07 - ziman - empreendimento científico

13
Mestrado em Ensino de Biologia e de Geologia no 3º ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário Didáctica da Biologia e da Geologia I Documentos de apoio Unidade 1 – Natureza da ciência Ciência ‘académica’ Docentes: Cecília Galvão Paula Serra Paulo Almeida

Upload: joao-luis-pereira

Post on 20-Oct-2015

11 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Mestrado em Ensino de Biologia e de Geologia

no 3º ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário

Didáctica da Biologia e da Geologia I

Documentos de apoio

Unidade 1 – Natureza da ciência

Ciência ‘académica’

Docentes: Cecília Galvão

Paula Serra

Paulo Almeida

Page 2: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

1

Texto extraído de

Ziman, J. (1984). An introduction to science studies: The philosophical and social aspects of

science and technology. Cambridge: Cambridge University Press. [Capítulo 1].

‘Such… is the respect paid to science that the most absurd opinions may become current,

provided they are expressed in language, the sound of which recalls some well-known scientific

phrase.’

James Clerk Maxwell

1.1 Diferentes aspectos da ciência

O que é a ciência? A abordagem global ao tema deste livro depende da forma como

podemos ser tentado a responder a esta questão. Mas ela é, de facto, uma questão

demasiado ampla para ser respondida em poucas palavras. As definições convencionais de

ciência tendem a dar ênfase a aspectos completamente diferentes que dependem do ponto

de vista tomado. Cada uma das disciplinas metacientíficas – história da ciência, filosofia da

ciência, sociologia da ciência, psicologia da criatividade, economia da investigação, etc. –

parece concentrar-se num diferente aspecto do tema, muitas vezes com implicações políticas

completamente diferentes.

Por exemplo, se a ciência é definida como ‘um meio de resolver problemas’, a ênfase recai

no aspecto instrumental. A ciência é então perspectivada como intimamente ligada à

tecnologia e, por isso, como um assunto apropriado para o estudo económico e político. A

implicação de que este instrumento deve ser bem e devidamente usado coloca-o na arena

aberta do conflito social.

Outra definição de ciência – como ‘conhecimento organizado’ – dá ênfase ao seu aspecto

de arquivo. A informação sobre os fenómenos naturais é adquirida através da investigação

organizada em esquemas teóricos coerentes e publicada em livros e revistas. Embora este

conhecimento tenha muitas vezes profundas influências através das suas aplicações

tecnológicas, muito terá de ser dito para que ele seja tratado como um recurso público,

politicamente neutro. A acumulação do conhecimento científico é então um processo

histórico significativo que merece estudo especial.

Podemos ainda seguir uma velha tradição filosófica, dando ênfase ao aspecto

metodológico da ciência. Procedimentos como a experimentação, a observação e a teorização

são considerados elementos de um método específico de obter informação digna de confiança

acerca do mundo natural. Deste ponto de vista, a ciência pode ser vista como essencialmente

objectiva e, por isso, transcendendo todas as considerações políticas.

Page 3: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

2

Finalmente pode-se dar ênfase ao aspecto vocacional da ciência definindo-a tacitamente

como ‘qualquer coisa que é descoberta por pessoas com um talento especial para a

investigação’. Isto dirige a atenção para atitudes pessoais tão importantes como a curiosidade

e inteligência que são merecedoras de investigação psicológica. Tais estudos podem sugerir

que os cientistas devem ser reconhecidos como membros de uma profissão distinta, de

considerável significado político. Há tanto para ser dito a respeito da ciência relativamente a

cada um destes e de outros aspectos que existe uma tendência, dentro de cada disciplina

metacientífica, para tratar como auto-suficiente a sua definição especial própria. Por isso, os

filósofos da ciência ignoram largamente os seus aspectos instrumentais e vocacionais,

enquanto que muitos estudos sérios sobre o papel político da ciência parecem quase

esquecer os seus complexos aspectos vocacionais e metodológicos.

É instrutivo ler livros sobre ciência, de acordo com esta visão. Quase parece que cada

disciplina tem em mente um diferente “modelo” de ciência construído precisamente em

torno daqueles aspectos particulares em que ela está interessada.

Na verdade, ciência é tudo isto, e mais. É, com efeito, o produto da investigação; emprega

métodos característicos; é um corpo de conhecimento organizado; é um meio de resolver

problemas. É também uma instituição social; necessita de facilidades materiais; é um tema

educacional; é uma componente cultural; requer ser gerida; é um factor fundamental nas

relações humanas. O nosso “modelo” de ciência tende a relacionar e a reconciliar estes

aspectos diversos e, por vezes, contraditórios.

