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ORPHEU NAPO.EX :A TRADIÇÃO EM MOVIMENTO
ANDRÉ LUIZ DO AMARALUniversidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho“
Campus De São José Do Rio Preto
Palavras-chave: Intertextualidade; Tradição; Revistas Literárias; Poesia Experimental; Orpheu.
Resumo: Herberto Helder afirma, na introdução de Poesia Experimental I, que a “tradição é um
movimento” constantemente rearticulado pela experimentação da linguagem. Por isso mesmo,é na linguagem que acontece o encontro de dois movimentos de vanguarda: Orpheu torna-se
fundamental para o Experimentalismo dos anos 60 porque inaugura as principais inovações
na moderna poesia portuguesa, da medida do verso ao rigor estrutural. A proposta desta
comunicação é, portanto, realizar uma análise das influências explícitas e implícitas exercidas
por Orpheu nos dois números de Poesia Experimental (PO.EX), publicados respectivamente em
1964 e 1966. Neles Ângelo Lima recebe lugar de destaque, mas é Fernando Pessoa, ortônimo
e heterônimos, quem assume o papel de oráculo dos poetas experimentais. Em cada um dos
textos aqui referidos, o legado de Orpheu é compreendido através de releituras críticas, tensivase plagiotrópicas, isto é, por meio de uma operação tradutória da tradição.
Lançado em 1964, às vésperas do cinquentenário de Orpheu, Poesia experimental:
1º Caderno Antológico exibia algumas das marcas distintivas do Experimentalismo,
dentre elas o intenso diálogo com a tradição como fundamento da criação literária,
conforme a “Introdução” assinada por Herberto Helder:
Porque a tradição é um movimento. Em princípio, não existe nenhum trabalho
criativo que não seja experimental, nesse sentido de que ele supõe vigilância sobre
o desgaste dos meios que utiliza e que procura constantemente recarregar de
capacidade de exercício. A linguagem encontra-se sempre ameaçada pelos perigos da
inadequação e da invalidez. É algo que, no seu uso, se gasta e refaz, se perde e ajusta,
se organiza, desorganiza e reorganiza – se experimenta. Como diria um poeta, essa é
a própria lição das coisas (HELDER, H., 1964: 6).
Para pôr em prática a preconizada reatualização da tradição, Poesia Experimental
I organiza uma antologia fragmentária, que pretende congregar os poetas
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contemporâneos ligados ao experimentalismo e aqueles que formam seu paideuma.
A revista apresenta, na primeira seção, textos visuais de António Aragão, poemas
diversos de António Barahona da Fonseca e António Ramos Rosa, além de criações
de E.M. de Melo e Castro, Herberto Helder e Salette Tavares. Na segunda seção,denominada “Antologia”, estão os mais diferentes poetas e poemas: Camões, com
“Os chamados disparates da Índia”; Ângelo de Lima, com “Eddora Addio… - Mia
Soave!”; Mário Cesariny de Vasconcelos, com “Ditirambo”; Emilio Villa, com “Carta
para Ruggero Jacobbi” e, finalmente, o poeta e místico barroco alemão Quirinus
Kuhlman, em tradução de António Ramos Rosa. Outro dado de interesse é a data
de publicação, inscrita sob cada um dos poemas. Com tal ajuntamento incomum,
os cadernos visam “reunir experiências portuguesas e algumas estrangeiras em
curso”, mas “também exemplificar, com o passado, essa mesma alertada consciênciada evolução das formas” (HELDER, H., 1964: 6), tendência que persiste no segundo
caderno, publicado em 1965.
