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25/11/2010 1 1. O Sentido do Prefácio O que fazem os autores nos seus prefácios? Expõem suas conclusões e comparam o seu trabalho com o dos outros. Mas fazer filosofia não é isso: os resultados não valem muito sem o CAMINHO, o DESENVOLVIMENTO que conduz a eles. “A realidade efetiva consiste no caminho mais o termo”. (P. Meneses) Faz-se com a mesma rigidez a oposição simples entre o verdadeiro e o falso, exigindo em relação a um sistema filosófico uma atitude de aprovação ou rejeição: A opinião não concebe a diversidade dos sistemas filosóficos como o progressivo desenvolvimento da verdade, mas vê na diversidade apenas a contradição” (PhG, par. 2) “O botão desaparece no desabrochar da flor, e pode-se dizer que é refutado pela flor. Igualmente, a flor explica-se por meio do fruto como um falso existir da planta, e o fruto surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas formas não apenas se distinguem, mas se repelem como incompatíveis entre si. Mas a sua natureza fluida as torna, ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra; e é essa igual necessidade que unicamente constitui a vida do todo. Mas a consciência que apreende tal contradição não sabe libertá-la e mantê-la livre com relação à sua unilateralidade, nem reconhecer momentos necessários na figura do que aparece sob a forma de luta e oposição contra si mesmo”. (PhG, par. 2)

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25/11/2010

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1. O Sentido do Prefácio

• O que fazem os autores nos seus prefácios?

– Expõem suas conclusões e comparam o seu trabalho com o dos outros.

• Mas fazer filosofia não é isso: os resultados não valem muito sem o CAMINHO, o DESENVOLVIMENTO que conduz a eles.

• “A realidade efetiva consiste no caminho mais o termo”. (P. Meneses)

• Faz-se com a mesma rigidez a oposição simples entre o verdadeiro e o falso, exigindo em relação a um sistema filosófico uma atitude de aprovação ou rejeição:

• “A opinião não concebe a diversidade dos sistemas filosóficos como o progressivo desenvolvimento da verdade, mas vê na diversidade apenas a contradição” (PhG, par. 2)

“O botão desaparece no desabrochar da flor, e pode-se dizer que é refutado pela

flor. Igualmente, a flor explica-se por meio do fruto como um falso existir da

planta, e o fruto surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas formas

não apenas se distinguem, mas se repelem como incompatíveis entre si. Mas a

sua natureza fluida as torna, ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica

na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão

necessariamente quanto a outra; e é essa igual necessidade que unicamente

constitui a vida do todo. Mas a consciência que apreende tal contradição não

sabe libertá-la e mantê-la livre com relação à sua unilateralidade, nem

reconhecer momentos necessários na figura do que aparece sob a forma de luta

e oposição contra si mesmo”. (PhG, par. 2)

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• Essas explicações sobre os fins e os resultados dão a aparência de lidar com o essencial, mas não passam de uma apreciação da coisa mesma, um girar em torno dela.

• Mas, diz Hegel: “a coisa (die Sache) não se consuma no seu fim, mas na sua atuação, e o todo efetivo não é o resultado, a não ser juntamente com o seu devir”.

• Ainda: “O fim para si é o universal sem vida, assim como a tendência é o puro impulso que ainda carece de sua realidade efetiva; e o resultado nu é o cadáver que a tendência deixou atrás de si”

Voltaremos a este ponto, oportunamente.

“A coisa (die Sache, contradistinta de das Ding) é, na unidade de um mesmo todo, o princípio, o movimento ou devir, e o resultado. Hegel se opõe desde o início à posição, como princípio separado do seu devir e do seu resultado, de uma universalidade abstrata, ou princípio lógico absoluto, como o PRINCÍPIO

DA IDENTIDADE. Aqui começa o dissenso com o seu amigo e colega Schelling”. (H. C. de Lima Vaz)

• “Do mesmo modo, a diversidade *‘Verschiedenheit: a pura diversidade que diferencia uma coisa da outra apenas extrinsecamente, pelos seus limites (Grenze)’+ é sobretudo o limite da coisa. Ela começa onde a coisa termina e é o que a coisa não é”. (PhG, par. 3)

• Lidar com o fim e os resultados, assim como com as suas diversidades e os juízos a respeito deles é o mais fácil. Difícil é apreender e produzir a exposição(Darstellung) da coisa.

