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A professora arquivista
HELENICE CIAMPI
ALEXANDRE PIANELLI GODOY**
1. Introdução:
Este artigo é um recorte de uma pesquisa mais ampla intitulada Em nome da ordem: as
escolas municipais de primeiro grau da cidade de São Paulo no período da ditadura civil-
militar (1964-1985). O estudo investiga o processo de institucionalização e consolidação do
sistema municipal de ensino da cidade de São Paulo por meio da história de oito escolas de
primeiro grau (atual ensino fundamental I e II) as quais foram renomeadas no período com
nomes de patronos militares brasileiros 1. O objetivo inicial era o de interpretar o significado
histórico dessas novas nomeações na construção de uma memória histórica sobre o ensino
público paulistano, o que não foi abandonado, mas outras articulações se adensaram no
processo de pesquisa documental.
O volume da documentação encontrada nos levou a configurar o projeto em três eixos:
a relação entre arquitetura escolar e currículos; a relação entre disciplinas escolares e as
comemorações cívicas; e as memórias dos sujeitos que vivenciaram permanências e mudanças
administrativas, curriculares e disciplinares no período, o que será explorado neste artigo com
a análise da entrevista da “professora arquivista”.
Em relação ao primeiro eixo de análise, constatamos que havia um “modelo escolar
paulistano” (GODOY, 2013) com características administrativas baseado na “gestão para o
Professora Titular da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) –
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). ** Professor Adjunto IV da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – EFLCH – Departamento de
História – Campus Guarulhos. Doutor em História Social pela PUC/SP. 1 As escolas foram escolhidas por amostragem de modo que refletisse a diversidade socioeconômica do
município, entretanto, outras escolas também passaram pelo mesmo processo e poderiam ser incluídas em nossa
pesquisa. Por questões de logística e de tempo de pesquisa foram consultados os arquivos das seguintes escolas:
1. Escola Mista do Imirim = criação 30/08/1956. E.M. Comandante Garcia D’Avila = renomeação 01/04/1969;
2. Escolas Agrupadas de Vila Brasilina = criação: 16/11/1956. E.M. Marechal Eurico Gaspar Dutra =
renomeação 02/07/1974; 3. Escolas Reunidas de Vila Nova Cachoeirinha = criação 24/01/1963. E.M. Tenente
Aviador Frederico Gustavo dos Santos = renomeação 08/04/1969; 4. Escolas Agrupadas Cidade Mãe do Céu =
criação: 11/11/1963. E.M. General Othelo Franco = renomeação 07/04/1969; 5. Escola Alto do Mandaqui =
criação: 19/05/1970. E.M. Comandante Gastão Moutinho = renomeação 10/06/1970; 6. E.M. General Euclydes
de Oliveira Figueiredo = criação: 11/11/1970; 7. Escola Municipal Arpoador = criação: 19/01/1971. E.M.
General Alcides Gonçalves Etchegoyen = renomeação 16/02/1971; 8. Escola Municipal da Vila Dalva =
criação: 11/02/1971. E.M. General Álvaro da Silva Braga= renomeação 16/02/1971.
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ensinar”, isto é, menos calcado em ideias pedagógicas pré-fixadas e mais preocupado com o
funcionamento racional, burocrático e administrativo das escolas. Conferia-se maior atenção à
expansão e à construção de prédios escolares e o seu controle administrativo, da produção de
dados quantitativos sobre os “bons” resultados alcançados, bem como da profusão de
documentação arquivada do/sobre o ensino municipal de modo a perpetuar uma memória da
instituição como eficiente, organizada e funcional. No entanto, a análise da documentação
realizada no processo de pesquisa nos permite afirmar que a implantação do ensino de
primeiro grau do município foi lenta, gradual e desigual, bastante diferente dessa memória
institucional construída e divulgada pela revista ESCOLA MUNICIPAL (1968-1985) que a
apresentava como progressiva, acelerada e homogênea (GODOY, 2013).
Em relação ao segundo eixo, as disciplinas escolares da área de “Estudos Sociais”
(História, Geografia e Educação Moral e Cívica) e as comemorações cívicas atendiam mais às
exigências da gestão administrativa do sistema escolar do que a uma preocupação
pedagógico-ideológica, muito embora essa aparente despolitização do ensino revelasse sua
aderência a uma “militarização da burocracia” (MATHIAS, 2004), arrefecendo
questionamentos políticos. Para Suzeley Kalil Mathias “o processo de militarização do
sistema de ensino do país torna-se claro em dois projetos específicos, o Mobral e a introdução
da disciplina de Educação Moral e Cívica nas escolas” (2004: 174). Porém, adverte a autora:
“(...) do ponto de vista do conjunto das políticas implementadas [isto é, no período
de 1963-1990], não houve grande diferença significativa entre governos militar e
civil. Predominou, em todos os casos, uma visão quantitativa do avanço, isto é, a
educação é entendida como cumprindo sua missão na medida que haja taxas de
crescimento de escolaridade, e apenas no 1º grau; prevaleceu a inércia no caso do
2º grau, com continuidade de atendimento maior pelo setor privado, e sua não-
democratização; enfatizou-se a relação entre ensino-mercado, produzindo-se a
universidade-funcional no ensino superior. Assim, no que se refere ao ensino formal
e seriado, não se pode visualizar com segurança a militarização do ensino. Esta,
como se procurou mostrar, restringiu-se a projetos específicos e datados no tempo”
(2004: 178-179).
