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A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 15
1 A transformação dos ‘objetos de arte’ e as formas de exibição
1.1. O espaço expositivo
Uma das mais importantes características do espaço é seu caráter dinâmico,
sua constante renovação, onde não apenas o tempo, mas o homem pode recriá-lo
incessantemente. Tanto no campo quanto na cidade – e principalmente nela – o
espaço se movimenta em compartimentações, verticalizações, adensamentos,
inflexões, enfim, num processo que tem sua origem no próprio homem, pois a sua
construção está condicionada à formalização de noções abstratas, concebidas a
priori pelo pensamento humano. Somente a partir da organização mental, ou seja,
da capacidade de formalização conceitual do ser humano, é que o espaço se
organiza1. Ocorre que a transformação do espaço – e de algum modo, de seu
design – é, na realidade, a própria transformação do pensamento humano, ou se
desejarmos, um movimento correlato no espírito, uma faculdade intelectual, onde
a sua lógica abstrata se transparece na morfologia da paisagem2. Novos espaços
surgem enquanto antigos são reconfigurados porque noções ou valores culturais
são criados e refinados pelo homem – como conforto, praticidade, bem-estar,
privacidade etc. Por outro lado, eles (os valores culturais) estão também sob
constante transformação, estabelecendo, assim, uma estranha relação dialética
entre espaço e pensamento. Neste sentido, deve estar claro que nosso viés
metodológico considera que os sistemas político-econômicos representam o nível
macro da relação espaço-pensamento, pois funcionam como base da estrutura
ideológica de ordenação do mundo e seu espaço, ou seja, de todo o processo de
transformação do ambiente social. Num sistema econômico e político como o
1 RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma idéia. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.48. 2 Entenda-se aqui que o espaço é algo não natural e que ele é realizado pelo homem. Por paisagem, portanto, entenda-se o entorno construído pela mão do homem.
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capitalismo, auto-reprodutível, que se perpetua e se baseia na perenização da
ideologia de mercado, no acúmulo e circulação do capital, a renovação é uma
necessidade, tal como uma pulsão que impele o fluxo de ações inconscientes as
quais movimentam e ativam esse sistema onde o espaço é mais uma de suas
diversas mercadorias.
Sob a influência dessa ideologia comercial, a paisagem é reconfigurada:
torna-se o resultado de um processo de transformação híbrido, que envolve, por
um lado, as transformações do ciclo natural, e por outro, a ação do homem, que
interfere no espaço-tempo redefinindo e impondo um ritmo diverso, acelerando a
sua renovação num metabolismo de substituição do antigo pelo novo, de
renovação através da criação pela destruição e permanência. Um ciclo que gera
espaços que já surgem comprometidos com este intenso e contínuo processo de
transformação do pensamento humano. A sobreposição desse pensamento ao
processo natural de modificação da paisagem se explícita no espaço, na sua forma.
Sob o imperativo da atualização, o homem da sociedade industrial constrói
espaços para atender as inúmeras demandas da vida moderna, segundo critérios
que, por fim, terminam por espelhar o próprio desenvolvimento social, já que não
se trata de refletir o pensamento de um homem exclusivo, mas de toda uma
coletividade. As transformações do espaço atestam isso, pois a forma de empregar
o espaço serve como parâmetro de comparação entre sociedades. Se tomarmos
como exemplo o espaço empregado na configuração do mobiliário nos interiores
das casas, por exemplo, verificamos que o mesmo é uma extensão desse
pensamento ou noção, pois representa uma imagem fiel das estruturas familiares e
sociais de uma determinada época3. Se determinados empregos do espaço existem
ainda hoje sob uma forma idêntica ou similar às de épocas anteriores, isto
significa que ainda existem correlações muito estreitas entre as sociedades atuais e
aquelas do passado.
3 BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000, p. 09.
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De modo algum excluído dessa correlação social primordial, o espaço
destinado à exibição, assim como qualquer outro uso do espaço construído pelo
homem, responde à mesma lógica de transformação dos demais empregos que se
fazem dele. Desenvolveram-se e atingiram as formas atuais ao atenderem a certas
necessidades do imaginário da sociedade, determinadas pelo sistema que a
organiza e que precisa expor os objetos para que o capital nele circule, tornando a
sociedade cada vez mais povoada por objetos anônimos, sem autoria e produzidos
serialmente, em escala industrial. Geram-se inúmeros objetos que precisam ser
comercializados e, portanto, exibidos4. A lógica que cria os objetos é a mesma que
determina a existência do emprego dos espaços para exibi-los, que por sua vez,
funcionam como entrepostos entre a produção e a recepção, ou nos termos
marxistas, entre a produção e o consumo.
Habitualmente, objetos naturais ou manufaturados disputam o nosso olhar
de inúmeras maneiras e infinitas vezes, evidenciados através da organização de
espaços que cumprem a função de exibir. Contudo, apesar das imensuráveis
possibilidades dos modos de exibição e por mais diversificados que sejam os
objetos expostos, os espaços destinados a tal função tendem a uma essência
comum. Na feira, por exemplo, frutas e legumes são dispostos em bancas
inclinadas, que privilegiam a observação e evocam a atenção de quem passa, sob
os proclamas e pregões, num caminho retilíneo que tem como organização
espacial a serialidade, ou seja, um sistema lógico de repetição. Do mesmo modo, a
igreja também pode ser considerada como um espaço de exposição, pois, em seu
interior, exibe o cerimonial da missa, onde ocorre em seu ápice o milagre da
eucaristia, a epifania, quando o verbo se transforma em carne e habita entre nós.
Nesse espaço fechado, os fiéis entram para um ritual em grupo, e como uma
platéia, ficam diante à cerimônia destacada pela posição frontal do altar na nave
central.
4 Embora exista a representação virtual do produto sob a forma da propaganda ou na rede da Internet, onde não há o contato direto com o objeto, e mesmo que a virtualização da relação objeto-consumidor seja uma tendência, isso não significa que o objeto da cultura material vá se extinguir, que ambos não possam coexistir.
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De modo análogo, podemos estender esta comparação aos desfiles de moda,
ao mercado, à loja, ao teatro, ao cinema, ao estádio, às feiras de gado ou de
automóveis, pois, independentemente do tipo de objeto exposto, são espaços que
foram construídos tendo por função a exibição. Projetados para espectadores
olharem algo, consideram, na sua configuração espacial, a exploração de planos
visuais privilegiados que oferecem o ato da observação do objeto. O mesmo é
válido para os espaços de exposições de obras de arte. Tanto as bananas e os
tomates na feira como as telas e as esculturas são objetos igualmente dispostos ao
olhar, valorizados por esta disposição, ou seja, pelo projeto e construção de um
espaço expositivo que, subjacente à função de exibir, objetiva a valorização do
objeto. Essa atribuição de valor ao objeto – entendido em seu sentido mais amplo
– está estreitamente relacionada ao espaço em que este se inscreve, sendo esse
valor enfatizado, elevado ou mesmo criado pelas condições de exibição do espaço.
Outra característica comum aos espaços de exibição em geral é o seu caráter
de intermediação. Independente do propósito da exibição, esses espaços cumprem
sua finalidade de exibir somente a partir do encontro do observador com o objeto,
o que significa que mediam um encontro. Apesar da sua finalidade na sociedade
industrial estar vinculada quase sempre às razões econômicas, isto não significa,
obviamente, que a relação estabelecida nesse encontro se reduza estritamente à
lógica da mercadoria, enfim, que ela se efetive apenas nos termos de interesses
mercadológicos, pois mesmo que a exibição de um objeto dificilmente escape a
representar a etapa final do processo de fetichização, com uma apresentação
frontal, direta, outras relações nela se escondem, principalmente de ordem estética
e que merecem um estudo particular.
A exibição dos objetos é uma presença cotidiana na vida dos homens. Na
sociedade industrial, poderíamos dizer que nossas vidas estão infestadas de
objetos industriais, porém, embora tenhamos a capacidade de vermos os objetos,
não os percebemos de forma clara ou consciente, mas de forma confusa. De modo
quase opressivo, um imenso e progressivo número de objetos, equivalentes em
variedade e quantidade, são exibidos em quase todos os locais onde os homens
estão vivendo. A partir de operações visuais que procuram privilegiar esses
objetos, destacando um em detrimento dos demais, numa atribulada competição,
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ocorre que o homem vive, quase sem se dar conta, no intervalo desses objetos.
Contudo, isto ocorre num plano abstrato, pois as operações dessa sintaxe do
espaço são engendradas e articuladas de modo envolvente, atraindo e endereçando
o olhar inconscientemente. Ao se exibirem os objetos aos espectadores, os espaços
expositivos os disponibilizam segundo critérios muitas vezes semelhantes às
operações visuais que poderíamos chamar artísticas, ou melhor, realizadas por
artistas5. Em uma pintura, por exemplo, os artistas se valem de regras básicas de
composição, de luz e de cor, que interagem com o observador influenciando o seu
livre arbítrio. Não há, portanto, uma obra totalmente autônoma da vontade do
artista, mas algo que foi deixado lá para ser observado. Na superfície pintada,
esses recursos predeterminam sutilmente ordens de leitura que constróem
visualmente uma narrativa. Numa exibição, a montagem também se vale de
artifícios de ordem visual para destacar os objetos quando não para construir uma
coerência ou uma unidade qualquer. Em ambos os casos, forças atuam no sentido
de direcionar o percurso do olhar, destacando quer seja o objeto numa exposição
ou partes específicas dentro de uma pintura. Tanto no espaço tridimensional da
exibição como no espaço bidimensional da tela, as estruturas de arranjo
correspondem a uma linguagem visual.
