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Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.
Realização Curso de História – ISSN 2178-1281
LIXO, EXPLORAÇÃO E RECICLAGEM
Glauber Rabelo da Silva1
A cidade de Uberlândia sempre investiu numa forte propaganda, pelo Brasil inteiro,
como um lugar ordeiro, progressista, acima da média em qualidade de vida. Esse marketing
promovido pelos setores midiáticos e governamentais proporcionou um inchaço urbano, sua
população praticamente triplicou em 30 anos e, não houve, por sua vez, uma política que
abarcasse uma condição digna de vida às pessoas que vieram morar na cidade. A
conseqüência desse crescimento sem planejamento nos parece mais que óbvia, o desemprego
e o aumento do consumo, gerando, conseqüentemente, o acúmulo de sujeira.
Evidente que isto não se trata de um problema exclusivamente da cidade de
Uberlândia, a maioria das cidades brasileiras e mundiais vivenciam graves distorções sociais
provocadas pela desigualdade e a falta de políticas públicas à população. Cabe aqui contrapor
um discurso que tenta colocar Uberlândia numa situação de destaque, evidenciando as
contradições e a carência de projetos que permitam o aumento da qualidade de vida dos seus
habitantes.
Inúmeros são os trabalhos acadêmicos que contribuíram para desconstruir a imagem
de cidade jardim, próspera, harmônica. Segundo podemos ler em Maria Clara Tomaz
Machado, numa análise mais atenta, é bastante perceptível o falseamento por parte das elites
locais no trato com as políticas públicas locais defendidas pela imprensa como exemplo a
seguir em todo país. Alguns projetos tidos como humanos, que apregoavam assistir parcelas
da camada da população, aportam como estratégias de disciplinarizar o espaço urbano, tirando
do convívio social qualquer um que possa representar uma ameaça ao ideário do que
consideram “cidade ordeira”. 2 Assim:
[...] A alteração do traçado urbano, a estrutura moderna e avançada da
arquitetura, e a especulação imobiliária, a situação de pólo comercial e
industrial da região, fatos que atestam o seu progresso econômico,
1Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
2 MACHADO, Maria Clara Tomaz. A disciplinarização da pobreza no espaço urbano burguês: assistência
social institucionalizada (Uberlândia 1965 a 1980). 1990. 322 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade
de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.
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contrastam com a violência, o crime, o roubo, a mendicância, a prostituição,
os jogos de azar, o favelamento, deixando entrever, nos conflitos sociais, a
recusa à ordem burguesa estabelecida. [...].3 Essa pobreza invisível, mas,
nem por isso, inexistente, pode ser explicada pela intolerância da
mendicância pelas ruas da cidade, efetivamente controlada e administrada
em sua potencialidade de perigo social através de prática disciplinares.4
Este controle do espaço urbano uberlandense por parte de uma elite local também é
discutido no trabalho de Beatriz Ribeiro Soares.5 Esta autora faz uma importante análise, entre
outros aspectos, apontando como a cidade se estruturou levando em conta a especulação
imobiliária. Diante de políticas higienizadoras e fortes campanhas midiáticas enfatizando as
belezas da cidade, os representantes do poder público municipal estabeleceram programas de
habitação à população carente, bem afastados das áreas centrais, projetos estes que se
apresentavam enquanto feitorias benéficas já que concederia a oportunidade das camadas
mais pobres adquirirem o sonho da casa própria. Com os imensos vazios deixados do centro à
periferia, as elites locais conseguiram vultosos lucros com a venda de lotes, em pouco tempo
valorizados.
Muitos dos administradores locais atualmente perceberam a possibilidade de
enriquecimento e formaram grandes empresas empreiteiras e pela popularidade conquistada
se perpetuam no poder. Sempre movimentando muito dinheiro público, constroem magníficas
obras em locais estratégicos valorizando ainda mais seus negócios e num jogo
político/ideológico ganham fama perante a maioria dos eleitores justamente por serem
conhecidos pelos monumentos arquitetônicos levantados. É comum para quem vem de fora
defender que Uberlândia realmente é uma cidade ordeira e bonita, não tendo contato com os
bairros pobres e favelas, bem afastados da cidade.6
3 Idem. Muito Aquém do Paraíso: ordem, progresso e disciplina em Uberlândia. História & Perspectivas,
Uberlândia, 4: 37-77, jan./jun., 1991. p. 38. 4 Ibidem, p. 42.
