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1. Introdução; 2. Nascimento da psiquiatria; 3. Situação atual da psiquiatria. Ana Rosa Bulcão Vieira· * Aluna de mestrado em administração, na área de teoria e comportamento . organizacionais, da EAESP/FGV. Rev. Adrn. Emp., 1. INTRODUÇÃO A importância da análise da história do nascimento do saber psiquiátrico - da constituição e legitimação social e legal desse saber, da apropriação desse objeto, da institu- cionalização da prática terapêutica da psiquiatria, e da evolução desse saber como um saber específico - reside no fato de que ela serve para mostrar qual a origem do que hoje conhecemos como psiquiatria, e como a insti- tuição da doença mental apresenta, ainda hoje, caracte- rísticas que apresentava no século passado, quando a doençamental passou a constituir o objeto da psiquia- tria. O que importa analisarmos é que características as- sumiu a psiquiatria no mundo contemporâneo, qual o tipo de intervenção que ela apresenta no tratamento de seu objeto, qual sua ideologia, seus impasses, sua função na sociedade contemporânea, do ponto de vista daqueles que questionam seu saber, sua competência, sua legitimi- dade e poder. A análise da psiquiatria institucional contemporânea é feita do ponto de vista crítico e da perspectiva de autores que estudaram o assunto com profundidade pro- curando refletir sobre os saberes que se constituem e se legitimam na sociedade e sobre as conseqüências dessa legitimação e dessa prática social na vida do homem con- temporâneo. O objetivo do trabalho é compreender a figura mo- derna da psiquiatria, seu papel na sociedade, sua ambição como instrumento técnico-científico, isto é, compreen- der o caráter e funcionamento da psiquiatria institucio- nal como ela se apresenta atualmente. A ida ao passado, para a análise das origens da psi- quiatria, é' esclarecida pelo presente e se constitui como exigência de aprofundar a crítica e fornecer elementos para a transformação das condições atuais de seu modo de intervenção. A questão fundamental de todo esse ensaio é a que permeia, implícita ou explicitamente, todas as análises que se proprõem a refletir sobre o saber médico, em termos gerais, e Sobre o saber psiquiátrico, em termos específicos, que é a questão dos papéis que desempe- nham essas instituições sociais como meio de controle dos indivíduos e das populações através de uma ação intrinsecamente ligada ao saber das ciências humanas; é, pouco e pouco, começar-se a olhar de modo crítico o funcionamento da sociedade ao nível do cotidiano, dos aparelhos que assumem a gestão de nossas vidas, das ins- tituições que produzem, aperfeiçoam ou orientam nosso comportamento. 49 2. NASCIMENTO DA PSIQUIATRIA A psiquiatria como disciplina teórica e técnica terapêu- tica, como saber de tipo médico sobre a loucura - consi- derada como doença mental - e como uma prática com a finalidade de curá-la por um tratamento físico-moral, só se constitui em determinado momento da história. A Rio de Janeiro, 21(4}; 49-58, out./dez. 1981 Organização e saber psiquiátrico

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Page 1: 1. Introdução; 1. INTRODUÇÃO 2. Nascimento da psiquiatria ... · 2. Nascimento da psiquiatria; 3. Situação atual da psiquiatria. Ana Rosa Bulcão Vieira· * Aluna de mestrado

1. Introdução;2. Nascimento da psiquiatria;

3. Situação atual da psiquiatria.

Ana Rosa Bulcão Vieira·

* Aluna de mestrado em administração,na área de teoria e comportamento. organizacionais, da EAESP/FGV.

Rev. Adrn. Emp.,

1. INTRODUÇÃO

A importância da análise da história do nascimento dosaber psiquiátrico - da constituição e legitimação social elegal desse saber, da apropriação desse objeto, da institu-cionalização da prática terapêutica da psiquiatria, e daevolução desse saber como um saber específico - resideno fato de que ela serve para mostrar qual a origem doque hoje conhecemos como psiquiatria, e como a insti-tuição da doença mental apresenta, ainda hoje, caracte-rísticas que apresentava no século passado, quando adoençamental passou a constituir o objeto da psiquia-tria.

O que importa analisarmos é que características as-sumiu a psiquiatria no mundo contemporâneo, qual otipo de intervenção que ela apresenta no tratamento deseu objeto, qual sua ideologia, seus impasses, sua funçãona sociedade contemporânea, do ponto de vista daquelesque questionam seu saber, sua competência, sua legitimi-dade e poder.

A análise da psiquiatria institucional contemporâneaé feita do ponto de vista crítico e da perspectiva deautores que estudaram o assunto com profundidade pro-curando refletir sobre os saberes que se constituem e selegitimam na sociedade e sobre as conseqüências dessalegitimação e dessa prática social na vida do homem con-temporâneo.

O objetivo do trabalho é compreender a figura mo-derna da psiquiatria, seu papel na sociedade, sua ambiçãocomo instrumento técnico-científico, isto é, compreen-der o caráter e funcionamento da psiquiatria institucio-nal como ela se apresenta atualmente.

A ida ao passado, para a análise das origens da psi-quiatria, é' esclarecida pelo presente e se constitui comoexigência de aprofundar a crítica e fornecer elementospara a transformação das condições atuais de seu modode intervenção.

A questão fundamental de todo esse ensaio é a quepermeia, implícita ou explicitamente, todas as análisesque se proprõem a refletir sobre o saber médico, emtermos gerais, e Sobre o saber psiquiátrico, em termosespecíficos, que é a questão dos papéis que desempe-nham essas instituições sociais como meio de controledos indivíduos e das populações através de uma açãointrinsecamente ligada ao saber das ciências humanas; é,pouco e pouco, começar-se a olhar de modo crítico ofuncionamento da sociedade ao nível do cotidiano, dosaparelhos que assumem a gestão de nossas vidas, das ins-tituições que produzem, aperfeiçoam ou orientam nossocomportamento.

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2. NASCIMENTO DA PSIQUIATRIA

A psiquiatria como disciplina teórica e técnica terapêu-tica, como saber de tipo médico sobre a loucura - consi-derada como doença mental - e como uma prática coma finalidade de curá-la por um tratamento físico-moral,só se constitui em determinado momento da história. A

Rio de Janeiro, 21(4}; 49-58, out./dez. 1981

Organização e saber psiquiátrico

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transformação da loucura em um tipo de doença dife-rente, fenômeno patol6gico, exigiu um tipo específico.de medicina para tratá-la, a psiquiatria.