Os objetos são expostos sem que notemos as sutilezas do espaço, a quase
impalpável realidade do seu entorno. Isso se explica em parte não apenas pelo
número excessivo de objetos que se antepõem ao nosso olhar, mas pela própria
lógica de exibição, que determina a maneira como o objeto está evidenciado às
custas do espaço. Sua posição pseudo-secundária serve ao objeto exposto,
objetivando não anulá-lo, não prejudicar sua integridade a ponto de desvalorizá-
lo. Em sua condição de protagonista, o objeto se afirma como tal, pois se sobrepõe
ao espaço, fazendo com que a espacialidade da exibição fique a ele submetida. E
esse é o intuito. Contudo, a posição privilegiada do objeto, a luz que nele incide, a
sua cor em relação ao fundo, texturas, volumetria, enfim, todos os elementos que
influenciam no mecanismo de construção da exibição, convergem e colocam o
5 É praticamente lugar comum o fato de o artista trabalhar de forma intuitiva na sociedade moderna, isto é, sem uma consciência clara e distinta da forma como emprega os elementos que utiliza para a confecção dos objetos artísticos.
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observador não só diante desse objeto evidenciado, mas também ao design de um
espaço, posto que não o percebemos isoladamente.
Percebe-se que, secretamente, não apenas os objetos são exibidos, mas o
espaço exibe sua própria linguagem. Isto fica claro à medida que percebemos a
estrutura de uma exibição. Ela se constitui por uma tríade: observador-objeto-
espaço. O todo se articula dialeticamente. Qualquer variação de um dos termos
dessa relação implica uma redefinição das relações então estabelecidas, do modus
operanti. Exigem novos parâmetros. O objeto se encontra no foco desse conjunto,
pois para ele todas as relações convergem: o espectador observa o objeto num
espaço expositivo, que serve à observação. A situação espacial da exposição é
criada em função do objeto, das demandas visuais que depende da natureza desse
objeto. Ainda que tenhamos uma relação dialética entre diferentes termos, o
objeto se apresenta como um esteio determinante.
Se por um lado a natureza do objeto prescinda para que um espaço se
caracterize como expositivo – já que qualquer objeto pode ser exposto – por outro
ela é determinante nas relações estabelecidas no interior do espaço expositivo. No
momento em que substituímos o objeto ordinário da cultura material pelo ‘objeto
artístico’, percebemos claramente essa distinção e isso devido a sua natureza
primordial, onde a relação tríade se torna ainda mais complexa. As funções de
valorização e mediação, compartilhadas com espaços de exibição em geral, se
mostram bastante diferenciadas, mesmo consideradas as similitudes existentes. A
natureza do ‘objeto artístico’ altera de forma essencial o nexo da exibição a ponto
de estabelecer um momento distinto para o espaço de exibição dos objetos.
Na sociedade industrial são os critérios comerciais que determinam o valor
de mercado dos objetos artísticos e eles são, praticamente, os mesmos (oferta e
procura) empregados para a definição do valor do objeto comum6, ou ainda, os
meios físicos utilizados para sua exibição são semelhantes – luz, posicionamento.
massa. Contudo o espaço da galeria é também um espaço institucional que impõe
6 Mesmo considerando a diferença fundamental existente entre o primeiro objeto mencionado, a obra de arte, que é um objeto único ou produzido em pequenas séries, e o objeto comum, produzido em massa.
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um critério para o valor do objeto exibido. Ele legitima o objeto artístico como tal.
O papel institucional do espaço expositivo – galeria – é, portanto, determinante
para o valor do objeto artístico.
Um pouco mais acima afirmávamos que a diferenciação do espaço
expositivo para obras de arte e os demais espaços expositivos se concretizava
porque havia uma relação chave entre o observador e a obra determinada pela
natureza do objeto artístico. Essa chave é o seu valor estético. Embora essa
relação ocorra invariavelmente em ato, num espaço e tempo atual como em
qualquer espaço expositivo, no espaço expositivo para objetos artísticos o que
ocorre é uma mediação dessa relação muito além daquela que ocorre no encontro
entre observador e os objetos comuns da cultura material, isto porque esse espaço
media não apenas esse encontro, mas o próprio fenômeno artístico. Nesse caso,
um campo de interação se forma entre observador e objeto de arte. Numa
exposição de obras de arte, o espaço faz desses objetos o que eles são como tal.
Em outras palavras, o espaço de exposição de objetos artísticos é o espaço onde a
relação observador-objeto se institucionaliza e provê uma significação cultural,
que o define como arte, onde fica evidenciado o sentido ou significação desse
objeto, pois não se encontra nele ou no observador isoladamente, mas no ‘entre’
ambos, na relação observador-obra que ocorre naquele espaço. Resultante desta
relação, ou seja, do embate direto do objeto com o observador, do confronto com
seu olhar, pensamento, sensibilidade e subjetividade, a arte se consubstancia como
um fenômeno da cultura, fazendo da exibição algo subjacente ao próprio sentido
da obra, pois, apenas quando o ‘objeto artístico’ é exposto, o ciclo do processo
artístico se completa, tornando a função de mediação do espaço expositivo uma
condição para consubstanciação do fenômeno artístico. Em poucas palavras: não
há arte sem exibição.
Por questões conceituais, morfológicas ou sociais, a esfera artística se
envolve no espaço que media as suas partes. No espaço de exibição, a produção e
a recepção encontram-se e possibilitam a formação da circulação, ou seja, de um
campo teórico e crítico da arte, ou se desejarmos, produzem conhecimento.
Elementos dependentes que se conectam e fecham um circuito denominado
sistema de arte, e por sistema de arte entenda-se a relação entre produção,
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recepção e circulação de obras de arte. No espaço de exposição, público e obra se
confrontam numa convergência de forças e tensões culturais que dão origem ao
que denominamos fenômeno artístico. O espaço de exibição se caracteriza,
portanto, como um mundo de linguagem própria, profundo, de visualidade e
plasticidade, que processa formas e pensamentos de modo autônomo; um lugar
onde ideologias travam batalhas, sistemas formais se desfazem enquanto outros se
sustentam, sob percepções complexas que envolvem múltiplos sentidos do
espectador. Contudo, a relação observador-obra estabelecida no espaço expositivo
funciona numa via de mão dupla, à medida que os objetos modificam a percepção
do espectador, estando a leitura dos objetos condicionada ao conhecimento de um
repertório fornecido por esses mesmos objetos. Os objetos, desse modo,
influenciam a percepção do observador, e o espaço expositivo engloba essa
relação em constante renovação.
Situados no interior da classe dos objetos manufaturados, explicados
precisamente em oposição aos objetos naturais, os objetos de arte se definem pelo
fato de que exigem uma percepção estética, ou seja, uma percepção muito mais da
forma do que de sua função7. Quando exibidos, estes objetos, em função de sua
natureza estética, passam a determinar a relação tríade, fazendo com que esta
passe a pertencer, assim como o objeto exposto, aos domínios do campo artístico.
Considerando que, a partir do momento em que algo é exibido, este algo demanda
uma espacialidade, algum nível de envolvimento com o espaço circundante,
enquanto o espaço de um objeto comum tende a encerrar-se em si mesmo, no caso
dos objetos artísticos o espaço tende a ser uma extensão do espaço em que eles se
exibem, pois sua exibição é na realidade o encontro de dois espaços: o espaço
“interno” da obra e o espaço em que ela se exibe. Contudo, como a noção de
objeto artístico varia constantemente, as relações estabelecidas entre eles e o
espaço expositivo passam a variar correspondentemente. Assim, tanto o
observador quanto o espaço expositivo, não escapam à reestruturação imposta
pela natureza do objeto estético. Ao observador é imposto o olhar estético,
enquanto o espaço expositivo adere às características inerentes à natureza desses
objetos, passando a operar segundo a lógica de cada objeto que nele é exposto.
7 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001,p. 270.
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Tudo isso, por fim, corresponde a uma extrapolação da relação observador/objeto-
espaço comuns.
A arte entendida nos termos de uma tensão cultural situada na relação
observador-objeto amplia-se em novas linguagens através de processos
conceituais e formais que, por vezes, extrapolam a sua estrutura interna ou os seus
contornos, estabelecendo relações diretas com o espaço real, isto é, aquilo que não
faz parte da obra. Assim, a partir deste contato inevitável, a relação do ‘espaço
interno’ da obra com o ‘espaço exterior’ pode ser explorada de duas formas
diferentes: a) no momento da própria feitura da obra pelo artista e b) através da
organização desta no espaço através do projeto de design. No jogo de limites entre
o espaço da obra e o espaço que a circunda – que inclusive conforma uma
‘questão’ processada pela produção artística, como veremos mais adiante no
capítulo II, observamos que as possibilidades do espaço no desempenho da função
de mediação da relação observador-objeto pode se desenvolver de forma ativa ou
passiva. Uma relação ativa do espaço expositivo com a obra determinará uma
atitude correspondente do observador e vice-versa. Partindo dessa alternativa
alguns espaços expositivos podem assumir novas formas, com graus de
interferência cada vez mais complexos no modo da mediação. Nesse ponto, o
designer poderia reivindicar um direito de autoria, pois altera a relação tríade que
mencionávamos mais acima ao interferir na significação do objeto. Quando,
durante a exposição relativa ao período colonial, da mega-exposição Brasil 500
anos, houve críticas à forma como os objetos foram expostos, extrapolando suas
posições particulares em função da ´ambientação` ou ´cenário` proposto pela
curadoria, verificamos que subjacente à questão propriamente técnica da exibição
de objetos em um determinado espaço, houve uma reivindicação velada de autoria
por parte da curadoria em relação aos objetos (obras) expostos.
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1.2. O espaço expositivo e a noção de arte
Partindo de uma observação retrospectiva mais apurada, verificamos que, na
história da arte, a criação artística e sua exibição se valeram um do outro a ponto
de não mais se distinguirem, diluindo seus limites a ponto de se unificarem. Se
tomarmos o caso das pinturas destinadas às cúpulas das igrejas ou nas esculturas
contemporâneas, a história da arte demonstrou que, ora a arte é convocada pelo
espaço, ora ela o convoca. Em constante renovação, porém, mantendo a mesma
essência, a mesma noção norteadora – pois por mais variadas feições que possam
ter, sempre mediam a relação observador-objeto –, os espaços expositivos
transformaram-se muitas vezes na própria obra, ou pelo menos, em parte
indissociável da obra. Ocorre que, no passado, o responsável pela obra era aquele
que organizava a exposição.
