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16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis HISTORIOGRAFIA DA ARTE: MUDANÇAS EPISTEMOLÓGICAS CONTEMPORÂNEAS Maria Lúcia Bastos Kern – PUCRS/CNPq Resumo: A partir dos anos 70, a historiografia da arte começou a ser muito debatida por artistas e historiadores, sobretudo, no que se refere aos conceitos e metodologias anacrônicos em relação à arte. Este estudo tem como objetivo analisar o pensamento científico sobre a modernidade e pós-modernidade, em paralelo às teorias e metodologias da história da arte e às mudanças produzidas pela arte contemporânea. Historiografia, Modernidade, Pós-Modernidade. Abstract: From the 70s on, the historiography of art started to be strongly debated by artists and historians, especially, in relation to anachronistic concepts and methodologies linked to art. This study has, as objective, the analysis of scientific thought on modernity and post-modernity, parallel to the theories and methodologies of the history of art and to the changes produced by contemporary art. Historiography, Modernity, Post-Modernity. Resumé: La historiographie de l’art dans les années 70 est motif de débats pour les artistes et les historiens à cause de ses concepts et métodologies anachroniques par rapport à l’art. Cet étude a pour but analyser la pensée dans le domaine scientifique sur la modernité et post-modernité, en paralèle aux théories et métodologies de l’histoire d’art et aux changements de l’art contemporain. Historiografia, Modernidade, Pós-Modernidade. Diante das mudanças epistemológicas nos campos da ciência e da arte, a historiografia da arte no final da década de 1970 começa a ser objeto de contestação por artistas e estudiosos da área. Entretanto, as questões que são colocadas em xeque já vinham sendo debatidas e reformuladas em outros campos do conhecimento desde os anos 50 e 60. Estas décadas são extremamente significativas para as ciências humanas e as artes, graças às mudanças epistemológicas estabelecidas pela utilização de métodos rigorosos oriundos da lingüística, das ciências da natureza e da matemática, direcionados a implantar um programa estruturalista e promover o progresso 371

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    HISTORIOGRAFIA DA ARTE: MUDANAS EPISTEMOLGICAS CONTEMPORNEAS

    Maria Lcia Bastos Kern PUCRS/CNPq Resumo: A partir dos anos 70, a historiografia da arte comeou a ser muito debatida por

    artistas e historiadores, sobretudo, no que se refere aos conceitos e metodologias anacrnicos em relao arte. Este estudo tem como objetivo analisar o pensamento cientfico sobre a modernidade e ps-modernidade, em paralelo s teorias e metodologias da histria da arte e s mudanas produzidas pela arte contempornea.

    Historiografia, Modernidade, Ps-Modernidade.

    Abstract:

    From the 70s on, the historiography of art started to be strongly debated by artists and historians, especially, in relation to anachronistic concepts and methodologies linked to art. This study has, as objective, the analysis of scientific thought on modernity and post-modernity, parallel to the theories and methodologies of the history of art and to the changes produced by contemporary art. Historiography, Modernity, Post-Modernity.

    Resum:

    La historiographie de lart dans les annes 70 est motif de dbats pour les artistes et les historiens cause de ses concepts et mtodologies anachroniques par rapport lart. Cet tude a pour but analyser la pense dans le domaine scientifique sur la modernit et post-modernit, en paralle aux thories et mtodologies de lhistoire dart et aux changements de lart contemporain.

    Historiografia, Modernidade, Ps-Modernidade.

    Diante das mudanas epistemolgicas nos campos da cincia e da

    arte, a historiografia da arte no final da dcada de 1970 comea a ser objeto

    de contestao por artistas e estudiosos da rea. Entretanto, as questes que

    so colocadas em xeque j vinham sendo debatidas e reformuladas em

    outros campos do conhecimento desde os anos 50 e 60. Estas dcadas so

    extremamente significativas para as cincias humanas e as artes, graas s

    mudanas epistemolgicas estabelecidas pela utilizao de mtodos

    rigorosos oriundos da lingstica, das cincias da natureza e da matemtica,

    direcionados a implantar um programa estruturalista e promover o progresso

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    cientfico. Elas so importantes tambm pelas transformaes que esto se

    processando, nas prticas artsticas que conduzem ao questionamento dos

    pressupostos da arte moderna e da historiografia.