Neste sentido, não é o ensino que se militariza com maior força ou visibilidade nas
“áreas de estudos” e “disciplina escolares”, mas a gestão burocrática do sistema de ensino
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municipal, pois a autora entende esse processo não apenas pela presença de militares em
cargos civis importantes e estratégicos na área de educação ou das políticas governamentais
com doutrinas defendidas pelas Forças Armadas, mas, sobretudo, e é disso que se trata
quando nos referimos aqui a uma “militarização da burocracia”, a “uma transferência do
ethos militar para o universo da política [que] também representa um processo de
militarização” (2004, p. 208, os itálicos são da autora). O modelo escolar paulistano fez parte
desse processo de militarização da burocracia no nível municipal de ensino em São Paulo
afinado com as diretrizes federais na área educacional:
“(...) mesmo as características que parecem à primeira vista como disfuncionais –
como o processualismo, a duplicação de organismos responsáveis por dado setor, a
excessiva centralização das decisões etc. – foram, ao que tudo indica, planejadas
para agir em conjunto, de tal forma que, no final do processo, é isso que mantém
não só a estabilidade da burocracia, mas principalmente do sistema político como
um todo. O preço para essa estabilidade, entretanto, é a necessidade de manutenção
de um regime político autoritário, ainda que em graus diferentes do conhecido sob o
governo dos generais” (2004: 205).
Em relação ao terceiro eixo, as narrativas orais de sujeitos que vivenciaram
permanências e mudanças administrativas, curriculares e disciplinares no ensino municipal
daquele período revelam um duplo movimento de aderência a essa memória institucional e, ao
mesmo tempo, de seu desprendimento ao mostrar os ocos e os silêncios desse “modelo
escolar paulistano”, ou ainda, dessa aparência de eficácia administrativa despolitizada. A
história oral é, portanto, fundamental para o tratamento mais adequado deste tipo de fontes.
Segundo Verena Alberti “a história oral é uma metodologia de pesquisa e de
constituição de fontes para o estudo da historia contemporânea” (2006: 155). Esta
especificidade da história oral nos leva a considerar as condições de sua produção, pois é uma
fonte intencionalmente produzida e colhida a posteriori. Há uma preocupação com a relação
entre entrevistador e entrevistado para que a “conversa” flua entre eles. Alberti enfatiza que a
entrevista documenta resíduos de ação, bem como relatos de ação. Baseada no historiador
Peter Huttenberger ao discutir sobre as teorias das fontes orais, a autora argumenta que:
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“Em primeiro lugar, ela é resíduo de uma ação interativa: a comunicação
entre entrevistado e entrevistador. Tanto um como o outro têm determinadas
ideias sobre seu interlocutor e tentam desencadear determinadas ações,
seja fazer que o outro fale sobre sua experiência (o caso do entrevistador), seja
fazer que o outro entenda o relato de tal forma que modifique suas próprias
convicções na qualidade de pesquisador (o caso do entrevistado). (...) Em segundo
lugar, a entrevista de História oral é resíduo de uma ação específica, qual seja, a de
interpretar o passado. Tomar a entrevista como resíduo de ação, e não apenas
como relato de ações passadas, é chamar a atenção para a possibilidade dela
documentar as ações de constituição de memórias – as ações que tanto o
entrevistado quanto o entrevistador pretendem desencadear ao construir o passado
de uma forma e não de outra” (ALBERTI, 2006: 169).
Elaborada a partir de variados estímulos, a memória é sempre uma construção feita no
presente a partir de vivências ocorridas no passado. A seleção é o que dá sentido à própria
memória, como conjunto dinâmico e significativo ao vivido num processo em que articulam
elementos individuais e sociais. As memórias se amalgamam de maneira a constituir
conjuntos que se organizam mediante demandas internas e externas ao indivíduo e contribuem
para a compreensão dele próprio, assim como do meio em que vive. A memória também é
objeto de atenção do Estado, que para conservar os traços de acontecimentos do passado que
o legitimem, “produz diversos tipos de documento/monumento, e faz escrever a [sua]
história”. Para LE GOFF (2003) as manipulações da informação e, consequentemente, a
memória nos tempos atuais é um fenômeno que se torna cada vez mais complexo.
Paul Ricoeur, no entanto, parece aprofundar o papel do que significa “ação” no
movimento da memorização. O filósofo distingue dois movimentos mnemônicos: a lembrança
e a recordação. De maneira mais formal, a lembrança se caracterizaria como afecção e a
recordação como racionalização do memorizado, mas ambas participando de um jogo
incessante que caracteriza o movimento da memória entre presente e passado, de difícil, mas
passível de distinção. Baseado em Aristóteles, constata que a simples lembrança sobrevém de
uma afecção (afeto) e, portanto, de reconhecimento do sujeito que testemunhou o seu passado.