1.2 A cadeia da descoberta

As quatro definições convencionais de ciência são obviamente complementares, mas

como devem ser elas inter-ligadas? Supõe-se frequentemente que elas se encontram

ajustadas numa cadeia linear, desde o aspecto vocacional, passando pelos aspectos

metodológicos e de arquivo, até ao aspecto instrumental, onde a ciência penetra na

tecnologia. Por outras palavras, o conhecimento científico é gerado por cientistas

individuais na forma de descobertas que têm de ser validadas por métodos científicos

antes de serem publicados sob a forma de arquivo. Este conhecimento é então à solução

de quaisquer problemas que podem ter surgido na sociedade (Figura 1).

Figura 1 – A cadeia da descoberta

Page 4: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

3

A grande vantagem do modelo de descoberta linear da ciência é o facto de ele dividir

equitativamente o trabalho entre as principais disciplinas metacientíficas. Em cada etapa, o

material é, por assim dizer, processado de acordo com os princípios da disciplina

correspondente e entregue à etapa seguinte. Os factores que operam em cada etapa podem

ser posteriormente ignorados ao longo da cadeia: a ‘intuição’, por exemplo, pode ser tratada

como um factor importante no contexto da descoberta (cap.2) mas não o ser no contexto de

validação (cap. 3), onde se supõe que a ‘lógica’ seja a regra suprema. Em princípio, a história

da ciência deve tratar todas as etapas deste processo; na sua prática tradicional mais limitada

foi frequentemente pouco mais do que uma crónica de publicações, sem referência

significativa às suas fontes psicológicas ou ao contexto social geral.

Mas o modelo da descoberta é, na verdade, demasiado simples porque negligencia

obviamente algumas realidades de muito significado. Assume, por exemplo, que a informação

flui apenas num sentido ao longo da cadeia, como se não existissem exigências tecnológicas

na investigação científica básica. Também não tem em consideração o facto de que os

cientistas não trabalham isolados; a investigação é, em larga escala, um empenhamento

comunitário, onde a acção individual é fortemente influenciada pelas normas e metas sociais.

Estas não são apenas deficiências menores que podem depois ser melhoradas, através de

uma análise mais pormenorizada.

Nos últimos 20 anos todo o campo dos estudos da ciência tem sido transformado ao dar-

se conta que a ciência apenas pode ser compreendida se for tratada como uma instituição

social, quer dentro da sua própria esfera de actividade quer nas suas relações com o mundo

em geral. Por outras palavras, a sociologia da ciência tem de ser incluía neste programa de

estudo juntamente com as disciplinas metacientíficas mais tradicionais como a filosofia e a

história.

1.3 Sociologia “interna” e sociologia “externa” da ciência

O programa de estudo delineado neste livro é muito mais ambicioso do que uma jornada

etapa por etapa, ao longo da cadeia da descoberta, porque ele implica uma concepção muito

mais complicada da ciência como um todo. Para clareza de exposição, é conveniente proceder

à análise em duas fases sucessivas, seguindo a convenção académica de distinguir entre a

sociologia interna e a sociologia externa da ciência. Isto quer dizer que nos capítulos de 2 a 8

estudaremos as relações entre os cientistas enquanto desenvolvendo a investigação e, nos

últimos capítulos, mostraremos como o trabalho científico se relaciona com o contexto social

mais amplo onde ele é empreendido.

Esta ordem de exposição foi apenas escolhida por simplicidade; não implica que os

factores internos sejam de algum modo mais importantes do que os factores externos. O leitor

Page 5: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

4

que vá até ao fim do livro pode bem chegar a uma visão completamente oposta, que dá

primazia à ordem social global, da qual a ciência é apenas uma componente.

O nosso ponto de partida é um modelo de ciência onde as forças externas são

inteiramente negligenciadas. No esquema tradicional, isto seria equivalente a cortar a cadeia

da descoberta entre os seus elementos instrumental e de arquivo, como se o conhecimento

científico fosse acumulado unicamente para seu próprio proveito sem qualquer ideia das suas

possíveis aplicações. A fronteira entre ciência e sociedade é visualizada como uma membrana

semi-permeável, através da qual o conhecimento apenas flui para fora, da esfera científica

para a esfera tecnológica (Figura 2). O objectivo do programa internalista é dar conta do que

se passa na região limitada por esta membrana ao nível filosófico, psicológico e sociológico,

sem referência ao mundo mais vasto.