Dessa forma nossa pequena contribuição à reflexão do espaço expositivo
entende que a possibilidade do processo de renovação do espaço expositivo de
obras de arte deve considerar a própria história da noção de arte, pois se confunde
com a própria transformação dessa noção. Em outras palavras, a maneira como as
exposições de obras de arte tem seu desenvolvimento histórico implica
intrinsecamente à história da arte, pois altera diretamente a relação entre a arte e o
espaço que a exibe. Como vimos, traduz-se na relação dialética que determina a
própria noção de arte, uma noção moderna formada num período histórico
específico e de acordo com o desenvolvimento da capacidade do pensamento
humano de formalizar em enunciado o fenômeno artístico. Enquanto os artistas e a
sociedade não desenvolveram uma consciência da intelectualidade desse tipo de
trabalho, que desvencilharia o objeto do fazer estritamente técnico artesanal, não
existiu a noção de arte e, do mesmo modo, não foi possível e nem necessária a
criação da exposição de obras de arte. Objetos utilitários não precisavam ser
exibidos, mas utilizados. Esse conceito ou noção, que passa a determinar o objeto
como sendo ‘obra de arte’, como objeto sem função e que se basta em si, é o
mesmo que determina sua exibição. Logo, as transformações dos ‘objetos
artísticos’ ao longo dos anos ocasionaram mudanças correspondentes na forma
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dos espaços de exibição, ou seja, a transformação do espaço de exposição é, na
verdade, a própria transformação da noção de arte e de todo o sistema artístico.
1.2.1 Da ausência ao surgimento das exibições de arte
A nova noção, o conceito de arte, consistia na possibilidade da arte
preencher funções extra-artísticas, como por exemplo servir aos propósitos da fé
ou ater-se à solução de problemas de interesse comum à ciência, ao mesmo tempo
em que fosse, ela mesma, seu próprio objeto, sua transcendência. Essa
transformação ocorreu no período da Renascença, quando os artífices passaram a
questionar o espírito artesanal preponderante, reivindicando um estatuto
intelectual para ofícios mecânicos que realizavam. O sistema político-econômico
era majoritariamente estruturado na forma de guildas, ou seja, por corporações de
ofício responsáveis pela produção dos bens materiais em geral, onde o trabalho
era realizado de forma coletiva e especializado em suas diferentes técnicas. Sob a
mesma sistemática, sapatos, quadros e catedrais eram manufaturados – além de
financiados – pelas guildas em suas oficinas, pelos mestres e seus aprendizes,
educados desde muito jovens através de um método de ensino de caráter prático8.
Grande parte da produção manufaturada era exibida e vendida nas feiras, mas
havia também uma demanda pontual que era exercida pela alta burguesia e alguns
setores da aristocracia religiosa e política.
8 Semelhante à educação dos artesãos comuns, o processo de instrução do artista se iniciava ainda criança com ensinamentos rudimentares de leitura, de escrita e de aritmética, de um mestre para um aprendiz, que usualmente passava muitos anos com ele. Obedecendo ainda à tradição medieval, o ensino era realizado em oficinas onde eram exercidos todos os tipos de tarefas, como preparar a tinta a partir de pigmentos, montar a tela de linho no chassi e lavar e consertar pincéis. O aprendiz logo passava a transferir as composições individuais do cartão desenhado por seu mestre para o painel e à execução das partes menos importantes do quadro, até que por fim, executava obras completas a partir de meros esboços e instruções, convertendo-se então em assistente de um mestre. As normas das guildas determinavam ainda que o exercício da atividade se restringia à localidade a qual a guilda pertencia, de modo que ao artista não era permitido exercer seu trabalho ou vender sua arte em outros burgos. Até o final do século XV o processo de elaboração artística, o trabalho artístico, ainda ocorria inteiramente de forma coletiva. O ateliê do artista no começo da Renascença era dominado ainda pelo espírito comunitário, ou seja, possuía uma organização ainda fundamentalmente semelhante à artesanal, e a obra de arte ainda não era a expressão de uma personalidade independente, que realçava a individualidade do artista, sua subjetividade. Ver HAUSER, Arnold. História Social da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 322-324.
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Embora os quadros, as esculturas e os relevos compartilhassem praticamente
da mesma lógica comercial que o restante da produção manufaturada, ocorria um
fenômeno particular: a produção desses objetos era realizada sob encomenda.
Raríssimas vezes um pintor pintava um quadro sem que ele não estivesse
encomendado. Eram objetos muito caros e estavam restritos às camadas sociais
mais altas. Isto tornava desnecessária, pelo menos naquele momento, a criação de
um espaço para exibição dessa produção ‘artística’. Não havendo uma demanda
pela intermediação na comercialização, estes objetos percorriam o trajeto do
campo produtivo para a recepção de maneira quase que direta, excluindo-se assim
a necessidade de um espaço físico específico para exibição. Sem um espaço físico
para a negociação daqueles objetos, o campo da circulação – legitimação e
consagração dos valores – era velado, pois, embora estes ‘objetos’ fossem
encomendados, eles – as demandas por ‘objetos de arte’ – eram submetidos ao
crivo dos mestres e oficiais mecânicos antes de sua elaboração, o que denota a
existência desse campo. Na verdade a demanda não era pela coisa suntuária, mas
pela ‘coisa de uso comum’, com uma significação compreendida pela maioria da
população.
A necessidade de organizar espaços com intuito de exibição parece ter
surgido simultaneamente ao próprio processo de formação das cidades, deflagrado
pelo excedente produtivo gerado no campo. Os primeiros burgos são a origem da
noção de arte e do capitalismo, o local onde a produção deixava de ser permutada
ou tributada para então ser comercializada nos primeiros espaços de exibição: as
feiras.
Na acepção moderna do termo9 os primeiros espaços de exibição de objetos
artísticos surgiram somente no século XVI, mas para realizar outra função que não
a comercial. Quadros e esculturas eram reunidos num mesmo espaço juntamente
com uma variada quantidade de objetos de outra natureza, ou melhor, objetos
ditos curiosos – como lápides com inscrições antigas, moedas e animais
9 A referência aqui é sobre a forma de exibição em ‘galeria’, as pinturas penduradas nas paredes de um lado e outro, formando um corredor ou galeria.
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empalhados – que nada mais eram do que mercadorias que serviam como
testemunho das conquistas de terras distantes e de outros reinos, ou vestígios da
antigüidade clássica encontrados em tesouros de príncipes e igrejas longínquas,
formando uma coleção de curiosidades que servia à imposição de status, ou seja,
para afirmação social dos príncipes, imperadores, religiosos e profissionais bem
sucedidos que as possuíam. O hábito de colecionar tais objetos, em sua maioria
apropriações de relíquias de outros países, demonstrava um sentimento ambicioso
de poder e prestígio de quem os possuísse, mas também, em segunda instância,
motivavam a comercialização e a divulgação da nova noção de obras de arte. Esse
espaço com caráter estritamente privado era o gabinete de curiosidades ou a
Wunderkammer.10
.
10 CIPINIUK, Alberto. A Face Pibrasileira. Rio de Janeiro: Ed. PUC
Ilustração 1 - Gabinete de Curiosidades, século XVI
ntada em Pano de Linho: moldura simbólica da identidade -Rio; São Paulo: Loyola, 2003. p. 49.
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“[...] curiosidades naturais ou artificiais, raridades exóticas. Fósseis, corais, “petrificações”, flores ou frutos vindos de mundos longínquos, animais monstruosos ou fabulosos, jóias e peças etnográficas trazidas pelos viajantes, todas as bizarrices da criação reunidas para que o colecionador tenha sempre à vista, aquilo que vem dos confins do mundo conhecido, aos quais ele atribui, freqüentemente, poderes mágicos.”11
A cultura da coleção se disseminou pelo mundo ocidental caracterizando um
fenômeno social daquele século, que, para a noção de arte, significou um impulso
decisivo na consolidação das práticas de mecenato. No entanto, as coleções eram
particulares e as obras permaneceram confinadas durante longos anos em palácios
e residências, com sua visibilidade restrita a poucos privilegiados. Sem dúvida, é
óbvio que a arte podia ser vista publicamente em suas outras formas de expressão
mais visíveis, como a arquitetura, o teatro e a música, mas podemos considerar
que tanto a pintura de telas quanto a escultura de vulto estavam mais associadas
aos ambientes internos, tendo uma visibilidade pública restrita às igrejas e à
freqüência das coleções particulares. Os espaços destinados exclusivamente à
exibição de obras de arte eram as grandes salas nos interiores aristocráticos –
espacialmente semelhantes aos demais espaços da casa –, que abrigavam as
coleções do mesmo modo que nos antigos gabinetes, ou seja, em ambientes
apregoados de obras do chão até o teto, o que representa uma preocupação, em
ambos os casos, menor no arranjo das obras do que na amplitude da coleção.
Como no espaço anterior do gabinete de curiosidades, as exibições permaneceram
privadas e implicitamente vinculadas à questão da diferenciação de classes.
Somente a partir de meados do século XVII surgiriam exibições de caráter
público – os Salões Acadêmicos –, após a parcial emancipação da arte dos
grilhões das guildas, fazendo surgir um novo sistema baseado nas academias de
arte. Inicialmente, apenas literárias, as academias foram se transformando em
academias de artistas plásticos – especialmente de pintores - e substituíram
gradativamente a antiga comunidade oficial de artesãos por um relacionamento
professor-aluno em uma relação puramente intelectual, numa base de instrução de
concepção científica de arte. Mesmo assim, era uma nova instituição – uma
corporação – semelhante às antigas corporações. Agora o artista poderia
11 SCHAER, Roland. L’invention des musées. (Paris): Gallimard: Réunion des Musées Nationaux, 1993. p. 21-22.
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reivindicar para si a mesma posição do profissional liberal, justificada pelo nível
intelectual do seu trabalho, equiparando seu meio de expressão às artes livres,
como a poesia e a literatura, atingindo, então, um novo estatuto social.