5 SOARES, Beatriz Ribeiro. Habitação e produção do espaço urbano em Uberlândia. 1988. Dissertação
(Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988. 6 Há uma extensa bibliografia sobre o tema. Apenas para citar algumas obras que está em desacordo com a idéia
de uma cidade harmônica, progressista, conferir: JUNIOR, Renato Jales Silva. Viveres urbanos em Uberlândia:
algumas histórias para questionar umas memórias. In: BRITO, Diogo de Souza; WARPECHOWSKI, Eduardo
Moraes (orgs). Uberlândia Revisitada: memória cultura e sociedade. Uberlândia: Edufu, 2007; MACHADO,
Maria Clara Tomaz. Muito aquém do paraíso: ordem, progresso e disciplina em Uberlândia. História e
Perspectiva. Uberlândia: Edufu, nº4, jan./jun, 1991;
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A perspectiva de análise defendida por estes autores é pensar a cidade como espaço de
conflito. Numa complexa relação de modos de vidas que se entrecruzam, o urbano se faz a
partir de interesses das elites locais, mas também de práticas cotidianas dos seus moradores,
daí pensar a cultura indissociável do mundo do trabalho. Um autor de grande contribuição a
este trabalho foi Sérgio Paulo Morais, dissertação que discute o modo de viver dos carroceiros
na cidade de Uberlândia. Muitos destes trabalhadores da informalidade foram sendo excluídos
do modelo de modernização almejado pela classe empresarial. Estes trabalhadores foram se
adequando às transformações tecnológicas ao mesmo tempo em que impunham seus modos
de vida aos outros moradores da cidade, um espaço a ser disputado cotidianamente. Dessa
forma:
[...] Visto que o urbano, carregado das marcas forjadas pela presença desses
trabalhadores, ao se expandir, tende a reorganizar áreas, reformular projetos,
revalorizar setores e interferir em práticas e maneiras de ordenar o cotidiano
dos que utilizam os locais públicos para a sobrevivência.
As transformações nas paisagens, nas estruturas e nos planos
administrativos, ao ocorrer, não fazem com que as condições materiais dos
trabalhadores modifiquem-se. O descompasso existente entre a
transformação dos espaços e a permanência das necessidades socioculturais
desses sujeitos faz gerar embates e acaba por forjar novas maneiras de
utilizar a cidade como espaço de sobrevivência.7
Esta adequação ao trabalho informal, mais especificamente os catadores de lixo, é
perfeitamente compreensível considerando um espaço com alto índice de desemprego, com
uma intensa produção de dejetos e a falta de políticas para a coleta destes materiais de
maneira seletiva. 8
Temos aproximadamente em Uberlândia mais de 2.500 pessoas trabalhando como
catadores de lixo.9 Podemos encontrar trabalhadores da mais variada faixa etária e de ambos
7 MORAIS, S. Paulo. Trabalho e Cidade: trajetórias e vivências de carroceiros na cidade de Uberlândia (1970-
1999). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, 2002. p. 24. 8 Sobre trabalho informal Cf. SOUZA, Ricardo Agnelo. A geografia do trabalho informal no centro da cidade
de São Paulo nos anos 90. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Pontifica Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2009; MATSUO, Myrian. Trabalho informal e desemprego: desigualdades sociais. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. BOSI, Antônio de Pádua. A
organização capitalista do trabalho "informal": o caso dos catadores de recicláveis. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, jun 2008, vol.23, no.67, p.101-116. 9 PREFEITURA Municipal de Uberlândia. Secretaria Municipal do Meio Ambiente.
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os sexos. Entre as buzinas dos carros, sempre em contradição com o “progresso” das ruas
asfaltadas, da velocidade imposta aos veículos automotivos, misturados ao preconceito de
classe, confundidos com os mendigos da cidade, os catadores disputam o direito de viver e
tirar do seu trabalho o direito à sobrevivência. Vejamos como este conflito aparece na
imprensa local:
Os carroceiros, muitas vezes vistos como vilões que tumultuam o trânsito e
sujam as ruas com os dejetos dos animais, têm também um papel social
significativo. A atividade é sustento para muitas famílias e contribui ainda
para a redução do lixo que seria depositado nos aterros sanitários, pois
muitos destes homens trabalham recolhendo material reciclável.10
Quase todos os coletores de material reciclável vieram de outras cidades, atraídos
pelas propagandas difundidas de que Uberlândia é uma cidade que respira progresso. Com a
esperança de melhorarem de vida e não tendo escolaridade ou profissão, encontram neste
árduo trabalho o seu ganha pão.
É preciso historicizar o momento em que o trabalho de catar o lixo na rua passa a ser
bastante visível. Segundo Bosi,11
a catação de lixo na rua não é recente, na década de 1940 se
tem registro de pessoas revirando os lixos em busca de comida. O que mudou foi que antes as
pessoas buscavam sobras de comidas para se alimentarem.