Figura 2 – Sociologia interna e externa da ciência

Page 6: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

5

Através deste livro, referir-nos-emos a isto como modelo académico de ciência. Embora

esteja muito longe de ser realista como modelo de ciência contemporânea, ele traduz a noção

que muitos cientistas e alguns metacientistas ainda têm da natureza das suas actividades.

Tem também um significado histórico importante, porque poderá ser considerado uma justa

descrição das ciências naturais, de há um século, antes do crescimento da investigação

industrial. É instrutivo estudar estes casos históricos, conjuntamente com algumas disciplinas

modernas, como a cosmologia ou a matemática pura, que não estão ainda estreitamente

ligadas às tecnologias, para encontrar evidências da forma como esse sistema funciona na

prática: é frequentemente possível explicar o comportamento real dos cientistas em tais

circunstâncias, por uma combinação apropriada de factores cognitivos, pessoais e

comunitários, como se eles estivessem com efeito isolados da sociedade no seu conjunto.

A ciência académica é então o modelo característico para a sociologia interna da ciência.

Por outro lado, na sociologia externa da ciência, o pressuposto usual parece ser o de que a

ciência é uma caixa negra cujos mecanismos internos podem ser ignorados.

O estudo concentra-se nos efeitos tecnológicos do conhecimento que passa para fora da

ciência pura, através da membrana e é depois aplicado à solução de problemas práticos. As

possibilidades instrumentais da ciência ao serviço de forças políticas, militares e comerciais

são por isso vistas como preponderantes. Esta concepção externalista da ciência industrial

como uma componente primária da tecnologia está desenvolvida nos capítulos 9 e 10.

Na análise final, contudo, estes relatos internalista e externalista elementares da ciência e

tecnologia serão reconciliados e apropriadamente relacionados. Isto apela para uma revisão

completa de ambos os modelos, o académico e o industrial. Como o têm demonstrado os

sociólogos do conhecimento, a partir da pesquisa histórica (capítulo 8), a membrana que

separa a ciência da sociedade é em grande medida uma ilusão; as influências que fluem

constantemente através desta fronteira mítica têm efeitos profundos em cada um dos lados

da membrana. É um cliché que estas influências se tenham tornado tão poderosas nos últimos

anos de tal forma que a ciência está a transformar a sociedade que nos rodeia. Contudo o que

nem sempre se tem em conta é que os trabalhos internos da própria ciência estão a ser

transformados pelas enormes forças sociais que actuam sobre ela e que penetram na sua

essência filosófica e psicológica. O tema dos capítulos 11 e 12 diz respeito à colectivização da

ciência dentro de um sistema de organização de Investigação e Desenvolvimento, cujas

características económicas são abordadas nos capítulos 13 e 14.

O assunto da metaciência moderna não pode ser considerado estático. As disciplinas

englobadas sob o título estudos de ciência estão preocupadas com um sistema dinâmico que

está a sofrer uma dramática mudança histórica enquanto o estudamos. Esta mudança está a

ocorrer quer dentro da ciência quer no seu contexto cultural. Assim, por exemplo, como se

Page 7: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

6

indica nos capítulos 15 e 16, espera-se actualmente que os cientistas desempenhem uma

variedade muito mais ampla de papéis sociais e que a sociedade interactue com a ciência

através de muito mais formas do que na cultura anterior. Nestes capítulos finais começamos

assim por ver mais claramente algumas das respostas contemporâneas às questões postas,

logo de início, neste livro – O que é a ciência e como funciona ela enquanto instituição social,

vocação, fonte de crença e instrumento de poder?

Uma questão importante que pode ser posta em qualquer etapa da argumentação é a de

que a palavra ciência está a ser usada no sentido mais restrito ou mais lato: significa ela o

estudo de fenómenos naturais, através de técnicas objectivas ou pode ser ela alargada à

interpretação dos sistemas sociais e acontecimentos psicológicos onde os factores subjectivos

não podem ser evitados? Por exemplo, poderemos nós aplicar a nossa sociologia da ciência

internalista à própria sociologia, ou discutir a eficácia da psicologia social pura na tecnologia

da educação? Questões deste tipo são certamente do maior interesse e importância porque

põem a descoberto muitos dos pressupostos inconscientes que nós fazemos quando nos

referimos a um corpo de conhecimento como ciência. Mas se tentássemos levantar questões