1.1.2. O sistema acadêmico francês: a veiculação pública das obras
O ápice da exibição pública de obras de arte ocorreu no sistema artístico
francês, mas somente no século XIX. No início do século XVII, as guildas ainda
prevaleciam nas cidades francesas e seus privilégios continuavam sendo
defendidos, embora sua sólida base legal já tivesse sofrido algumas mudanças.
Considerando-se ameaçadas, as guildas cada vez mais solicitavam e obtinham do
rei proibições e restrições que garantiam a hegemonia do seu modelo, mas que, no
entanto, cristalizavam uma oposição oficial do sistema acadêmico. Em 1646, por
exemplo, as guildas mais uma vez se protegeram através de uma petição que
determinava que apenas o rei ou a rainha podiam ter brevetaires12, em número
limitado, e ao mesmo tempo, negava o direito desses artistas de aceitarem
qualquer outra comissão na cidade de Paris.
O descontentamento dos artistas defensores do sistema acadêmico em
relação a esta política protecionista contra os estrangeiros fez com que artistas
italianos “livres” juntamente com alguns rebeldes das próprias guildas
obtivessem, em 1648, a “lettres-patentes” do governo real, que lhes concedia o
direito de trabalharem no território das guildas e de manterem uma escola de
desenho, então denominada, Academia Real de Paris. O conceito de academia foi
importado da Itália, assim como quase todas as teorias de estilo do reverenciado
12 Em 1600, havia 3 tipos de pintores trabalhando na França: “brevetaires”, pintores que recebiam encomendas do rei e dos nobres, e que também atendiam as demandas da “noblesse de robe”. Esses artistas tinham sólida educação artística e muitos haviam estudado em Roma. Dessa categoria de pintores, faziam parte os artistas estrangeiros que moravam na França. Os artesãos-pintores treinados nas guildas; e também sob alcance das restrições das guildas, um grupo dissidente que desfrutava de comissões da “noblesse de robe”. In.: WHITE, Harrison C., White, Cynthia A. Canvases and Careers. Chicago: University of Chicago Press, 1993, p. 05.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 30
mestre franco-italiano Nicolas Poussin13. De início, foi apenas uma instituição
independente das guildas, mas logo as dominou e as repetiu em poder e prestígio,
marcando o início de uma nova era no mundo artístico. A Academia Real era o
símbolo de um novo modelo, um sistema institucional poderoso baseado numa
nova relação entre a arte e o Estado. Este sistema era centralizado na Academia
em Paris e substituiu gradativamente o antigo sistema descentralizado das guildas.
O sistema acadêmico francês, que duraria cerca de dois séculos, é paradigmático
porque a França naquele momento era o centro cultural e artístico europeu, o que
fez com que esse modelo fosse adotado em praticamente toda a Europa. Porém,
mesmo após a plena consolidação do sistema acadêmico, com a criação de
diversas instituições de apoio espalhadas nas províncias, algumas guildas ainda
resistiam no final do séc. XVIII, como a de São Lucas, que mantinha exposições
apesar da oposição dos acadêmicos. As guildas formavam, sobretudo, uma grande
base de artesãos-pintores dedicada principalmente a pintar objetos populares como
pratos de batismo, baús de casamento, placas de sinalização, assim como outros
serviços como a douração de retábulos e construção de chassis. Foi exatamente
essa função artesanal que foi recusada pela nova doutrina Acadêmica.
Com o objetivo de consolidar seu monopólio de privilégios, a Academia
enfatizou durante os séculos XVII e XVIII uma nova concepção de artista. De
artesão, executor habilidoso de trabalhos manuais, quase sempre vinculado às
artes aplicadas, o artista passou a ser considerado um indivíduo criativo, um
intelectual com novos poderes e privilégios, um professor de princípios superiores
de beleza e de gosto. Deste modo, o artista criava para si, sob intermédio da
instituição da Academia Real, ou seja, sob sua legitimação, um novo status social,
de homem instruído, que o igualou aos filósofos e homens letrados de outras
seções da Academia e o elevou a uma posição social mais alta do qualquer tempo
anterior.
13 Em resumo, os temas da mitologia antiga, clássicos e cristãos (os assuntos do Velho e Novo Testamento, assim como a vida dos santos) eram os únicos adequados, e apenas as mais “perfeitas” formas, como as encontradas na escultura clássica e na pintura de Rafael, poderiam ser selecionadas para retratarem estes temas. Apenas um certo conjunto de posições expressivas e gestos “nobres”, também de origem clássica ou da alta Renascença, eram apropriados para representação da figura humana, a forma e a expressão de beleza perfeita e “absoluta”. As composições deveriam preservar o equilíbrio clássico, a harmonia e a unidade, e os elemento da forma e da expressão não deveriam se chocar. O desenho era o princípio fundamental da arte.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 31
Sob a direção de Charles Lebrun, a Real Academia de Pintura e Escultura
logo se impôs, obtendo o monopólio no ensino de desenho, que forçou todos os
pintores “livres” e “brevetaires” para dentro da organização expandindo seu
número de membros. O sistema acadêmico se realizou através do recrutamento e
treinamento de jovens pintores, sob uma doutrina contínua; um processo
seqüencial de avaliação e reconhecimento gradual, que consistia em uma rígida
hierarquia de temas por importância cultural, uma definição de estilo “correto” e
um programa de treinamento direcionado para tais princípios. Esta era a base do
sistema acadêmico.
Com o intuito de difundir a doutrina Acadêmica, em 1676, o rei mandou
fundar Academias de Arte nas províncias sob a liderança e a administração da
Academia Real de Paris, mas a função principal dessa medida era absorver jovens
artistas para o sistema nacional. Enviar os melhores talentos regionais para estudar
em Paris se tornou uma prática dos conselhos municipais, pois lá se localizava o
centro de prosperidade e patronato que cada vez mais atraía artistas, até
finalmente se transformar, durante o séc. XIX, no centro da arte na Europa e quiçá
do mundo.
Com o crescente número de jovens artistas atraídos pelo sistema acadêmico,
várias academias locais surgiram em quase todas as cidades francesas com alguma
importância na época, mesmo sem aprovação, concorrendo com o sistema oficial.
A pintura se tornou uma profissão no senso da classe média, e os pais burgueses
cada vez mais se dispuseram a mandar seus filhos para o treinamento acadêmico,
consolidado como rota oficial para o êxito do artista. Cada vez mais jovens eram
incorporados ao sistema de ensino, submetidos a sua estrutura ideológica, num
crescimento que posteriormente trouxe conseqüências à sustentação desse modelo.
No século XIX, a Escola de Belas Artes era o passo básico para iniciação do
jovem artista. O treino era longo e rígido. Da cópia de desenhos, os aprendizes
passavam a cópia dos moldados em gesso de estátuas clássicas, até finalmente aos
modelos vivos. A vida na Escola era uma sucessão de competições, como “Prix de
Composition Historique”, sempre com temas preestabelecidos. Os melhores
trabalhos eram exibidos e recebiam medalhas, e aqueles que não se destacavam
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 32
eram submetidos aos exames anuais. O sistema Acadêmico, diferentemente das
guildas, reunia diversos mestres numa única instituição, com posições políticas
divergentes que se confrontavam em disputas que influenciavam o julgamento
destas competições.
O principal evento do calendário anual da Escola era o “Prix de Rome”, um
certame que culminava em uma importante exibição e vencê-lo significava
prestígio tanto para o aprendiz - que era um pupilo, como nas guildas - quanto
para seu mestre. Concedia o direito de ter um salário, de estudar na Academia
Francesa de Roma e tornava-o um “agrée”, isto é, com o privilégio de poder
exibir seus trabalhos nos Salões da Academia, o que significava introduzir sua
pintura ao patronato. Mais da metade de ganhadores do Prix de Rome tiveram
seus quadros comprados pelo Luxemburgo, o primeiro museu para
reconhecimento de artistas vivos, enquanto outros tiveram telas compradas pela
rede de museus provinciais sustentados pelo Estado, ressaltamos ainda que essas
eram destinadas à exibição, ainda que privadas, nas paredes desses
estabelecimentos.
Em sua relação especial com o governo, a Academia elevou a posição social
do pintor mantendo-se como uma parte relativamente independente da burocracia
do Estado. Seus membros se encontravam numa posição qualitativamente muito
diferenciada dos demais artistas, mesmo do mais estimado pintor da corte, que, na
realidade, era apenas um tipo elevado de serviçal. Mas este nível foi alcançado
apenas por uma ínfima parcela do crescente fluxo de aspirantes atraídos pelas
altas recompensas.
Depois da Revolução Francesa, a maior preocupação dos governos
revolucionários que se sucederam no século XIX era a sua própria (do governo)
legitimação. A exemplo das aristocracias do passado, utilizaram-se da arte como
expressão simbólica de poder. Com este intuito, o envolvimento do governo
francês com a exibição de obras de arte no século XIX foi maior do que o de
qualquer outro Estado, provendo os suportes estrutural e econômico que o
sustento da ideologia acadêmica, da “pintura pura”, exigia. A excelência da
pintura francesa, exibida pelos imponentes Salões Parisienses, culminou nas
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 33
Exposições Internacionais de 1855 e 1867, onde Luis Napoleão deslumbrou os
soberanos europeus com a arte francesa.
Se antes não havia um sistema de exibição público, a partir da consolidação
do sistema Acadêmico, ela era um privilégio concedido apenas aos pertencentes à
Academia Real de Pintura e Escultura, da mesma forma que o exercício do ofício
mecênico era um privilégio das guildas. Os artistas exibiam suas obras
publicamente num único Salão anual realizado em Paris, que era o núcleo daquele
sistema, onde toda a produção era avaliada para depois ser reunida em espaços,
como os salões do Louvre. Mais tarde as exibições foram realizadas em grandes
galpões em ferro e vidro juntamente com objetos industriais (nas Exposições
Industriais), mas desde o início desvalorizavam as obras em função da grande
quantidade de objetos exibidos. Só através de exibições públicas de arte, o artista
poderia se afirmar socialmente e conquistar o prestígio suficiente que
proporcionasse vender sua força de trabalho através das encomendas do Estado.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 34
1.2.3. Os Salões Parisienses
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Ilustração 2 - Salão Parisiense, século XVIII.
