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Curso de Direito Processual Penal 1
Uma Visão Garantista acerca do DIREITO PENAL DO INIMIGO.
Nossa capacidade de verdadeiramente amar, tem
que ser maior que nossa vulnerabilidade,tem que
ser maior que nossos egoísmos e temores.
Marcelo Henrique dos Santos
RESUMO: Trata-se o presente artigo de abordagem teórica relacionada à tratativa do direito penal, enquanto instrumento decorrente da nova sistematização traduzida pela Constituição Federal, com o fito de conceder efetividade à manifestação das garantias individuais e coletivas, não como mecanismo de repressão social ou de aviltamento de direitos, mas com a essência que realmente deve expressar, ou seja, a de aplicação da lei penal naquelas circunstâncias em que ela deve ser utilizada e não como substitutivo de políticas públicas às avessas. Objetiva-se ainda indicar algumas propostas de correta aplicação social do direito penal dentro da concepção garantista e de respeito à preservação da dignidade humana.
1. Considerações iniciais:
Nos dias atuais, observa-se uma crescente e equivocada tendência
de se utilizar o direito penal como a panacéia hábil a resolver todas as mazelas, sem
uma consideração mais aprofundada até mesmo da efetiva indicação, tanto das
causas reais dos problemas, quanto da técnica que se relaciona à questão da
correta tratativa dos ilícitos, diferenciando-os adequadamente, vale dizer, dentro da
exegética que deve levar em conta vários princípios, dentre os quais o da
INTERVENÇÃO MÍNIMA. Segundo pontifica Luiz Luisi, em sua obra “Os princípios
Constitucionais”, este último deve ser denominado de princípio da necessidade, que surgiu como orientador e limitador do poder criativo do crime, “preconizando que
só se legitima a criminalização de um fato se a mesma constitui meio necessário
para a proteção de um bem jurídico”. Sobre tal assertiva tornaremos a dar mais
ênfase, em função de sua ligação com o tema proposto.
Quando se agita a questão da atividade repressora estatal sob o
ponto de vista de fatos penalmente relevantes, é preciso que se compatibilize
aspectos de extrema relevância, todos aliados ao nascedouro, fundamentos,
aplicabilidade, princípios e especialmente, quanto à disputa verificada entre o
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chamado Estado Social Mínimo e o Estado Penal Máximo, tudo para que se possa
dar a correta visibilidade sobre a importância da intervenção mínima no regime penal
pátrio.
À evidência, não se pretende esgotar o assunto, que dadas às
ramificações e antecedentes lógicos que apresenta, certamente mereceria estudo e
análise não somente mais aprofundada, como também de algum dos eminentes
cultores da moderna visão da aplicação do direito penal, dentro dos limites a que o
mesmo deve permanecer vinculado e não apenas deste subscritor, que quando
muito pode ser definido como alguém que guarda em si profunda e sincera
irresignação com os lamentáveis rumos que têm sido adotados não somente pelo
Estado, mas também por alguns operadores do direito que se deixam levar pelo
mórbido e insidioso canto da repressão penal e do recrudescimento das liberdades
individuais e até mesmo coletivas.
Como afirmado, não se tem a pretensão de exaurimento de temário
de tamanha complexidade, mas não nos afastaremos do firme desiderato de
provocação para uma discussão crítica que possa concorrer para a adoção de um
posicionamento apartado do modelo que ora se observa e que, seguramente não
tem contribuído para o aprimoramento de nossas relações. Não se pode aceitar a
falácia apregoada pelos quatro ventos, no sentido de que a criminalidade precisa ser
cada vez mais combatida e enfrentada como um câncer social que necessita ser
extirpado, como se tal procedimento cirúrgico fosse o suficiente para dar cabo a tal
problema, cuja origem deve ser valorizada, detectada e trabalhada, sob pena de
tornar-se recorrente e insuperável como todas as mazelas sociais, que politicamente
são alimentadas com o estrito fim eleitoreiro e fisiologista, por aqueles que vêem nos
desvios criminais, ímpares oportunidades para eternizarem-se nos cargos eletivos à
custa do sofrimento social de centenas de milhares de combalidos e desafortunados,
encontráveis em todos os cantos deste país.
Às vezes, a obviedade de alguns posicionamentos parece que não
possui o condão de contaminar setores mais nefastamente radicais que persistem
em emprestar ao Estado, feição para a qual ele não foi e não poderia ter sido
moldado. Conforme anunciou Churchil em meio aos conflitos da segunda grande
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guerra, ”enquanto uma mentira dá uma completa volta ao mundo, a verdade ainda
está calçando as botas”. Esta tem sido a tônica com a qual o problema penal tem
sido tratado, ou seja, afirmam-se ilações ou meias verdades em torno de sua
eficácia, estadeando-se que somente o rigor será hábil para solucionar as mazelas e
diga-se bem em número razoável criadas pelo próprio estado em função de sua
ausência social ou de sua incapacidade de harmonizar adequadamente as relações
que lhe são pertinentes, ou o que é pior, conforme bem pontifica o Mestre Bizzotto,
com sua peculiar lente sócio-jurídica, bem explicitando o agir estatal, apontando
características que invariavelmente são identificadas em nosso sistema:
”A seletividade e o cinismo nas suas escolhas, pois capta os
vulneráveis do sistema social (criminalizados, vitimizados e os
policizados), deixando as elites sociais quase imunes às
conseqüências desastrosas que provoca. A atuação do sistema
penal passa a ser "coisa de pobre", sendo estes induzidos a um
antagonismo capaz de gerar a desestabilização ou a
autodestruição”. (in Aplicabilidade das normas constitucionais,
Bizzotto Alexandre,2004).
Uma das razões que envolve a manifestação acima enfocada, cinge-
se ao fato de que a justificativa da privação da liberdade enquanto mecanismo de
controle penal, já há muito ultrapassou os limites da razoabilidade social,
demonstrando de maneira segura o desacerto de sua adoção.
Os grandes dilemas residem em questões agitadas com plural
propriedade por Claus Roxim, tais como a questão relacionada à justificação da
privação da liberdade, elaborando-se uma controvérsia, em que se tem como
fundamental o despertamento para as razões justificadoras da pena e do próprio
sistema punitivo e dentro de tal questionamento inserem-se outros especificamente
adstritos ao merecimento da sanção, à dignidade do bem jurídico tutelado e à
ofensividade da conduta.