Estima-se que atualmente o número de trabalhadores passe de 1 milhão por todo o
Brasil12
, sendo que apenas nos últimos 20 anos o número de pessoas que coletam o lixo
cresceu 240%. Este aumento é consequência não apenas do aumento do acúmulo de lixo, mas
a assimilação dos empresários que viram na reciclagem oportunidades de aumentarem os seus
lucros, num momento em que reciclar é agir politicamente correto. Além do mais, as
empresas que hoje investem na reciclagem ganham, além da fama de empresa cidadã, tem
parte de seus impostos amortizados.
10
CORREIA, Gleide. Carroceiro dificulta o trânsito, mas reduz lixo: atividade gera polêmica e atrai
manifestação contra maus-tratos. Correio de Uberlândia. 21 mai. 2008. 11
BOSI, Antônio de Pádua. A organização capitalista do trabalho "informal": o caso dos catadores de
recicláveis. Revista Brasileira de Ciências Sociais, jun 2008, vol.23, no.67, p.101-116. 12
Conferir: EIGENHEER, Emílio M. Resíduos sólidos como tema de educação ambiental. Disponível em:
<http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=32&id=374>. Acesso em: 15 jan. 2010.
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A reciclagem é um negócio altamente lucrativo para as empresas que a fazem. O
Brasil é um país que mais recicla o lixo, estando atrás apenas da Alemanha, Áustria e EUA.
Só com o plástico, mais especificamente a garrafa PET, o país recicla 780 mil toneladas,
anualmente, com um faturamento de R$ 1, 3 bilhão, aproximadamente.13
Já a reciclagem de produtos orgânicos no Brasil ainda é bastante insipiente, justamente
por ser pouco rentável, menos de 1,5% é reaproveitável. As empresas se utilizam de um
marketing, um slogan de que estão ajudando a preservar o planeta, mas o que ocorre é um
jogo de interesses onde o lucro sempre fala mais alto.14
Esta tese se confirma quando
observamos períodos de quedas do preço, situação marcada pela exploração do trabalho do
catador sem que haja grandes quedas nos lucros, conforme no artigo abaixo:
O mercado de recicláveis – papel, papelão, alumínio e plástico – permanece
o mesmo do início do ano, quando os valores pagos pelos materiais tiveram
reduções de até 80%. Desde o início da crise no setor, os catadores têm que
trabalhar mais para aumentar o volume de material recolhido e manter sua
renda.15
Com os preços baixos, muitos trabalhadores acabam desistindo de fazer a coleta e,
como vivem de bicos, certamente partem para outras atividades. No artigo abaixo percebemos
a conseqüência dos baixos preços pagos pelas empresas:
Nas calçadas, pilhas de papelão e plástico se acumulam. Os condomínios e
as lojas não têm mais para quem entregar o material reciclável, antes
disputado entre os catadores. A baixa do preço dos resíduos, gerada pela
crise econômica mundial, refletiu no meio ambiente e o que antes era
sustento das famílias virou lixo comum.
Gari há cinco anos, Milton Simão da Costa conta que era difícil encontrar
recicláveis pela rua, mas que há poucos meses tem percebido um volume
maior dos materiais na região central da cidade, onde trabalha. “O que não
cabe no carrinho, eu junto em um canto para depois o caminhão passar
recolhendo”, afirmou Costa.16
13
Disponível em: < http://www.akatu.org.br/central/noticias/2005/07/1045/>. Acesso em: 12 jan. 2010. 14
BOSI, 2008, op. cit. 15
DOURADO, Juscelino. Preço pago aos catadores é baixo. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 18 mai. 2009. 16
MOTA, Núbia. Aterro sanitário vira destino de recicláveis. Correio de Uberlândia. 23 jan. 2009.
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Podemos facilmente questionar os discursos dos empresários neste setor da reciclagem
quando divulgam estar preocupados com a preservação do meio ambiente. Não tenhamos
dúvidas de que mesmo não havendo o trabalho formal, não se pode questionar a acumulação
de capital que as empresas obtêm, através da exploração desumana dos catadores de materiais
recicláveis. Os jogos de especulação próprios do sistema capitalista são mais que utilizados,
com a baixa dos preços, há, conseqüentemente, o aumento da quantidade de matéria prima a
ser reciclada. Numa teatralização de preservação do planeta Terra, empresários do setor
conseguem ainda mais lucros, protegidos pela incompetência dos poderes públicos tanto no
que se refere à falta de empregos como da carência de projetos eficazes para a coleta do lixo.