Os Salões Parisienses eram as exibições de arte da Academia. Iniciados em
eados do século XVIII foram as primeiras grandes exposições artísticas públicas
se estenderam com crescente popularidade por mais de um século, propondo
ma visibilidade equivalente à produção artística daqueles que exibiam.
ormaram um público e uma crítica de arte, que passariam a regular aquela
rodução, a ponto de extinguir a subserviência do artista ao gosto cortesão,
ransformando-se num poderoso corpo regulador, que logo atrairia os interesses da
urguesia, a nova classe dominante, sobretudo em razão do progresso industrial.
As obras dos mestres eram reunidas anualmente, numa única mostra, que
ornecia um vasto panorama da produção Acadêmica. Como vimos mais acima,
urante o Ancién Regime, expor era uma honra e um privilégio permitido apenas
os membros da Academia, os quais deveriam submeter seus trabalhos para um
úri responsável pela seleção das obras que deveriam participar da exposição. Os
intores trabalhavam arduamente de janeiro até o início de abril, quando
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 35
terminava o prazo de entrega dos trabalhos. Ambicionavam medalhas, publicidade
na imprensa e com uma fraca esperança de encomendas do Estado.
O número de obras expostas foi crescente ao longo dos anos. Em 1765,
foram exibidas 300 obras, aumentando para 400 obras em 1790. No ano seguinte,
a partir de um decreto da Convenção Revolucionária, o Salão deixou de ser
restrito aos membros da Academia, situação inédita desde a sua criação, e ainda
não teve júri, pela primeira vez em cinqüenta anos, fazendo com que o número de
obras expostas dobrasse, chegando a um total de 794 obras expostas14. O júri
reapareceu somente em 1798, como resultado de protestos dos pintores oficiais e
dos artistas, se estabelecendo como característica a partir do início do I Império.
Desde então, não houve Salões completamente abertos, previamente anunciados
como tal.15
No século XIX, o Salão já era considerado o evento central da pintura
francesa. Em 1806, o número de obras expostas foi de 704, das quais 573 eram
pinturas de 293 pintores. No período entre os anos de 1835 à 1847, os Salões
foram anuais, algo que não tinha sido tão consistente no passado, e atingiram uma
média de 2.000 obras expostas. Em 1848, o governo anunciou que todos os
trabalhos seriam aceitos após a entrega, o que levou a um total de 5.180 obras
expostas, das quais 4.598 eram pinturas de 1.900 pintores. Esse número excessivo
de obras era extremamente difícil de ser avaliado por uma única organização
centralizada, a partir do momento em que aqueles objetos eram definidos como
objetos únicos. Envolvidos por uma enorme quantidade de pinturas, os jurados
estavam sujeitos à fadiga, diminuindo a preocupação com o tipo e a qualidade de
cada obra.
Nunca houve uma declaração pública da política utilizada no julgamento.
Os limites provavelmente eram ditados, em sua maior parte, por exigências
casuais de tempo e do tamanho da sala destinada à exposição. O júri não podia
14 Desse total, 551 eram pinturas, das quais 134 pertenciam à Acadêmicos, 58 aos agrées e 359 de não-membros da instituição. Ver WHITE, Harrison C., White, Cynthia A. Canvases and Careers. Chicago: University of Chicago Press, 1993, p. 28. 15 WHITE, Harrison C., White, Cynthia A. Canvases and Careers. Chicago: University of Chicago Press, 1993, p. 28-29.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 36
limitar o número de pintores, do mesmo modo que a quantidade de telas
submetidas por cada um deles. Somente no ano de 1853, sob pressões de
montagem, uma questão de ordem técnica para uma exibição, um número de
trabalhos por pintor foi estabelecido, e mesmo os artistas isentos de julgamento,
por terem substanciais premiações em Salões anteriores, tinham também um
número limitado de obras para expor.
A comissão de júri era determinada por critérios variados. Composta
inicialmente por 8 membros, logo cresceu para 15 membros. Até 1848, a
Academia elegia seus próprios membros e tinha maioria nela, enquanto o Estado
ocupava uma parte menor, composta por oficiais de governo nomeados. A partir
de 1849, o júri ficou mais equilibrado, pois foi parcialmente nomeado pelo
Estado, parcialmente eleito por todos os artistas que tinham exibido em anos
anteriores ou por aqueles que haviam recebido medalhas em Salões anteriores. As
proporções variavam segundo questões políticas do momento, e um fato notável é
que os jurados eleitos por artistas eram, quase sem exceção, membros da
Academia ou homens de inclinação conservadora. Os mesmos nomes apareciam
repetidamente. Os julgamentos dessa elite oficial eram considerados sagrados para
o bem estar da profissão e o sustento dos padrões acadêmicos, porém, havia
também uma forte crença no julgamento público. Na visão do pintor com respeito
ao Salão, a construção de uma reputação artística e a venda de trabalhos dependia
de ambos.
As constantes mudanças nas regras do Salão demonstram a falta de um
consenso. É evidente que o Salão era uma instituição extremamente insatisfatória
para muitos artistas, e ainda mais, porque as pinturas continuavam chegando
abundantemente todos os anos, e quanto menos o pintor conseguia conviver com
isso, mais ele dependia do sistema artístico existente. Contudo, essa situação não
incomodava apenas os artistas, mas diferentes membros e partes da burocracia do
Estado que se preocupavam com os desentendimentos na política de arte, gerando
conflitos entre suas posições e os pontos de vista dos legisladores da Câmara de
Deputados.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 37
O Salão tinha dois propósitos básicos e estes eram contraditórios. Ao
mesmo tempo que tinham a intenção de ser o principal instrumento de revisão,
premiação e controle dos pintores que almejavam o reconhecimento oficial, servia
como uma vasta amostra ou exibição de arte para o público local e para as elites
estrangeiras. Porém, como toda a visibilidade da produção era centralizada num
único Salão, o número de trabalhos era excessivo, o que acarretava numa
disposição confusa e desvalorizadora. Amontoadas do chão ao teto em imensas
salas, as pinturas formavam uma parede sobre outra parede, proporcionando uma
visão caótica que desvalorizava as obras. As ‘melhores’ pinturas ocupavam a
posição privilegiada do meio da parede, enquanto as pinturas históricas e as
demais que possuíam grandes formatos ocupavam as posições superiores, pois
podiam ser observadas de longe. Para as menores telas, tais como as pinturas de
gênero, sobrava a parte inferior das paredes. A responsabilidade de montagem das
obras nos Salões durante o Antigo Regime, era de um artista acadêmico
denominado de tapissier16, porém, esta função parece ter sido contingente, ao
mesmo tempo que a existência de um programa deliberado para tal é difícil
confirmar.
Como tentativa para solucionar o problema de centralização e do
conseqüente volume de obras a serem exibidas, algumas exposições provinciais
foram realizadas, mas pouco contribuíram, pois, culturalmente, a superioridade do
Salão Parisiense se mantinha insuperável. O Salão anual era o centro do sistema
Parisiense, sua potência ordenadora, instrumento de revisão, premiação, controle e
ao mesmo tempo de visibilidade, mas, sob a pressão de julgar milhares de
profissionais, acabou por se degenerar. Verificou-se que o problema não era
propriamente quanto à quantidade de obras a serem exibidas, aos problemas
físicos de manuseio de tantas pinturas, nem tão pouco à grande porcentagem de
rejeições de obras, mas sobretudo ao controle negativo e à positiva premiação
expandidos sobre milhares de pintores profissionais. As atividades dos júris dos
16 DESBUISSONS, Frédérique. A Ruin: Jaques-Luis David’s Sabine Women, In.: Journal of the Association of Art Historians: Blackwell Publishers ltd. Oxford, UK and Boston, USA. vol. 20, n. 3, setembro 1997. p.437.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 38
Salões e as relativas encomendas e compras de obras eram insuficientes para
serem controles decisivos.
O sistema acadêmico de exibições permaneceu centralizado em Paris e no
Salão, enquanto seu contingente de membros crescia cada vez mais.
Diferentemente do sistema de guildas, onde a atividade artística era
descentralizada e com firmes restrições locais que preveniam contra a fácil
movimentação do artista de uma região para outra, as obras não eram exibidas, e o
pintor era o seu próprio vendedor. A Academia, em resposta ao antigo sistema,
não permitia que seus pintores abrissem lojas para venda de sua produção. Seu
sistema tornou-se inoperante dado o volume de artistas existentes.
Descentralização e especialização foram efetivamente realizadas depois, em
exposições tanto de pintores independentes como de negociantes, realizadas fora
do sistema oficial, que refletiam importantes transformações no campo da
exibição de obras e conseqüentemente da própria noção de arte e denotavam o
surgimento de um novo sistema institucional.
Verificou-se que a exibição pública da produção artística resultou em
importantes transformações no sistema artístico. Em meados do século XIX, agora
sob o patronato da classe burguesa, as realizações das mostras nos Salões
passaram a valorizar muito mais uma disputa artística, sob critérios duvidosos, do
que o verdadeiro sentido de concretização de idéias e convicções artísticas.
Artistas e público tornaram-se então peças manipuláveis para o jogo de interesses
do mercado, que ali criado, tinha por objetivo usá-los para atrair grandes
compradores.17
Primeiro a aristocracia européia se valeu das coleções como forma de
exibicionismo e auto-afirmação, depois a classe burguesa utilizou a arte sob uma
nova lógica de mercado. De todo modo, a burguesia e aristocracia eram altas
classes e estavam, em diferentes momentos, vinculadas diretamente à arte, quer
seja por questões sociais – políticas e ideológicas – ou econômicas, influenciando
17 KLÜSER, B., HEGEWISH, KATARINA. L’art de l’exposition. Tradução de Denis Trierweiler. Paris: Regard, 1998, p. 15–33.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 39
sua produção e conseqüentemente seus espaços expositivos. Assim, em função de
tais forças as exposições surgiram, e em sua oposição se transformaram.