deste tipo nos primeiros capítulos do livro, obteríamos provavelmente respostas

enganadoras. Parece melhor deixar todo este problema para o capítulo final, quando tivermos

chegado a um quadro mais completo da ciência e da sua função social e pudermos decidir da

abordagem mais frutífera a este subtil tema. Para clareza e simplicidade de exposição, quase

todos os exemplos do pensamento e da acção científica do texto principal são relativos às

ciências de laboratório, tais como a física, a química ou a biologia, ou às suas aplicações

tecnológicas em engenharia, medicina, etc., mas isto não se destina a ser interpretado como

uma opinião de que são estas as únicas disciplinas científicas genuínas. Pelo contrário, como

se argumenta, a minha inclinação pessoal seria em direcção a uma visão mais ampla que

incluiria em cada etapa da discussão, as ciências sociais e comportamentais na noção de

ciência.

1.4 As três dimensões da ciência académica

De momento, contudo, estamos preocupados com a ciência académica. Até os cientistas

mais imparciais e idiossincráticos puros não são, na realidade, meramente procuradores da

verdade. As suas contribuições para o conhecimento raramente são feitas de uma forma

pessoal e independente de outros.

Ao fazerem investigação, trabalham frequentemente em íntima ligação e quase sempre se

referem a si próprios como membros de uma disciplina académica e de uma correspondente

comunidade científica; ou seja, estão bastante conscientes das suas interacções sociais como

cientistas.

Page 8: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

7

Estas interacções tomam formas muito diferentes. Observamos, assim, instituições

comunitárias, tais como departamentos universitários, associações e revistas científicas,

envolvidas numa diversidade de actividades comuns entre as quais a educação científica, a

publicação de artigos científicos, debates sobre questões científicas controversas, ou a

cerimónia de atribuição de prémios a descobertas famosas. A um nível mais abstracto,

podemos notar influências significativas comunitárias, como sejam currículos educacionais,

tradições e programas de investigação. Cada cientista é chamado a desempenhar diversos

papéis comunitários tais como o de estudante graduado, o de orientador de investigação ou o

de autoridade científica eminente, e está sujeito às normas comunitárias de comportamento,

como sejam o universalismo ou o desinteresse pessoal.

Algumas destas formas de interacção comunitária são, há muito, óbvias. Os historiadores

da ciência têm sempre estado interessados na criação de instituições comunitárias e nas

actividades por elas promovidas. Nenhuma história séria da ciência na Europa do século XVII,

por exemplo, desprezaria a fundação das academias científicas nacionais que congregaram

tantos dos mais destacados cientistas desse tempo.

Mas este interesse tem tendido a ser marginal. O princípio fundamental da recente

revolução das metaciências é que estas instituições, actividades, influências, papéis, normas,

etc., comunitárias não são apenas uma base para a lógica do método científico ou para a

criatividade científica; elas são parte constituinte da ciência tal como a conhecemos. Não é

possível conhecer o estatuto das teorias científicas ou como elas surgiram sem perguntar

como é que os cientistas se relacionam uns com os outros no decurso do seu trabalho.

Qualquer estudo das acções e relações colectivas entre os membros de um grupo humano

é levado a levantar questões acerca da atitude do observador e da estrutura dentro da qual as

observações devem ser interpretadas. Há sociólogos que insistem que esta atitude deve ser

tão imparcial quanto possível com se fossemos um antropólogo observando a vida quotidiana

e os festejos ocasionais de uma tribo recentemente descoberta. Esta abordagem etnográfica

é, em princípio, bastante recomendável. Para o leigo que está de fora, a investigação científica

é uma actividade não familiar imbuída de significados, apenas inteligíveis para os

participantes, e assim análogos aos rituais simbólicos de uma seita religiosa. A investigação

sociológica dentro deste espírito tem demonstrado claramente que os cientistas e as

organizações científicas não são nada diferentes, em muitas características essenciais, de

outras pessoas e de outras organizações de dimensão e de cultura comparáveis.

Na prática, contudo, esta abordagem refinada do trabalho humano apela para poderes

sobre-humanos de desapego e de sofisticação intelectuais. A sociologia da ciência é

demasiado difícil para se traduzir em linguagem vulgar, sem a dificuldade adicional de tentar

purificá-la de qualquer dos termos que os actores normalmente usariam para descrever uns

Page 9: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

8

aos outros as suas próprias acções. No entanto, existem outras escolas de sociologia que

insistem que a actividade social deve ser interpretada hermeneuticamente através de uma

compreensão enfática do seu significado por aqueles que nela tomam parte. Seja o que for

que pensemos acerca deste problema subtil da teoria das ciências sociais, somos levados a

adoptar o último ponto de vista pelo menos, de forma provisória, num relato introdutório do

assunto.