• DARSTELLUNG: A APRESENTAÇÃO OU EXPOSIÇÃO DA COISA NA QUAL O SEU CONTEÚDO E A SUA UNIVERSALIDADE SE UNIFICAM NO MOVIMENTO DA SUA AUTOCOMPREENSÃO NO CONCEITO. OPÕE-SE A VORSTELLUNG, REPRESENTAÇÃO SUBJETIVA, QUE PERMANECE EXTERIOR À COISA.

• A filosofia deve ter como meta aproximar-se mais e mais da forma da Ciência, deixando de ser “amor ao saber” e tornando-se SABER EFETIVO.

• Para Hegel, duas necessidades, uma INTERNA e outra EXTERNA, conduzirão a isto: a de que todo saber há de ser Ciência e a de que O TEMPO ATUAL (DE HEGEL) SE FAZ PROPÍCIO À ELEVAÇÃO DA FILOSOFIA EM CIÊNCIA.

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A verdade não está na intuição dos românticos:

• Hegel não pretende simplesmente refutar, mas opor-se à tese de que somente é possível captar a verdade na intuição ou no saber imediato do Absoluto, do ser, do belo. (Crítica ao irracionalismo romântico, dirigida em especial ao – até então –amigo íntimo Schelling)

• Hegel justifica historicamente essa atitude romântica:

“o homem moderno perdeu o mundo sacral em que a fé o unia imediatamente a Deus, e foi parar no outro extremo, além da reflexão. Quer que a filosofia lhe restitua, pela intuição, seu mundo perdido; ainda que sob a forma pobre do divino em geral (...) [Mas] fora do conceito, só existe profundidade vazia, idêntica à superficialidade; reina o capricho e o sonho, em lugar da verdade”. (P. Meneses)

• Hoje o mundo humano está mergulhado no sensível e afastado de Deus:

“A essa exigência corresponde o esforço tenso e quase violento e irritado para arrancar os homens do seu afundamento no sensível, no vulgar e no singular, e para dirigir o seu olhar para as estrelas como se eles, totalmente esquecidos do divino, estivessem a ponto de se contentar, como o verme da terra, com lama e água”. (PhG, par. 8)

• Antigamente era o oposto:

“Outrora tinham os homens um céu ornado com vastas riquezas de pensamentos e

imagens. A significação de todas as coisas se encontrava no fio de luz que as prendia ao

céu. Demorando no céu em lugar de permanecer neste presente, o olhar deslizava sobre

ele em direção à essência divina, em direção a uma presença no além, se assim se pode

falar. Somente forçado, o olhar do Espírito deveria ser dirigido ao terreno e ali mantido. Foi

preciso um tempo bem longo [1] para introduzir na escuridão e confusão na qual jazia o

sentido do aquém aquela clareza de que somente o supra-terreno gozava e [2] para tornar

interessante e apreciada aquela atenção ao presente como tal, que foi chamada

EXPERIÊNCIA. Agora parece que se apresenta a necessidade do contrário, o sentido está de

tal sorte enraizado no terreno que é preciso uma força igual para elevá-lo acima dele. O

Espírito se mostra tão pobre que, assim como o caminhante no deserto aspira por uma

simples gota d’água, ele parece apenas aspirar, para desalterar-se [para seu reconforto], ao

sentimento do indigente do divino em geral. A grandeza da perda do Espírito pode ser

medida por aquilo com que ele se contenta”. (PhG, par 8)

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Um novo tempo exige uma nova filosofia:

• O mundo não muda apenas quantitativamente; às vezes se processam transformações qualitativas de grande relevo.