Já recordação consiste numa busca ativa (racionalização), de reconstrução ou elaboração
sobre o passado testemunhado pelo sujeito. No plano fenomenológico, dizemos que
lembramos daquilo que fizemos, experimentamos ou aprendemos em determinada
circunstância particular ou situacional. Por sua vez, o papel desempenhado pela estimativa
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dos lapsos de tempo, ou seja, da ausência da própria situação, enfatiza o lado racional da
recordação: “a busca constitui uma espécie de raciocínio” (RICOEUR, 2007: 38), afinal:
“(...) não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu,
ocorreu e se passou antes que declarássemos nos lembrar dela. Os falsos
testemunhos (...) só podem ser desmascarados por uma instância crítica cujo único
recurso é opor aos testemunhos tachados de suspeitos outros testemunhos reputados
mais confiáveis. Ora, (...) o testemunho constitui a estrutura fundamental de
transição entre a memória e a história” (RICOEUR, 2007: 40- 41).
2. Memórias da professora arquivista:
A entrevista com Sidoni Chamoun foi a primeira realizada pelo projeto em 06 de
fevereiro de 2011. O apartamento da entrevistada inspirava tranquilidade contrastando com o
calor externo. Sidoni nos recebeu juntamente com sua mãe, uma senhora idosa de gestos e
aparência bastante vívidos. Serviram-nos água em uma bandejinha de louça. Sem se dar
conta, a mãe de Sidoni já fazia parte daquela entrevista antes mesmo de se pronunciar ou
interromper a filha para nos servir mais um copo de água. Naquele apartamento com seus
sofás, objetos e porta-retratos havia uma “habitação de lembranças” 2. Inspirava uma
entrevista, transpirava memórias e o calor de receber bem.
Sidoni sempre nos atendeu no Departamento de Orientação Técnica (DOT) com
presteza, concentração, calma e disponibilidade, a mesma maneira como nos recebia agora em
sua casa. A sensação era a de que tanto no ambiente de trabalho como no familiar, a sua
postura física, corporal e emocional não se dividia nas esferas do público e do privado. Sua
posição diante do gravador era a de uma profissional preocupada em ser clara e objetiva em
suas respostas. Logo no início da entrevista fitava o microfone do gravador como quem
pudesse aferir que tudo estaria prontamente arquivado. Ali estava, corporalmente, sua prática
arquivista que governava suas memórias.
2 Para Paul Ricoeur a distinção memória-lembrança e memória-recordação é correlata a de habitar e construir:
“As lembranças de ter morado em tal casa de tal cidade ou de ter viajado tal parte do mundo são particularmente
eloquentes e preciosas; elas tecem ao mesmo tempo uma memória íntima e uma memória compartilhada entre
pessoas próximas: nessas lembranças tipos, o espaço corporal é de imediato vinculado ao espaço do ambiente,
fragmento de terra habitável, com suas trilhas mais ou menos praticáveis, seus obstáculos variadamente
intransponíveis; (...) Quanto ao ato de construir, considerado como uma operação distinta, ele faz prevalecer um
tipo de inteligibilidade de mesmo nível que aquele que caracteriza a configuração do tempo pela composição do
enredo” (2007: 157; 159, respectivamente).
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Por uma questão metodológica, iniciamos as entrevistas com dados de sua vida
pessoal de modo que seja possível perceber as tensões entre o individual e o social no
movimento de suas memórias. Neste sentido, Sidoni nos informou que o pai foi militar da
aeronáutica e a mãe dedicou-se às atividades domésticas. Pelo lado paterno é de origem árabe-
libanesa e espanhola e do materno é de origem italiana e austríaca. Em função do emprego do
pai teve que se deslocar para outras regiões do estado e da cidade de São Paulo. Parece que,
historicamente, a família de Sidoni estava fadada à migração constante. Deslocar-se e
aprender línguas fez parte do repertório individual e coletivo de Sidoni o que, sem dúvida,
exigiu atenção para escutar as modulações de suas memórias.
Na entrevista o que mais nos marcou foi a ideia de “movimento”. Não apenas o que se
estabelece entre presente e passado, mas, sobretudo, o de se deslocar como uma atitude
perante a vida e de obtenção do conhecimento. Estudou na tradicional Caetano de Campos e
formou-se em letras na faculdade “Farias Brito”, hoje Universidade de Guarulhos. Sempre foi
bastante interessada em línguas estrangeiras e educação:
“Eu tive vários professores especiais, no primário, por exemplo, eu tive professoras
muito boas, excelentes, pelo que elas ensinavam, às vezes a gente pensa: ‘Puxa,
será que o curso que a gente fez foi de melhor qualidade?’ Eu sentia isso, agora que
eu posso analisar, eu senti que tive uma base muito boa de ensino, tanto no nível
primário como ginasial, e depois no curso normal, que eu considerei uma primeira
faculdade que eu fiz que foi o curso de normalista, eu tinha professores que eram da
USP, eu tinha professores da PUC também. Então foi um crescimento muito bom
para mim, tanto de conhecimento como de vida, porque eu sai do bairro de Santana
e com os meus 16 anos eu comecei a vir ao centro da cidade, então também cresci
nessa parte de me virar sozinha, ter mais liberdade, tomar condução, não havia
metrô ainda, então era tomar ônibus da Zona Norte até a Praça do Correio, depois
de ir a pé até a Praça da República e na volta fazer todo esse percurso novamente,
mas foi muito enriquecedor, foi muito bom para mim, gostei muito” (CHAMOUN,
2011).