S6 é possível compreender o nascimento da psiquia-tria a partir da medicina, no momento em que esta incor-pora a sociedade como novo objeto e se impõe comoinstância de controle social dos indivíduos. :e no seio damedicina social que se constitui a psiquiatria. Do pro-cesso de medicalização da sociedade surge o projeto -característico da psiquiatria - de patologizar o compor-tamento do louco, somente a partir de então considera-do anormal e, portanto, medicalizável.

:e somente no início do século passado que a lou-cura ascende à categoria de doença mental. Nessa épocaos loucos se disseminavam indiferentemente entre oshospitais gerais, as casas, de detenção, as casas de cari-dade, os dep6sitos de mendigos e as prisões familiares.Nessa época a loucura figura claramente como estigma,isto é, como sinal distintivo e significante da pertinênciado louco à categoria das "classes perigosas". Apsiquia-tria, então, ainda não se havia firmado, apropriando-seda insanidade como objeto pr6prio dentro da- legitimi-dade do seu saber e de sua técnica.

A classificação resultante na definição da doençamental não obedece a um esquema puramente teôríco epertinente a uma disciplina científica; mas tem a ver coIX1a normatividade de uma ordem institucional particular;"Não se pode pensar essa ordem e, correlativamente, essadesordem, senão por referência à lei ou à norma que ainstitui e defme" (Albuquerque, 1978). Mas os diversossentidos da lei ainda se confundem amplamente na épocada instituição da loucura em ,objetei científico, sobretudono domínio das ciências do homem. "De cada urna dasconcepções de lei e de ordem a caracterização da doeriçamental, enquanto desordem dei espírito, irá retirar suacontríbuíção, Da idéia de ordem enquanto sujeição auma norma, decreto, expressão de uma vontade superior,a definição científica da doença mental retira a caracteri-zação do louco como insubmisso, infenso a qualquernorma ou regularidade. Da idéia de ordem como expres-do de um princípio abstrato, deriva a idéia de irraciona-lidade do louco e do caráter anormal e, portanto, espe-cial da doewa mental, Finalmente, da idéia de lei comoregularidade imanente e necessária dOFfenômenos deri-va a concepção da loucura como pa.ologia, exceção"(Castel, 1978).

Enfim, a psiquiatria nascente, na tentativa de medi-calizar a doença mental, de se apropriar da loucuradentro de um paradigma científico, acaba n9:0 sabendose deriva a legitimidade de sua ação sobre a doença men-tal das normas científicas ou da legislação que lhe con-fere autoridade legal sobre a doença mental e, particular-mente, sobre os "doentes mentais".

Tal como o saber jurídico, o saber sobre a doençamental produz, então, sua verdade em virtude do queexplicita a lei e não a partir da evidência empíricas dosfatos ou de teorias aceitas.

Essa aproximação entre os dois saberes teôríco-prá-ticos e altamente institucionalizados, um sobre a ordem

Revista de Administração de Emprtsa,

legal e outro sobre a desordem mental, é praticamente'constitutivo da ciência da doença mental .

2.1 Ampliaçiio da autonomia do saber psiquiátrico

A descoberta das "monomanias" (conceito que define aloucura sem a ocorrência de delírio) constitui uma res-

. posta satisfatória, tanto para a psiquiatria, como profis-silo que, por seu intermédio, estende o âmbito de suaatuação legítima, como para a instituição da justiça, quevem, assim, a classificar convenientemer1te casos não ca-talogáveis dentro de suas próprias categorias. Uma cons-tatação importante, porém, é que a definição de doençamental, no caso das monomanias, não decorre, aí, doquadro teórico nem da prática experimental da psiquia-tria, mas sim da questão prática da inclusão, ou n9:0, deum objeto no âmbito institucional da justiça ou da psi-quiatria.

O ponto de partida desta questão é um estado derelações específico entre as duas instituições, em que amedicina, tradicionalmente, desempenhava papel subor-dinado. No início do século XIX, a tradição e a lei ex-cluem a noção de crime ou delito em casos de demênciaou de coerção irresistível. O papel do médico era claro eindiscutível, mas irrelevante. Na medida em que a de-mência era estritamente equivalente ao delírio, a institui-ção judiciária só abandonava à medicina os casos que elamesma decidia eximir de culpa.

O problema aparecia, entretanto, nos casos em quenão exístía o delírio para caracterizar a loucura, mas erapercebido. de maneira clara que o caráter do crime eviden-ciava urna natureza ínvoluntâría do ato. O fato é que n9:0só os distúrbios de vontade não cabiam no quadro con-ceitual de doença mental de então - a loucura era carac-terizada como distúrbio do entendimento e n9:0 havialoucura sem delírio - como também n9:0se observavamcasos desse tipo.

A monomania surge, neste contexto, como coaçãoirresistível interna, estendendo, assim, o campo da pato-logia mental do terreno do entendimento para o da von-tade e ocupando, com isto, um terreno que a justiça nãodeclarava como seu, mas não consentia em deixar vago,Assim, a monomania recebe, no início, apenas o reco-nhecimento prático de sua utílídade, numa distante re-lação com a mania, sendo, porém, parcial e relativa àvontade, enquanto que a mania, no campo mais geral dademência, seria geral e relativa ao entendimento.. O surgimento da noção da monomania evidencia,assim, a necessidade da psiquiatria de então, de conquis-tar uma parte das prerrogativas tradicionais da justiça.Assim, passa-se a fazer uma clara distinção entre "lesõesde vontade" e "lesões de entendimento ou delírio".

Entretanto, o que importa não é tanto a noção demonomania em si mesma, mas, sim, o que se conseguiuatravés dela - uma elaboração teórica e delimitação de umespaço. maior de intervenção prática. O importante é queuma estratégia, que se ap6ia sobre um saber aproximado,elabora-o e o transforma a fun de conquistar uma área deintervenção paralela ao funcionamento do aparelho judi-

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cimo. Assim, os alienistas intervêm como verdadeirogrupo de pressão a fim de forçar uma decido compro-vando sua "competência especial".

Do impasse surgido entre os dois aparelhos - mé-dico e judiciário - trata-se de dar a cada um o que lhe édevido: os loucos aos psiquiatras e os criminosos aosjuízes. ~.a operação alienista patologizando novos seto-res do comportamento e complementando a operaçãojudiciária, cujo objetivo é remanejar E) direito de punirnuma base completamente racional.