    Michel Foucault estimulado pelos trabalhos de Lvi-Strauss, Lacan e

    Barthes desenvolve estudos no campo epistemolgico e publica o livro Les

    mots et les choses (1966), no qual faz uma verdadeira arqueologia das

    cincias humanas, sem traar as linhas de continuidade do pensamento, mas

    sinalizando as descontinuidades, num posicionamento anti-historicista. Ao

    revisar a histria das cincias humanas, ele questiona o ideal moderno de

    racionalizao do pensamento como mecanismo de constituio de sujeitos

    autnomos e livres, visto que o autor identifica no saber o exerccio de poder.

    J na sua primeira obra Histoire de la folie (1961), ele abre a perspectiva

    histrica para o estruturalismo, fugindo dos estudos meramente sincrnicos.

    Para ele, o homem est consciente de seu desaparecimento numa rede de

    relaes, fenmeno que o conduz a reinstalar o sujeito no interior da histria

    cultural, como sujeito ausente.

    Assim, a questo da autoria que comea a ser questionada pelas novas

    prticas artsticas, verificada no campo do conhecimento, como o

    enfraquecimento do sujeito enquanto centro dos processos sociais, cognitivos e

    criativos.

    A histria da totalidade, da unidade espiritual, da temporalidade linear e

    do progresso do Esprito tambm discutida nas obras de Foucault, como

    Arqueologia do saber (1968) e Ordem do discurso (1970) nas quais ele

    coloca em questo as concepes de Histria fundamentadas no

    pensamento filosfico hegeliano.

    A partir dos anos de 1950 e 1960, quando os paradigmas do

    conhecimento cientfico comeam a ser repensados 1, a arte moderna vive

    uma fase de crise e de abandono das premissas que a institucionalizaram. A

    modernidade e seus pressupostos comeam a ser questionados por

    intelectuais e artistas e, nos anos 70, a noo de ps-modernidade entra na

    pauta dos debates, porm a partir de pressupostos defendidos por

    pensadores modernos, como Nietzsche e Freud. Estes intelectuais, no final

    do sculo XIX, perceberam os sintomas de crise da modernidade e

    propuseram solues alternativas excessiva valorizao da razo e

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    ausncia de liberdade humana, prevista pelos filsofos das luzes. A

    descrena contempornea nas ideologias e o ceticismo em relao ao futuro

    propiciam o abandono dos projetos utpicos pelos artistas, assim como o

    desaparecimento das aes de ruptura das vanguardas. A cultura das mdias

    invade o cotidiano e as prprias prticas artsticas.

    No campo das artes, as mudanas de paradigma so evidenciadas pelo

    abandono das aes transgressoras dos artistas e as categorias de pureza,

    autonomia, originalidade, autoria e de gosto universal no se aplicam mais,

    diante do hibridismo, da mescla da arte com outras atividades prticas, de sua

    pluralidade e banalizao. Estas mudanas de paradigma so rapidamente

    identificadas pela crtica de arte e historiadores, porm os ltimos levam mais

    tempo para absorv-las e repensar os seus mtodos de investigao, apesar

    das atitudes de protesto do artista francs Herv Fischer e das publicaes de

    estudiosos na Europa e EUA.

    A historiografia da arte emergiu na modernidade e se estabeleceu, ao

    longo dos sculos XIX e XX, sob postulados de autonomia, teleologia,

    universal, do artista gnio e da obra comea a ser minada, exigindo ser

    revisada. A disciplina presa ao conhecimento erudito, especializado e

    autnomo colocada em questo com o desaparecimento de fronteiras no

    campo do saber e do objeto de estudo, a obra de arte. Os debates dos

    intelectuais a respeito da modernidade, ps-modernidade e ps-estruturalismo

    possibilitam tambm revises da disciplina e de seus postulados cannicos.