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Pois bem façamos algumas digressões a respeito dos pontos ora
agitados.
É fato que se não pode conceber a idéia da exclusão absoluta do
sistema penal como meio de regulação, mas é mais certo ainda, que não se pode
admitir sua utilização indistinta e desprovida de critérios sociais que levem em conta
o sopesamento equilibrado de sua aplicabilidade e antes mesmo, de sua delimitação
formal e prática.
Neste diapasão, abordemos o fato jurídico relacionado ao princípio
da necessidade, até porque, o mesmo se apresenta como de extrema pertinência
comparadamente ao da intervenção mínima. Tem-se por facilmente perceptível, que
somente admite-se a existência da pena com todas as suas implicações, em se
tendo a consideração inalienável de que a mesma não pode ser substituída por um
mal menor, sendo certo que qualquer tipo de penalização já guarda em si uma
pecha extremamente infamante e invasiva ao ser humano, a tal ponto que não se
pode avaliar em termos de reflexibilidade a extensão de seus danos físicos, morais e
mesmo psíquicos aos desviantes.
Outro prisma que deve ser adequadamente visualizado, é o
relacionado à identificação dos bens jurídicos. Somente deve ser aceita a
possibilidade da atuação repressiva em face de bens de elevada consideração para
o direito penal, a danosidade à liberdade individual somente é justificável quando
identificada a validade da importância do bem num grau de imprescindibilidade
superior, que efetivamente o ampare.
Neste contexto cabível evidenciar-se o princípio da exclusiva
proteção de bens jurídicos, que decorre da corrente minimalista do direito penal, que
ratifica a posição do mesmo como um instrumento de extremo poder inerente ao
Estado, que encerra manifestação de inequívoca concentração de violência e que
somente deve ser utilizada de forma extremamente comedida e racional, vale dizer,
sem qualquer outra motivação, desprovida de paixão, de populismos, de marcas de
inoperância social, como lamentavelmente assistimos cotidianamente.
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Parafraseando a Mestra Alice Bianchini, ao citar Quintero Olivares,
nas palavras de Juan Antonio Martos Núñez, segundo os quais:
“O principio da exclusiva proteção de bens jurídicos configura a
função básica do direito penal, a qual é a de estabelecer,
mediante a proteção de bens jurídicos, o mínimo social-ético
necessário para a convivência, na opinião da maioria. Daí a
necessária busca de um equilíbrio justo e harmônico entre a
função de proteção da sociedade e a de proteção dos direitos
fundamentais da pessoa. Portanto, o direito penal cumpre função
de garantia, concretizada no asseguramento de certos valores
reputados de grande transcendência social. Tecnicamente se as
denomina bens jurídicos, os quais constituem o objeto típico de
proteção das normas penais”. (Bianchini, Alice. Pressupostos
Materiais Mínimos da tutela penal. Vol.7. São Paulo. RT 2002).
Ao se perquirir sobre a aplicabilidade do direito penal, é curial que se
faça avaliação adequada dos valores e bens que deverão ser enquadrados. A
criminalização de relações precisa amoldar-se a uma perspectiva absolutamente
obediente a uma dialética principiológica que tenha por norte a preservação de
estamentos conquistados a fórceps e mediante o comprometimento com a
identificação do homem enquanto sujeito de direitos e não como mero indivíduo ao
qual o estado pode direcionar seu furor em detrimento da paz a que se acha
obrigado a manter, às vezes contra seus próprios interesses.
A dosimetria da ofensa irrogada é outro aspecto que se tem por
imprescindível dentro da sistematização da aplicação da sanção em desbenefício
dos desviantes que efetivamente tenham de ser alcançados pelos rigores da
mesma.
É fato inafastável que o direito punitivo estatal acha-se (ou pelo
menos deve estar) limitado. Dentre as balizas fundamentais destaca-se a
preservação da dignidade humana, um dos corolários mais efusivos e decisivamente
necessários à pacificação das relações. Neste mesmo contexto, tem-se por basilar,
o entendimento de que quanto menos o Estado intervier sob o ponto de vista Prof. Marcelo Henrique dos Santos
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criminal, mais atuação estará obrigado a desenvolver com políticas socialmente
responsáveis e de inclusão, certamente este é o caminho mais difícil para aqueles
que estão acostumados à adoção de mecanismos que apresentem muito barulho e
pouca resposta prática, é muito mais simples se utilizar da violência como um
mecanismo eleitoreiro, do que enfrentá-la como um mal criado e alimentado por
inescrupulosos “sangue sugas” do dinheiro público e que seguramente pode ser
vencido, desde que se estanque seus nascedouros de desigualdade, desde que se
minimize e se enfrente os fatos políticos e sócio-econômicos com a devida
seriedade que merecem receber.
Sobre o princípio da ofensividade, colhemos a seguinte lição do
Mestre italiano Ferrajoli:
“Este cânone tem o valor de critério polivalente de minimização das
proibições penais. Ele equivale a um princípio de tolerância
tendencial da desviação, idôneo para reduzir a intervenção penal ao
mínimo necessário e, com isso, reforçar a sua legitimidade e
fiabilidade, pois, se o direito penal é um remédio extremo, devem
ficar privados de qualquer relevância jurídica os delitos de mera
desobediência, degradados à categoria de dano civil os prejuízos
reparáveis, e à de ilícito administrativo todas as violações de normas
administrativas, os fatos que lesionem bens não essenciais ou que
são, só em abstrato, presumidamente perigosos” (Ferrajoli,Luigi.
Derecho y razón: Teoria do garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés
Ibanés et al.Madri: Trotta, 1995a).
