. Como não citar o episódio que levou à morte, em 1999, do estudante Edison Tsung Chi Hsueh, que ingressava na prestigiosa Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)? Como não lembrar dos diversos noticiários sobre pessoas humilhadas moralmente, queimadas com produtos químicos e até mesmo espancadas? É óbvio que isso não acontece em todas as universidades, há aquelas em que os trotes são “bem mais leves!”. Mas... o que são “trotes leves”? Tentando expor uma definição, trata-se de brincadeiras sem sentido de imposição de valores e estabelecimento de hierarquização, onde o calouro (ou bixo) é nitidamente colocado “em seu lugar”, como um “ser inferior” aos veteranos, que são os alunos mais antigos do curso. Para isso, não necessariamente é necessário algum tipo de violência física ou “trote pesado”, basta que se elabore atividades onde “o veterano manda e o calouro obedece” e que as mesmas sejam realizadas repetidamente para alcançarem o status de “tradição”. Pronto. Essa é a fórmula mais usada para convencer os calouros de que ao se submeter a essa “recepção” ou “trote leve”, ele estará se inserindo na universidade, será bem aceito e que ainda por cima estará comemorando sua aprovação no vestibular.

Alguns antropólogos costumam chamar essas atividades de "ritual de passagem". Trata-se de uma tradição medieval - no sentido temporal da palavra. Sim, a prática do trote persiste desde a Idade Média, onde os candidatos aos cursos das primeiras universidades européias não podiam frequentar as mesmas salas que os veteranos e, portanto, assistiam às aulas a partir dos "vestíbulos" - local em que eram guardadas as vestimentas dos alunos. "As roupas dos novatos eram retiradas e queimadas, e seus cabelos, raspados. Essas atividades eram justificadas, sobretudo, pela necessidade de aplicação de medidas profiláticas contra a propagação de doenças", explica Zuin,

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que é professor do departamento de Educação da Universidade Federal de São Calos (UFSCar) e também autor do livro O Trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação.

Mais intrigante é a origem do termo "trote": é uma alusão à forma pela qual os cavalos se movimentam entre a marcha lenta e o galope. A aplicação da palavra ao mundo das relações entre calouro e veterano tem, na visão de Zuin, um significado claramente negativo. É como se o primeiro devesse ser "domesticado" pelo segundo "por meio de práticas vexatórias e dolorosas, que têm a função de esclarecer quais são as características das respectivas identidades". Paulo Denisar Fraga, filósofo e professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), ilumina outro termo do "vocabulário do calouro": "bixo", que no contexto do ingresso na universidade é utilizado para designar os novos alunos. "É um trocadilho desumanizador, em que a letra 'x' indica, depois do vestibular, aquele que está marcado".

Mas há também o termo Recepção de Calouros, que é interpretado, muitas vezes, como sinônimo de “Trote Solidário”. Embora em alguma universidades essa relação seja realmente semelhante, em outras a semana de recepção é organizada pelos Centro e Diretórios Acadêmicos (às vezes até com outros nomes) com o intuito de aplicar na prática o sentido real da palavra: receber, acolher bem, explicar como as coisas funcionam na universidade, fazer o calouro se sentir bem-vindo e no mesmo nível de importância dos demais estudantes “veteranos” da universidade. Os resultados são alarmantemente opostos aos dos trotes (sejam eles pesados ou leves) e as conseqüências de uma verdadeira semana de recepção aos calouros pode ser vista nos depoimentos a seguir, dados por estudantes da Universidade Federal de Alagoas e da Universidade Federal de Sergipe:

Aluna da UFAL

“Galerinha do CASH (Centro Acadêmico Sebastião da Hora),

Vim aqui agradecer pela adorável semana do calouro. Obrigada pelo trabalho e dedicação que vocês tiveram, além de toda a alegria em receber a gente e pela animação na nossa festinha. Estou muito feliz em ter participado da semana, não só pela integração com a turma e os esclarecimentos sobre o curso, mas acima de tudo por agora eu ter certeza de que fiz a escolha certa e valeu a pena ter lutado para alcançar meu sonho.