O serviço que o alienista presta ao juiz no início doséculo xrx é suscetível de ser transposto para uma outraescala: através das monomanias os psiquiatras consegui-ram realizar a difícil tarefa de desvendar asubjetívidadepara codificar os comportamentos problemáticos emoutros códigos e, portanto, não gerfveís pelos outros apa-relhos. Dessa maneira, cumprindo a tarefa social de codi-ficação de comportamentos desviantes e de solucionar oproblema que se apresentava à sociedade de então, surgeo diagnóstico, inaugurando o destino institucional. Ini-cialmente, asilo ou prisão, dependendo do acusado serou não monomaníaco; e, posteriormente, o desenvolvi-mento de um leque institucional, cuja diversificação sefará em função da diversificação das populações a serem"atendidas". A atividade da perícia, situando o indiví-duo numa escala de responsabilidade e de desempenhos,tornar-se-á atividade de triagem, de despistagem, deorientação, classificação, abarcando um número cres-cente de indivíduos.

Sendo a perícia a superação da competência técnica,decorre daí uma autoridade que é legitimada pelo conhe-cimento que contém. Na base de seus conhecimentos ede suas práticas, o especialista é chamado a decidir entreopções que engajam valores fundamentais da existência.A delegação de poder faz parte da própria definição deperícia. Através de um raciocínio de estilo técnico oucientífico, toma-se uma decido que diz respeito a umterceiro e que irá doravante selar seu destino. O desen-volvimento dessa função de perícia é uma das caracterís-ticas das civilizações modernas. ~ o mandato, outorgadoa especialistas, atribuindo-lhes o monopólio das avalia-ções significantes, provocando, como conseqüência, aburocratização, o desencantamento do mundo e a expro-priação dos homens de qualquer autonomia de decisão.Os médicos, em geral, e os psiquiatras, em particular,ocupam uma posição estratégica no desenvolvimentodesse processo, cuja função foi herdada do papel tradi-cional do médico que arbitra em nome de sua arte. Essaprerrogativa irá deslocar-se e se generalizar com a vin-culação da arte médica a um saber racional. Elliot Freidsondescreveu, sob o nome de "autonomia profissional", abase objetiva dessas intervenções, ao mesmo tempo quemostra por que os médicos a possuem no mais alto grau(Cooper, 1967).

Apresentando sinais exteriores de científícídade eutilizando uma técnica específica, ds médicos aumentama distância em relação aos saberes práticos comuns e,com. isso, impõem sua legitimidade como exclusiva, nãosomente ao tratamento técnico das questões que residem

no âmbito de sua competência, como também quanto àmaneira como elas devem ser colocadas: "Seu mandatoconsiste em definir se um problema existe, ou não, qualé a sua 'verdadeira' natureza e como deve ser tratado"(Foucault, 1968). Assim, os peritos definem a realidadepara a sociedade global e, particularmente, para aquelesque vivem suas contradições. O psiquiatra realiza essa'operação de maneira exemplar: a partir do momento emque seu diagnóstico define o doente mental no seu statuscompleto, pode, como diz Szasz, ''transformar seu julga-mento em realidade social" (Foucault, 1972).

Com a questão da monomania, então, a medicinamental se' desenvolveu definindo diferencíalmente osdoentes mentais, os criminosos e os outros desviantes. Oimportante a observar é que procedeu-se a um remaneja-mento fundamental nas relações entre os âmbitos institu-cionais da psiquiatria e da justiça em torno de uma no-ção imprecisa, rejeitada na prática pela psiquiatria cientí-fica, que, apesar disso, não deixou de empregá-la na defi-níção concreta da doença mental.

Além do papel de assegurar maior amplitude de in-tervenção por parte da psiquiatria, a noção de monoma-nia abre outro campo, que a loucura, antes de ascender àcategoria de doença mental, era insuficiente pata garan--tír. Essa noção atesta a possibilidade de a loucura crimi-nosa, perigosa socialmente, estar oculta por trás das apa-.rências da razão e do comportamento razoável: fato queexige a perícia do profissional e a autoridade da pre-venção,

Entretanto, a "medícalízação" da loucura não signi-fica somente a sua confiscação por um olhar médico,mas implica a definíção de um novo status jurídico, so-cial e civil do louco: a fixação do alienado num completoestado de minoridade social. A internação em um "esta-belecimento especial" é o elemento determinante quecondiciona esse status. Portanto, o essencial da "medica-lização" da loucura não é a relação médico doente, mas arelação medicina hospitalização, o desenvolvimento deuma tecnologia hospitalar, o desenvolvimento de umnovo tipo de poder na instituição, a aquisição de umnovo mandato social. a partir de práticas centradas, ini-cialmente, no baluarte asilar.

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2.2 O instrumento terapêutico da psiquiatria: o asilo

O hospício, principal instrumento terapêutico da psi-quiatria, aparece como exígêncíade uma crítica higiênicae disciplinar às instituições de enclausuramento e ao pe-rigo presente em uma população que se começa a seperceber como desviante, a partir de critérios que a pró-pria medicina social institui.

O louco aparece como potencialmente perigoso ecorno atentado à moral pública, à caridade e à segurança.A loucura passa a ser um perigo a ser evitado das ruas dacidade, Loucura passa a ser antônimo de liberdade. Parao psiquiatra, o lugar do louco não é a rua, nem a prisfo,mas o hospício, onde a loucura é tratada, não com liber-dade, nem com repressão, mas com disciplina. O hospí-

Saber pliquiátrico

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cio é a grande evidência terapêutica da psiquiatria nas-cente.

A apropriação da loucura por parte da psiquiatriaconfigura-se basicamente na proposta de criação de umainstituição capaz de medicalizâ-la, com a possibilidade deinferir a loucura naturalmente nos objetivos de uma me-dicina do espaço social. Por um lado, a proposta deorganização e funcionamento da cidade deve retirar olouco da livre circulação em seu interior, pois que elerepresenta um foco de perigo; por outro, a instituiçãomédica constitui o espaço próprio do louco, capaz nãode dominá-lo - destruir os seus efeitos, subjugar suaameaça - mas de atingir SUaloucura e integrá-la à vidaurbana por um processo de recuperação. Na medida emque a loucura é um comportamento caracterizado medi-camente, e no momento em que, formulando uma etio-logia social da doença, a medicina urbana detecta os di-versos perigos que podem ameaçar a existência de umasociedade em vias de normalização, a loucura e pre-venção estarão .sempre ligadas.

Coube à medicina social a tarefa de isolar preventi-vamente o louco, com o objetivo de reduzir o perigo porele apresentado, e impossibilitar o efeito destrutivo ca-racterizado em sua doença. Essa tarefa foi desempenhadaatravés da competência do poder psiquiátrico, que erabaseada em seu saber, para distinguir o normal do pato-lógico e realizar o controle e a vigilância dos indivíduosconsiderados doentes mentais.