Dentro desta ótica que necessariamente passa pelo mais absoluto
descrédito vivenciado pelo atual modelo repressivo criminal da atualidade, o mais
brilhante Mestre garantista do centro-oeste brasileiro, em sua mais atual e reluzente
obra, assim se manifesta ad professum:
“É inadmissível aceitar a aplicação do Direito Penal despido da
básica noção de proporcionalidade. O operador do sistema penal,
para obter a sua sanidade e a do próprio sistema, não pode partir da
visão que tem a premissa da vingança como resultado a ser Prof. Marcelo Henrique dos Santos
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almejado. O ponto de partida na interpretação das normas penais
que estão em vigor é o da disseminação da liberdade e da tolerância
democrática, ambas permeadas por um sentimento de amor ao
próximo e de perdão aos erros humanos.
Não adianta responder à violência humana com mais violência. Há
na reprodução da violência pelo Estado a agravante moral da
consciência planejada da violência, fator que seria para qualquer ser
humano um ato de maior culpabilidade. Já para o Estado, esta
circunstância é explicada na discricionariedade dos atos de império.
É irônico ou não?
Completa com maestria o eminente magistrado goiano:
Pessoas que estão em situação motivadora da prática de crime (em
boa parte), são levadas por situações que fogem ao controle e não
têm condições de ponderar a existência da sanção penal e sua
respectiva cominação abstrata da pena. Vários são os óbices
sopesados na avaliação subjetiva no momento da prática de um
crime. O temor da pena é o menor deles, pois quem chega a decidir
cometer uma violência não se importa com as conseqüências
jurídicas, haja vista que o rompimento com as árduas barreiras dos
valores que adquiriu na sua formação pessoal é fator muito mais
relevante para os desígnios individuais.
As classes dominantes dependem da manutenção do sistema a tal
ponto que hoje em dia – e sempre foi assim com os detentores do
poder – dão amplo apoio às medidas cada vez mais duras e
desrespeitosas aos direitos constitucionais. Através de mecanismos
de envolvimento social na simbologia de que o crime é uma falha
exclusiva do indivíduo e não resultante do modelo social injusto,
criam-se verdades fabricadas que deságuam no clamor público
exigindo castigo, no apelo dos cidadãos a respostas estatais
emotivas. Estas exigências objetivam retirar do cardápio do Estado
Democrático de Direito qualquer preocupação de cunho ético que
não esteja aliada às maiorias momentâneas influenciáveis”.
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(Bizzotto, Alexandre. Valores e Princípios Constitucionais. Ed.2003.
Goiás, AB Editora, p.78-80).
Certamente uma das naturezas jurídicas que dão colorido máximo
ao princípio da intervenção mínima, é sua visão constitucional, na medida em que
seu nascedouro seguramente exsurge da certeza de que a atuação criminal
somente pode se dar nos estritos moldes preconizados pela Carta Cidadã, de ver-se
que qualquer manifestação obtusa a tal exegese, padecerá de moléstia sistêmica e
incurável.
É preciso que se tenha por certo, que a definição da Constituição
Federal deve expressar desejo incontroverso de materializar a proteção de todos e
de cada um, ainda que se tenha de adotar posição antagônica à opinião da maioria,
que facilmente pode (e tem sido) manipulada por interesses não muito consentâneos
à posição de defesa e de afirmação do Estado Regular e Democrático de Direito.
Neste sentido, transcrevemos a sempre luminosa visão do eminente jurista Aury
Lopes Jr.:
“Uma Constituição democrática deve orientar a democratização
substancial do processo penal, e isso demonstra a transição do
Direito passado ao Direito futuro. Num Estado Democrático de
Direito, não podemos tolerar um processo penal autoritário e típico
de Estado-policial, pois o processo deve adequar-se à Constituição e
não vice-versa”. (Lopes Júnior, Garantias Constitucionais e Processo
Penal: Lumen Juris. 2002, p.64).
A bem da verdade, não há um consenso a respeito da conceituação
de tal princípio, não se destacando, entretanto, divergência no que concerne à sua
função como limitadora do poder de punir do Estado que deve ser colocado numa
escala eminentemente COMPLEMENTAR.
Dentro de tal ótica restritiva, observa-se duas outras subtendências
que muito preocupam, quais sejam, a do direito penal do risco e a do direito penal
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do inimigo, objeto do presente estudo. Embora ambos estejam marcados pelo
rigorismo do Estado e pelo populismo penal.
O paradigma que determinou a atuação mais rigorista do estado
pode ser encontrado a partir do surgimento do Estado Moderno, vale dizer, quando
este passou a monopolizar o exercício da violência física, ou melhor, de seu
emprego para a identificação de um controle social de poder. Dentro deste contexto
histórico Baratta com peculiar argúcia, identifica as principais nuances do
predomínio estatal que se deu de forma absolutamente indevida e à margem do
respeito aos direitos individuais, senão vejamos o dizer do mestre italiano:
“A este fenômeno de monopolización Del empleo de la fuerza física
como sanción Del orden social y de las relaciones privadas,
corresponde- como es notório-el nascimento e desarrollo Del Estado
central moderno” ( Baratta, A. Viejas y nuevas estratégias em la
legitimacion Del derecho penal. Poder y Control, Barcelona, n.0,
p.79, 1986).
Assim, vê-se que é emblemática a posição do Estado ao longo de
seu desenvolvimento, ao aplicar através do direito repressivo a superposição de
seus interesses em detrimento daqueles inerentes à coletividade e aos indivíduos.
Há uma constante luta para que se chegue ao ideal da atuação
estatal, sobretudo, ao se colocar a questão paradoxal que se vivenciava na era
moderna e que transposta para os presentes dias, marcada que está pelo
distanciamento sem precedentes entre os ideais iluministas que estabeleceram os
contornos fundamentais para a respeitabilidade da condição humana e a realidade
social que hoje vivenciamos, que insiste em retornar aos medievos tempos de
dominação, de excepcionalidades absurdas, justificadas pela necessidade de
“controle” do agir humano, para se estabelecer a “paz”.
Refrise-se que a questão da criminalidade ou de seu enfrentamento,
apresenta componentes que não podem ser analisados com os olhos firmados no
horizonte da vetusta Escola Positivista, capitaneada por Cesare Lombroso, R.