    Em 1979, Herv Fischer declara no Centro Cultural Georges Pompidou o

    trmino da histria da arte linear, cortando simbolicamente um fio branco.

    Porm, o livro que d origem a essa manifestao pblica s editado em

    1981, sob ttulo LHistoire de lart est termine. 2 Neste estudo, o autor traa o

    panorama da historiografia e desmistifica os conceitos de arte e artista, assim

    como os seus estatutos. A partir destas premissas, Fischer faz o inventrio da

    arte e de suas funes at a contemporaneidade, concluindo que a arte no

    est morta, mas o que acaba a sua histria como progresso em direo ao

    novo, ao original e perfeio.

    Para ele, a crise da ideologia vanguardista sugere a morte da histria da

    arte hegeliana e acredita que a soluo est no recurso s cincias humanas e,

    principalmente, Psicanlise que tem por objetivo desmistificar a arte, atravs

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    de sua anlise e de suas prticas, interrogar com lucidez os funcionamentos

    ideolgicos e institucionais. 3 Assim, ele prope que a teoria freudiana deixe de

    ser aplicada s biografias individuais e se concentre nos estudos sociais.

    Nesse mesmo ano, o filsofo analtico, Arthur Danto, publica The

    transfiguration of the commonplace, 4 livro no qual ele tem o fim de definir a

    essncia da arte e determinar a especificidade da obra em relao aos objetos

    no artsticos, estabelecendo as fronteiras entre os mesmos. Ele afirma que as

    obras de arte possuem uma estrutura intencional, ao contrrio dos objetos que

    se limitam a ser o que so. A estrutura intencional produzida pelo ser

    humano, o artista. Com isto, ele estabelece a diferena e delimita a noo de

    obra de arte, destacando que ela porta inteno e, como tal, tem o carter

    representacional, devido sua estrutura semitica, sendo plausvel de ser

    interpretada. Observa-se que o filsofo norte-americano apia-se no

    pressuposto da inteno, tambm focalizado pelo estruturalismo e pela

    Semitica, que a considera sempre dissimulada na obra. Entretanto, a

    identificao da inteno do autor no possibilita se descortinar os seus

    significados no domnio cultural.

    Em 1983, Hans Belting publica na Alemanha o seu livro, Das Ende der

    Kunstgeschichte? A histria da arte acabou?, 5 e retoma as questes

    levantadas por Fischer, demonstrando que o fim da histria da arte no

    significa o trmino da disciplina, mas de uma narrativa, pautada na totalidade,

    na unidade e no conceito nico de arte e acontecimento artstico. O estudioso

    faz uma reviso da historiografia da arte desde Vasari, para mostrar que esta, a

    partir do Romantismo, comea a se afastar dos artistas e obras

    contemporneas, fixando-se apenas no passado mais distante. 6

    O autor demonstra que apesar dos esforos cientficos a historiografia

    da arte se encontra em crise, desde as vanguardas do incio do sculo XX,

    provocada em parte pela negao das rupturas, pela ausncia de unidade da

    arte at ento defendida e pela manuteno de pressupostos humanistas. 7

    Entretanto, ela se identifica com as vanguardas no que se refere sua

    confiana num progresso futuro. somente com a crise das vanguardas e a

    conscincia de ausncia de continuidade da arte contempornea que a

    disciplina no consegue mais sustentar os seus princpios norteadores. 8

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    Belting revisa tambm os conceitos de obra de arte e seus distintos