52 Na fundação da psiquiatria o hospício é então con-cebido como o lugar de exercício da ação terapêutica,tendo como objetivo destruir a loucura. Sua caracterís-tica principal é uma ação que não se dá como negativa,dedicada a impedir, tolher ou afastar, mas como positiva,recuperadora; desse modo, a psiquiatria precisa ser ins-trumentalizada através de uma série de dispositivos quepossibilitem a eficácia de sua intervenção. Daí a impor-tância da organização de um espaço terapêutico e a ne-cessidade do doente mental ser colocado em um am-biente criado especialmente para ele, que não seja exte-rior ou acidental com relação ao núcleo básico da práticapsiquiátrica, mas que, obedecendo aos requisitos funda-mentais postulados pelos médicos, deve canalizar suaação para possibilitar sua eficácia. Nl0 há, portanto,entre o hospício e a psiquiatria relação de exterioridade.O hospício é mais do que um espaço utilizado para amedícalização da loucura: é uma instituição concebidamedicamente. Tanto sua estrutura quanto seu funciona-mento realizam o projeto psiquiátrico nascente.

O isolamento do louco no hospícío justifica-se aonível das causas da doença e ao nível do tratamento. Ohospício separa o louco das causas de sua loucura, inscri-tas na sociedade e principalmente na família. O princípiodo isolamento expressa uma zona de conflito entre afamília da época e a psiquiatria: o louco deve ser distan-ciado do meio doméstico, que não só causa, mas confir-ma, a alienação mental. Trata-se, portanto, de realizar ocontato entre o doente e a família, através do hospício.

Revista de Administração de Empresas

O objetivo do alienista é se colocar como defensor eprotetor da família, na medida em que retira o peso quea amedronta.

O segundo nível de justificação do isolamento é apossibilidade de intervenção terapêutica. Não há curasem isolamento, o que implica que todo tratamento deveser asilar. O hospício se caracteriza por um isolamentoque se constitui não só como um espaço fechado sobre simesmo, mas também como deficiente, heterogêneo comrelação às outras instituições, o que não implica que apopulação asilar seja homogênea: O hospício é um es-paço classificatório que localiza e distribui os indivíduosem seu interior, a partir de categorias muito pouco médi-cas.

A vigilância é uma propriedade essencial do hospí-cio. O louco deve ser vigiado em todos os momentos eem todos os lugares. Deve estar submetido a um olharpermanente. O pessoal administrativo constitui uma redede olhares que se estende por todo o hospício, emboranão seja especialmente localizada. O fundamental é queno hospício está presente o princípio da inspeção, se-gundo o qual deve haver uma presença total e constantedo diretor do estabelecimento junto aos indivíduos, pre-sença essa que deve induzir a um estado conscíente epermanente de visibilidade que assegura o funciona-mento automático do poder. Ao mesmo tempo em que épartilhado, exercido em pontos diferentes e a diversosníveis, o poder deve estar submetido ao médico comoprincípio de sua unificação. "A administração de umasilo de alienados deve ser entregue a um médico: assimo reclama a psiquiatria, assim o aconselha a experiência.Em um estabelecimento desta ordem todo movimento,toda ação deve estar subordinada a um único fim, à curae bem-estar dos alienados. Ao poder administrativo deveestar reunido o poder médico, sem o que não pode haveruma unidade de ação, unidade de governo" (Foucault,1979).

Outra característica básica do hospício é a distri-buição do tempo dos internos. Assumindo o encargo to-tal da vida dos indivíduos, isolando-os e vigiando-os per-manentemente, o hospício prescreve uma ocupação aos.alienados. Não pode ser lugar de ócio ou de inércia, namedida em que o isolamento da sociedade não visa auma simples exclusão de suas fronteiras, mas à possibili-dade de uma reínserção do alienado na sociedade depoisde sua reabilitação através de um tratamento,

Os princípios do isolamento, da organização do es-paço terapêutico, da vigilância e distribuição do temporegem a totalidade da vida dos alienados, atingem cadaminuto de sua existência. Ao mesmo tempo que circuns-crevem individualmente o alienado, percorrendo a minú-cia de seus corpos, de seus gestos, estes princípios dizemrespeito à população que vive / no hospício. Estabele-cendo normas de comportamento, intervindo para queestas normas sejam interiorizadas, transformando ecriando a docilidade, eles funcionam para toda a coletivi-dade que habita o hospício.

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Assim, a grande realização da psiquiatria, na épocade sua constituição, é o hospício como poder disciplinar.Contando com dispositivos específicos, população sele-cionada, arcabouço jurídico, passa a existir uma novarealidade institucional, resultado de uma luta médica.que impõe, cada vez com mais peso, a presença normali-zadora da medicina como uma das características essen-ciais da sociedade em que vivemos.

Verifica-se, então, que a psiquiatria não se constituicomo uma idéia, uma idealídade discursiva, um simplesefeito ideológico, uma justificação ou legitimação com oobjetivo de ofuscar, mistificar, obscurecer os mecanis-mos de dominação de uma classe sobre a outra. Sua açãoé muito mais penetrante, eficaz e positiva. Ela atingediretamente o corpo das pessoas; é uma realidade quedesempenha um papel de transformação dos indivíduos,assumindo o encargo de suas vidas, gerindo sua exis-tência, impondo uma norma ou conduta a um comporta-mento desregrado. Denota, assim, a presença da medi-cina em um aspecto da realidade que até então lhe eraestranho, desconhecido, exterior. Através da psiquiatria,o médico penetra ainda mais profundamente na vida so-cial, através de seu instrumento terapêutico básico que éo hospício.

Na ação da medicina com relação à loucura, tudoconverge para a implantação desse espaço específico dereclusão que, abrigando as pessoas consideradas doentesmentais, é capaz de recuperá-las pela própria força tera-pêutica de sua organização. ~ toda estrutura asilar que,em seus diversos aspectos, se concentra nesse objetivo detransformação da vida de um tipo específico de des-víante, A eficácia do hospício reside em sua presença nasociedade como operação de cura: cura de uma doençaque tem características especiais e que justifica um tipode intervenção que é original com relação à medicinacientífica.

A existência da doença mental pede um tratamentomoral, advindo daí o fato de a intervenção terapêuticada psiquiatria ser menos uma medicação do que umaeducação, A organização arquitetônica deve ser marcadaintrinsecamente por urna característica médica: no hospí-cio o que cura é o próprio hospício; o bom emprego dotempo é condição indispensável do processo de transfor-mação do alienado em um ser útil e dócil: ele deve intro-jetar a lei moral do trabalho; a direção centralizada, con-jugando saber e autoridade, encarna a norma de compor-tamento e estabelece as etapas do percurso terapêutico:o médico deve ocupar o topo da estrutura de poder ca-racterística do hospício; a internação do alienado devepossuir um fundamento legal que evite o perigo das se-qüestrações arbitrárias; a medicina deve impregnar a le-gislação e a justiça.