• Surge uma NOVA FIGURA DO ESPÍRITO, uma NOVA TOTALIDADE, que contudo não é ainda perfeita. É como um recém-nascido.

• Mas é ainda um CONCEITO SIMPLES: As diferenças que constituem essa nova totalidade, opondo-a à totalidade anterior, “não estão ainda determinadas com segurança, nem ordenadas em suas sólidas relações”. (Paulo Meneses)

• Vejamo-lo, passo a passo.

Vivenciamos claramente o nascimento de um novo tempo:

• “Não é difícil ver que o nosso tempo é um tempo de nascimento e passagem para novo

período. O Espírito rompeu com o mundo de seu existir e do seu representar que até agora

subsistia e, no trabalho da sua transformação, está para mergulhar esse existir e esse

representar no passado. Na verdade, o Espírito nunca está em repouso, mas é concebido

sempre num movimento progressivo. Mas, assim como na criança, depois de um longo e

tranqüilo tempo de nutrição, a primeira respiração – UM SALTO QUALITATIVO – quebra essa

continuidade de um progresso apenas quantitativo e nasce então a criança, assim como o

Espírito que se cultiva cresce lenta e silenciosamente até a nova figura e desintegra pedaço por

pedaço o seu mundo precedente. Apenas sintomas isolados revelam seu abalo. A frivolidade e

o tédio que tomam conta do que ainda subsiste, o pressentimento indeterminado de algo

desconhecido, são os sinais precursores de que qualquer coisa diferente se aproxima. Esse

lento desmoronar-se, que não alterava os traços fisionômicos do todo, é interrompido pela

aurora que, num clarão, descobre de uma só vez a estrutura do novo mundo”. (PhG, par. 11)

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Mas esse mundo novo, assim como a criança, não tem ainda uma EFETIVIDADE (Wirklichkeit) perfeita ou acabada. É uma realidade ainda em-si ou potencial:

• Ponto fundamental para Hegel. O primeiro a surgir é a IMEDIATEZ ou o CONCEITO daquele novo mundo.

• Um edifício não está pronto em seus alicerces, assim como esse conceito simples do todo não é o próprio todo.

• “Assim também a Ciência, que é a coroa de um mundo do Espírito, não está perfeita em seu começo”.

• Cada começo, resultante de amplo e intricado caminho de revolvimento de variadas formas de cultura, “é o todo que retorna a si mesmo a partir da sua sucessão [no tempo] e de sua extensão [no espaço]; e é o conceito simples, que se tornou tal, desse todo [é o conceito que-veio-a-ser conceito simples no todo]”. (PhG, par. 12)

• A primeira aparição do novo mundo é apenas o todo envolvido na sua simplicidade ou o fundamento universal do todo.

• Mas para a consciência, ao contrário, “a riqueza do existir anterior ainda está presente na recordação”. Ou seja: “Ela [a consciência] ainda não encontra, na nova figura que surgiu, a expansão e particularização do conteúdo”, nem a elaboração da nova configuração do Espírito em suas diferenças e relações.

• Assim, sem tal inteligibilidade universal, essa forma parece esotérica (só pertencente e acessível a poucos), enquanto a Ciência verdadeiramente desenvolvida é exotérica (acessível a todos).

• “Somente o que é totalmente determinado é também exotérico, é compreensível, capaz de ser ensinado e de tornar-se propriedade de todos”. (PhG, par. 13)

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• A consciência que se aproxima da ciência exige, com justiça, chegar ao saber racional por meio do entendimento. Ela almeja a INTELIGIBILIDADE.

• E o que é a inteligibilidade?