    estatutos e conclui que os mesmos no do mais conta das propostas das

    vanguardas e menos ainda da arte contempornea. Ele considera a arte a

    partir do conceito antropolgico, no qual ela pensada enquanto um sistema

    de smbolos como qualquer outro sistema, dissipando a antiga separao arte

    e vida. 9 Essa nova viso rompe com a tradicional concepo sagrada de arte

    que identifica o objeto de arte como distinto de outros objetos. O estudioso

    alemo acredita que so os papis e as funes que a arte exerce na

    sociedade, a sua natureza como obra e seus estatutos que se modificam, no

    se podendo mais pensar numa histria estruturada nas noes de unidade, de

    progresso e de autonomia. Para tal, necessrio observar as transformaes

    operadas pela arte moderna at a arte contempornea. 10

    Sete anos depois, Georges Didi-Huberman publica Devant limage 11,

    livro no qual revisa a concepo positiva de historiografia da arte,

    demonstrando as suas limitaes, a ausncia de questionamentos e os

    problemas relativos leitura da imagem e noo de legibilidade presente

    neste procedimento metodolgico. Ele acredita que o historiador da arte deve

    estar consciente da fragilidade inerente leitura da imagem, o seu carter

    lacunar, em particular no domnio dos objetos figurativos. Ele questiona

    tambm a noo norteadora da disciplina de histria da arte como portadora de

    conhecimento especfico e as fronteiras artificiais criadas, impondo um sistema

    de pensamento fechado e negando conceitos de outros campos do saber.

    Para Didi-Huberman, o historiador um modelador, arteso, autor e

    inventor do passado. Quando o historiador desenvolve a sua pesquisa no

    tempo perdido, ele no se encontra em face de um objeto circunscrito, mas

    diante de alguma coisa como uma expanso lquida, uma nuvem sem

    contornos, difcil de ser apreendida em toda a sua complexidade. 12

    Ele salienta ainda o problema da disciplina que se prope ser objetiva,

    mas que estuda prticas subjetivas. 13 Apesar dessas dificuldades destacadas

    pelo autor, nos livros de Histria da Arte, todo o visvel decifrado sob noo

    de cincia fundada na certeza, sob premissas de que a representao

    unitria, como um espelho exato ou apresenta o carter simblico, no qual os

    conceitos so traduzidos em imagens e todas as imagens em conceitos, 14

    como concebida pela Semitica.

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    Outro problema evidenciado por Didi-Huberman se refere noo de

    disciplina que estuda a arte do passado, considerada morta e ultrapassada,

    como um objeto fixo. 15 Com Hegel, a histria da arte concebida pela morte

    de suas figuras e de seus objetos singulares. O historiador para Hegel deveria

    encarnar o contedo total do Esprito de cada forma, atravs de um movimento

    continuado, no qual cada forma morreria ao revelar para a histria a sua

    prpria verdade. O Esprito e a morte permitiram a crena e a emergncia do

    Saber Absoluto. A histria o devir que se atualiza no saber. O problema da

    Histria da Arte aps Hegel que ela se apia na premissa de que a verdade

    s pode ser proferida depois da morte. No se afirma mais que a arte est

    morta, mas que ela imortal. 16

    Didi-Huberman ao fazer a reviso historiogrfica, retoma os

    pressupostos terico-metodolgicos desde Vasari at Erwin Panofsky,

    detendo-se, sobretudo, na anlise das metodologias essencialmente

    cognitivas, como a Iconologia de Panofsky e a Semiologia/Semitica,

    destacando os seus reducionismos ao desconsiderarem as particularidades

    das obras e ao se centralizarem nas suas mensagens.

    Panofsky apia-se no pensamento de Kant, especialmente, na crtica do

    conhecimento, com vistas a sistematizar e dar nova orientao disciplina. Ele

    aplica com rigor o pensamento do filsofo no estudo iconolgico das imagens,

    porm descolado das questes formais e sob pressupostos que, na atualidade,

    no so mais admitidos pela cincia, como, por exemplo, a noo de

    cosmoviso de mundo, que se baseia na idia de unidade e homogeneidade.