As formas tradicionais de teorizar acerca da ciência académica implicaram geralmente que

ela possuía os aspectos psicológicos e filosóficos distintos do modelo da descoberta referido

anteriormente. Em conjunto com o aspecto sociológico aqueles aspectos forneceram-nos três

estruturas de categorias distintas de descrição abstracta – três terminologias e esquemas

conceptuais diferentes nos quais se podiam talvez ajustar os fenómenos observados. A

psicologia da investigação usa termos pessoais, tais como motivos, percepções e inteligência; a

filosofia da ciência usa categorias de conhecimento como teoria, contradição, causalidade; a

sociologia da ciência tem a ver com comunidades, com instituições, normas, interesses, etc.

Cada um destes esquemas foi desenvolvido independentemente na sua dimensão própria até

um nível elevado de sofisticação intelectual.

A dificuldade resulta do facto de a ciência ser uma actividade complexa que existe, por

assim dizer, ao mesmo tempo, em todas estas três dimensões e de não poder ser

devidamente compreendida se for descrita em três aspectos separados, sem a consideração

das suas inter-relações.

A nossa forma natural de falar acerca da ciência baseia-se indiscriminadamente em

qualquer dos três esquemas. Este facto torna-se muito óbvio a partir de um exemplo simples,

o seguinte relato de um episódio recente tal como podia ter sido relatado numa revista como

a Nature ou Science:

“A teoria da evolução de Darwin, por selecção natural, é largamente tomada como bem

estabelecida”. (conhecimento)

“Apesar disso, em vários encontros científicos, a teoria tem sido objecto de considerável

crítica”. (comunidade)

“De acordo com algumas experiências recentes feitas por um cientista australiano, o

Doutor Edward Steele, há evidência da transmissão dos caracteres adquiridos”.

(conhecimento/pessoa).

“O Doutor Steele foi convidado a continuar a investigação no laboratório de Sir Peter

Medawar, autoridade máxima mundial em imunologia”. (pessoa/comunidade)

Page 10: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

9

“Houve contudo, consideráveis dificuldades na publicação dos seus últimos resultados”.

(conhecimento/pessoa/comunidade)

“O Doutor Steele foi acusado de quebrar as convenções de controvérsia científica ao fazer

ataques pessoais ao trabalho de outros cientistas”. (comunidade/conhecimento)

“Embora não esteja em questão a sua sinceridade pessoal neste assunto, a originalidade e

competência profissional da sua investigação experimental é agora seriamente posta em

causa”. (pessoa)

Estas frases constituem evidentemente um único parágrafo, contendo palavras que

pertencem a todos os diferentes esquemas ou combinações de esquemas da estrutura

tridimensional apresentada na Figura 3. Em situações mais complexas utilizam-se palavras que

pertencem simultaneamente a diferentes esquemas. Assim, por exemplo, uma publicação

científica contém obviamente informação científica e, portanto, tem uma dimensão cognitiva

ou filosófica. Ao mesmo tempo dirige-se a uma parte da comunidade científica e, portanto,

tem uma dimensão comunitária ou sociológica. Existe também um eixo histórico ao longo do

qual se pode dizer que a ciência evolui segundo uma sequência inter-ligada de publicações de

investigação. Além disso, estas dimensões não são independentes umas das outras; assim, por

exemplo, o significado psicológico de um artigo científico para o seu autor está intimamente

ligado com o estatuto filosófico reclamado pelos resultados da investigação. Seria bastante

erróneo passar por cima destas conexões com vista a uma simplicidade teórica.

Figura 3- Três dimensões do discurso sobre ciência

Page 11: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

10

Todas as actividades humanas têm os seus aspectos pessoais e comunitários. A

complementaridade das descrições individuais e colectivas é comum em teoria social. A

particularidade da ciência é o simbolismo altamente ordenado e atraente do conhecimento

através do qual ele é ao mesmo tempo agregado e transformado.

