10 perguntas para ana primavesi

1
3 DOMINGO 10 • OUTUBRO • 2010 en t revista 10 PERGUNTAS para ANA PRIMAVESI C onsiderada a pioneira de agroecologia ou agricultu- ra natural no País, a aus- tríaca Ana Primavesi é uma das mais renomadas cientistas do planeta quando o assunto é o uso do solo e práticas sustentáveis de plan- tio, temas cada vez mais recorrentes em tempos de mudanças climáticas e fome no mundo. Aos 90 anos, fa- lou à Folha Universal no seminário internacional “Crise de subsistência dos produtores rurais: alimentação ameaçada pelas mudanças climá- ticas”, realizado recentemente em Belo Horizonte (MG) pela associa- ção suíça independente Media21. A agrônoma, que estudou o uso de so- los nas universidades de Viena (Aus- tria) e de de Santa Maria (RS), man- tém uma agenda de palestras pelo mundo. Ela fala com propriedade sobre práticas agrícolas sem uso do veneno e não hesita em alertar para os riscos da agricultura industrial. Cientista austríaca vê o futuro da agricultura no País ameaçado por agrotóxicos ELES VÃO DESTRUIR TUDO Por Daniel Santini Enviado especial a Belo Horizonte* [email protected] DIVULGAÇÃO/JOSÉ GOMERCINDO/SECS 1 – O que é a agroecologia? Eco quer dizer lugar. Agroecologia é quan- do consideramos todos os fatores que existem em um lugar: água, terra, clima, trabalho, tudo. É preciso fazer agricultura do modo mais natural possível. Em princípio, a natureza já produz o máximo. Se eu começo a modificá-la, em um momento pode até ser que produza mais, mas de- pois vem a destruição. 2 – Empresas de fer- tilizantes, agrotóxicos e transgênicos dizem que só com agroecologia não dá para produzir comida para todos. Dá? Ao contrário, com a agroecologia você produz mais. O problema é que essas empre- sas não entendem a produção. A visão deles é limitada. Eles trabalham apenas com um fator. Com modificações você pode conseguir algumas colheitas maiores, mas depois vem o fracasso. Por um tempo talvez funcione, mas a natureza vai buscar o equilíbrio. Se estra- garmos o solo, e ele deixar de ser permeável, teremos enchentes e desastres naturais. É pre- ciso ver a relação entre as coisas. 3 – E os transgênicos? O que acha de modificar geneticamente as plantas para produzir mais? Não é necessário. Na natureza tudo está ligado, um fator se encaixa no outro. Se você muda um fator, ele deixa de se encaixar e isso causa um desequilíbrio difícil de controlar. A natureza já produz o máximo possível dentro das condições que existem. Se você modificar, pode ser que produza mais, mas afetará outros fatores. 4 – E o argumento de que a seleção de sementes que os camponeses fazem há séculos já é uma alteração na nature- za? Dá para comparar? É uma alteração, mas tem que ver o quan- to altera. Isso é feito há milhares de anos e é bem diferente. Na China, graças a essa sele- ção, havia 14 mil variedades de arroz, cada região tinha a sua. Aí criaram um arroz hi- brido e ficaram seis variedades que, se as con- dições forem favoráveis, podem produzir mais. O problema é que, se não forem favoráveis, se as seis fracassarem, vem a fome. 5 – É possível recuperar tais varieda- des de sementes? Na Indonésia, havia 36 mil variedades e deixaram apenas três que produziam mais. Em um ano em que as condições não foram favoráveis veio a fome. O governo procurou as antigas, mas restavam cinco ou seis. O resto, resultado da seleção de milhares de anos, foi perdido. A história não é bem como contam. Quando tudo vai bem, pode ser que pro- duzam mais, mas nem sempre é assim. Os transgênicos não são solução, apesar de as empresas fazerem uma pressão violenta. 6 – As empresas que hoje trabalham com transgênicos são as da indústria química. Como vê isso? São empresas que que- rem uma agricultura com o máximo de químicos para terem lucro. Falam que com os transgênicos será possível produzir sem ve- neno, mas não é o que temos visto. 7 – O Brasil é hoje o país que mais usa veneno na agricultura, não? Sim e isso não é animador. Temos visto ja- carés, que por estarem na água são os primei- ros afetados, tendo deformações nas patas, nos genitais. A situação é grave. Os agricultores brasileiros usam porque são incentivados. Nos anos 1960 e 1970, milhares de representan- tes comerciais norte-americanos vieram para o Brasil vender este tipo de agricultura. Eles se apresentavam como acadêmicos, mas depois descobrimos que eram vendedores. As pessoas adoram ouvir “especialistas”. 8 – Representantes das empresas? Isso. São pessoas que enxergam primeiro o dinheiro e, depois, talvez a nutrição. Só que a população está aumentando e a área de plan- tio é cada vez menor. Precisamos de produção máxima em área mínima e para isso é preciso reforma agrária. Há propriedades de milha- res de hectares. No Mato Grosso, uma pessoa tem 320 mil hectares. Ele vai cuidar da ter- ra? Vai se preocupar em produzir o máximo? Não. Essas grandes propriedades nem trato- ristas têm, os tratores andam por rádio. 9 – A senhora é contra máquinas? Não, mas sou contra a supermecanização, tratores teleguiados que fazem de tudo, ana- lisam o solo, adubam. Para produzir é preciso sentir a terra. Quando fui para a Chapada Diamantina (BA) , conheci agricultores que me disseram que estavam pobres porque eram analfabetos. Veja bem, a agricultura não de- pende da escrita. Expliquei a eles que deve- riam observar e trocar experiências. Encontrei com eles 3 anos depois e haviam prosperado. A questão principal é essa: observar e pensar. Temos um presidente que não tem curso su- perior, não é? O nosso problema é achar que somos burros e não sabemos nada. 10 – E o futuro? Eles vão destruir tudo e no fim teremos que começar de novo. Querem modificar tudo de modo que a indústria te- nha lucro, mas a natureza não é só para lucro. Isso é complicado e perigoso. Se as coisas continuarem assim, a consequência será a des- truição dos solos e o aqueci- mento global cada vez pior. Falam que a agroecologia é antiquada, é passado. Mas nunca vai ser. Eco é lugar, é preciso cuidar do lugar em que esta- mos. Agroecologia sempre será moderna. * O repórter viajou a convite da Media21 COM MODIFICAÇÕES VOCÊ PODE CONSEGUIR ALGUMAS COLHEITAS MAIORES, MAS DEPOIS VEM O FRACASSO PRECISAMOS DE PRODUÇÃO MÁXIMA EM ÁREA MÍNIMA E PARA ISSO É PRECISO REFORMA AGRÁRIA