Poesia Experimental II conta com textos de António Aragão, António Barahona
da Fonseca, Edgar Braga, Ian Hamilton Finlay, Emilio Villa, Mario Diacono, Mike
Weaver, Henri Chopin, Haroldo de Campos, Ana Hatherly, Herberto Helder, Luiza
Neto Jorge, José-Alberto Marques, E.M. de Melo e Castro, Álvaro Neto, Salette
Tavares, Pedro Xisto e Jorge Peixinho. Restrita a poetas contemporâneos enquanto
mantém o caráter internacional, neste segundo número a revista prescinde da seçãoantológica, isto porque a presença dos poetas tradicionais está já disseminada nos
textos atuais, os quais entrelaçam influências barrocas, classicistas e modernistas,
num gesto plagiotrópico que se define, de acordo com Haroldo de Campos, como
“tradução da tradição, em sentido não necessariamente retilíneo” (CAMPOS, H.,
1997: 48). Nos dois números da PO.EX essa mecânica tradutória se fortalece sobre
os rasgos da tradição mais adequados às potencialidades de experimentação da
linguagem e historicamente mais significativos: Camões e os poetas d’Orpheu. Camões
é glosado em vários textos, com destaque para “A máquina de emaranhar paisagens”,de Herberto Helder, que fragmenta trechos de do Canto I dos Lusíadas, misturados
a referências bíblicas e outros versos camonianos esparsos. É também Camões
quem abre a “Antologia” do primeiro número e sobre seus motes Melo e Castro e
Ana Hatherly realizariam, mais tarde, diversas experimentações, como demonstrou
Maria dos Prazeres Gomes em Outrora Agora: relações dialógicas na poesia portuguesa
de invenção (GOMES, M ., 1993: 34-94)1. Já as influências de Orpheu são menos
evidentes e merecem considerações mais detalhadas2, a começar pela presença do
1 Veja-se, também, o ensaio de Rui Torres: TORRES, Rui. “Camões transformado e remontado: ocaso de Herberto Helder” In: Callema, nº 1, novembro de 2006, p. 58 – 63.
2 No importante livro Pessoa e a moderna poesia portuguesa – do “Orpheu” a 1960, Fernando J.B. Martinho explicita a reverberação de Orpheu na obra individual de poetas experimentais como Ana Hatherly, E. M.
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poema “Eddora Addio…- Mia Soave!”, de Ângelo de Lima, logo depois de Camões na
seção antológica do primeiro caderno. Publicado originalmente no segundo número
de Orpheu, o poema é dedicado “aos meus amigos d‘Orpheu” e, abaixo dele, consta a
data de 1915. Sobre este poema escreve E. M. de Melo e Castro:
No caso de Ângelo de Lima, o uso inusitado de maiúsculas, a aparente desarticulação
sintática, a inovação vocabular, a pontuação criadora, a indeterminação semântica,
constituem características que, pela sua importância, […] não podem ser criticamente
imputadas à doença mental de que sofria o seu autor.
A importância dada à pontuação confere-lhe mesmo a categoria de um código
expressional diferenciado e autônomo, que no poema se sintetiza com o código
vocabular e imagético. O uso das maiúsculas, o próprio poeta o explica pelanecessidade e importância que as imagens e palavras vão assumindo no momento
da escrita. A escrita é pois visualmente representativa da emoção criadora (MELO E
CASTRO, E. M., 1973: 54).
Se no primeiro caderno a referência é direta, com a reprodução de um dos textos
mais conhecidos do autor, no segundo caderno o acróstico-colagem de António
Barahona da Fonseca se encarrega da menção: “A//Ângelo de Lima espreita no silvado/
está longo de corpo e inteligência/ o meu rei”. O tom de reverência não é casual, masprogramático, à medida que Ângelo de Lima é identificado como experimental em
sentido amplo pelo grupo que se mobiliza ao redor da revista. Talvez isso se deva
à substituição, no poema, da “coerência semântica” pela “coerência da matéria
fônica dos versos” (ROCHA, C., 2010: p. 403), notadamente uma das características
principais do Experimentalismo.