A passagem do antigo espaço expositivo público dos salões para um espaço
que se assemelha ao dos museus e galerias contemporâneos surge
simultaneamente com o fim do sistema acadêmico. Enquanto o sistema acadêmico
francês centralizado num único salão anual entrava em colapso, as vanguardas
artísticas inauguravam um novo modelo expositivo em suas exposições
independentes. Novos espaços surgiram em resposta não apenas ao
descontentamento do artista em relação ao modo desvalorizado com que suas
obras eram expostas, mas sim, à insatisfação ao sistema acadêmico como um todo,
o que levou a substituição daquele espaço densamente ocupado por outro espaço
mais qualitativo, isto é, respeitando a nova concepção de arte.
Nesse contexto, em que a arte passou a se voltar cada vez mais para si
mesma, se autonomizando, a exibição tornou-se o veículo de idéias artísticas. O
espaço expositivo passou a ter o seu design determinado pelo discurso artístico,
isto é, comprometido com a arte, tornando-se, então, um espaço de afirmação das
ideologias da nova arte que surgia, planejado e modificado por aqueles artistas, ao
mesmo tempo que acompanhava o processo de desenvolvimento capitalista que
evoluiu para uma nova lógica de comercialização. Naquele momento, mais do que
em qualquer outro, o espaço de exibição passou a atender de modo ainda mais
explícito à sua vocação comercial. Iniciava-se a era do sistema artístico moderno
que perdura até os dias atuais, representado pela figura do crítico-negociante ou
marchand, onde os artistas passam a produzir livremente, desvinculados das
normas academicistas, para este novo “mecenas”.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 40
1.2.4. A resposta artística: a nova arte e um novo expor
O primeiro indício de reação à degradação artística promovida pelos salões
foi uma atitude do pintor Gustave Courbet, que pioneiramente construiu um
pavilhão individual intitulado “Realismo” em anexo à Exposição Internacional de
Paris em 1855. Nele o artista exibiu uma série de trabalhos com temas realistas
que demonstravam sua posição contrária ao sistema artístico vigente e à própria
tradição da pintura. Entre as telas exibidas estava Bonjour, Monsieur Courbet, que
retrata o momento de seu encontro em Montpellier com seu anfitrião, um
importante patrono e colecionador de artes, Alfred Bruyas, acompanhado de seu
servente e seu cachorro, mostrando-se de mochila e de sapatos para caminhadas
numa estrada. Sua escolha de tema, pintada com rigoroso realismo e honestidade,
causou um grande furor quando foi exibida18. Ao se voltar para temas do mundo
natural a sua volta, Courbet logo seria considerado como o expoente de um novo
tipo de arte, livre das amarras da pintura histórica e religiosa ou acadêmica, e se
tornaria uma importante influência para Manet e os impressionistas, outras
posteriores dissidências. A importância da exibição do Pavilhão de Courbet,
embora não tenha sido a primeira exposição individual da história, e não tenha
tido grandes inovações na montagem, reside em sua postura política, um marco
para a autonomia do sistema de arte.
Porém, se a iniciativa de expor separadamente do Salão foi um mérito
pioneiro de Courbet, a preocupação com o modo de exibição da obra já existia. O
pintor inglês Willian Turner, por exemplo, já havia anteriormente se recusado a
participar das exibições da Academia Real de Londres porque considerava
desfavoráveis as condições de exibição de suas pinturas.19 Para o evento de
exibição da tela “As Sabinas”, aberto no dia 21 de dezembro de 1799 no Louvre,
que foi a primeira exibição paga já organizada por um artista na França, o artista
acadêmico Jacques Luis David planejou cada detalhe da exibição. David, assim
como Turner e Caspar Friedrich, era muito sensível às condições nas quais seus
18 PHAIDON, The Art Book, 1996, p. 111.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 41
trabalhos eram vistos, sobre a maneira como os ‘arredores’ do trabalho podia
influenciar na sua percepção. Ele organizou o interior da sala juntamente com o
arquiteto do Louvre, e supervisionou a montagem pessoalmente, escolhendo com
cuidado todos os acessórios não apenas para realçar suas pinturas como também
dirigir os visitantes, pois mais do que assegurar uma qualidade de apresentação do
trabalho, David preocupava-se com a percepção do trabalho que aquele espaço
continha.
No centro da sala, o hall de encontros da Academia, David colocou a
pintura, à frente de um espelho. Desse modo, “os espectadores se percebiam
cercados entre os dois planos e sendo referidos de um para o outro.” O
observador e a pintura se fundiam numa imagem única no espelho, que
funcionava como “uma armadilha para capturar os espectadores e integrá-los ao
espaço fictício da instalação. [...] Os visitantes [...] foram incorporados ao
trabalho, integrados à sua lógica interna.20
Em 1863, iniciava-se o Salão dos Recusados, a primeira exibição artística
organizada para produzir e expor sob critérios próprios uma concepção
diferenciada daquelas que o júri do salão de Paris havia recusado.Três anos depois
de ser recusado para o Salão, Manet expôs junto a outros artistas, inclusive
Courbet, em um estúdio fotográfico em frente ao Palácio da Indústria. No ano
seguinte, investiu na construção de seu próprio espaço localizado próximo ao
pavilhão de Courbet, vizinho à Exposição Universal de 1867. Anos mais tarde, em
1884, foi fundado o Salão dos Independentes. Todas essas iniciativas
representaram um pequeno esforço no sentido de se desvencilhar dos grilhões
acadêmicos. Dessa forma, com o mesmo sentimento de insatisfação perante o
19 WHITELEY, J. Exibitions on Contemporary Painting in London and Paris 1760-1780, In.: HASKLL, F. Saloni, gallerie, musei e loro influenza sullo sviluppo dell’arte dei secoli XIXe e XXe, Bologna, 1981, p.69-87. 20 Spectadors find themselves hemmed beetween the two planes and referred from one to the other. [...] The mirror in thec Exibition of the Sabine Women was a trap intended to capture the spectadors and integrate them into the fictional space of the installation. It implicated them corporally, staged the painting, reflected it and simultâneously symbolically erased boundaries, enlarging it to the whole space in which it was held: [...] Therefore, the visitors to the exibition, rather than disturbing the Exibition through their anachronistic presence, were incorporated into the work, intrgrated into its internal logic. In.: DESBUISSONS, Frédérique. A Ruin: Jaques-Luis David’s Sabine Women, In.: Journal of the Association of Art Historians: Blackwell Publishers ltd. Oxford, UK and Boston, USA. vol. 20, n. 3, setembro 1997. p.440-443.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 42
sistema acadêmico, e com um desejo de autonomia e liberdade artística, um
pequeno grupo de artistas sob a liderança de Monet, em 1874, incluindo Renoir,
Pissaro, Cézanne, Degas, Sisley – Manet recusou-se a participar – expôs numa
coletiva no ateliê do amigo e fotografo Felix Nadar. Surgia, nesse momento, o
grupo dos impressionistas que expunha uma nova arte realmente a partir de novos
critérios de montagem, servindo como exemplo para a criação de outros grupos
independentes. Primeiramente, o espaço do ateliê era muito menor do que
qualquer Salão ou das outras exposições dissidentes, o que criava uma atmosfera
mais intimista, que não compartilhava do clima espetacular dos Salões realizados
paralelamente às Exposições Internacionais. Para essa exposição – a primeira de
uma série que se estenderia até a década de 1880 – foi adotada uma concepção de
montagem que não apenas valorizava as obras expostas, como também funcionava
como estratégia de persuasão e encantamento do público, com a ilusão do bric-à-
brac em meio às obras expostas.
Esse momento de transição dos enormes espaços do Salão para um espaço
menor, ainda sem uma correspondente inovação profunda na organização do
espaço expositivo, embora os espaços fossem bem menores que os do Salão,
estava representando um novo ideal de arte. Ficou caracterizado o início da radical
autonomia do sistema artístico, que deixava de ser restrito por uma instituição,
para então aderir ao mercado livre. Era o início do que chamamos Arte Moderna.
Porém, vale ressaltar que isso foi um processo, onde ambos os sistemas
coexistiram por um longo período. Os artistas, por mais descontentes que
estivessem com o sistema acadêmico, não podiam se desligar dele de forma
abrupta, enquanto dele dependessem. Os impressionistas, por exemplo,
continuaram enviando suas pinturas para os júris do Salão, mesmo após suas
exposições independentes.
Entretanto, as tensões complexas, contraditórias e oscilantes entre tradição e
modernidade, bem como as reformas constantes na política, economia e na
sociedade no século XIX não ocorreram somente em Paris. Segundo Ekkehard
Mai, os artistas em meio a lutas e divergências internas, de encontro com a crise
da arte, do mercado e do público, fundaram as Secessões, destinadas a reabilitar a
obra e o artista através de uma nova estética de arte e vida, como unidade, como
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 43
quintessência de uma cultura da totalidade e coalizão, em resposta ao movimento
Art Noveau21. Surgindo em 1880 e perdurando por mais de três décadas, essas
associações artísticas fora da França parecem ter percebido a importância do
espaço expositivo para a apresentação de suas idéias e convicções artísticas, que já
não podiam mais ser expressas sob critérios confusos de organização.