“A forma inteligível da ciência é o caminho para ela oferecido a todos e tornado igual para todos (...) o inteligível é o já-conhecido e o que é comum à ciência e à consciência não-científica, por meio do qual essa consciência pode penetrar imediatamente na ciência”. (par 13)

• “NÃO PERTENCE À ESSÊNCIA DA CIÊNCIA SER INCOMPLETA” (P. Meneses)

• É preciso “reconhecer a exigência do processo de formação cultural”.

• Críticas de Hegel a duas correntes em oposição recíproca e que formam um nó fundamental nesse caminho:

– “Uma corrente insiste na riqueza dos materiais e na inteligibilidade”.– “A outra corrente despreza, no mínimo, essa inteligibilidade e se arroga a

racionalidade imediata e a divindade”

• Suas exigências são justas, embora não tenham sido atendidas.

• Schelling reúne grande extensão de materiais diversos e submete tudo à Idéia absoluta. Mas vendo tal relação mais de perto, tais amplitude e diversidade não ocorreram porque um princípio uno e idêntico se configurara de diferentes modos. NA VERDADE, “É A REPETIÇÃO INFORME DO UNO E DO IDÊNTICO QUE APENAS EXTERIORMENTE É APLICADO A UM MATERIAL DIVERSO, E ALCANÇA ASSIM UMA APARÊNCIA TEDIOSA DE DIVERSIDADE. NA REALIDADE, A IDÉIA, QUE É CERTAMENTE VERDADEIRA PARA SI, PERMANECE APENAS SEMPRE NO SEU COMEÇO SE A EVOLUÇÃO SE LIMITA A SEMELHANTE REPETIÇÃO DE UMA MESMA FÓRMULA”. (PhG, par. 15)

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• ESTE SABER APLICA SUPERFICIALMENTE A MESMA FORMA IMÓVEL E UNA À REALIDADE, OU

MERGULHA A REALIDADE, A MATÉRIA DO SABER, DESDE FORA, NESSA FORMA ESTÁTICA,

“TRANQUILA”. (ibid.)

• TRATA-SE DE UM FORMALISMO MONOCROMÁTICO, CONSTATA HEGEL. Só atinge a diferença do

conteúdo, e mesmo assim por que este já é encontrado pronto e conhecido (pelas ciências

particulares da natureza).

• Voltando um pouco a Schelling e sua Filosofia da Identidade:

Para Schelling, a razão absoluta é essencialmente tudo e ela é uma: é a totalidade absoluta, que se

exprime pela fórmula A=A. Ela não é a causa do universo, é o próprio universo. Mas há coisas e uma

realidade finita. Como elas se explicam então? Por uma simples diferenciação quantitativa entre o

subjetivo e o objetivo, conclui Schelling: “A diferença quantitativa do subjetivo e do objetivo é o

fundamento de toda finitude e, inversamente, a indiferença quantitativa dos dois é a infinidade”.

O que é o ser finito, à vista disso? Apenas uma forma “determinada” do ser, a Identidade Absoluta,

forma na qual ora predominará o objetivo, ora o subjetivo.

Esquema schellinguiano da estrutura do ser:

A+ = B B+ = A

A = A

As primeiras séries representam, respectivamente, as filosofias do espírito e

da natureza. A potência (Potenz) é o momento ou grau da expressão do

Absoluto de um modo relativo (uma “TOTALIDADE RELATIVA”). A série B+ = A

reflete o mínimo de subjetividade, pelo que se obtém a matéria. A série A+ =

B expressa o mínimo de objetividade: a obra de arte, ou seja, a verdade e a

beleza. A = A é o ponto de indiferenciação absoluta entre os termos

extremos.

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• Escreve Schelling: “As coisas-em-si são Idéias [assumidas por Schelling num sentido platônico] realizando-se ou manifestando-se no ato de conhecimento eterno e, como, no Absoluto, as Idéias formam, por sua vez, uma única Idéia, todas as coisas não formam, verdadeira e interiormente, senão Uma Essência”.

• A questão que sempre perturbou: por que razão, da Indiferença ou da Identidade Infinita, nascem a diferenciação e o finito?