O movimento de sua memória não tinha a ver apenas com o relato da ação de se
deslocar pela cidade como uma atitude de independência juvenil, mas com o resíduo de ação
de interpretar essa busca pelo ensino e pela aprendizagem por meio da cidade: “um
crescimento muito bom para mim, tanto de conhecimento como de vida”, ressaltou. Porém,
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para Paul Ricouer, sem a lembrança como afecção, neste caso, a de se deslocar pela cidade,
não seria possível a constituição da recordação como uma busca ativa, ou ainda, da leitura
desse deslocamento como algo que significou crescimento de conhecimento e de vida. Deste
modo são criados os “actantes da memória”, ou seja, não apenas o vivido pode ser atestado
como uma ação passada do entrevistado como é transformado em experiência ao relacionar o
presente com o passado na construção de um sentido coerente para a sua vida. Não por acaso,
Sidoni estabeleceu o paralelo entre os seus “professores especiais” e o do seu processo de
trabalho como aluna que culminou também no seu ingresso como professora no ensino
municipal por concurso em 1971 onde trabalhou até 1974 em sala de aula.
Na entrevista, Sidoni é bastante lacunar sobre sua experiência de quatro anos em sala
de aula: “quando eu queria demonstrar aos alunos uma forma de agir correta que levasse a
uma mudança de comportamento, não apenas falava sobre ela, mas tentava levá-los a
refletir, que se colocassem em uma determinada situação (...)” (CHAMOUN, 2011). Mas fica
claro que é a sua forma de encarar as mudanças na vida que possibilitou a uma nova
oportunidade profissional, isto é, a um “novo movimento”, a partir do final do ano de 1974 ao
ingressar na equipe pedagógica de inglês do Departamento Municipal de Ensino (DME) cuja
função era a de planejar programações, exercícios e atividades para auxiliar os professores em
sala de aula, tarefa que exerceu até o ano de 1982:
“Quinzenalmente, aos sábados, eram marcadas reuniões nas anteriormente
denominadas Delegacias Regionais de Educação, com as equipes mencionadas e os
professores das escolas de cada Delegacia para capacitações e trocas de
experiências. Durante esses encontros, as equipes apresentavam os conteúdos
correspondentes a cada matéria e a cada série, havendo o intercâmbio de ideias e
opiniões entre todos, assim como sobre as dificuldades encontradas em sala de
aula, havia também exemplos de alguns professores que trabalhassem determinado
conteúdo com seus alunos, obtendo bons resultados e os colegas eram solicitados a
opinar sobre o assunto. Ao final de cada reunião, os professores avaliavam o
encontro e também eram solicitadas sugestões de outros temas para serem
abordados nas reuniões seguintes. Isso aconteceu ao longo dos anos 70, até
1981/82” (CHAMOUN, 2011).
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Todo esse trabalho foi visto por Sidoni como algo que gerou “bons resultados” em
atender os professores para o seu trabalho em sala de aula. Sugestões de atividades, mas
nunca receitas prontas, advertiu. Os professores deveriam utilizar sua criatividade em sala de
aula. Todavia, e sem o saber intencionalmente, reiterava também a memória institucional do
modelo escolar paulistano. Sidoni defende e justifica de antemão essa autonomia dos
professores em sala de aula conferindo um sentido positivo para a “capacitação” docente e
amenizando o caráter prescritivo e institucionalizado que a sua nova função exigia. Há em
suas memórias uma tentativa de conciliar em seu movimento uma memória institucionalizada
de quem deveria reproduzir os sucessos empreendidos pela rede ao longo do tempo
(recordação) e uma memória da instituição de quem participou de sua construção como
sujeito (lembrança). Vejamos como esse jogo é constituído ao desdobrarmos seus argumentos
com outros documentos e entendermos os motivos de Sidoni afirmar que quase tudo gerou
“bons resultados”, embora nem sempre esses resultados possam ser vistos apressadamente
como uma fala institucionalizada e/ou acrítica.
Embora Sidoni não tenha se tornado uma “orientadora pedagógica”, fazia parte das
equipes de orientação para capacitar os professores de diferentes áreas e disciplinas escolares
no processo de implantação do novo currículo escolar de oito anos:
“Os responsáveis pela implantação da escola de oito anos na Rede Municipal de
Ensino tomaram a decisão de colocá-la em prática, inicialmente, em uma única
escola denominada piloto, ou seja, os problemas que foram sendo detectados ao
longo da implantação, foram sendo solucionados gradativamente por meio de
orientações pedagógica e administrativa adequadas, e me parece que o mesmo
aconteceu durante a implementação na Rede, consequentemente, a nova estrutura
escolar e seu funcionamento foram, aos poucos, se tornando uma realidade”
(CHAMOUN, 2011).