Durante a semana pude conhecer nosso currículo, o qual achei muito bom, e conhecer o HU; adorei nosso passeio pelo hospital, foi através desse contato que me apaixonei ainda mais pelo curso, conheci pacientes, professores e a famosa sala da tutoria. Foi emocionante ir a UTI da neonatal, pois vimos um médico fazer um procedimento, ele abriu mais as cortinas para observarmos com mais detalhes (o bebê estava com queda nos batimentos, garanto que tivemos medo de presenciar a primeira morte, mas graças a Deus deu tudo certo).

O júri sobre a questão do SUS foi uma idéia bem inteligente e divertida , ao mesmo tempo que foi possível discutir sobre questões sociais e as soluções para tal problema. Conhecer o centro acadêmico e suas propostas, as quais muitos podem considerá-las pouco importantes, faz a gente acordar para a idéia de que os movimentos estudantis não devem apenas exigir melhoras apenas para seu curso ou seu interesse, mas para o interesse da sociedade, por isso foi importante discutir sobre o SUS e apresentar o fórum, na quarta-feira. Agradeço, então, por nos encorajar a sermos mais engajados e menos alienados, não ter medo de possíveis críticas e perseguições, pois não queremos ser médicos apenas para “psicografar” e ter muito dinheiro no bolso, mas para exercer um grande dever social, não só clinicando pacientes, mas lutando por melhoras no sistema de saúde.

A gincana foi divertidíssima, foi nesse corre corre que pudemos conhecer diferentes partes da universidade e ter mais afinidade com novos colegas de curso. Bom, a equipe Leão não ganhou o livro, e sim dores musculares (rsrsrsrsrsrs), mas valeu a pena , nos divertimos bastante. E o último dia da semana do calouro também foi muito bom, o professor tirou nossas dúvidas nos fez refletir bastante sobre a profissão. Por fim, o vídeo que vimos nos deixei a seguinte frase: O que podemos fazer?

Sempre achei que podemos ser futuros médicos que pensem em agir com amor, realizando-se pessoalmente, porém sem esquecer nosso papel na sociedade, tentado fazer parte da camada consciente e que sonha com um mundo melhor.

E vocês nos ajudaram a acordar para essa realidade.

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“Obrigada por abrir as portas da UFAL, de forma que entremos mais esclarecidos e conscientes da luta que teremos pela frente e do caminho a percorrer.”

Alunos da UFS

“A Semana de Recepção de Calouros para mim foi algo que além de unir os veteranos aos calouros e os calouros entre si, trouxe muito conhecimento que não aprendemos na universidade em uma sala de aula e que alguma das vezes para não dizer muita é mais importante do que aqueles que vimos em sala ou em um laboratório...

A minha recepção me levou a um mundo novo para mim, que é o movimento estudantil, o qual nos mostra o verdadeiro papel de um estudante que não é só ficar sentado em uma cadeira e assistir aula. Agradeço muito às pessoas que fizeram parte da construção da minha semana de recepção....Obrigado”

“A semana de recepção de calouros foi meu primeiro contato com o centro acadêmico. Ela foi um fator muito importante para a visão que eu construi do CA e do movimento estudantil, posteriormente. Através da interação com meus colegas de sala, com veterenaos e muitas atividades de conscientização, percebi a importancia da SRC como ferramente para a conquista de mentes e corações em prol da mobilização social.”

"A Semana de Recepção de Calouros foi de uma importância fundamental na minha vida. E digo isso sem uma gota de exagero. Foi importante não só pela semana em si, mas principalmente pelo que ela proporcionou futuramente. Ela foi um gatilho pra minha atuação no Movimento Estudantil. E minha atuação no ME me fez encontrar um lugar tanto no curso de Medicina, conhecendo outro viés da Medicina, que não vemos dentro da sala de aula, dentro dos muros da universidade, tanto na própria sociedade, conhecendo as contradições dela e entendendo a importância de se posicionar a favor daqueles que são explorados dentro do sistema em que nós vivemos. Então fica claro que as consequências da participação na SRC tiveram, para mim, uma positividade que influenciou, direta ou indiretamente, em todo o meu modo de enxergar a vida enquanto ser humano. E, repito, digo isso sem uma gota de exagero."

Apesar das nítidas diferenças das consequências das diversas “recepções aos calouros” na vida dos novos universitários, uma coisa é comum em todas as universidades do Brasil: O sentimento de reprodução do que foi recebido. Portanto, cabe a nós escolher: queremos perpetuar o sentimento de “revanche” ou o de humanidade?

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