• Agora a crítica de Hegel, novamente:

• “Tal formalismo sustenta que essa monotonia e essa universalidade abstrata são o Absoluto”. (PhG, par. 16)

• “Todo o valor é atribuído à Idéia universal nessa forma de inefetividade: assistimos à dissolução do que é diferenciado e determinado, sem que isso seja conseqüência do desenvolvimento nem se justifique em si mesmo”. (ibid.)

• “Aqui, considerar um ser-aí (Dasein) qualquer, segundo o modo como

ele está no Absoluto, consiste aqui somente em dizer que dele se

falou como se fosse um certo ‘algo’, mas que no Absoluto, no A=A,

não há nada disso, pois lá tudo é uma coisa só. É ingenuidade de

quem está vazio de conhecimento consiste em opor esse saber único

– de que tudo é igual no Absoluto – ao conhecimento diferenciador e

pleno (ou que busca a plenitude) [este o saber verdadeiro]; ou então

fazer de conta que seu Absoluto É A NOITE EM QUE TODAS AS VACAS

SÃO PRETAS *‘todos os gatos são pardos’+, como se costuma dizer”.

• O Absoluto em Schelling é o nada das diferenças:

nem isto, nem aquilo.

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2. Características da filosofia que busca elevar-se à condição de Ciência

• O verdadeiro NÃO É APENAS SUBSTÂNCIA, mas fundamentalmente SUJEITO.

• Substância é ser, o objeto imediato para um saber, também imediato, de um universal. Uma dupla imediatez.

• A substância de Spinoza abolia a subjetividade verdadeira.

• O “pensamento como pensamento” de Kant e Fichte não passa de uma substancialidade imóvel e indiferenciada.

• E Schelling, como se viu, com a afirmação da intuição imediata, recai na simplicidade inerte e não dá conta da realidade verdadeira.

• “A substância viva”, diz Hegel, “é o ser, que na verdade é sujeito”, isto é, “que é efetivo”. Mas é efetivo somente sendo o movimento de pôr-se a si mesmo; ou seja, como a mediação consigo mesmo do tornar-se outro”. (PhG, par. 18)

• “Só essa igualdade restaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-

Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade imediata enquanto tal. O

verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua

meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e

seu fim”. (PhG, par. 18)

• “O Absoluto como Sujeito implica um desenvolvimento da simples unidade para

a desunidade e um retorno à unidade diferenciada”. (M. Inwood)

• “Pensar o Absoluto é pensar o que é irrepresentável: não uma essência separada,

uma substância, mas uma essência encarnada na singularidade, um sujeito”. (J.-

F. Kervégan)

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O papel do Negativo:

• A vida de Deus pode ser expressa como jogo de amor consigo mesmo, desde que não se ignorem a seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do negativo.

• Em si, a vida divina é unidade serena e tranqüila, a “igualdade imperturbável e a unidade consigo mesma”; não está engajada no ser-outro, nem na alienação, nem no movimento para superar essa alienação. [a Entfremdung: o tornar-se-estranho-a-si-mesmo]

• Para si, porém, sua natureza é o movimento de sua forma, a atualização de sua essência.

• “O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que atinge a completude por meio do seu desenvolvimento”. (PhG, par. 20) O Absoluto só é o que na verdade é apenas no fim.

• Isso pode parecer estranho e mesmo paradoxal. Mas, reflita-se melhor: dizer o universal “todos os animais” não constitui uma Zoologia. Homologamente, “divino”, “absoluto”, “eterno” são palavras que não exprimem o que nelas está contido.

Importância do Devir e da Mediação:

• Então não será absurdo conceber o Absoluto como resultado. Ao contrário, somente assim se poderá concebê-lo.

• Qualquer proposição que se faça para exprimir algo, desde a primeira, já vai conter um ser-outro – uma mediação. É isso o que horroriza tanto. Dir-se-á “que a mediação não é nada de Absoluto e não tem lugar no Absoluto”. (PhG, par. 31) Mas qualquer palavra daquelas (“divino”, “eterno”) – e será necessário mais que uma ou outra – já “contém um tornar-se Outro”.