É preciso salientar que o trabalho de “orientação pedagógica” era algo novo no ensino
municipal e foi criado em 1970 como parte da política do ensino municipal em preparar a rede
para o oferecimento da escola de oito anos e que com a reforma da Lei 5692/71 foi
denominado de “ensino de primeiro grau” 3. No entanto, no novo organograma da Secretaria
3 Na revista Escola Municipal de n. 03 de setembro de 1971, pode-se ler na matéria “Orientação pedagógica nas
escolas municipais” que: “O trabalho de supervisão administrativo-pedagógica foi estruturado em 1970, através
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de Educação e Cultura do Município de 1969 publicado na Revista do Ensino Municipal de
março de 1970, e que seria implantado nos anos subsequentes, essas novas funções
mostravam-se um pouco modificadas:
Imagem 1
No organograma acima, nota-se que as funções de “orientação pedagógica e
educacional” estão sob a rubrica de “assessoria técnica” e não de “supervisão administrativo-
pedagógica” tal como foi implantado em 1970, por sua vez os “auxiliares de orientação”
fariam o papel dos “assistentes pedagógicos” responsáveis pela “integração” entre
“supervisão”, diretores e docentes das unidades escolares. Todas essas novas funções estavam
subordinadas à “Diretoria do IMEP”. O IMEP (Instituto Municipal de Educação e Pesquisa)
foi uma instituição criada pelo “Departamento do Ensino Municipal” como um “laboratório
pedagógico” 4 à formação de professores e uma escola modelo (“piloto” no dizer de Sidoni)
para a implantação do currículo de oito anos ou “integrado”. Mas foi uma experiência muito
das equipes integradas por Orientadores Pedagógicos, Inspetores, Orientador Musical e uma Estagiária. No ano
em curso, devido à expansão da rêde e a falta de pessoal, funcionaram três modalidades de composição de
equipes: uma com a participação apenas da Orientadora Pedagógica acumulando funções pedagógicas e
administrativas; outra, com a participação apenas de Inspetores que igualmente desempenham as duas funções;
outra, integrada por Orientador e Inspetor. Cada uma das equipes se responsabiliza pela supervisão de 9 unidades
[escolares]. O atendimento é feito em visitas mensais nas unidades com Diretores e Assistentes Pedagógicos. (...)
O trabalho de Orientação Pedagógica está sendo realizado dentro dêste esquema de supervisão uma vez que
Diretores e Assistentes Pedagógicos são responsáveis pela transmissão, aos professôres, das orientações
recebidas nas reuniões. (...) O Assistente pedagógico é sem dúvida o elemento integrador das atividades
pedagógicas desenvolvidas nas escolas, sendo pois, de sua responsabilidade o diagnóstico, solução ou o
encaminhamento dos problemas surgidos na unidade para o responsável” (p. 20). 4 A expressão “laboratório pedagógico” pode ser lida na Revista do Ensino Municipal, n. 01, 1970, p. 15.
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curta, pois durou o tempo da implantação da Lei 5692/71 para tão logo ser abandonada em
1972. No entanto, ainda é preciso refazer a história da montagem, funcionamento e
desmontagem desse Instituto que serviu naquele momento como um dos pontos de referência
para a implantação da Lei 5692/71 e do currículo do ensino de primeiro grau em âmbito
nacional 5.
Podemos afirmar que essa nova função de Sidoni ao sair de sala de aula e ir para a
gestão do ensino capacitar professores estava longe de não ser prescritiva. Revelava o intenso
processo de racionalização do ensino municipal com novas hierarquias funcionais em um
processo de maior distanciamento dos professores com a burocracia do ensino municipal que
concentrava a capacitação nas reuniões com representantes nas “Delegacias Regionais de
Ensino”, o que refletia menos o controle das didáticas em sala de aula e mais à organização
das escolas em sua estrutura e funcionamento. No entanto, o fato de ter participado das
reuniões e ter presenciado o intercâmbio de ideias e opiniões, dialogado sobre as dificuldades
dos professores em sala de aula e solicitado avaliações e sugestões sobre novos temas,
certamente lhe deu uma percepção real de “bons resultados” alcançados.
5 O livro-documento intitulado A Reforma de ensino: Lei número 5.692 de 11 de agôsto de 1971, publicada no
Diário Oficial da União em 12 de agôsto de 1971 foi publicado em primeira edição em 1971 sob a organização
de Aluízio Peixoto Boynard, Edília Coelho Garcia e Maria Iracilda Robert como resultado de um curso realizado
pelos autores na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília entre maio a julho de 1971e amadureceu na
Assembléia Geral da Associação Católica do Brasil (AEC) entre os dias 20 a 23 de julho do mesmo ano,
portanto, poucas semanas antes da promulgação da Lei 5692 de 11/08/1971, de acordo com o próprio prefácio do
Padre José de Vasconcellos do Conselho Federal da Educação e Presidente da AEC do Brasil. O livro chama
atenção não apenas por explicar detalhadamente as mudanças curriculares empreendidas pela Lei para os ensinos
básico regular, supletivo, técnico e superior, mas por ter sido organizado também pela diretora do IMEP Maria
Iracilda Robert. Neste sentido, não nos surpreende que a terceira parte do livro intitulado Duas experiências
pedagógicas se destaque como o principal exemplo de implantação do currículo do ensino de primeiro grau o
“Plano administrativo pedagógico de uma escola integrada de oito anos” do IMEP, quase uma cópia do mesmo
plano publicado na Revista do Ensino Municipal, publicação interna da rede que teve apenas uma edição em
1970, ao contrário da revista Escola Municipal (1968-1985) também de circulação interna para a rede cuja
publicação durou 17 anos e com treze números no total. Além disso, o livro merece ser estudado na perspectiva
da forte influência que a Igreja Católica no Brasil teve nesse processo de implantação da Lei em um país em que
o Estado deveria ser laico, mesmo em um regime ditatorial e conservador. A outra experiência exemplar
destacada é a do “Curso Colegial Polivalente” do Colégio Brasileiro de Almeida elaborado pela outra
organizadora do livro Edília Coelho Garcia. O colégio em questão pertencia ao ensino privado da cidade do Rio
de Janeiro e oferecia o primeiro grau integrado e o segundo grau profissionalizante (industrial, comercial e
agrícola) tomado como um exemplo das novas transformações curriculares da Lei para o segundo grau. Aqui
chama atenção e comprova-se como o ensino de segundo grau ainda era bastante elitizado e as boas referências
vinham do setor privado e não do público como era o caso da escola do IMEP para o primeiro grau, outro
aspecto que merece ser estudado no período. Por fim, cabe esclarecer que a edição que possuímos do livro é a
segunda de 1972 e foi editada pela desconhecida Lisa – Livros Irradiantes S.A, no entanto, parece que o livro
teve boa aceitação entre o público interessado no tema já que se tratava de um guia bastante didático e minucioso
sobre a reforma de ensino de 1971. O fato dos autores ocuparem postos chaves nas administrações de ensino das
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, bem como o fato de estarem ligados à AEC e ao Conselho Federal de
Educação reforça a tese da importância do IMEP como experiência exemplar em âmbito nacional.