Não obstante o papel destacado de Ângelo de Lima, é Fernando Pessoa, ortônimo
e heterônimos, quem assume a função oracular para os poetas da PO.EX . São
detectatáveis elementos da poesia de Álvaro de Campos, por exemplo, em “ErosFrenético”, de Ana Hatherly, da erotização das máquinas ao ritmo acelerado da
linguagem. Hatherly, neste mesmo período, encetava tentativas de aproximação a
Pessoa, como no poema “ A Chuva oblíqua é um convite à inclinação do teu ombro”,
que à primeira vista guarda semelhanças apenas no título com o poema de Pessoa
publicado no segundo número de Orpheu, ou ainda, segundo a autora, “a alusão a
Pessoa no título é no poema ultrapassada, deliberadamente frustrando as expectativas
de uma glosa ao dar-se preferência à realidade da máquina sobreposta à realidade
humana” (HATHERLY, A., 2001: 16). Uma leitura atenta, contudo, revela pontosde Melo e Castro e Salette Tavares (MARTINHO, F., 1983: 143-145).. Nossa proposta, entretanto, é diferentedaquela, pois nosso enfoque não está nas criações individuais desses ou de outros poetas, mas especificamentena maneira como essas criações se organizam nos dois números da PO.EX.
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de inflexão entre o texto de Orpheu e sua recriação: oposições de imagens, o jogo
com substantivos abstratos e estáticos, simultaneidade dos acontecimentos, etc.
(GAGLIARDI, C., 2010: 157-160). Noutro texto, Anacrusa – 68 sonhos, revela-se,
simbolicamente, o papel que Pessoa exerce sobre Hatherly e sua geração:
12/9/70
Estou em casa de Fernando Pessoa com A. Digo: Fernando Pessoa já morreu. A.
diz: não, vais ver. Fernando Pessoa aparece: magro, com óculos, vestindo um fato
cinzento. A. apresenta-me: não sei se conhece… Conheço sim, diz Fernando Pessoa,
já ouvi falar muito. Fita-me com uma intensidade quase insuportável. Fala comigo
um pouco e depois diz: Sim, disseram-me que você era muito intelectual – e rindo
– imagine o que isso pode significar para mim… Ajoelho junto dele e beijo-lhe asmãos. Então ele projecta-se sobre mim como se fosse uma sombra ou uma nuvem
(HATHERLY, A., 1982: 28).
O tema é retomado num ensaio crítico:
Ora, Fernando Pessoa é, por assim dizer, a ponta brilhante do enorme icebergue que
é a poesia portuguesa do século XX – icebergue por ser uma espécie de montanha
semi-submersa de poetas ilustres que, salvo raríssimas excepções, permaneceignorada e por isso urge divulgar.
Com efeito, nenhum poeta (ou artista) nasce no vácuo […]. Isto é: há sempre uma
herança, um suporte, seja ele conscientemente assumido ou não (HATHERLY, A.,
1995: 175).
Assim, ora como sombra, numa atitude persecutória infinita, ora deslocada para
a esfera celestial; ora assumida ora denegada, a presença de Pessoa e seus colegas
d’Orpheu exerce evidente fascínio sobre Hatherly e seus colegas do Experimentalismo,basta ver o depoimento dela na edição especial da revista Colóquio/Letras, por ocasião
do aniversário de Orpheu, em 1975:
Na literatura portuguesa moderna quase tudo o que não foi de vanguarda foi esse
sentimentalismo. Basta compararmos o Orpheu com a Presença ou o Surrealismo
com a Poesia Experimental com outras tendências suas contemporâneas para
o verificarmos. A sessenta anos de distância, o significado histórico do Orpheu é
maximamente o de ter sido um movimento de vanguarda. É assim que ele faz partede nossa experiência contemporânea. A sua sobrevivência é a sua permanência
na nossa memória antológica onde tudo se torna contemporâneo. Mas, se fosse
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necessário falar da influência directa das obras que escreveram os poetas dominantes
do Orpheu, eu diria que quando, numa determinada zona da criatividade, se atinge
com uma obra ou um grupo de obras uma realização inultrapassável dentro do
seu próprio espaço, a partir daí todas as verdadeiras tentativas criadoras se voltamsempre para novos objectivos, novos sentidos. Essa é a sua máxima competência
criadora (HATHERLY, A., 1975: 8).