Toda essa estrutura asilar apresenta característicasde uma instituição total, onde a estrutura hierárquica eheterônoma está presente, refÍetindo, na sua própria es-trutura, toda a estrutura da sociedade na qual esta orga-nização está inserida, sociedade que, ao legitimar essainstituição terapêutica da loucura, confere aos gestoresdessa organização os poderes decorrentes de seu saber -

° saber psiquiátrico. Esse saber confere, então, aos psi-quiatras, o poder de classificação e tratamento de umaanomalia que surge como um desvio, uma patologia, noseio da sociedade "sadia".

2.3 Movimento por maior autonomia institucional dapsiquiatria

Pouco a pouco, porém, surgem críticas ao hospício, esão críticas internas. Entretanto, não se trata de umacrítica à figura do psiquiatra, mas justamente ao queescapa ao seu controle: os obstáculos institucionais emesmo jurídicos a uma gestão intrinsecament~ médico-administrativa. Sentem-se impotentes, sugerem reformase exigem o poder.

A importância dessas críticas é desvelar a próprianatureza da psiquiatria, que possui um duplo significado.Por um lado, é explicitada a exigência de medicalizar umespaço criado para a medicalização do louco. e a dificul-dade que teve a psiquiatria para impor seus objetivos. Adenúncia é parte de uma estratégia por maior poder damedicina, que neste momento tem que se defrontar comoutras instituições ou outras instâncias sociais. para dis-seminar seu projeto 'normalízador da sociedade e ver pos-sibilitado o funcionamento do hospício. Por outro lado.é explicitado o fracasso da psiquiatria como uma ins-tância terapêutica.

A crítica ao mo funcionamento da psiquiatria tem,até hoje, acompanhado sua história, como uma de suascaracterísticas essenciais, atestando uma incapacidade ouurna impossibilidade terapêutica que serve fundamental-mente de apoio a uma exigência de maior medicalização.

A crítica à insuficiência e ineficácia do hospícioaponta para uma exigência de multiplicação de institui-ções articuladas que sejam escudadas por uma lei dandoaos hospícios exclusividade de seqüestração do louco. Oimportante é criar hospícios de características diferentes.de acordo com as necessidades impostas aos loucos; écriar uma lei que regule· a situação do louco na socie-dade.

No sentido de difundir a medicalização do louco. acrítica que se volta para o momento de admissão dolouco no hospício é de particular importância. Atravésdessa discussão são abordados problemas, como o direitode seqüestração, a relação entre o louco e a família.louco e justiça, louco e psiquiatra, louco. e Estado. Fun-damentalmente, a admissão torna-se ponto de destaquena crítica ao funcionamento asilar, por poder conferir.ou não, à psiquiatria, o mandato social do reconheci-mento e destinação do louco.

A.seqüestração do louco é feita em nome da defesada coletividade. A eminência ou realidade de perturba-ção da ordem ou moral pública dá à autoridade o direitode seqüestro. Mas, em princípio, a seqüestração repre-senta um atentado praticado contra o princípio da liber-dade individual, base da organização social: é atentado àsbases do contrato social, sendo, portanto, injusta. Essacontradição só poderá ser resolvida apelando-se para apsiquiatria, que transforma a reclusão, em si negativa, em

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Saber psiquiátrico

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bem, em proteção ao homem enlouquecido. A psiquia-tria faz da seqüestração um ato não arbitrário, mas, paratal, é necessário uma modificação: a psiquiatria deve-setransformar em instância definidora do estatuto dolouco, como doente e como incapaz; portanto, comosujeito a ser tratado e. protegido. A condição para queisso possa ocorrer é o reconhecimento da psiquiatria e adefinição da relação da família, da administração e dohospício com o alienista e com o alienado: a leí medícali-zada pode resolver este problema.

A incapacidade do louco deve ser, portanto, cuida-dosamenteregulada, para que não se transforme em pos-sibilidade de atentado à liberdade individual. O loucodeve delegar sua vida a um elemento idôneo - o psiquia-tra. Não é, portanto, suficiente dar ao louco o estatutode doente. :e necessário e fundamental dar á ele o esta-tuto de minoridade e fazer destes dois aspectos umamesma realidade.

2.4 O louco e o psiquiatra dentro do espaço asilar

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Existe uma correlação histórica do louco e do psiquiatradentro do espaço asilar.

Antes do século XVIII a loucura não era sistematica-mente considerada como uma forma de erro ou deilusão. Os lugares reconhecidos como terapêuticos eramprimeiramente a natureza, pois que era a forma visível daverdade; ela mesma tinha o poder de dissipar o erro.Outro lugar terapêutico usual era o teatro, que se apre-sentava como a natureza invertida: "Apresentava-se aodoente a comédia de sua própria loucura colocando-a emcena, que era verdadeira por meio de cenários e fantasias,de forma que, caindo nesta cilada, o engano acabasse porestourar diante dos próprios olhos daquele que era suavítima" (Foucault, 1977).

A prática do internamento, no começo do séculoXIX, coincidiu com o momento em que a loucura épercebida com relação à conduta regular e normal, e nãocom relação ao erro. :e o momento em que aparece comodesordem na maneira de agir, de querer, de sentirpaixões, de tomar decisões e de ser livre.

"Existem alienados cujo delírio é quase imperceptí-vel; não existe um no qual aSpaixões, as afeições moraismo sejam desordenadas, pervertidas ou anuladas ( ... ) Adiminuição do delírio é só um sinal efetivo de curaquando os alienados retornam às suas primeiras afeições"(Machado, 1978).

A função do asilo, então, é a de permitir a desco-berta daverdade da doença mental, afastar tudo aquiloque no meio do doente possa mascará-la, confundi-la,dar-lhe formas estranhas, alimentá-la e também estimu-lá-la. Mais do que um lugar de desvelamento, o hospícioé um lugar de confronto. Este afrontamento produzirádois efeitos'; a vontade do doente, que não é expressa emnenhum delírio e que, por isso, poderia permanecer ina-tingível, revelará abertamente seu mal, pela resistênciaque contrapõe à vontade reta do médico; e, por outrolado, a luta que a partir daí se instala poderá conduzir avontade reta à vitória e a vontade perturbada à sub-

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missão e à renúncia. Instala-se, portanto, um processo deoposição" de luta, .de dominação. Estabelece-se, então, afunção do hospital psiquiátrico: "lugar de diagnóstico ede classificação, retângulo botânico onde as espécies dedoenças são divididas em compartimentos cuja dispo-sição lembra uma vasta horta, mas também espaço fe-chado para um confronto, lugar de uma disputa, campoinstitucional onde se trata de vitória e de submissão. Ogrande médico do asilo é, ao mesmo tempo, aquele quepode dizer a verdade da doença pelo saberque dela tem,e aquele que pode produzir a doença em sua verdade esubmetê-la, na realidade, pelo poder que sua vontadeexerce sobre o próprio doente" (Revista Tempo Brasi-leiro, 1974).