• Mediação é igualdade-consigo-mesmo-semovente. É a reflexão sobre si, o momento do eu-existente-para-si ou do simples devir.

• A Reflexão é o momento positivo do Absoluto, já que suprassume a oposição entre o verdadeiro e o seu devir. É o simples que se mostra no resultado, a imediatez que vem a ser.

• O embrião é homem em si. O homem só é efetivamente homem, só é homem para si, como razão cultivada e desenvolvida. Ele se tornou aquilo que ele é em si.

• O resultado é uma nova imediatez: liberdade consciente de si que repousa em si mesma. Não abandona a oposição ser-em-si / ser-outro (“fora de si”), mas se reconcilia com ela: ser em-e-para-si.

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• Hegel reflete sobre Aristóteles, julgando-o precursor desta abordagem:

“Assim como Aristóteles também determina a natureza como um agir conforme a um fim, o fim é o imediato, o-que-está-em-repouso, o imóvel que é ele mesmo motor, e que assim é sujeito. Sua força motriz, tomada abstratamente, ó o ser-para-si ou a negatividade pura”. (PhG, par. 22)

• “O fim implementado, ou o efetivo existente, é movimento e vir-a-ser desenvolvido”. (ibid.) Essa inquietude é justamente o Si, que a si mesmo retorna.

• A palavra Deus não diz o que Deus é. Somente o predicado o faz. “Só nesse fim o começo vazio se torna um saber efetivo”.

• Contudo: “Toma-se o sujeito como um ponto fixo, e nele, como em seu suporte, penduram-se os predicados, através de um movimento que pertence a quem tem um saber a seu respeito, mas que não deve ser visto como pertencente àquele ponto mesmo. Ora, só por meio desse movimento o conteúdo seria representado como sujeito. Mas da maneira como está constituído, esse movimento não pode pertencer ao sujeito; na pressuposição daquele ponto fixo, não pode ser constituído de outro modo: só pode ser exterior”. A ANTECIPAÇÃO DA AFIRMAÇÃO “O ABSOLUTO É SUJEITO”, LONGE DE SER A EFETIVIDADE DESSE CONCEITO, TORNA-A ATÉ MESMO IMPOSSÍVEL, POIS O ABSOLUTO É TOMADO COMO UM PONTO EM REPOUSO. MAS “A EFETIVIDADE DO CONCEITO É O AUTOMOVIMENTO”. (PhG, par. 23)

A Dialética Interna ao Sistema:

• O Saber só é efetivo como Ciência (o que significa: como SISTEMA). “A verdade é concreta; desdobra-se em si mesma, e recolhe-se e mantém-se coesa na unidade”. Um sistema é governado por um propósito contido em seu conceito; é um todo articulado de forma intrínseca, e não exterior.

• Se uma proposição filosófica é verdadeira, na condição de princípio fundamental, logo já é, por isso mesma, falsa.

• Por quê? Justamente por ser apenas princípio. Por isso será fácil refutá-la. Mas fazê-lo radicalmente significa considerar o desenvolvimento imanente desse princípio, e não trazer asserções e palpites de fora.

• “O Cristianismo, ao definir o Absoluto como Espírito, exprime numa representação o mais alto

Conceito: que a Substância é essencialmente Sujeito, ou que o Verdadeiro só é efetivamente real

como Sistema. O ser espiritual é, antes de tudo, substância espiritual (em si e para nós). Mas ele

deve ser isto também para si mesmo, isto é, saber do espírito e saber de si como espírito e

portanto objeto de si mesmo – objeto suprassumido e refletido em si mesmo. Assim o espírito

que se sabe desenvolvido como espírito é a Ciência – sua efetividade e seu reino em si mesmo

construído”. (Hegel, por P. Meneses)

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3. Por que uma Fenomenologia?