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Sidoni trabalhou também de 1975 a 1978, como revisora da revista Escola Municipal
nos números 5, 6, 7 e 8, respectivamente. Como destacado no início deste artigo, a revista
Escola Municipal publicada de 1968 a 1985, foi criada para construir um significado para a
rede municipal de ensino e instituiu sua memória por meio do “modelo escolar paulistano”
(GODOY, 2013), ou seja, como um dispositivo de produção, divulgação e circulação sobre as
realizações educacionais do município baseado na criação de uma rede de ensino coesa,
funcional e eficiente na racionalização administrativa, burocrática e de atendimento ao
público escolar da cidade. Porém, para Sidoni, trabalhar na sua revisão “[t]ornava-se uma
atividade bem artesanal, mas muito prazerosa, principalmente ao ver o resultado final, ou
seja, a revista pronta, depois de passar pela parte informatizada” (CHAMOUN, 2011). O
processo de produção da revista ficou gravado na sua lembrança: “ia à gráfica municipal
acompanhar a correção dos bonecos (originais) onde fazia as revisões finais” (2011), e
complementa:
“(...) acredito que a revista foi criada para divulgar principalmente os projetos
desenvolvidos pela Rede Municipal de Ensino, circulava na Rede para que todos os
profissionais de educação tivessem acesso a ela e, que eu saiba, não se baseou em
nenhuma outra. (...) Durante as reuniões periódicas, o professor que era diretor da
revista, numa primeira etapa, já explicava como ia ser a configuração: desde a
capa até os artigos, depois as notícias, fotos, ele ia organizando todo o conteúdo,
orientando as pessoas envolvidas na produção e, numa segunda etapa, a parte da
conclusão, visitava a Gráfica para acompanhar o desenvolvimento do trabalho
final. (...) No início dos trabalhos, além das equipes técnico-pedagógicas do DME,
redatoras dos textos, pesquisava-se quais outros profissionais de educação da Rede
gostariam de participar da elaboração da revista, redigindo algum texto,
explicando sobre alguma experiência na área pedagógica, alguma aula de
determinado componente curricular que tivesse dado bons resultados e informando
o (a) autor (a) de que seu relato ia ser divulgado pela revista para a Rede e que os
colegas poderiam aplicar em suas aulas. (...) A revista era elaborada durante um
ano e geralmente lançada no mês de dezembro, durante esse tempo iam sendo
coletados, selecionados e organizados textos, fotos, notícias. Havia pesquisas na
Rede sobre eventos, campanhas, comemorações importantes nas escolas: semana
da criança em que havia acontecido uma gincana, dia do professor e outros fatos
relevantes” (CHAMOUN, 2011).
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Há aqui novamente uma conciliação entre as memórias institucionalizadas que
circularam por meio da revista sobre o ensino municipal e as memórias da instituição, isto é,
de quem trabalhou na “configuração da revista”. Por um lado, Sidoni reitera o sucesso da
revista como um instrumento de circulação e divulgação dos acontecimentos da rede
mostrando como as coisas davam certo, ou melhor, como as coisas “funcionavam” no
“modelo escolar paulistano”: um evento, uma campanha, comemorações importantes e,
sobretudo, as notícias de uma escola para outra, muito embora saibamos que não eram os
professores em sala de aula que contribuíam com artigos para a revista e a maioria dos artigos
eram de ex-professores que ocupavam cargos na burocracia administrativa do ensino
municipal (GODOY, 2013). Por outro, Sidoni vê a revista como algo que deu certo não
apenas por reiterar essa memória institucional, mas de quem trabalhou no processo de
produção da revista cujo lado artesanal lhe dava muita satisfação, o que foi captado com
clareza ao trazer a materialidade do impresso como se materializasse a sua própria lembrança:
“fazíamos a revisão de Português do texto e ajudávamos a corrigir pequenas falhas como a
falta de um acento, uma vírgula e auxiliávamos a colar esses pedacinhos, manuseando
pequenas espátulas” (CHAMOUN, 2011).