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inmcbdl’L
Ilustração 3 - Secessão Vienense, 1902
Os grupos das Secessões fundados, em Viena, Berlim, Munique, Bruxelas e
ão Petersburgo, realizaram exposições das mais variadas tendências da arte com
ontagens inovadoras que acompanhavam o espírito da nova arte. Com poucos
uadros nas paredes, as Secessões propuseram um sentido de unidade, a partir da
1 “Ainsi, ce furent, comme on le sait, les artistes eux-mêmes, par leurs lutes et leurs dissensions ternes, qui tirènt la sonnette d’alarme et tentèrent d’aller à l’encontre de la crise de l’art, du arché et du public, par la fundation des Sécessions. C’est ainsi que se déchaîna effectivement, au
ours des annéss 1890, la vague Sécessions destinées à rehabiliter l’oeuvre et l’artiste sous la annière d’une nouvelle esthétique de l’art et de la vie, vécue comme unité, comme quintessence ’une culture de la totalité et de la cohésion; cette vague allait se répandre ensuite dans tout Europe, vers 1900, en rapport avec le movement de l’Art noveau.” In: HEGEWISCH, Katharina. ’art d’exposition, 1998, p. 48.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 44
homogeneidade absoluta, do princípio de redução de todos os instrumentos da
exposição, a arte, o artista a obra, o espaço e montagem, onde justamente a
sinestesia da exposição fosse um todo artístico, objetivando como resultado uma
obra de arte total.22 Essa premissa inaugurava um modelo que antecipava o
conceito de projeto artístico expositivo dos dias atuais. Suas exposições não
apenas renunciaram ao gosto decorativista dos interiores burgueses, através da
negação ao ornamento, como também forneceram soluções museográficas
utilizadas até os dias atuais, como iluminação zenital homogênea, flexibilidade
arquitetônica que são os princípios do ‘cubo branco’.
Novas concepções expositivas surgiriam no curso das transformações da
produção artística. Para as vanguardas, não interessava apenas expor suas obras
em um espaço, mas utilizar a obra e o espaço como uma situação para provocar a
desestabilização da visão hegemônica racionalista do público burguês. Podemos
dizer que para concretizar suas convicções artísticas, às vanguardas não
interessava apenas ‘mostrar’ suas obras por meio das exposições, mas acima de
tudo, conhecer a forma de elaborar suas mensagens e conceber seus espaços
expositivos.23 As novas tendências nas artes plásticas envolviam, cada vez mais, a
relação tríade do observador-objeto artístico no espaço expositivo, onde esse
objeto era cada vez mais dependente do espaço e da noção de arte do observador.
Em 1915, na exposição futurista ‘0,10’ realizada em Petrogrado que
apresentava vinte e três artistas, Malevitch monta seus quadros de modo a ocupar
as paredes quase desordenadamente, explorando as diagonais e inclusive o canto
da parede, pretendendo incitar a curiosidade e inteligência do público, a começar
pelo título da mostra. Na Primeira Missa Internacional Dada em Berlim em 1920,
a exposição foi transformada num acontecimento, ou ainda, numa verdadeira
‘instalação’ antes mesmo de existir esse conceito, onde o intuito era também
provocar o público em suas certezas racionais e fé no progresso da sociedade
22 “Certes, le principe de la reduction et de la rédaction de tous les instruments de l’exposition – art, artistes, arquiteture et decoration, et jusqu’a la sinesthésie de l’exposition conçue comme un tout artistique – ne sera pleinement attent qu’avec l’historicisme homogénéisé du formalisme et du Jugendstil au tornant du siècle.” Idem. In: HEGEWISCH, Katharina. L’art d’exposition, 1998, p.48. 23 RICO, op. cit., p. 173-174.
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Ilustração 5 - Primeira Missa Internacional Dada, Berlim, 1920Ilustração 4 - Última Exposição Futurista, Petrogrado, 1915
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industrial. Quadros, mensagens em cartazes, cartazes de propaganda, manequins,
onde paredes e teto eram quase completamente ocupados, envolviam o visitante
numa atmosfera que tendia ao alucinante, numa desvalorização da idéia de arte
como objeto. Em 1927/1928, Lissitzky projetou para o Museu Provincial de
Hanôver o Espaço dos Abstratos, que era mais do que uma exposição, mas um
espaço que conservava as características de sua arte.
Apesar da existência de exceções como essas, acompanhar a evolução do
espaço expositivo é acompanhar a trajetória de um espaço predominantemente
neutro, asséptico e quase sempre descompromissado com intenções estéticas que
pertençam a um raciocínio projetual do designer. A mera arrumação dos objetos
nesse espaço tridimensional ‘vazio’ não é suficiente para constituir a prática
expositiva como produto de um design. Do mesmo modo, o seu planejamento, ou
o exercício profissional do seu planejamento não pertence apenas ao designer,
visto que, muitas vezes, esse trabalho pertencia e, muitas vezes ainda o é, exercido
pelo artista e por curadores e arquitetos, figuras também associadas à construção
desse espaço de exibição. Nos nossos dias, a arrumação do espaço expositivo é
reivindicado por diferentes disciplinas.
1.4. A exibição como projeto estético versus o espaço racional do ‘cubo branco’
Se por um lado a produção artística das vanguardas gerou reflexos
profundos no espaço expositivo, fazendo dele a continuidade de suas propostas e
convicções, no sentido de inová-lo e integrá-lo às obras expostas, por outro lado a
racionalidade modernista das vanguardas arquitetônicas parece ter conduzido esse
espaço a uma situação oposta. No século XX, o espaço expositivo passou a ser
determinado segundo a ideologia do movimento moderno vigente e as obras
ordenadas de acordo com suas premissas positivistas, universalistas,
tecnocêntricas e funcionais. O desprezo pelo ornamento e pela personalização, a
crença no progresso linear, na padronização e, sobretudo, nas verdades absolutas,
conduziram o modernismo à formulação do espaço racional. Como exemplo,
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 47
podemos citar as propostas de Le Corbusier e Mies Van Der Rohe, que projetaram
espaços museográficos cuja principal premissa era a neutralidade em relação às
obras expostas. Já em 1917, o neoplasticismo propunha a idéia da parede branca
como suporte ideal para evitar interferências do espaço expositivo nas obras. A
neutralidade em favor da experiência exclusiva do objeto gerou um espaço
fechado, iluminado artificialmente e flexível. O cubo branco, diametralmente
oposto ao espaço dos Salões de pintura do século XVIII e XIX, é o espaço da
galeria, um espaço moderno, da tradição modernista. Substituiu a visão caótica –
ainda maior para o olho moderno – da parede recoberta por uma camada de
pinturas, onde obras-primas funcionavam como um papel de parede, pela clareza
da exibição.
O movimento moderno extinguiu a linguagem clássica na arquitetura24 e seu
racionalismo permeou a construção dos espaços em geral. Um dos exemplos que
melhor sintetiza as idéias modernistas é sem dúvida o espaço da galeria, um local
sem excessos, branco, asséptico, silencioso, onde a neutralidade é o principal
objetivo. Não pode se confundir com as obras, ao mesmo tempo que pode abrigar
qualquer tipo de expressão artística. Imaculadas paredes brancas, pisos polidos e
luz sobre poucas obras formam o ambiente para o caminhar silencioso de uma
experiência individual, formando uma imagem tão forte quanto qualquer figura
produzida no século XX, uma imagem arquétipa da própria arte desse período e
talvez ‘a maior convenção pela qual a arte já tenha passado’25. Esse espaço ‘ideal’
subtrai todas as sugestões ou insinuações que possam interferir no fato de o
trabalho ser uma obra de arte ao isolá-lo do mundo externo e de tudo que possa
depreciar sua avaliação. Um espaço sacralizado, construído a partir de convenções
preservadas, de repetição de um sistema fechado de valores, de leis tão rigorosas
quanto às aplicadas na construção das igrejas medievais.26 “Algo da santidade da
igreja, da formalidade do tribunal e da mística do laboratório experimental
unem-se ao design para produzir uma câmara de estéticas única.”27
24 SUMMERSON, John. A linguagem Clássica da Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.117. 25 O’DOHERTY, Brian. Inside the white cube: the ideology of the gallery space. California: University of California Press, 1999, p. 26 Idem, p.15. 27 Idem, p.14.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 48
Uma análise aprofundada das exposições atuais denota uma feição
constituída basicamente por estes espaços neutros, calcadas no legado modernista
do princípio do cubo branco, onde o espaço expositivo procura ser desprovido de
significações. Com estrita ênfase às demandas práticas do funcionamento, da
iluminação, do percurso e da preservação das obras, a maior parte das exposições
de arte contemporâneas são organizadas empregando quase exclusivamente
aspectos técnicos ou funcionais. Além disso, sob esses mesmos critérios
museográficos tradicionais, formas artísticas heterogêneas são exibidas algumas
vezes ocasionando eventuais conflitos entre obra e espaço. Tais procedimentos,
que contribuem para a organização das exposições, por conta da praticidade e da
eficiência do espaço expositivo neutro, limitam-se à consideração apenas ao nível
técnico, peculiar aos iniciados na modalidade artística, profissional ou científica
dos objetos expostos. Verifica-se que quase sempre não adiciona novos
significados aos trabalhos. Poderíamos dizer que essa modalidade expositiva não
explora a relação da obra para com o espaço, e em última instância, para com o
observador, limitando-se àquela preestabelecida pela obra inicialmente. Alguns
organizadores de exposições já nos anos 60-70, como Harald Szeemann e Pontus
Hulten, que fizeram de suas exposições projetos estéticos, procuraram conjugar
técnica e criatividade e esta ação os levou a reivindicar a potencialidade artística,
ou direito de autoria para os curadores, ou para seus modelos curatoriais. Para
eles, as exposições não eram apenas o principal ‘legado’ para a apresentação da
arte, pois haviam se tornado um princípio criativo em si mesmas, com direitos
próprios28. Este princípio, inclusive, permite entendermos a inclusão dessa ação (o
projeto de exibições), não apenas ao campo da arte, mas no campo profissional do
design, pois esta é uma ação que deve contemplar em primeira instância a
funcionalidade29, coisa que os artistas contemporâneos normalmente
desconsideram em nome de uma autonomia absoluta do objeto de arte.
Posteriormente, algumas tentativas se seguiram neste sentido, principalmente na
década de 80, quando vimos surgir novas maneiras de apresentar e arranjar os
28 HOFFMANN, Jens. “A exposição como trabalho de arte”. Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, abril de 2003. 29 Por funcionalidade entenda-se não apenas os aspectos de ordem técnica, mas estéticos – sua significação cultural - e espaciais.