    Didi-Huberman apresenta Freud para fazer frente a Kant e ao paradigma

    cognitivo, porque acredita que o seu pensamento se constitui como o primeiro

    a oferecer novos elementos crtica do conhecimento e rever o estatuto das

    cincias humanas. Freud retomou a questo do sujeito, pensando em ruptura e

    no estabelecendo fronteiras fechadas, como foram produzidas por Kant. Para

    o autor, Freud coloca em questo o paradigma crtico e permite re-situar o

    objeto da histria da arte, ao reconsiderar o estatuto do objeto do saber em

    relao ao qual se deve pensar. 17 A partir dessas premissas, Didi-Huberman

    procura estabelecer a distino entre visual e figurvel, delimitando a ltima

    categoria como prpria das formaes do inconsciente, diferente de figurativo,

    e terminando assim com a tirania do visvel enquanto imitao e do figurvel

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    como lisvel, prprio Iconologia e Semitica. Para tal, retoma o pensamento

    visual cristo que no reivindicou a imitao, a aparncia e a idolatria, mas o

    seu carter de acontecimento sagrado, revolucionando com a sua verdade

    encarnada, como efeito do inconsciente.

    Os cristos convocaram o inconsciente visual que designa o

    acontecimento e o sintoma visual em oposio noo de mmesis clssica,

    permitindo o surgimento da Encarnao. A hiptese do autor de que as artes

    visuais crists tm mantido esta concepo, elas criaram outro visvel, mas que

    no invisvel. Elas abriram a Imitao ao motivo da Encarnao. Seria a

    imanncia desta capacidade humana de inventar corpos impossveis,

    misteriosa que o poder da figurabilidade, em oposio figurao. O

    encontro do corpo com a luz na Anunciao de Fra Anglico funcionava como

    metfora da Encarnao. 18

    A partir dessas consideraes, o autor destaca a importncia da

    Antropologia histrica que conseguiu produzir trabalhos importantes sobre o

    campo visual da Idade Mdia. Antes de a imagem adquirir o estatuto de obra

    de arte havia a exigncia de abertura do visvel, abertura de um mundo que

    permitiu apresentar sintomas e traos de mistrios. 19

    Didi-Huberman salienta ainda a necessidade de o historiador articular

    dois pontos de vista aparentemente estrangeiros: o estrutural e o do

    acontecimento, isto , a abertura da estrutura. 20 O estrututural o regular que

    deve ser interrompido ou deslocado. O visual designa o irregular dos

    acontecimentos-sintomas que atingem o visvel, uma memria em processo

    que nunca foi feita ou descrita.

    Para ele, a categoria do visual se apia em conceitos e procura resgatar o

    sensvel, buscando ultrapassar a excessiva objetividade da Iconologia e da

    Semitica, assim como o carter fenomenal e representacional da imagem.

    Para o autor, o visual permite resistir aos esquemas e aos princpios

    reguladores dessas metodologias, que uniformizam a imagem em relao ao

    conjunto de outras imagens, e ignoram as suas particularidades. O visual,

    enquanto categoria de anlise divide o visvel e resiste unificao, sntese

    do real e reduo dos signos e smbolos a um mesmo contexto cultural. Essa

    categoria (do visual) opera com conceitos para explorar o sensvel, bem como

    procura penetrar no interior da imagem e nos mistrios do olhar. 21

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    O estudioso francs questiona as noes dominantes e generalizantes de

    representao e smbolo como eficazes e transparentes no processo de

    interpretao, argumentando que elas no evidenciam os sintomas 22 e que

    tambm se caracterizam pela opacidade. A partir desses pressupostos

    tericos, ele tem o interesse em conhecer a complexidade do processo de

    criao visual.

    Outro aspecto importante salientado por Didi-Huberman no livro Devant

    le temps, (2000) 23 se refere questo da temporalidade da obra. Ele defende

    o anacronismo como meio fecundo de se entender as obras do passado,

    quando afirma que o historiador no pode se contentar em fazer a histria da

    arte sob ngulo da euchronie, isto , sob ngulo conveniente do artista e seu

    tempo. As artes visuais exigem que se aborde sob ponto de vista de sua

    memria, isto , das suas manipulaes do tempo e dos dilogos que os

    artistas estabelecem entre si e as obras em distintos momentos histricos.