Posteriormente foi a responsável por organizar e responder pelo arquivo da Memória
Técnica Documental (MTD) do Departamento de Orientação Técnica (DOT) da Secretaria
Municipal de Ensino (SME) de São Paulo a partir dos anos 1990:
“Eu fiz parte da equipe de Inglês e também de Português, depois a Diretora me
chamou para um trabalho de expediente junto à sua sala, ajudando-a na parte mais
burocrática. Também trabalhei em um arquivo de documentos administrativos.
Depois, em 1990, a colega encarregada do arquivo de documentos pedagógicos, do
Departamento de Planejamento e Orientação – Deplan (anteriormente
Departamento Municipal de Ensino – DME) decidiu retornar para a Rede a fim de
voltar a lecionar. Consequentemente, não havia funcionário para ser encarregado
do arquivo pedagógico, então recebi a proposta de responder pelo setor. As equipes
encarregadas de cada matéria (componente curricular) continuavam a fazer parte
do setor pedagógico do Deplan. Então, recebi instruções de como proceder quando
os professores das equipes viessem retirar documentos pedagógicos para consulta.
O procedimento seria o de tomar nota do título do documento para depois poder
recebê-lo na devolução, havendo controle para que nenhum se extraviasse. Aceitei o
trabalho e gostei muito de poder desenvolver uma nova atividade dentro do campo
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da educação. Esse arquivo, desde sua criação em 1981, denomina-se Memória
Técnica Documental – MTD – e tem como seus principais objetivos guardar,
preservar, manter atualizados e divulgar os documentos históricos e técnico-
pedagógicos do Ensino da cidade de São Paulo, na Secretaria Municipal de
Educação – SME, para torná-los disponíveis à consulta dos profissionais de
educação das redes públicas e particulares de ensino, assim como para professores
e alunos das universidades e público em geral” (CHAMOUN, 2011).
O trabalho de responder pelo setor do arquivo pedagógico, embora não tivesse
formação profissional para tal foi tomado como um desafio, “uma nova atividade dentro do
campo da educação”, mais um movimento de mudança que encarava na busca de novas
experiências de vida e de conhecimento. Sidoni reconhece que a sua transição da orientação
pedagógica nas equipes de inglês e português para o arquivo pedagógico foi por meio de um
trabalho burocrático com documentos administrativos, mostrando mais uma vez que o ensino
municipal foi estruturado dentro de um modelo de gestão administrativa, racional e
burocrática com a criação de inúmeros departamentos, seções e setores e que, portanto,
acumulou um grande acervo de documentação técnico-pedagógica ao longo do tempo que
levou a constituição do seu arquivo em 1981 no ano em que a rede completava 25 anos de
existência, ou seja, foi criado intencionalmente para comemorar a instituição. Essa memória
institucional do modelo escolar paulistano, no entanto, dialogava com a memória da
instituição da qual fazia parte como sujeito e no cotidiano do seu trabalho:
“No arquivo (Memória Técnica Documental), de modo geral, o trabalho do dia a
dia é o de receber e/ou de buscar documentos de natureza histórica/técnico-
pedagógica principalmente produzidos por órgãos do Ensino Municipal ao longo
dos anos e pelas equipes pedagógicas da Coordenadoria dos Núcleos de Ação
Pedagógica – Conae e da Secretaria Municipal de Educação – SME. Em seguida,
classifica-se por assunto e registra-se cada documento que recebe um código,
acondiciona-se em pastas apropriadas e arquiva-se em armários deslizantes
adequados (protegidos da ação de poeira, de insetos, de luz e calor). Depois, para
cada documento, é redigida uma resenha e, com o devido código e resenha ele
passa a fazer parte de um catálogo todo informatizado e periodicamente atualizado.
Os conteúdos dos documentos codificados ficam disponíveis via Internet e no local
da pesquisa em suporte papel. Há o atendimento a consultas pessoalmente, via
Internet e telefone” (CHAMOUN, 2011).
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O trabalho de Sidoni e de suas memórias são indissociáveis da instituição do qual fez
parte e ajudou a criar. Não podemos esperar de sua entrevista uma crítica a essa
racionalização e burocratização do modelo escolar paulistano que criou sua memória
institucional de eficiência e organização cujo arquivo é ponto mais simbólico, mas tampouco
deixar de reconhecer que do seu ponto de vista as coisas, de fato, aconteceram, produziram
“bons resultados” e de que “isso tudo se tornou uma experiência muito enriquecedora!”, um
bordão que não se esquece de repetir e de quem fez e faz parte da memória da instituição.
Cada resenha, código e catálogo criados para os documentos do arquivo diziam respeito ao
arquivamento do seu próprio trabalho no tempo para além dos ditames das instituições que
tentam encarcerar em um sentido único a organização e a seleção de seu acervo.