Garófalo e Enrico Ferri, aliás, Ferri considerado o pai da moderna sociologia
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criminal, pelo menos estabeleceu alguns pontos que precisam ser colocados como
positivos, tais como a visão de que o delito não era produto exclusivo de nenhuma
patologia e que era sim de corrente de inúmeros fatores dentre os quais, o de índole
social. Entretanto, o mestre italiano pecava de forma crassa, ao estabelecer que o
combate e a prevenção aos desvios, deveriam ser realizados através de uma ação
realista e científica dos poderes públicos que necessariamente deveriam antecipar-
se aos mesmos, incidindo sobretudo, nos fatores sociais criminógenos, segundo
aponta Garcia- Pablos, A. e Gomes, Criminologia. São Paulo, p.157, RT, 1997.
São lamentavelmente obscuros os tempos atuais, em que se
convive francamente com um modelo neofeudal de regulação, em que o
agigantamento do poderio do estado, mais e mais amplia o já gigantesco fosso entre
os excluídos e os incluídos sociais. São facilmente perceptíveis os mesmos alvores
que impingiram sofrimento e supressão de garantias e de direitos durantes séculos a
fio, não se pode tolerar a dominação despótica e intransigente dos mecanismos
oficiais que tentam justificar sua atuação, em paradigmas faustos de racionalidade.
Ao tratarmos do populismo penal que marca a atuação do Estado,
afirma-se que na verdade, não se tem uma preocupação verdadeira quanto à
problematização da questão da macro criminalidade, preferindo-se tratá-la da
mesma forma como se faz em relação à criminalidade doméstica. Adota-se uma
política da exposição de mecanismos equívocos e insidiosos, mas que
aparentemente estão habilitados à apresentação de respostas que são almejadas
pela sociedade, em função da propaganda enganosa que foi produzida oficialmente,
com o claro intuito de gerar uma falsa impressão nos cidadãos “de bem”.
É preciso que a própria sociedade esteja atenta para as armadilhas
oficiais e que especialmente não se permita aderir ao cordão abjeto dos carrascos
inquisidores que suprimem garantias como quem respira, que castram direitos como
quem funcionalmente sangra porcos para a própria subsistência.
1.1 Direito penal do inimigo:Características.
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No mesmo, identifica-se uma realidade política que tem a nítida
preocupação de aumentar o poder do Estado contra o cidadão e não em favor dele,
ante à consideração do dever público de prover a paz social.
As agruras que se observam em tal poderio, decorrem de fatores de
diversas ordens, dentre eles, os de matizes sociológicas e mesmo históricas, na
medida em que a dominação tem sido exercida como manifestação expressa do
Estado ao longo dos séculos sempre em detrimento do homem, sempre em
desbenefício da legalidade e da igualdade.
Em se tratando de legalidade, é preciso que se agite sua relação
espúria com os regimes autoritários, vinculados a um capitalismo perverso, vil,
excluidor e maniqueísta, no sentido de que a única coisa que importa é a sua
sobrevivência.
Tal legalidade, vinculada a um sistema de capitalismo nefasto,
construído dentro de premissas de relações sociais subordinadas ao poder estatal,
não permite que o cidadão possa ser identificado como agente de concorrência
positiva para o estabelecimento de padrões aceitáveis e ideais para o próprio meio
em que coexiste com o próprio Estado.
Desde o Brasil colonial, o que se vivencia é a dialética da
dominação, aliada à exploração numa flagrante demonstração de verticalização do
poder. Nesta linha de contexto histórico lamentavelmente identificado por séculos
em nosso país, assim se posiciona o Doutor em filosofia do direito da USP, Alysson
Leandro Mascaro:
“O próprio reconhecimento de classe tarda e se fragiliza na vasta
rede de cumplicidade, apadrinhamento, favorecimento, e mais ainda,
se fragiliza na impossibilidade real de liberdade e consciência cujas
castrações advêm da escravidão, por exemplo”. ( Mascaro, Alysson.
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Critica da legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo, Quatier
latin,2003, pp. 95 e 96).
É sintomática e absolutamente terrível a constatação deste
autoritarismo, enquanto fator de afastamento da preservação da dignidade humana,
enquanto mecanismo de degeneração social, sobretudo por tratar-se de mecanismo
de fomento à utilização dos mais sórdidos instrumentos estatais, que nada mais
fazem a não ser a reprodução da hierarquização e do jugo subordinante do Estado,
com o claro escopo de suprimir direitos e de fortalecer a concentração da
“autoridade”.
A ilustre Profª. Marilena Chauí, bem expressa este dilema
ocasionado pela manifestação do que Alysson Leandro Mascaro denomina de
autoritarismo social e jurídico:
“É uma sociedade autoritária na qual as diferenças e assimetrias
sociais e pessoais são imediatamente transformadas em
desigualdades, e estas, em relações de hierarquia, mando e
obediência (situação que vai da família ao Estado, atravessa as
instituições públicas e privadas, permeia a cultura e as relações
interpessoais). Os indivíduos se distribuem imediatamente em
superiores e inferiores, ainda que alguém superior numa relação
possa tornar-se inferior em outra, dependendo dos códigos de
hierarquização que regem as relações sociais e pessoais. Todas as
relações tomam a forma de dependência, da tutela, da concessão,
da autoridade e do favor, fazendo da violência simbólica a regra da
vida social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o
paternalismo e o clientelismo, considerados naturais e, por vezes,
exaltados como qualidades positivas do caráter nacional”. (Chauí,
Marilena. Conformismo e Resistência. São Paulo, Brasiliense, 1993,
p. 54).
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Verifica-se também, uma tendência à internacionalização e à
globalização do direito penal, utilizando-se especialmente da mídia, como
mecanismo incentivador do populismo penal, o que inclusive tem sido largamente
visto em nosso país através de programas que achincalham a imagem do ser
humano a níveis absurdamente observáveis, COM JÚBILO POR PLATÉIAS ÁVIDAS
POR VINGANÇA.
Inegavelmente um dos pilares fundamentais em que se apóia a
própria existência lídima da democracia, é o princípio da dignidade da pessoa
humana, mas que valores acham-se inseridos no contexto de tão fundamental
axioma? Responde-nos com a peculiar sapiência o constitucionalista Alexandre de
Moraes:
“A dignidade humana é um valor espiritual e moral que se manifesta
singularmente na autodeterminação consciente e responsável da
própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte das
demais pessoas”. (Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 3.
ed., p.60,São Paulo. Atlas, 1998).