1.5 Ciência académica como ‘conhecimento público’

O verdadeiro domínio do discurso acerca da ciência tem certamente que conter muitas

dimensões. Contudo muito do que vale realmente a pena conhecer no campo de estudos da

ciência tem sido colocado sob a égide de uma das disciplinas metacientíficas convencionais,

com reduzido apoio das outras. Cada um dos capítulos seguintes podia então ser denominado

de acordo com a disciplina da qual principalmente deriva. Os capítulos 2 e 3, por exemplo,

representam essencialmente um levantamento dos problemas epistemológicos normalmente

estudados pelos filósofos da ciência, enquanto os capítulos 5 e 6 sobre autoridade, regras e

normas são obviamente sociológicos na sua linguagem e espírito. Um programa convencional

de estudo abordaria cada um destes tópicos em pormenor, levando a interpretação tão longe

quanto possível, dentro da estrutura da sua disciplina característica. Mas tal programa deixar-

nos-ia com numerosa sobre-simplificações e fins inter-disciplinares soltos. A epistemologia,

por exemplo, está mais dependente da sociologia do que pensamos: na prática, a

credibilidade de uma conjectura científica depende muito do estatuto científico da pessoa que

a faz! Para corrigir estas falsas concepções e tornar úteis as ligações que faltam somos levados

a estabelecer alguma forma de modelo geral ou esquema interpretativo multidisciplinar da

ciência académica, dentro das quais os diferentes tópicos possam ser vistos como

significativos e relevantes no campo global do estudo da ciência.

A um nível puramente descritivo, a ciência pode, evidentemente, ser representada como

uma comunidade de cientistas individuais observando o mundo natural, discutindo uns com

os outros as suas descobertas, e registando os resultados em arquivos (Figura 4).

Figura 4 – Ciência académica como um sistema social

Page 12: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

11

Este modelo define correctamente a investigação como uma actividade social mas carece

de um princípio dinâmico que vá para além da curiosidade pessoal dos seus membros

individuais. A este tipo de esquema pode ser dada mais força e coerência desde que

organizado em torno da seguinte proposição:

A ciência académica é uma instituição social devotada à construção de um consenso

racional de opinião sobre o mais lato campo possível.

Não se pretende com esta proposição mais uma outra definição de ciência: é uma

caracterização hipotética na qual cada palavra está aberta ao questionamento, crítica e

testagem empírica. Mas ela atravessa todas as disciplinas metacientíficas, fornecendo assim

um princípio activo através do qual se ligam muitas das características observadas do estilo

académico da ciência. As características evidentes da ciência – de arquivo, metodológicas,

comunitárias e vocacionais – podem relacionar-se sem um forçar ou numa inconsistência mais

importante, e ainda assim ser relativamente não dogmático na incomodativa questão da

validade ou verdade dos conhecimentos científicos. Sugere também alguns critérios muito

gerais de demarcação através dos quais a ciência se pode distinguir da instituição ou

actividades sociais cognitivas, tais como a tecnologia, o direito, a religião, a arte, a educação e

os estudos humanísticos.

O conceito de ciência como simples conhecimento público é com certeza declaradamente

internalista. Não sugere nenhuma outra meta para o empreendimento científico que não seja

a procura do conhecimento por si próprio. As influências externalistas estão completamente

excluídas. Mas é esta precisamente a atitude que decidimos adoptar na primeira parte do

presente livro. É necessário compreender a concepção tradicional académica de ciência nas

suas próprias bases, e nos seus próprios termos, para que possamos avaliar quão longe ela

está da realidade quotidiana.

Este princípio é também uma tentação em direcção ao funcionalismo. Tende a sugerir que

as características pormenorizadas da ciência, tal como a conhecemos, são de alguma forma

essenciais ao seu funcionamento como um todo. Poderia usar-se este argumento para

justificar práticas existentes – por exemplo, o procedimento de revisão pelos colegas da

mesma área (peer-review), através do qual árbitros anónimos escrutinam artigos científicos

submetidos à publicação – embora elas possam de facto ter-se desenvolvido mais ou menos

por acidente e possam ser manejadas de formas muito diferentes. As instituições sociais são

simultaneamente mais desmoronáveis e mais adaptáveis à mudança histórica do que estes

argumentos fazem prever.

Em qualquer caso, aceitemos ou não o consenso racional máximo como o objectivo

fundamental da ciência académica, tal princípio é muito conveniente como uma hipótese

provisória em torno da qual se podem estruturar observações e conjecturas próprias acerca

Page 13: 07 - Ziman - Empreendimento Científico

Didáctica da Biologia e Geologia I

12

da forma como os cientistas realmente trabalham. Assim como nas ciências naturais, este é o

espírito adequado no qual se deve desenvolver uma investigação académica.