• A ciência tem como seu fundamento e seu solo O PURO RECONHECER-SE-A-SI-MESMO NO ABSOLUTO SER OUTRO – O SABER EM SUA UNIVERSALIDADE.

• O COMEÇO DA FILOSOFIA EXIGE OU PRESSUPÕE QUE A CONSCIÊNCIA SE ENCONTRE NESSE ELEMENTO. “MAS ESSE ELEMENTO SÓ ALCANÇA A SUA PERFEIÇÃO E TRANSPARÊNCIA PELO MOVIMENTO DO SEU VIR-A-SER”.

• É ESTA A EXIGÊNCIA DA CIÊNCIA À CONSCIÊNCIA-DE-SI: ELEVAR-SE A ESSE ÉTER DA PURA ESPIRITUALIDADE PARA VIVER NELA E POR ELA.

• Uma fenomenologia é necessária porque é preciso uma via de acesso a esse éter: a consciência comum

se julga plena de certezas: sabe das coisas opostas a si e se sabe oposta a elas. A perspectiva da Ciência

lhe é tão inversa, que o portador da consciência comum tem a impressão de que teria de andar de

cabeça para baixo.

• POR ISSO O QUE É EM SI DEVE EXTERIORIZAR-SE E TORNAR-SE PARA SI. O EM-SI, A CIÊNCIA, DEVE PÔR A

CONSCIÊNCIA-DE-SI COMO SENDO UMA SÓ COISA COM ELA.

• O espírito individual percorre vários estágios em sua formação. Cada momento vai sendo progressivamente suprassumido. É negado e contido no ulterior.

• Essas aquisições culturais da história humana são as etapas necessárias da formação do Espírito Universal.

• O Espírito do mundo teve a paciência de encarnar-se demoradamente (necessariamente) em cada uma dessas figuras na sua prodigiosa tarefa que foi a História Universal.

• Agora cabe-nos uma tarefa mais fácil: rememorar o já-percorrido, dando a este em-sipensado a forma do ser-para-si.

• A dificuldade: o ser imediato está na forma das representações e se tornou o “bem-conhecido”. Ora, o bem-conhecido é justamente o que não se conhece. “Pressupor no conhecimento algo como já conhecido é deixá-lo tal como está”. (PhG, p. 37) É um saber que “não sai do lugar”, sem saber como tal verdade lhe sucede.

• Para conhecer, é preciso analisar, é preciso o trabalho do negativo: dissolver a representação em determinações fixas – decompô-la, destruí-la. Para daí retirar um novo imediato. Tirar a vida da morte.

• Entenda-se bem: o separado, o analisado, é também inefetivo. Mas é um momento essencial, “uma vez que o concreto, só porque se divide e se faz inefetivo é que se move”. É a força do entendimento.

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• “A vida do Espírito não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva

intacta diante da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se

conserva. O espírito só alcança a sua verdade à medida que se encontra a si

mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que

se afasta do negativo – como ao dizer que uma coisa é nula ou falsa, liquidamos

com ela e passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência

enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar é

o poder mágico que converte o negativo em ser”. (PhG, par. 32)

• O sujeito é aquele que suprassume a imediatez abstrata, aquela que é apenas o-

que-é-em-geral. O sujeito é a substância verdadeira, porque não tem fora de si a

mediação, mas é a mediação mesma.

• Na experiência em que a consciência se faz, a substância espiritual se aliena como objeto de

seu próprio Si. O espírito torna-se objeto, porque ele é este movimento de fazer-se outro

para si mesmo e suprassumir esse ser-outro.

• O negativo é a não-igualdade – que se manifesta na consciência – entre o Eu e a substância,

que é seu objeto.

• Mas o negativo não ocorre fora da substância: ele é uma operação dela, justamente onde

ela se revela sujeito.