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trabalhos que criaram “novos sentidos na forma da composição geral de suas
mostras”. 30
Outro caso da tentativa de nova organização do espaço expositivo foi a
curadoria pioneira de Alfred Barr, que numa atitude visionária, reuniu no MoMA
em Nova Iorque a partir da Segunda Guerra Mundial – na época do deslocamento
do centro artístico mundial da Europa para os Estados Unidos –, um acervo
extremamente diversificado, partindo de uma leitura menos regionalista da arte
moderna e privilegiou a realidade estética dos trabalhos em si desconsiderando
suas origens para inseri-los em um novo programa cultural. Procurava algo que
modificava, a partir da escolha dos objetos, a antiga percepção dos mesmos, isto é,
lhes dava uma nova significação. O trabalho de Barr parece-nos um postulado
intelectual que julgamos pertencer aos limites do design expositivo, que
possibilita um espaço de exposição menos passivo.
Mesmo caracterizando-se apenas como tentativas isoladas e, muitas vezes,
ligadas a interesses pessoais – que geraram amplas críticas no campo artístico –,
estas inovações na montagem de exposições constituem um princípio de
transformação na sua condição de serventia que se reflete nos dias atuais. O
quadro hoje é mais heterogêneo do que em qualquer época anterior – assim como
a própria arte exibida –, embora tenhamos de reconhecer que a forma passiva de
exibição prevaleça. As soluções adotadas são diversificadas, pois é fato que existe
uma consciência maior da importância do espaço expositivo para o êxito da
exposição. Elas se traduzem em esforços para torná-las mais atrativas. Algumas
assumem um caráter um pouco mais experimental enquanto outras se valem de
cenografias para explorarem a potencialidade do espaço expositivo. Contudo, as
exibições não conseguem se afirmar como linguagem autônoma, pois a influência
do espaço para a valorização da obra, tão indiscutível quanto a influência de uma
moldura para uma tela pintada, é subtilizada.
30 HOFFMANN, Jens. “A exposição como trabalho de arte”. Escola de Artes Visuais do Parque
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 50
A questão relativa às inovações no modo de exposição da arte nos espaços
expositivos é uma discussão do campo da arte tão atual quanto polêmica e que foi
expressa recentemente31 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), na
discussão proposta pelo curador alemão Jens Hoffmann ao realizar uma mostra
intitulada “A Exposição como Trabalho de Arte”, que partiu “das questões da
construção da exposição, para alcançar um ponto em que uma exposição poderia
potencialmente existir sem qualquer trabalho de arte, mas ainda assim se tornar
um trabalho de arte em si mesma”. 32 Deste modo, o projeto procurou investigar e
apresentar exemplos e deslocamentos da prática curatorial através de breves
proposições de um grupo diversificado de artistas, curadores e escritores, que de
algum modo se relacionam com a cena artística brasileira e resultou em exemplos
extremamente importantes para esse trabalho, pois refletem opiniões bastante
variadas.
Nas paredes da EAV, foram então expostas ao público algo inovador: uma
exposição de princípios teóricos sobre exposições. O resultado foi uma coletânea
de depoimentos muito variados sobre a questão: uma exposição pode ser um
trabalho de arte? Lamentavelmente, as respostas foram, além de muito breves,
muito dispersas em raciocínios pouco objetivos, contudo ficou claro que subjazia
implícita na maior parte dos pronunciamentos, a rejeição da aplicação do conceito
de arte para uma exposição, isto é, o direito autoral para os curadores. Tal fato
denota ou um desinteresse do campo artístico pela questão, ou o temor de que os
curadores e, eventualmente, os designers, assumam o posto dos artistas em sua
significação cultural.
A primeira voz é breve e contundente: “que importa?” indaga o artista
plástico Arthur Barrio, questionando a importância da reflexão sobre a
possibilidade de uma exposição em si ter a capacidade de atingir o mesmo status
dos objetos que ela expõe, enquanto para Carla Zaccagnini, “qualquer proposta,
ação ou objeto que se refira à arte (...) pode ser uma obra de arte, desde que
Lage, Rio de Janeiro, abril de 2003. 31 Março de 2003. 32 HOFFMANN, Jens. “A Exposição como trabalho de arte”. Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, 2003.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 51
apresentada como tal por um artista”. Ana Paula Cohen lista uma série de obras
que lidam com diferentes aspectos da estrutura de uma exposição de arte
questionando os limites entre a obra e a exposição, sem analisá-las ou emitir juízo
sobre a questão.
Já o curador Paulo Herkenhoff, atual diretor do Museu Nacional de Belas
Artes do Rio de Janeiro, analisa do ponto de vista de quem lida com essa questão
na prática, discorrendo sobre um exemplo, quando na XIV Bienal de São Paulo,
foi o curador. A obra Homenagem a Cara-de-cavalo de Hélio Oiticica circulou
por outras salas da Bienal buscando novos diálogos com outras obras,
“convivendo com a tela de Siqueiros sobre linchamentos racistas, a relação
pictorialidade/carnalidade de Bacon, a dicotomia das pulsões de vida e morte
com Bruce Nauman, as discussões sobre o Estado devorador dos cidadãos frente
a Jangada do Medusa de Géricault”, onde esta “contaminou e foi contaminada de
sentidos nesse inesperado percurso pelo território temporário da exposição”.
Complementou afirmando que “a obra de arte cria inteligibilidade, a curadoria
requalifica provisoriamente a visibilidade disso” e concluiu asseverando que não
pensa “em estética da curadoria-como-obra-de-arte, mas numa poética da
presença real dignificada do sensível, para o que não bastam um texto arguto de
crítico nem a qualidade intrínseca da arte exposta”.
Utilizando quase os mesmos argumentos de Herkenhoff, Ivo Mesquita
exemplificou que considera que uma exposição é antes de tudo “um discurso que
nasce da apropriação do trabalho ou trabalhos de outrem e da percepção e
consciência de temas ou questões abordadas e trabalhadas pela produção
artística”, e “ainda que implique em autoria, imaginação e originalidade, ela
supõe finalidades – conhecimento, organização, educação, lazer, informação etc.
– que não são necessariamente condições para a produção artística”, e que uma
exposição é uma atividade institucional que possui objetivos e funcionalidade,
com parâmetros éticos. Por fim, fez uma distinção entre artista e curador, onde o
último se caracteriza como profissional a serviço do primeiro, ou seja, a definição
de procedimentos dos profissionais que organizam as exposições é algo a que os
artistas não devem estar sujeitos.
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 52
Iran do Espírito Santo e Adriano Pedrosa não consideraram que uma
exposição possa ser considerada como obra de arte em si. O primeiro admite “que
o exercício da curadoria possa ser ativo e criativo”, acreditando que ninguém
duvida disso, mas para ele, a curadoria deve, antes de mais nada, “servir a um
propósito que esteja além de uma prática autofágica e obsessivamente auto-
referencial”. Na mesma linha de raciocínio, Pedrosa afirmou que embora o autor
da mostra, como alguém que desenvolve modalidades alternativas de elaboração
da exposição, introjete jogos poéticos, subjetivos ou lingüísticos (ou outros) na
construção da mesma, a mostra autoral não constitui uma obra de arte em si.
Finalizou afirmando que mesmo que o curador proponha tal asserção, ele
considera tudo isso irrelevante, na medida em que não percebe “o quão produtivo
isso poderia ser em termos de construir, abordar ou entender a exposição.”
A reflexão sobre a possibilidade de uma exposição se tornar uma obra em si
mesma, sem exibir obras de arte, talvez possa ter sido mais claramente respondida
por Luis Camillo Osório, quando expõe a questão de um ponto de vista que
distingue o fazer artístico de quem produz a obra e aquele da elaboração da
exposição, sem deixar de considerá-la como atividade criativa em si, o que é uma
condição artística.33
Antes de irmos mais adiante, acreditamos que nesse ponto do trabalho, já
temos os meios de enunciarmos com maior clareza certas questões fundamentais
para o desenlace dos problemas que estamos abordando. Além do fato da relação
triádica observador-obra-espaço expositivo se modificar quando um dos termos da
relação se altera, dando significação ao campo fenomenal da arte, outra questão
ainda precisa ser respondida: como o espaço pode modificar a relação triádica? De
que maneira o espaço expositivo se agrega ao objeto? Melhor dizendo, como ele
33 “Nada mais saudável do que uma coisa tornar-se outra, que se percam os critérios a priori de ajuizamento. Neste mundo de manipulações e deslocamentos, onde não há mais Ser e tudo é Devir, o pensamento derrapa, os sentidos escapam, os abismos assomam, a vertigem é a regra. O que sobra? O Nada? Silêncio. Outra vez a mesma pergunta. Ser ou não ser uma obra de arte? Repitamos de outro modo: Ser ou Não-Ser uma obra de arte. Nesta negação (no Não-Ser), o que se pede é um mínimo de resistência à nossa vontade metafísica de ter razão. Que permaneçam as diferenças. Que se resista a voracidade conceitual. Arte é arte. Exposição é exposição. Ou não. Silêncio. Mais silêncio. Enquanto isso, que as exposições assumam novas formas, almejem novos fins, abram outros horizontes.”
A transformação do ‘objetos de arte’ e as formas de exibição 53
interage com esta relação e qual a sua capacidade de modificá-la? Por fim, seria
possível uma resignificação de uma obra a partir da contrapartida projetual do
espaço expositivo? Talvez por conta do desinteresse dos membros do campo da
arte pelo assunto, as respostas que encontramos giravam preponderantemente
como se a solução do problema fosse uma tarefa da esfera curatorial, dando-se um
estatuto de autoria para os curadores.
Como vimos, não há uma preocupação com a produção de um raciocínio
específico em termos de espaço expositivo, com a produção de uma inteligência
para entender e interpretar o problema espacial – a palavra ‘espaço’ inclusive
sequer foi mencionada por algum dos entrevistados presentes na exposição do
Parque Lage. Assim, por um outro viés talvez possamos avançar mais na direção
de um entendimento. Nossa proposta se dirigirá para a análise do caso do Museu
Judaico de Berlim, um espaço de exibições que supomos servir como exemplo
para o design do espaço expositivo com princípio criativo em si e que pode dar
uma nova significação aos objetos exibidos.