Depreende-se com meridiana clareza, que tal conceito é de uma
amplitude sem precedentes, de ver-se que não se pode analisá-lo, sem que se faça
uma extensão de seus efeitos, de sua vinculação com inúmeros outros ao mesmo
correlatos, como também de se fazer a necessária gradação de importância entre
todos eles. Sua função é basicamente, a de conceder norte inafastável, para que
todo o sistema de respeitabilidade do ser humano possa desenvolver-se de forma
adequada, aos próprios fins a que o Estado está obrigado a observar. Neste correr
de idéias, mais uma vez nos inspiramos nas luzes áureas do Mestre Bizzotto, senão
vejamos:
“Toda sistemática constitucional com seus inúmeros matizes de
funcionamento têm o compromisso jurídico e ético com a dignidade
humana, porquanto a falta dela em qualquer circunstância faz com
que a situação violadora do valor constitucional ceda, amoldando-se
ao valor líder. Assim, a dignidade da pessoa humana significa
conceder a esta todo o respeito em suas complexidades materiais e Prof. Marcelo Henrique dos Santos
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espirituais, valorizando a felicidade humana que deve ser o
parâmetro maior de todo sistema normativo.
Nesta linha de raciocínio, o intérprete que deseje a preservação da
realidade constitucional, tem, na dignidade humana, uma saudável
espécie de camisa-de-força cunhada pelo sentimento de amor ao
próximo que é usada para facilitar a descoberta de caminhos que
levem à realização humana: seja penetrando no sentimento
individual, seja incursionando nas vontades sociais, em um
imensurável equilíbrio”. (Bizzotto, Alexandre. Valores e Princípios
Constitucionais. Ed.2003. Goiás, AB Editora, p.138-139).
A “coisificação” do ser humano aviltado pela ação ou conformação
do próprio Estado degrada e torna letra rasa os princípios informadores da nova
dialética constitucionalizadora e garantista e que deveria ser maximamente
assegurada pelo mesmo.
O direito penal do inimigo é aquele através do qual o Estado vê o
cidadão como um perigo em potencial e não como sujeito de direitos. O mestre
Bizzotto, numa abordagem peculiar e sempre apropriada, em sua magistral
referência acima mencionada, agita a questão relacionada à afronta do direito penal
do inimigo, ao princípio constitucional do pluralismo (que prefere encampar no
denominado valor constitucional do respeito ao ser diferente), pois ao ver o outro
como inimigo desconsidera a essência humana e não enxerga as naturais
diferenças humanas em sociedade que são por óbvia natureza, extremamente
complexas.
Sem qualquer dúvida, total razão assiste ao eminente doutrinador,
na medida em que não se pode desprezar, que este tipo de ótica distorcida é fruto
de um Estado que a cada dia mais aparta-se da vocação social para a qual deveria
estar voltado. O próprio Estado em sua função máxima de se voltar às disparidades
e às vicissitudes mais graves que assolam a sociedade, não pode se permitir
qualquer tipo de discriminação, especialmente naquele campo relacionado à
aplicação de regulações de extremada perplexidade, como aquelas pertinentes ao
direito criminal.Prof. Marcelo Henrique dos Santos
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Tal desconsideração ao se perpetrar por meio de ações
determinadas ou permitidas pelas atividades estatais, são verdadeiros absurdos que
precisam ser corrigidos com o máximo de ativismo sócio-jurídico, qualquer tipo de
distorção à proteção máxima dos cidadãos, deve ser expurgada, mais grave e
detestável é o fato de tais desrespeitos serem laborados por quem deveria agir para
manter a preservação da compatibilidade entre o dever de punir e a preservação da
liberdade.
Parece retórica vil e infundada a insistência de se afirmar que
qualquer tipo de intervenção dura e repressiva nada resolve em se tratando da
agrurosa situação que se vivencia em nosso país, mas o que se percebe a cada dia,
é que há de parte do Estado, um certo prazer mórbido no exercício e na manutenção
de um suposto poderio sobre a criminalidade. Na realidade, o que se observa com
meridiana clareza, é o fato de que em face de sua inoperância para estabelecer,
ditar e concorrer para que políticas públicas de qualidade social e de respeito à
valorização humana, o Estado prefere “brincar” de bandido e mocinho em meio a
uma coletividade atônita, que até prefere render-se aos encantos de “benfeitores”
que comandam as facções criminosas, em suas localidades habitacionais, mas que
se lhes apresentam de forma igual, ou pelo menos de maneira diferente daquela
prometida pelo governante que deles somente se recorda proximamente ao pleito
que lhe interessa.
Outras tônicas marcantes nesta modelar forma de intervenção, são a
ausência de garantias, o endurecimento das penas e toda sorte de instrumentos
derivados do law and order moviment, que segundo Roberto Lyra e João Marcello
Araújo Júnior em sua obra Criminologia, possui as seguintes nuances:
“A pena se justifica como castigo e retribuição; os chamados crimes
atrozes sejam punidos com penas severas e duradouras (morte e
privação da liberdade longa); as penas privativas de liberdade
impostas por crimes violentos sejam cumpridas em estabelecimentos
penais de segurança máxima, sendo o condenado submetido a um
excepcional regime de severidade, diverso daquele destinado aos Prof. Marcelo Henrique dos Santos
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demais condenados; a prisão provisória tenha o seu espectro
ampliado, de maneira a representar uma resposta imediata ao crime;
haja diminuição dos poderes de individualização do juiz e menor
controle judicial da execução da pena, que deverá ficar a cargo,
quase exclusivamente, das autoridades penitenciárias”.
(Criminologia. 4. ed. atual .Rio de Janeiro: Forense 1995)
É preciso que se faça algumas considerações quanto à absurdidade
do movimento conhecido como law and order, apregoado pelos reacionários norte-
americanos e que ganhou notoriedade na década de 90 com o mayor de New York,
que simplesmente, “patrolou” os direitos individuais e até mesmo coletivos de seus
súditos, sob a alegação da necessidade de restaurar a “paz e o equilíbrio”, abalados
pelo terrorismo urbano.