Todas as técnicas ou procedimentos efetuados noasilo - isolamento, interrogatórios, tratamentos, puni-ções, pregações morais, encorajamentos ou repreensões,disciplina rigorosa, trabalho obrigatório, recompensa, re-lações de posse, de domesticidade e, às vezes, de servidãoentre doente e médico - tudo isso contribui para que omédico seja transformado em "mestre da loucura".

Esta exaltação se produz numa época em que opoder médico é garantido e justificado pelos privilégiosdo conhecimento. O médico é competente, conhece asdoenças, os doentes, detém um saber científico, que é oque permite sua intervenção e sua decisão. O poder queo asilo dá ao psiquiatra se justifica e mascara esse podercomo sobrepoder fundamental, produzindo fenômenosintegráveis à ciência médica. O poder do médico lhe per-

o mite produzir, daí em diante, a realidade de uma doençamental, que tem a propriedade de reproduzir fenômenosinteiramente acessíveis ao conhecímento.

2.5 O poder psiquiátrico

Todos os abalos que sacudiram a psiquiatria desde o fimdo século XIX colocaram essencialmente a questão dopoder do médico eo efeito que este poder produziasobre o doente, mais do que seu saber e a verdade quedizia sobre a doença. O que é questionado é a maneirapela qual a verdade pode ser fabricada e comprometidapelo seu poder.

As relações de poder constituíam o aspecto funda-mental da prática psiquiátrica: condicionavam o funcio-namento da instituição asilar, distribuíam as relaçõesentre os indivíduos e regiam as formas de intervençãomédica. O que estava, desde logo. implicado nestas rela-ções de poder era o direito absoluto da não-loucurasobre a loucura. Direito explicitado em termos de com-petência que se exercia sobre uma ignorância. corrigindoerros (ilusões, alucinações, fantasmas) de normalidade eimpondo-se à desordem e ao desvio.

Através desse triplo poder a loucura era constituídacomo objeto de conhecimento possível para uma ciênciamédica, como doença, no exato momento em que odoente mental encontrava-se desqualificado como louco,ou seja, despojado de todo o poder e de todo o saberquanto à sua doença.

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3. SITUAÇÃO ATUAL DA PSIQUIATRIA

"Como todas as invasões, a invasão da psiquiatria najornada do homem através da vida começou nas frontei-ras de sua existência e daí se estendeu gradualmenterumo ao seu interior" (Szasz, 1980).

A partir do início do século, especialmente depoisde cada uma das duas grandes guerras mundiais, o ritmoda conquista psiquiátrica cresceu rapidamente, como sedifundiu, rapidamente também, a ideologia da doençamental. O resultado é que hoje todas as dificuldades eproblemas da vida são considerados doenças psiquiátri-cas, e todos, com exceção daqueles que diagnosticam,isto é, os psiquiatras, são considerados doentes mentais.

"A ideologia psiquiátrica moderna é uma adaptação,.para uma era científica, da ideologia tradicional da teolo-gia cristã. Em vez de nascer para o pecado, o homemnasce para a doença. Hoje, da mesma forma como antiga-mente acontecia com o sacerdote, o médico é o guia dohomem, do berço ao túmulo. Em resumo, enquanto quena Idade da Fé a ideologia era a cristã, a tecnologia eraclerical e o perito era o sacerdote, na Idade da Loucura aideologia é médica, a tecnologia é clínica eo perito é opsiquiatra" (Szasz, 1978).

Hoje, uma característica dominante da nossa eramoderna e burocrática é esse processo de tornar médicose psiquiátricos os problemas pessoais, sociais e políticos.

Como todas as ideologias, a ideologia da doençamental - através dos "diagnósticos", "prognósticos" e"tratamentos psiquiátricos", e incorporada no sistemaburocrático da psiquiatria institucional e seus sanatórios- se expressa caracteristicamente no compromisso comuma imagem ou definição da "realidade" oficialmenteproibida.

A intervenção da psiquiatria contemporânea na vidados indivíduos se dá, hoje, pela tecníficação dos proble-mas éticos que justificam o trabalho psiquiátrico. Se-gundo afirmação de T. J. Sachar, professor associado depsiquiatria da Escola de Medicina Albert Eínsteín deNova Iorque, "o psiquiatra deve considerar, sob umponto de vista científico, todo comportamento - crimi-nal, legal, doentio e sadio - como determinado ... "(Sachar, 1963). Assim, o crime não é mais um problemade direito e moral, mas da medicina e dos terapeutas.Essa transformação de ético em técnico - de crime emdoença, de direito em medicina, de criminologia em psi-quiatria, e de punição em terapia '- é assumida pormuitos médicos, cientistas sociais e leigos.

3.1 Definição da doença mental - uma análise crítica

As definições e considerações descritas neste tópico to-mam por referência as análises e crítícas elaboradas porThomas S. Szasz, psiquiatra e professor de psíquiatria.naUniversidade do Estado de Nova Iorque em Siracusa, queestudou não só a questão da psiquíatria institucional,como, também é autor de uma obra sobre o mito e aideologia da doença mental.

T. Szasz questiona se existe, Ou não, o que se chamade doença mental e defende a idéia de que não existe.Segundo ele, a doença mental não é uma coisa ou objetofísico, só pode existir da mesma maneira que os outrosconceitos teóricos.

Em certos períodos históricos, conceitos explicati-vos, tais como divindades, feiticeiras e instintos, aparece-ram, não somente como teorias, mas como causas evi-dentes por si, de um vasto número de eventos. "Hoje emdia, afirma Szasz, a doença mental é vista, largamente, dewn modo semelhante, ou seja, como a causa de inúmerosacontecimentos diferentes" (Szasz, 1980, p.19).

Toda a discussão que se segue será feita na tentativade descrever os principais usos da doença mental e dedemonstrar que essa noção tem sobrevivido a despeito dautilidade que possa ter tido para o conhecimento, e queagora funciona como um mito.