    Muitos estudiosos, da transio dos sculos XIX e XX, j identificavam a

    presena de sobrevivncias de outros passados, como espcies de memrias

    inconscientes. Como o caso, por exemplo, dos estudos de Aby Warburg

    sobre as obras de Botticelli - O nascimento da Vnus e A Primavera - nos

    quais verifica a permanncia de expresses e gestos da antigidade. A partir

    dessas sobrevivncias, ele focaliza dois conceitos importantes que so objeto

    de anlise pelo filsofo francs: sintomas e pathosformal. 24

    Na atualidade, Georges Didi-Huberman 25 revisa as reflexes de

    Warburg e Walter Benjamin para demonstrar a complexidade temporal da

    imagem e colocar em xeque mtodos cannicos presentes em geral na

    historiografia. Ele acredita que a imagem apresenta distintas temporalidades e

    memrias, demonstra que o seu tempo por ser heterogneo impuro e que

    esta nada mais do que uma montagem de tempos diferentes, formando

    anacronismos.

    Assim, o historiador da arte deve conectar o presente com o passado

    para melhor compreender o processo artstico e perceber com mais acuidade

    as singularidades, transformaes e as mudanas de paradigmas. O olhar

    sobre as prticas contemporneas permite ao historiador comparar e refletir

    sob outras premissas a respeito do passado e verificar as complexas condies

    de criao visual.

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    Como se pode observar, os debates e as reflexes em torno da

    modernidade, ps-modernidade e do ps-estruturalismo, juntamente com as

    mudanas nas prticas artsticas contemporneas, estimulam a reviso da

    historiografia da arte, bem como a construo de novas categorias conceituais

    e metodologias de pesquisa. Os estudos resultantes se detm nos trabalhos de

    antigos historiadores, pouco valorizados nos seus tempos, mas que forneceram

    importantes subsdios tericos e metodolgicos para a disciplina. Os

    historiadores retomam ainda o pensamento de Freud e abrem as fronteiras da

    disciplina para outros campos do conhecimento. Na atualidade, a histria da

    arte totalizante abandonada em prol de mltiplas histrias da arte, as quais

    evidenciam um crescente interesse pelas prticas artsticas na Amrica Latina,

    frica e sia, depois de longa tradio de pesquisas relativas aos grandes

    centros ocidentais.

    1 O estruturalismo comea a ser revisado a partir de suas categorias bsicas, como a estrutura enquanto meio de conhecimento e o binarismo. Este ltimo era utilizado como meio de analisar um determinado contexto. O ps-estruturalismo parte da premissa de que a estrutura no se constitui como meio de atingir a verdade profunda, mas que ela uma construo cultural criada pelo discurso. No existem meios objetivos e universais de atingir a verdade. Esta no pode ser produzida fora das categorias de espao e tempo. Jacques Derrida utiliza no plano terico o termo desconstruo, com o fim de analisar a construo do conhecimento e do sentido. Ele acredita que a linguagem sendo um meio de comunicao, pode veicular ao mesmo tempo a presena e ausncia de sentido. Para ele, o jogo dos signos que cria a tenso entre o sentido e no sentido. 2 FISCHER, H. LHistoire de lart est termine. Paris: Baland, 1981. 3 FISCHER, H. Op. Cit., p. 15, 194. 4 Harvard University Press, 1981. Livro ainda no traduzido e publicado no Brasil. Na Frana, La transfiguration du banal. Une philosophie de lart, foi publicado em 1989 pela Seuil. 5 Munique: Deutscher Kunstverlag, 1983. Na Frana, LHistoire de lart est-elle finie? Nmes: Jacqueline Chambon, 1989. Esta publicao resultante da aula inaugural na Universidade de Munique. Nela, ele analisa questes de mtodo para identificar o papel da arte moderna na historiografia. Na edio brasileira, Belting inclui novos captulos e justifica o seu posicionamento presente na primeira verso alem e francesa. O Fim da Histria da Arte. Uma reviso dez anos depois. So Paulo: CosacNaif, 2006. Nesta edio, ele se preocupa em focalizar as mudanas no mundo contemporneo que possibilitaram a reviso da historiografia. 6 BELTING, H. LHistoire de lart est-elle finie? Nmes: Jacqueline Chambon , 1989. p. 16-23. 7 BELTING, H. Op. Cit., p. 25. 8 BELTING, H. Op. Cit., p. 26 9 BELTING, H. Op. Cit., p. 5. 10 BELTING, H. Op. Cit., p.6-7. 11 DIDI-HUBERMAN, G. Devant limage. Paris: Minuit, 1990. p. 10-11, 46. 12 DIDI-HUBERMAN, G. Op. Cit., p. 10-11. 13 DIDI-HUBERMAN, G. Op.Cit., p. 51. 14 DIDI-HUBERMAN, G. Op.Cit., p. 10. 15 DIDI-HUBERMAN, G. Op.Cit., p. 54-56. 16 DIDI-HUBERMAN, G. Op.Cit., p. 59-63. Fenomenologia do Esprito 1807. 17 DIDI-HUBERMAN, G. Op. Cit., p. 14-15.