• A ciência é justamente “o Espírito que se reconhece como Espírito”. Se o Espírito é capaz de

acolher esse seu outro, a substancialidade, então a Ciência é o sistema da explicitação, pelo

Espírito, de seu próprio conceito.

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O negativo não é o “falso”:

• O Falso e o Verdadeiro são tomados como essências particulares, carentes de

movimento, postas uma ao lado da outra.

• “Nem há um falso, como tampouco há um mal”. (PhG, par. 39)

• Ora, o “falso” só pode ser representado como o outro da substância, o seu negativo –

justamente aquilo que a determina. Mas que positivo é este (a substância) que se

constitui exatamente por uma negação?

• Contudo, não seria justo dizer “o falso é um momento da verdade” ou “em todo falso há

sempre algo de verdadeiro”, pois os termos serão tomados como água e azeite. A rigor,

eles não mais se aplicam onde aquela alteridade imediata fora suprassumida.

4. Questões metodológicas

O problema da verdade filosófica:

• Não cabe à filosofia buscar a verdade numa proposição fixa, um resultado fixo, próprios ao dogmatismo.

• Isto vale ao lidar com o contingente, como, por exemplo, “Quando nasceu César?”, “Quanto media?”, verdades históricas.

• Do mesmo modo em relação às verdades matemáticas: “no triângulo retângulo o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”.

• O teorema é aceito como verdadeiro, sem necessidade de recorrer à forma como foi provado. Esta prova nada acrescentaria ao seu conteúdo. É como uma operação exterior à própria coisa.

• Mas no conhecimento filosófico, PROCESSO E RESULTADO SÃO MOMENTOS DE UM DEVIR E SE ENTENDEM UM PELO OUTRO E SE CONTÊM UM AO OUTRO.

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• O objeto da filosofia não é o abstrato, nem o positivo morto, mas o positivo que contém em si o negativo.

• A filosofia reflete o efetivo – O PROCESSO EM SUA TOTALIDADE, que gera e percorre os seus momentos.

• O método da filosofia é a DIALÉTICA.

• Pensamento científico é o esforço concentrado na produção de conceitos. A dialética é o automovimento do Conceito. É o esforço para seguir intimamente o ritmo das determinações como ser-em-si, ser-para-si e igualdade-consigo-mesmo, na autodinâmica que lhes compete.

• O pensamento representativo adere aos conteúdos contingentes. O pensamento “raciocinante” só vê o negativo, só sabe reduzir a nada o conteúdo que tem diante de si.

• O pensamento dialético é concebente. Nele o conteúdo é um conceito, um Si, que se move a si mesmo em seu devir retomando em si suas determinações. O objeto aqui é o movimento. O conteúdo não é predicado, nem um universal, que, livre de sujeito, poderia convir a muitos.

“A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e

constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro

assim é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e

porque cada membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve,

esse delírio é ao mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o

tribunal desse movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do

espírito, nem os pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos

positivos necessários, quanto são negativos e evanescentes. No TODO do

movimento, compreendido como [estado de] repouso, o que nele se

diferencia e se confere um existir particular é conservado como algo que se

interioriza na recordação, CUJO EXISTIR É O SABER DE SI MESMO; COMO

ESSE SABER É TAMBÉM IMEDIATAMENTE EXISTIR”. (PhG, par. 46)

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Recapitulando alguns pontos:

• A filosofia é Saber (do) Absoluto:

– Tem o Absoluto por Objeto;– Tem o Absoluto por Sujeito: ela é o Absoluto que-se-conhece-a-Si, por

meio do filósofo.

• Assim, o Absoluto não é só o fim da fenomenologia, mas o seu princípio motor.

• Dois planos da Fenomenologia do Espírito:

– O do caminho percorrido pelo Espírito para chegar a si mesmo através da experiência total de si mesmo (ao longo de toda a História Universal). Aí o Espírito se realiza e se conhece.

– O do caminho percorrido pelo indivíduo empírico ao rememorar essa mesma experiência, esse mesmo caminho, e apropriar-se dela.