Não é difícil estabelecer-se dicotomia entre tal movimento e aquele
que é denominado de garantismo, enquanto aquele é gravado pela Política de
Tolerância Zero, o último acha-se estruturado na democracia positiva, na
preservação das liberdades públicas e especialmente no respeito aos basilares
princípios que compõem a moderna visão do Estado, enquanto o verdadeiro gestor
da sociedade, mas não como um ser absolutista e draconiano que conduz o destino
de cegos como melhor lhe aprouver.
As lições garantistas não podem ser vistas como utopia de uns
poucos juristas ou sociólogos que apresentam teses de consistência duvidosa, com
escopo de alcançarem notoriedade, com o fim de construírem uma nova tese
acadêmica para a venda de livros ou para atingimento de titulação nas academias.
Elas precisam ser antes de mais nada, compreendidas como pura manifestação da
democracia, como lídima necessidade para a coexistência pacifica e harmoniosa
entre os cidadãos e o próprio estado.
Segundo A. Garcia-Pablos, (in Criminologia, São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1997), há a necessidade de se analisar a atividade do Estado dentro de
uma perspectiva conflitual concernente a três teorias que encasam orientações
distintas quanto ao processo de aplicabilidade do processo penal, quais sejam, a da
aprendizagem social (social learning), a do controle social e do etiquetamento Prof. Marcelo Henrique dos Santos
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(labeling approach). De todas as terias ora evidenciadas, destaca-se a última
delas, que ganhou corpo efetivo a partir do início da década de 70. Tal tese também
denominada de Teoria da Reação Social, derivava do modelo teórico oferecido pelo
interacionismo simbólico fulcrado nas obras de Charles Cooley (human nature and
social order) e de George Mead (Mind, self and society).
Inegavelmente, esta última é a que mais merece ser observada pelo
Estado, na medida em que desloca o problema da criminologia do plano de ação
dos desviantes, ao pertinente ao da reação daqueles que detém o poder, assim, o
processo de estigmatização do delinqüente é colocado no centro das investigações
desta corrente, o que sem qualquer dubiedade, apresenta-se como ponto mais que
vantajoso sob a ótica do que deve ser a moderna sistematização penal.
Em linhas bastante objetivas e práticas, quanto à aplicabilidade da
política criminal, depreende-se como fundamentais para implementação do labeling
o encontro das seguintes proposições: descriminalização das condutas menos
graves, não intervenção extrema e radical, vale dizer, ampliando-se as raias da
tolerância e flexibilidade funcional da aplicação da lei penal, informalização e
desinstitucionalização dos mecanismos de controle penal e especialmente dentro de
uma linha estritamente garantista, a proteção dos desviantes contra os gravíssimos
males dos processos judiciais indeterminados, verdadeiros ranços e heranças
absolutistas que não permitem a construção de uma sistemática hábil a manter
inalteráveis a dignificação do cidadão, apesar de sua peculiar circunstancialidade de
investigado processual.
O conceito de JUSTO PROCESSO passa obviamente pela
aplicabilidade real dos fatores de proteção e de regulação sociais sempre tendo por
paradigma uma política de preservação inafastável dos direitos mais intangíveis dos
desviantes, que antes de qualquer outra consideração, possuem o manto protetivo
informado por vários escudos inexpugnáveis, destacando-se, os princípios da
dignidade humana e o da não culpabilidade, este que pode emprestar uma falsa
idéia de aplicação meramente processual, mas que amalgamado ao primeiro erigem
o cidadão a uma condição de plasmabilidade impar, inclusive e especialmente
oponível em face do próprio Estado.
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Curso de Direito Processual Penal 18
Sem qualquer dúvida, a visão trazida pelo labeling significou uma
inovadora concepção aos estudos sócio-jurídicos, que sobretudo podem ser cada
vez mais aprimorados com a inserção dos alvores garantistas. Sem que se inclua as
modernas táticas de investigações e de processo, aduzindo-se aspectos de
sociologia na administração da justiça penal, é praticamente impossível reverter-se o
quadro maligno em que nos encontramos. A política criminal que efetivamente
precisa interessar ao Estado e à sociedade tem que ser aquela que estabeleça
mecanismos de recomposição das relações, sem que isto gere desprestigio de
outras, sendo fundamental que se possa recepcionar do Estado um tratamento
compatível com o seu dever máximo, qual seja, o de somente intervir quando
estritamente necessário, notadamente em se tratando de fazê-lo através do direito
criminal, sede que deve sempre ter por premissa maior, o tipo de atuação que se
identifica, a proporcionalidade da mesma ao desvio e a privação da liberdade como
ultima ratio. Seja em caráter provisório ou mesmo após a ultimação do processo
regularmente verificado.
2. Nascedouro e Críticas à teoria do Direito P. do Inimigo.
Jacobs, um dos principais incentivadores do movimento do direito
penal do inimigo, afirmou em 1999, numa conferência proferida em Berlim, que as
pessoas que se portavam socialmente como “inimigos”, não poderiam ser tratados
como cidadãos, vale dizer, seu próprio comportamento era o desencadeador da
reação estatal, que não poderia ser outra. Tal referência elaborada pelo Prof.
Cornelius Prittiwitz no 9° Seminário Internacional do IBCCRIM, realizado em São
Paulo, em outubro de 2003, foi feita com extremo tom de justa crítica, até porque, o
mesmo “autor” da tese restritiva, em 1985, posicionara-se de forma diametralmente
oposta.
A modernidade coloca o mundo diante de uma série de conflitos, uns
mais emergenciais que outros. O sopesamento de tais desinteligências, não pode
ser feito de maneira simplista e desprovida de uma preocupação social mais
elevada. As questões de cunho social não têm recebido o devido trato, nem da
sociedade e muito menos pelo Estado, sendo certo que em muitas das vezes a
primeira tem sido engodada pelo último, mas apenas culpá-lo, talvez não seja de
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todo razoável numa análise razoavelmente crítica e ponderada. Cabe ao Estado
ocupar-se adequadamente de todas as suas funções sem maquiá-las, e
especialmente sem transferir a searas que efetivamente não são as sedes
adequadas para tratamento dos anseios sociais. É o que se tem observado através
da constante intervenção do Estado, via endurecimento do sistema penal e
penitenciário.