Assim, podemos pensar com Arlette Farge o significado de quem trabalha no e com os
arquivos, mesmo que a autora se refira aos arquivos judiciários, pois ao mesmo tempo
revelam o peso das instituições e sua formatação, como nos arquivos pedagógicos, mas
também se abrem espaços para o novo, para o desconhecido e para as constantes mudanças,
bem ao gosto da vida e da profissão de Sidoni Chamoun:
“Nas bibliotecas, os funcionários (conservadores e arquivistas) não se perdem no
mar; referem-se a ele em número de quilômetros de estantes que ocupa. É uma
outra forma de gigantismo ou um jeito astucioso de domá-lo que já sinaliza a
utopia presente na vontade de um dia apossar-se dele exaustivamente. A metáfora
do sistema métrico cria o paradoxo: disposto ao longo de prateleiras, medida em
metros de fita como nossas estradas, ele parece infinito, talvez até indecifrável.
Seria possível ler uma estrada, ainda que ela fosse de papel? (...) O arquivo é uma
brecha no tecido dos dias, a visão retraída de um fato inesperado. Nele, tudo se
focaliza em alguns instantes de vida de personagens comuns, raramente visitados
pela história, a não ser que um dia decidam se unir em massa e construir aquilo que
mais tarde se chamará de história. O arquivo não escreve páginas da história.
Descreve com as palavras do dia a dia, e no mesmo tom, o irrisório e o trágico,
onde o importante para administração é saber quem são os responsáveis e como
puni-los” (FARGE, 2009: 12; 14, respectivamente).
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3. Considerações finais:
A trajetória de vida e profissional de Sidoni é feita de deslocamentos, de aceitação da
mudança e do lidar com o novo. Sua saída da sala como professora de língua portuguesa para
o trabalho no DOT com parte da equipe de orientação pedagógica de língua inglesa foi outro
passo rumo ao desconhecido. Aceitou o desafio de orientar pedagogicamente os professores
da rede municipal na área de língua estrangeira. Devia ser um momento difícil, pois o novo
currículo da escola integrada de oito anos incorporava essa modalidade para alunos carentes e
pobres da rede municipal. Chegou a dizer que contestava a tese de que crianças pobres não
deveriam aprender línguas estrangeiras, pois mal sabiam o português. Para Sidoni não deveria
haver essa prescrição contra um conteúdo “novo”, pois ali residia uma “nova” oportunidade
para os alunos tanto de colocação profissional quanto simplesmente de algo “novo”.
Sidoni não poupou elogios ao ensino municipal, pois para ela todo o trabalho
desenvolvido era em função da melhoria da própria rede. Ao contrário da imagem pouco
movimentada do período militar e bastante rígida do ponto de vista institucional, Sidoni
restituiu o movimento, o novo, o esforço que era fazer parte daquilo tudo. Dizia que os
professores eram orientados a esquecer do que haviam feito no ano anterior para recomeçar
tudo de novo, usando a criatividade. Interessante paradoxo trazido pelas memórias de Sidoni:
as orientações na rede municipal tinham um fundamento controlador, mas o seu
desenvolvimento criativo em sala de aula era constantemente estimulado para os professores.
Sidoni, além de cuidar do setor de arquivos, hoje em processo de digitalização
ostensiva, era uma parte da própria história daquele acervo, do ensino municipal e de sua
administração ao longo dos anos. Podemos dizer que se trata de uma memória que transita
entre o oficial e o oficioso por dentro da instituição. Vive a instituição a partir de sua prática
criando códigos e linguagens. Originalmente era professora de letras, uma profissional da
linguagem que passou a arquivista. Podemos afirmar que dentro da instituição ela tem um
discurso próprio, pois a torna viva por meio de sua prática.
Desta forma, sua trajetória profissional é uma confluência entre memórias
institucionalizadas e memórias da instituição. A primeira refere-se aquilo que Paul
RICOUER (2007) denominou de “memória-recordação”, pois acaba por reiterar a “memória-
monumento” da instituição como um “lugar do próprio” (CERTEAU, 1996), a segunda trata-
se da “memória-lembrança” por resguardar a “memória-documento” (LE GOFF, 2003) da
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instituição, isto é, como professora de Letras e arquivista amadora que recria e reorganiza
códigos de acesso ao presente e ao passado em sua prática diária, conferindo voz aos outros
por meio de sua voz.
4. Referências bibliográficas:
ALBERTI, Verena. Manual de História oral. 3ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
________________. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes
Históricas. São Paulo Contexto, 2006, pp. 155-202.
BOYNARD, Aluízio Peixoto; GARCIA, Edília Coelho; ROBERT, Maria Iracilda. A reforma
do ensino: Lei número 5.692 de 11 de agosto de 1971, publicada no Diário Oficial da União
em 12 de agosto de 1971. 2ª edição. São Paulo: LISA – Livros Irradiantes S. A, 1972.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
CHAMOUN, Sidoni. Entrevista concedida em 06/02/2011.
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: EDUSP, 2009.
GODOY, Alexandre Pianelli. O modelo escolar paulistano na revista Escola Municipal
(1968-1985). História da Educação. Porto Alegre, v. 17, n.39, jan./abr. 2013, pp. 101-128.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
MATHIAS, Suzeley Kalil. A militarização da burocracia: a participação militar na
administração federal das Comunicações e da Educação, 1963-1990. São Paulo: Editora da
UNESP, 2004.
REVISTA DO ENSINO MUNICIPAL. São Paulo, n. 01, março de 1970 (número único).
REVISTA ESCOLA MUNICIPAL. São Paulo, 13 números, 1968-1985 (coleção completa).