3.2 Noção de doença mental

A noção de doença mental é definida e se explica, princi-palmente, por fenômenos tais como a sífilis cerebral, ouparalisia cerebral, ou os estados de delírio nos quais aspessoas podem manifestar certas desordens .de pensa-mento e comportamento. Portanto, ,são doenças do cére-bro e não da mente. De acordo com algumas escolas depensamento, toda doença mental é desse tipo. O pressu-posto dessa teoria é de que algum defeito neurológicoserá por fim encontrado para explicar todas as desordensde pensamento e comportamento. Essa definição dedoença mental tem sido aceita por muitos médicos, psi-quiatras e outros cientistas contemporâneos, o que im-plica que se reduza todos os problemas das pessoas àscausas citadas acima, e não a necessidades pessoais con-flitivas, 'opiniões, aspirações sociais e valores. Assim,esses "problemas existenciais" são atribuídos a processospsicoqufmicos e classificados como sintomas de doençamental.

Dessa maneira, as doenças mentais são consideradas,basicamente, como semelhantes às outras doenças, sendoque a única diferença entre doença mental e doença cor-poralé que a primeira, afetando o cérebro, manifesta-sepor meio de sintomas mentais, enquanto que a doençacorporal, afetando outros sistemas dó organismo, mani-festa-se por sintomas referentes àquelas partes do corpo.

Por outro lado, o termo "doença mental" é tambémde amplo uso para descrever algo totalmente da doençacerebral. No contexto das dificuldades encontradas navida moderna, onde, para muitas pessoas, viver consti-tui-se uma tarefa penosa, onde as dificuldades da vidapara o homem moderno derivam das depressões e ten-sões inerentes à interação social entre personalidades hu-manas, a noção de doença mental é usada para identifi-car ou descrever algum aspecto da assim chamada perso-nalidade de um indivíduo. A doença mental - comodeformação da personalidade - é vista, então, como acausa da desarmonia humana, como se a interação socialentre pessoas significasse algo inerentemente harmonio-

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Saber psiquiâtrico

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so, sendo seu distúrbio devido à presença da "doençamental" em várias pessoas.

Segundo Szasz, esse raciocínio é falho porque faz daabstração "doença mental" a causa de certos tipos decomportamento humano.

O conceito de enfermidade, física ou mental, im-plica a noção de de~o de alguma norma claramentedefmida. No caso de enfermidade física, a norma e aintegridade estrutural e funcional do corpo humano.Assim, à questão - o que é saúde - pode-se responderem termos anatômicos e fisiológicos. Já com relação àquestão - o que é a saúde mental - a resposta torna-semais difícil de ser dada; qualquer que seja a norma, po-rém, essa deve ser estabelecida em termos de conceitospsicossociais, éticos e legais. Portanto, quando alguémfala de doença mental, a norma à qual o desvio é compa-rado é um padrão psicossocial e ético. Contudo, procura-se corrigir o "desvio" através de medidas "médicas", quesão supostas de serem isentas de valores éticos.

Decorre daí uma questão que é relativa à competên-cia do saber médico: identificadas as normas usadas paramedir os desvios nos casos de perturbação mental, quemdefine as normas e os conseqüentes desvios?

Em primeiro lugar, pode ser o próprio paciente, istoé, a pessoa quem decide se se desvia de uma norma; oupode ser outra pessoa, que não o "paciente", quem de-cide se este está perturbado, como, por exemplo, os pa-

. rentes, médicos, autoridades legais, a sociedade em geral.Assim, o psiquiatra pode ser contratado poroutros, quenão o "paciente", para fazer-lhe algo para corrigir odesvio no qual se encontra. De uma certa maneira, então,o psiquiatra pode ser agente do paciente, dos familiares,da escola, do serviço militar, de uma empresa, corte judi-ciária, etc.

Desse modo, no uso social contemporâneo, supõe-seque a doença mental se estabeleça a partir de um desviode comportamento de, certos padrões psicossociais,éticos ou legais. O julgamento a respeito desses desviospode ser feito pelo paciente, pelo psiquiatra ou outros, Aação terapêutica tende, finalmente,' a ser procuradanuma estrutura médica, criando, portanto, uma situaçãona qual se afirma que os desvios psicossociais, éticos elegais podem ser corrigidos pela ação médica. Cria-se,então, um impasse, pois que, já que as intervenções mé-dicas são designadas para curar somente problemas médi-cos, não se pode esperar ,que essas intervenções possamresolver problemas cuja existência tem sido definida eestabelecida em bases não médicas.

Do que foi delineado acima, podemos deduzir queos psicoterapeutas contemporâneos lidam com proble-mas existenciais, e não com doenças mentais e suascuras. Porém, essa constatação contrasta profundamentecom a posição que prevalece hoje entre os psiquiatras,que dizem tratar de "doenças mentais" que são tão"reais" e "objetivas" quanto as doenças físicas. SegundoSzasz, esta afirmação da psiquiatria contemporânea não

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possui argumentos suficientes que a sustentem e, dizmais, que é usada como urna espécie de propaganda psi-quiátrica, com o objetivo de criar na mentalidade popu-lar urna convicção de que a doença mental é um tipo deentidade patológica, como uma infecção ou urna molés-tia.

Enquanto o termo "doença física" se refere a ocor-rências físico-químicas que não são afetadas quando tor-nadas públicas, o termo, "doença mental" refere-se aeventos sócio-psicológicos, profundamente afetadosquando tornados públicos. Desse modo, o psiquiatra nãopode e não. consegue ficar alheio à pessoa que observa,como o pode fazer, e o faz, o patologista. O psiquiatraestá comprometido com um quadro daquilo que consi-dera a realidade e com o que pensa que a sociedadeconsidera real; observa e julga o comportamento do pa-ciente à luz dessas crenças. A simples noção de "sintomamental" ou de "doença mental" implica uma compara-ção dissimulada e freqüentemente em conflito entreobservador e observado, psiquiatra e paciente: Paradoxal-mente, a psiquiatria insiste em negar os aspectos moraisenvolvidos nos "tratamentos" que propõe, substituindo-os por conceitos e intervenções médicas pretensamenteisentas. A psiquiatria é, pois, praticada como se não acar-retasse nada além de restaurar o paciente de um estadode enfermidade mental para um estado de sanidade men-tal, sem que apareçam neste processo os problemas devalores, como se a doença mental nada tivesse a ver comas relações sociais e interpessoais do homem •

e. nos conflitos de valores existentes na sociedademoderna que reside a fonte dos conflitos nas relaçõeshumanas. Esta é uma afirmação que se constata emtodos os níveis e planos dos relacionamentos sociais. En-tretanto, as teorias científicas do comportamento falhamem aceitar o fato de que as relações humanas são ineren-temente carregadas de dificuldades e que depende de umtrabalho árduo torná-las mais harmoniosas. Assim, aidéia de doença mental tem funcionado como um dis-farce: "Em vez de chamar a atenção para necessidades, 'aspirações e valores humanos conflitantes, o conceito dedoença mental produz uma coisa moral e impessoal -urna doença - como explicação para problemas existen-ciais' ( ... ) A crença na doença mental, como algo dife-rente do problema do homem em conviver com seussemelhantes, é a própria herdeira da crença em demôniose feitiçarias. Assim, a doença mental existe, ou é real,exatamente no mesmo sentido no qual as feiticeiras exis-tiam ou eram reais (Szase, 1980, p. 27).