É preciso que se tenha em mente, que o problema da
MISERABILIDADE/POBREZA é bem mais complexo do que se imagina, embora
possa apresentar encaminhamentos para sua solução, que obrigatoriamente não
passam pelo direito penal como instrumento válido de resolução de males que pelo
mesmo não podem ser regulados.
O ex-Ministro da Fazenda e hoje membro da ONU, Rubens Ricupero
em palestra proferida durante o Sétimo Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor
realizado em São Paulo entre 16 e 17 de maio de 2004, apresentou severas críticas
à questão da concentração de renda como um dos fatores mais relevantes para o
desencadeamento dos mais graves problemas que hoje se verifica, nele incluindo-se
o da violência.
Dentre os principais pontos de sua abordagem, o mencionado
diplomata alegou que o relatório econômico-social para a América Latina,
confeccionado pela CEPAL, pouco antes do natal de 2003, mostra que apesar de
todos os esforços posteriores à crise econômica de 1982, não foi possível a
superação das disparidades entre as cifras de pobreza anteriores à crise da divida
externa e posteriormente alcançados. O crescimento econômico e a DÉCADA
PERDIDA (50) e a MEIA DÉCADA PERDIDA (de 97 a 2002) foram decisivos para
que isso se desse.
Um dos outros gravíssimos problemas agitados, é a questão da taxa
de desemprego, a verificada na América Latina é a maior já vista desde que se
iniciou a tomada de tal medida, há aproximadamente 30 (trinta) anos, sua verificação
acha-se gravitando entre 11 e 13%.
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Curso de Direito Processual Penal 20
Lamentavelmente, a despeito dos populistas discursos que se
observa, especialmente de parte do Governo Central, os índices verificados em
nosso país, está alarmantemente dentro de tais catastróficos níveis, notadamente,
em função dos bolsões de absoluta miséria que facilmente são encontrados.
A valorização do homem pelo Estado, independentemente de sua
posição, é necessariamente uma tarefa inalienável.
Seguramente um dos conflitos mais efervescentes, é o pertinente ao
equilíbrio das relações jurídicas, a despeito de existirem outras ocorrências que
também atingem bens e interesses relevantes. A função primordial do Estado é
efetivamente a de saber identificá-los, classificá-los, para que possa atuar de forma
preventiva e repressiva se for o caso, mas sempre tendo por baliza o cidadão como
sujeito digno dos mais irretocáveis direitos. Conforme acima exaustivamente
afirmado, a preservação do princípio da dignidade humana, não pode ser tratada
como algo apenas exposto na Carta Federal para ser decantado em verso e prosa,
mas sim como letra fundante de um sistema que necessita ser corrigido, e
redimensionado, em função das décadas de abandono ou arbítrio em relação às
garantias individuais e coletivas.
Neste contexto, importa trazer à reflexão que a utilização dos
mecanismos criminais, como os únicos hábeis à resolutividade das graves ou
mesmo mínimas questões intersubjetivas, não se apresenta somente como um
grave equívoco, mas sobretudo como um aviltante desprestígio à dignidade humana.
Dentro de tais matizes, destaca-se o sempre luminoso e coerente
posicionamento do Mestre Bizzotto, assim expressado:
“Oportuno dizer que a utilização do Direito Penal estilo chibata que
vigora atualmente no sistema penal é um grande erro. Sem respaldo
de condições sociais adequadas, ele retrata a figura de um cego
atirando a esmo no meio da multidão. Não há substrato para sua
atuação. Configura-se a penalização pela penalização”. ( Bizzotto,
Alexandre. Valores e Princípios Constitucionais. Ed.2003. Goiás, AB
Editora, p.77).
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Curso de Direito Processual Penal 21
São mais que lapidares e apropriadas as considerações do ilustre
jurista goiano que as complementa, afirmando com a peculiar objetividade e senso
de justiça, que o lugar comum ao qual o Estado tem se permitido, qual seja, o da
resposta à violência humana com mais violência, de nada adianta.(Ob. cit.p.78).
Torna-se também necessária trazer à colação a visão de Kelsen1, no
que concerne à aplicação do Direito, com a adequada interpretação da norma, como
um fenômeno que deve estar acompanhado de um caso concreto, que respeite
sobretudo a hierarquização da autonomização do sistema normativo jurídico.
A ótica kelseniana é de subida importância para que se possam
estabelecer alguns paradigmas concernentes ao Direito Penal enquanto ciência
normativa.
Em sua obra lapidar, o filósofo do direito indica uma reflexão sobre
este, como um sistema absolutamente diferenciado no qual se observa uma
logicidade que necessariamente precisa amoldar-se ao objeto formal, efetivamente
encontrado no ordenamento jurídico.
Tal digressão de cunho filosófico, tem por escopo estabelecer que a
aplicação do Direito Criminal aos desviantes, somente pode-se realizar dentro de
uma perspectiva dialética e ontológica bastante estabilizada sob o prisma
sociológico e por conseguinte justificador de tal aplicabilidade. Não basta que a
imputação exista de forma eficaz para a senda jurídica, é preciso que o exame
prévio do rompimento das relações esteja satisfeito.
Busca-se mais uma vez socorro nos ensinamentos do ilustre
preceptor Bizzotto, para quem o rigorismo da pena ou a avaliação indiscriminada e
desmesurada das condutas, em nada contribuem para o decréscimo da violência.
1Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado,6ªed.São Paulo:Martins Fontes, São Paulo,1998.
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Concorda-se em gênero e número com tais inflexões,
acrescentando-se que o clamor pela aplicação de castigos cada vez mais severos e
degradantes aos desviantes, apenas projeta a extrema ausência de coragem, tanto
do Poder Público, quanto da sociedade civil para proverem o enfrentamento
socialmente correto das questões mais agrurosas e aviltantes que batem às nossas
portas e para as quais cerramos os olhos e os corações.
Critica-se tal teoria (mais que uma teoria, uma nefasta realidade), na
medida em que a mesma dá azo a uma série de desmandos em nome de uma
“suposta defesa social”, que antes de sê-la, a prejudica e a impede de ser
implementada de forma justa e coerente aos anseios daqueles que não estão com
suas visões empanadas, ou que não foram contaminados pelos cânticos sedutores
da “demonização” do Direito Penal, utilizável como a última possibilidade de se
estabelecer uma sociedade livre e soberana.