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  • 16 Encontro Nacional da Associao Nacional de Pesquisadores de Artes Plsticas Dinmicas Epistemolgicas em Artes Visuais 24 a 28 de setembro de 2007 Florianpolis

    18 DIDI-HUBERMAN, G. Op. Cit., p. 37-40. A encarnao no pensamento cristo seria a unio em Jesus Cristo da natureza divina com a natureza humana. A encarnao representada em imagens que personificam o ser espiritual revestido por um corpo carnal. Entretanto, o autor vincula esta noo com o pensamento freudiano, relativo ao inconsciente. 19 DIDI-HUBERMAN, G. Op. Cit., p. 64. 20 DIDI-HUBERMAN, G. Op. Cit., p. 41. 21 DIDI-HUBERMAN, G. Op. Cit., p.15-6; 173-5. 22 Ele utiliza a noo de sintoma de Freud, construda a partir da anlise do sonho, como figurao. Para o estudioso, o sonho extrai a relao de representao do real e apresenta um carter deformador por ser constitudo por rupturas lgicas, sendo incapaz de tornar visveis as relaes temporais. A noo de sintoma procura resgatar na imagem a sua capacidade expressiva. Com isto, Didi-Huberman rompe com a noo de que o visvel legvel, que acredita desvendar a imagem em sua totalidade. Deve-se salientar que a noo de sintoma, que ser posteriormente aprofundada por Didi-Huberman, foi utilizada pelo seu mestre Hubert Damisch, no estudo Thorie du nuage. Paris: Seuil, 1972. 23 DIDI- HUBERMAN, G. Devant le temps. Histoire de lart et anachronisme des images. Paris: Minuit, 2000. p. 10 e 39. 24 WARBURG, A. Essais florentins. Paris: Klincksieck, 1990. p. 49-100. A noo de sintomas de Warburg lhe permite identificar as manifestaes artsticas como fenmenos vinculados histria e evidenciar os seus diferentes sentidos e temporalidades presentes nas obras. Ele trabalha essa noo a partir do processo de comparao entre as obras em distintos momentos histricos, tendo em vista verificar as permanncias e question-las. O conceito de pathosformal inaugura uma nova percepo do Renascimento. Esse conceito elaborado atravs da observao das representaes das imagens, dos gestos e movimentos das figuras, de diferentes estados psquicos. A partir do pathosformal, ele verifica o carter hbrido da arte do Renascimento, rompendo com as vises homogeneizadoras do formalismo de Wlfflin e do historicismo. 25 Devant limage. Paris: Minuit, 1990; Devant le temps. Paris: Minuit, 2000; L Image survivante. Histoire de lart et temps des fantmes selon Warburg. Paris: Minuit, 2002.

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