Aqueles a quem ela se refere como os “poetas dominantes do Orpheu” são os que
mais encontram lugar na sua obra: Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Sá-Carneiro
e Almada Negreiros. São eles, aliás, que aparecem fundidos em “Algarismos Alfinete”,
de Saltette Tavares, no segundo caderno da PO.EX :
Figura 1. “Algarismo Alfinete”. Fragmento
Jogos como “altemipétaloAlvaroAlberto”; “alma alfinete”; “Alvarral Alvarral”;
“Almagiste aljofar”; “Alvissaras Almirante”, põem em movimento a tradição d’Orpheu,
traduzindo-a numa só imagem e a profusão numérica que acompanha os anagramas
faz lembrar “Manucure”, de Mario de Sá-Carneiro: “E no Ar eis que se cravam moldes
de algarismos/ Assunção da Beleza Numérica!” (MARTINS, F., 2008: 102). Outro
poema de Salette Tavares em que ecoa a voz d’Orpheu é “Partitura do Maquinim”,
publicado em 1965 na coletânea Visopoemas, de que faziam parte os mesmos poetasexperimentais: “Eu visto o que vesti ao manequim/ sou poeta que mente o que sente/
e de só fico contente quando visto/ aquilo que se ri atrás de mim./ / - Manequim
do meu amor/ como te vejo/ todo de cera e sedas emprestadas/ em meu desejo sou
eu que te manejo/ em não, em flor/ em tempestade e nadas” (TAVARES, S., 1979:
74). O intertexto com “Manucure” se repete em “A primeira pessoa do singular do
presente do indicativo do verbo reflexo encontrar-se”, de Luiz Neto Jorge, publicado
no segundo caderno da PO.EX .:
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Figura 2. “A primeira pessoa do singular do presente do
indicativo do verbo reflexo encontrar-se”. Fragmento
De resto, há vestígios aqui e ali de um verso de Álvaro de Campos ou de um modo
de dizer que lembre o de Almada Negreiros. Há, também, uma série de outros poetas
do mesmo período que foram diretamente influenciados pela tradição de Orpheu e, embora experimentais, não participaram dos cadernos da PO.EX , como Alberto
Pimenta, por exemplo. Isto porque Orpheu é uma linha divisória, o marco de algo novo
em relação à linguagem, de tal modo que as vanguardas posteriores provavelmente
não tivessem existido sem a afronta inaugural dos poetas órficos.
Cabe ressaltar, contudo, que a porção d’Orpheu que permanece na PO.EX. não
é aquela de viés exclusivamente futurista, pelo menos ideologicamente. Para os
poetas-críticos do Experimentalismo, Ana Hatherly e Melo e Castro, é importante
notar a independência que revista publicada em 1915 adquiriu no curso do tempo.Segundo ela, depois do segundo número, “Orpheu vai seguir a sua carreira – aliás
curta – independentemente do Futurismo, com uma direcção própria, apesar das
influências que o Movimento inegavelmente teve sobre as principais personalidades
do modernismo Português” (HATHERLY, A., 1979: 70). Segundo ele, a partir de
Orpheu Pessoa se torna poeta-chave para a compreensão da poesia portuguesa e,
obviamente, como uma espécie de oráculo do experimentalismo, mesmo quando
ausente ou recusado, pelo que a própria noção de Modernidade e de literatura em
Portugal depende dele, pois “com Fernando Pessoa o poema em português passa a nãodescrever, não imitar e a não contar uma anedota. O poema É e mais nada. Contém
e é a sua própria significação: Texto” (MELO E CASTRO, E. M., 1973: 45). Logo,
é da perspectiva da criação poética, do uso da linguagem, da invenção e inovação
textual que a PO.EX . se une ao Orpheu em compasso sincrônico, plagiotropicamente,
revitalizando a tradição que cria para si.
Afinal, é como se Orpheu fosse um experimentalismo avant la lettre, abortado pelo
tempo e tardiamente reencarnado. É como se os poetas experimentais dissessem:
“Quanto ao mais, nada mais. Cá estamos sempre. Orpheu acabou. Orpheu continua”(PESSOA, F. 1980: 227).
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HATHERLY, Ana (1975). “O significado histórico do Orpheu (1915-1975)” In:
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Caminho.HATHERLY, Ana (1982). Anacrusa: 68 sonhos. Lisboa: & etc e tal.
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(coord). Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português. São
Paulo: Leya, p. 400-403.
TORRES, Rui. “Camões transformado e remontado: o caso de Herberto Helder”
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