Considerações finais.
A principal face do Direito Penal, é aquela em que o mesmo é
utilizado como meio protetivo do cidadão e não como instrumento repressivo, ou de
dominação.
A supressão da vingança privada não pode ser substituída pela
oficial. A proteção da comunidade deve ser conjugada à daqueles que se desviaram
dos padrões de normalidade genérica e razoavelmente estabelecidos pelo Estado.
A relação entre conduta delitiva, aplicação da jurisdição e eventual
sanção penal, imprescinde de uma visão conjugada ao Direito Penal Mínimo, que
possa PROPICIAR DE FATO A APLICAÇÃO DE UM PROCESSO PENAL
GARANTISTA.
O movimento do garantismo não deve ser colocado, conforme já
expressado em linhas volvidas neste despretensioso ensaio, como uma tentativa
acadêmica e despreparada, ou mesmo como mais uma construção filosófico-jurídica
permeada por meros objetivos tecnicista, sendo imprescindível vislumbrá-lo como
algo essencial à preservação não somente da sociedade, mas do próprio estado.
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Inegavelmente, é preciso que se assevere que o pragmatismo
processual penal está longe de se adequar à realidade estabelecida formalmente em
nossa Carta Magna. É preciso que se supere definitivamente a célebre distinção
entre o ser e o dever ser do direito, ainda mais, ao se levar em conta o fato de que a
preservação da dignidade humana não pode ser tratada como algo marcado por
abstração que pode mistificar um dos fundamentos inafastáveis da existência do
próprio Estado, da própria sociedade e do homem como elemento indispensável à
gravitação de todos os sistemas, não somente o jurídico, mas todos os demais que
se relacionam às realidades que encontram no ser humano a razão maior de tudo.
É preciso que insistentemente estejamos nos perguntando sobre
qual é o verdadeiro papel do processo penal, para que o mesmo existe e
especialmente para que ele se presta, são estas as questões que a todo instante
devem estar motivando a aplicação processual.
A rigor, não se pode perder de vista que a leitura a ser feita do
processo penal, somente pode se dar à luz dos axiomas garantistas insculpidos por
Ferralolli e formalmente adotados por nossa Constituição Federal.
O fato a ser apreciado com extrema acuidade, diz respeito à
implementação dos aludidos direitos, vale dizer, de lhes conferir efetiva eficácia, de
não apenas lhes tratar como um avanço poucas vezes visto, de não apenas
considerá-los como algo a que apenas um seleto grupo social faz jus.
Uma Carta Democrática como a nossa, deve apresentar como lógico
correspondente um processo penal de mesma índole, até porque, este emerge
daquela. Tal obviedade parece infelizmente, estar contaminada e impactada pelos
alvores fascistas da década de 40.
Quando se combate a ideologia retrógrada que se projeta na
aplicação do direito repressivo e da persecução penal em seu todo, faz-se uma
crítica não meramente formal, mas especialmente ao contexto absolutamente
equívoco que por décadas a fio vem sendo agravado.
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Assim, as políticas de “lei e ordem” e “tolerância zero” são
manifestações lamentáveis do reavivamento de métodos arcaicos, ultrapassados e
inadequados para se solucionar novos problemas cujo enfrentamento passa por
várias respostas, menos pelas indicações acima mencionadas, por serem nítidas
expressões de um contexto histórico que nada contribuiu para o aprimoramento do
homem.
Vivemos numa sociedade de elevado risco criminal e responder a tal
constatação com o endurecimento dos movimentos repressivos nunca será a
solução ideal. O atalho das duras medidas é uma das mais falaciosas e inócuas
providências.
Lamentavelmente experimentamos dias em que a questão da
penalidade transformou-se num processo de emergencialidade em que se “impõe”
uma resposta qualquer, por pior que seja sua consistência ou atecnia, tudo com o
fito de se “resolver” o problema da criminalidade, sem qualquer conferência
sistêmica de seus reflexos, sem qualquer racionalidade quanto à sua aplicabilidade
material.
Bastaria que os operadores do direito penal pátrio se ativessem
com meridiana sensibilidade aos ditames dos três primeiros artigos de nossa
Constituição, não se exigindo um aprofundado conhecimento constitucional, mas
basicamente o cumprimento de seus magnos estamentos, iniciando-se pela
observação insofismável da dignificação do homem como máxima expressão da
sobrevivência racional da própria sociedade.
A conciliação de todos os valores do indivíduo e da sociedade e de
todos os fatores instrumentais e finalísticos, é problema de composição de forças
que a mecânica não pode resolver, mas o Direito sim, mercê da organização social e
da disciplina jurídica.
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Nesta consideração é preciso que se exalte a posição dos
operadores jurídicos, enquanto detentores de uma responsabilidade formal e
material sem precedentes para a efetividade e resguardo dos valores mais
sagrados, erigidos com a nítida função de dar dignificação à vida, de conceder
aquela igualdade tangível e ontologicamente realizável.
Não somos meros expectadores de um processo que se encontra
em irreversível rota de declínio, não somos meros despachantes processuais que
em suas tarefas seculares limitam-se a concordar com as “expectativas” oligárquicas
daqueles que não cumprem seus deveres e por conseguinte nos empurram
concepções desarraigadas da realidade fenomênica e social que deveriam enfrentar
com o devido senso moral e de responsabilidade social.
Somos por fim agentes de transformação, mais que isso, somos
responsáveis pelo encaminhamento progressivo e utilitário do direito de punir, assim,
não podemos ser coniventes com o retorno predeterminado à origem nefasta do
inquisitorialismo e das penas dele decorrentes.
A regulamentação essencial da vida é o que precisa ser focado
como fundamento maior a ser assegurado pelo direito de punir. A função mediata do
Estado é da prover a paz e o equilíbrio sociais, não o desamor, não a instabilidade,
não a discórdia sem precedentes. Fora dessa regulamentação da vida, não há
segurança e muito menos a tão almejada justiça.
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