Upload: paisagismo-biodinamico

Post on 22-Mar-2016

287 views

Category:

Documents


18 download

DESCRIPTION

Opiniões de Ana Primavesi sobre o futuro do mundo

TRANSCRIPT

Page 1: 10 Perguntas para Ana Primavesi

3DOMINGO10 • OUTUBRO • 2010entrevista

10 PERGUNTAS paraANA PRIMAVESI

Considerada a pioneira de agroecologia ou agricultu-ra natural no País, a aus-tríaca Ana Primavesi é uma

das mais renomadas cientistas do planeta quando o assunto é o uso do solo e práticas sustentáveis de plan-tio, temas cada vez mais recorrentes em tempos de mudanças climáticas e fome no mundo. Aos 90 anos, fa-lou à Folha Universal no seminário internacional “Crise de subsistência dos produtores rurais: alimentação ameaçada pelas mudanças climá-ticas”, realizado recentemente em Belo Horizonte (MG) pela associa-ção suíça independente Media21. A agrônoma, que estudou o uso de so-los nas universidades de Viena (Aus-tria) e de de Santa Maria (RS), man-tém uma agenda de palestras pelo mundo. Ela fala com propriedade sobre práticas agrícolas sem uso do veneno e não hesita em alertar para os riscos da agricultura industrial.

Cientista austríaca vê o futuro da agricultura no País ameaçado por agrotóxicos ELES VÃO DESTRUIR TUDO

Por Daniel SantiniEnviado especial a Belo Horizonte*[email protected]

DIV

ULG

AÇÃO

/JOSÉ

GO

MER

CIN

DO

/SEC

S

1 – O que é a agroecologia?Eco quer dizer lugar. Agroecologia é quan-

do consideramos todos os fatores que existem em um lugar: água, terra, clima, trabalho, tudo. É preciso fazer agricultura do modo mais natural possível. Em princípio, a natureza já produz o máximo. Se eu começo a modifi cá-la, em um momento pode até ser que produza mais, mas de-pois vem a destruição.

2 – Empresas de fer-tilizantes, agrotóxicos e transgênicos dizem que só com agroecologia não dá para produzir comida para todos. Dá?

Ao contrário, com a agroecologia você produz mais. O problema é que essas empre-sas não entendem a produção. A visão deles é limitada. Eles trabalham apenas com um fator. Com modifi cações você pode conseguir algumas colheitas maiores, mas depois vem o fracasso. Por um tempo talvez funcione, mas a natureza vai buscar o equilíbrio. Se estra-garmos o solo, e ele deixar de ser permeável, teremos enchentes e desastres naturais. É pre-ciso ver a relação entre as coisas.