3.3 O mito da doença mental

Segundo Szasz tem tentado demonstrar, a noção dedoença mental tem 'sobrevívído a qualquer utilidade quepossa ter tido e agora funciona como mito. Dessa ma-neira ela se constitui como herdeira legítima dos mitosreligiosos, em geral. A função desse sistema de crençasera agir como tranqüilízadores. sociais. Assim, o conceitode doença mental é usado, principalmente, para obscure-

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cero fato cotidiano de que a vida, para a maioria daspessoas, é uma luta contínua, por algum outro signifi-cado de vida ou valor. Neste conflito de valores, em meioà insegurança de não saber o que fazer com sua própriavida, a adesão ao mito da doença mental permite às pes-soas evitar confrontar-se com seu problema, acreditandoque a saúde mental - ausência de doença mental - asse-gura a escolha certa e segura na condução da vida.

A expressão "doente mental" tem sido usada cor-rentemente e de forma análoga à noção de "doente fí-sico". Quando nos referimos a pessoas fisicamente doen-tes, usamos essa expressão para descrever um estado físi-co em que o funcionamento do corpo viola certas normasanatômicas e fisiológicas; da mesma forma, quando nosreferimos a pessoas mentalmente insanas, nos referimos apessoas cuja conduta pessoal viola certas normas éticas,políticas e sociais. Isso acontece porque o mito dadoença mental nos faz acreditar, através dos conceitosutilizados para rotular a insanidade mental, que existeum conceito de normalidade no que refere às relaçõessociais, isto é, que estas seriam harmoniosas, não fossepelas influências desagregadoras da doença mental.

A conseqüência derivada dessa classificação dedoença mental, atingindo todos os problemas existen-ciais da vida do homem moderno, é que ela cria a contra-partida, isto é, a necessidade de um tratamento baseadoem linhas médicas e psicoterápicas, que sugere que oalcance da sanidade mental só poderá ser realizada pormeio da ajuda de um profissional competente - o psi-quiatra.

3.4 A psiquiatria institucional

Hoje em dia, são classificados de doentes mentais aquelesindivíduos que não obedecem à lei e que desafiam asconvenções da moralidade e da sociedade. Na maioriadas vezes, esses indivíduos são colocados involuntaria-mente neste papel, e a organização responsável por suasituação é a psiquiatria institucional.

A psiquiatria institucional pode ser definida comointervenções psiquiátricas impostas por outros às pes-soas. Essas intervenções se caracterizam por perda com-pleta de controle, pelo "paciente", de sua participaçãonas relações com o especialista. O serviço tipico da psi-quiatria institucional é a hospitalização involuntária emhospital psiquiátrico (Szasz, 1978).

A psiquiatria institucional apresenta vári IS caracte-rísticas, sendo que a característica econômica mais im-portante é que o psiquiatra institucional é um emprega-do burocrático, pago pelos seus serviços por uma organi-zação particular ou oficial (e nãopelo indivíduo que é oseu cliente); e sua característica social mais importante éo uso da força. Além do processo de imposição e dointernamento a longo prazo do insano, as intervençõesdo psiquiatra institucional incluem diversas medidas - oexame dos acusados para verificar sua sanidade ou suacapacidade para enfrentar julgamento; de empregadospara verificar sua capacidade para um emprego; de candí-

datos à Universidade; Faculdade de Medicina ou Institu-to de Psicanálise, para verificar sua adequação para aadmissão nestas instituições. Os psiquiatras empregadospelos hospitais psiquiátricos públicos, por serviços desaúde, das universidades, pelas organizações militares, pe-los tribunais, pelas prisões e outros em posição seme-lhante são, segundo essa definição, psiquiatras institu-cionais.

A apropriação da loucura como objeto primordialda psiquiatria institucional surge com o declínio do po-der da Igreja e da interpretação religiosa do mundo, numnovo clima cultural - secular e científico - onde conti-nuavam a existir os prejudicados, os dissidentes e oshómens que pensavam e criticavam demais. Os não-con-formistas, quando a regra era ser conformista, os quefaziam objeções, os que questionavam a ordem estabele-cida, enfim, todos os que negavam os valores dominantesda sociedade ou se recusavam a aceitá-las, eram conside-rados os inimigos da sociedade. Como a ordenação ade-quada dessa nova sociedade era conceituada em funçãoda saúde pública, seus inimigos internos eram considera-dos loucos. Para proteger a sociedade da ameaça repre-sentada pelo alienado, surge a psiquiatria institucional.

Esta instituição tem três .séculos de existência e,cada vez mais, se consolida enquanto saber, pois con-tinua a significar um movimento de salvaguarda dos valo-res vigentes na sociedade, que a legitima e lhe confere ospoderes de intervenção, classificação e tratamento da-queles que ameaçam a ordem, a moral e a "harmonia"reinante. Cada vez mais, ela amplia o âmbito de suaatuação, pois, com o poder que possui - advindo de suacompetência e de seu saber - com a legitimação da so-ciedade, com a ideologia que a sustenta, ela assume parasi a tarefa de resolver todas as dificuldades encontradaspelo homem moderno, na trajetória de sua vida, transfor-mando todas essas dificuldades em problemas e "doen-ças" mentais, e oferecendo "ajuda" para a solução oucura dessas "doenças".

O que podemos perceber, através da análise reali-zada neste ensaio, é que, cada vez mais', a psiquiatriaamplia seu universo de intervenção, a partir da apropria-ção, cada vez mais abrangente, de um objeto que conti-nua indefinido concretamente e que, por isso mesmo,passível de ser absorvido por um saber que se diz compe-tente e científico.

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Outra constatação é que a psiquiatria cumpre umafunção social bem determinada, que reside no serviçoque ela presta à sociedade através de um sistema inte-lectualmente significativo, moralmente elevado e social-mente bem organizado no sentido da afirmação dos valo-res dominantes. Tranqüilizando as angústias maciças -mobilizadas por um excesso de escolhas, ausência decausas valiosas e de líderes que mereçam confiança - apsiquiatria atende também a essa função que lhe foraconfiada pela sociedade: disfarçar, e assim tornar maisaceitável, a emergência dos conflitos morais existentesnas relações sociais e humanas.

Saber psiqui4trico

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