3 – E os transgênicos? O que acha de modifi car geneticamente as plantas para produzir mais?

Não é necessário. Na natureza tudo está ligado, um fator se encaixa no outro. Se você

muda um fator, ele deixa de se encaixar e isso causa um desequilíbrio difícil de controlar. A natureza já produz o máximo possível dentro das condições que existem. Se você modifi car, pode ser que produza mais, mas afetará outros fatores.

4 – E o argumento de que a seleção

de sementes que os camponeses fazem há séculos já é uma alteração na nature-za? Dá para comparar?

É uma alteração, mas tem que ver o quan-to altera. Isso é feito há milhares de anos e é bem diferente. Na China, graças a essa sele-ção, havia 14 mil variedades de arroz, cada região tinha a sua. Aí criaram um arroz hi-brido e fi caram seis variedades que, se as con-dições forem favoráveis, podem produzir mais. O problema é que, se não forem favoráveis, se as seis fracassarem, vem a fome.

5 – É possível recuperar tais varieda-des de sementes?

Na Indonésia, havia 36 mil variedades e deixaram apenas três que produziam mais. Em um ano em que as condições não foram favoráveis veio a fome. O governo procurou as antigas, mas restavam cinco ou seis. O resto, resultado da seleção de milhares de anos, foi perdido. A história não é bem como contam. Quando tudo vai bem, pode ser que pro-duzam mais, mas nem sempre é assim. Os transgênicos não são solução, apesar de as empresas fazerem uma pressão violenta.

6 – As empresas que hoje trabalham com transgênicos são as da indústria química. Como vê isso?

São empresas que que-rem uma agricultura com o máximo de químicos para terem lucro. Falam que com os transgênicos será possível produzir sem ve-neno, mas não é o que temos visto.

7 – O Brasil é hoje o país que mais usa veneno na agricultura, não?

Sim e isso não é animador. Temos visto ja-carés, que por estarem na água são os primei-ros afetados, tendo deformações nas patas, nos genitais. A situação é grave. Os agricultores brasileiros usam porque são incentivados. Nos anos 1960 e 1970, milhares de representan-tes comerciais norte-americanos vieram para o Brasil vender este tipo de agricultura. Eles se apresentavam como acadêmicos, mas depois descobrimos que eram vendedores. As pessoas adoram ouvir “especialistas”.

8 – Representantes das empresas?Isso. São pessoas que enxergam primeiro o

dinheiro e, depois, talvez a nutrição. Só que a população está aumentando e a área de plan-tio é cada vez menor. Precisamos de produção máxima em área mínima e para isso é preciso reforma agrária. Há propriedades de milha-res de hectares. No Mato Grosso, uma pessoa tem 320 mil hectares. Ele vai cuidar da ter-ra? Vai se preocupar em produzir o máximo? Não. Essas grandes propriedades nem trato-ristas têm, os tratores andam por rádio.

9 – A senhora é contra máquinas?Não, mas sou contra a supermecanização,

tratores teleguiados que fazem de tudo, ana-lisam o solo, adubam. Para produzir é preciso sentir a terra. Quando fui para a Chapada Diamantina (BA), conheci agricultores que me disseram que estavam pobres porque eram analfabetos. Veja bem, a agricultura não de-pende da escrita. Expliquei a eles que deve-riam observar e trocar experiências. Encontrei com eles 3 anos depois e haviam prosperado. A questão principal é essa: observar e pensar. Temos um presidente que não tem curso su-perior, não é? O nosso problema é achar que somos burros e não sabemos nada.

10 – E o futuro?Eles vão destruir tudo e no fi m teremos

que começar de novo. Querem modifi car tudo de modo que a indústria te-nha lucro, mas a natureza não é só para lucro. Isso é complicado e perigoso. Se as coisas continuarem assim, a consequência será a des-truição dos solos e o aqueci-mento global cada vez pior. Falam que a agroecologia é

antiquada, é passado. Mas nunca vai ser. Eco é lugar, é preciso cuidar do lugar em que esta-mos. Agroecologia sempre será moderna.

* O repórter viajou a convite da Media21

COM MODIFICAÇÕES

VOCÊ PODE CONSEGUIR

ALGUMAS COLHEITAS

MAIORES, MAS DEPOIS

VEM O FRACASSO

PRECISAMOS DE

PRODUÇÃO MÁXIMA

EM ÁREA MÍNIMA E

PARA ISSO É PRECISO

REFORMA AGRÁRIA