Isto fica claro no artigo publicado na imprensa local:
Isabel Dantas Matos, catadora há três anos, desistiu do trabalho há três
meses. Ela conta que ainda há alguns resíduos em casa, na esperança de que
o preço volte ao normal e ela possa novamente retornar às ruas. “Eu tirava
até R$ 480 no mês, por fim não tirava nem R$ 200. É uma pena, tinham
tantos catadores, agora a gente sai e vê a rua suja”, disse Isabel.17
O descaso do poder público local referente à coleta e seleção do material que necessita
ser reciclado ou não agrava de maneira sistêmica a poluição ao meio ambiente. Num artigo do
Correio de Uberlândia, a denúncia aparece:
De acordo com Cairbar Ferreira, encarregado pelo transporte da Limpebrás,
empresa responsável pela limpeza e pelo recolhimento de lixo da cidade, os
resíduos que os catadores não recolhem são colocados no caminhão de coleta
e misturados com restos orgânicos e descarregados no aterro sanitário. “Não
separamos nada. Não tem como eu avaliar o que é reciclável ou não, mas, se
os catadores não pegam, a gente pega e enterra normalmente”, disse o
funcionário da empresa, que recolhe entre 300 e 400 toneladas de lixo
diariamente na cidade.18
A informação acima evidencia a falta de projetos que pudesse facilitar o trabalho dos
catadores através de programas que considerasse não somente medidas educativas à
17
Ibidem. 18
MOTA, Núbia. Aterro sanitário vira destino de recicláveis. Correio de Uberlândia. 23 jan. 2009.
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população que viabilizasse a separação dos dejetos abandonados, como também a contratação
de profissionais para tal fim, assegurando todos os direitos trabalhistas.
Sem perspectiva de resolver os problemas gerados pela produção do lixo, a prefeitura
municipal precisará valorizar o trabalho dos catadores de lixo, na medida em que estes
trabalhadores desempenham uma importante função social, diminuindo os materiais coletados
pela empresa que recolhe o lixo e o transporta ao aterro sanitário da cidade. Na fala do então
Secretário Municipal de Serviços Urbanos, é alertado que:
Muitas vezes só lembramos dos prejuízos causados no trânsito, mas tem uma
questão social relevante. A partir do momento que eles [carroceiros]
recolhem esse material dão uma contribuição enorme para o meio
ambiente.19
Em seguida o secretário conclui:
[...] Os transtornos no trânsito, principalmente no Centro, acontecem, na
opinião de Adicionaldo Cardoso, porque muitos insistem em descumprir a
legislação que regulamenta os horários determinados para o trabalho dos
carroceiros nas avenidas. Na região central, o tráfego de carroças é liberado
após as 18h.20
Numa leitura mais apurada, no desenrolar da fala do secretário, é possível perceber a
omissão da prefeitura quando cobra a responsabilidade dos catadores em respeitar o horário
previsto pela lei. Mesmo estes trabalhadores precisando recolher o lixo reciclável para
sobreviverem, seriam eles os responsáveis para fazer esta coleta? Para quem interessaria fazer
a coleta do lixo à noite, justamente no momento que a empresa que recolhe o lixo começa
suas atividades? É uma característica do poder político municipal local impor a limpeza
urbana a partir de sanções, multas, punições ao invés de promover programas sociais
humanizados. Esta constatação também está na fala de Ana Magna Couto:
19
CARDOSO, Adicionaldo Reis. Apud. CORREIA, Gleide. Carroceiro dificulta o trânsito, mas reduz lixo:
atividade gera polêmica e atrai manifestação contra maus-tratos. Correio de Uberlândia. 21 mai. 2008. 20
CORREIA, 21 mai. 2008, op. cit.
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[...] podemos ver novamente o lixo presente no discurso de algumas
autoridades públicas, ao mesmo tempo em que se gesta uma tentativa, com a
proposta de proibição do depósito, de disciplinar a maneira de a população
descartar os restos. Atitudes que permitem inferir, também, um
entendimento de que o lixo atravancava a livre circulação das pessoas. Essa
é uma concepção que expressa um determinado ideal de cidade, na qual
devesse predominar a ordem, a limpeza e o trânsito desimpedido de
mercadorias e compradores.21
Ainda nesta linha de pensamento é pertinente destacar:
[...] o modo como a desigualdade social vislumbrada concretamente no
desemprego, na mendicância, na pobreza e na existência de favelas não é
algo que as administrações locais tenham visto que se deveria enfrentar, ou
ao menos tentar resolver. Ao contrário, constantemente, tentou-se controlar,
normatizar as atividades dos trabalhadores. O poder público evita assumir
uma atitude de discutir a raiz dos problemas, que é a inexistência de outras
alternativas de sobrevivência para uma parcela significativa das classes
populares existentes na cidade.22
Cabe destacar aqui as disputas pela memória e é preciso estar bastante atento para
saber dialogar com as fontes em questão. Em sua maioria, a imprensa local intenta difundir a
imagem de transparente, isenta ao levar a notícia ao leitor, mas percebe-se claramente o jogo
político ideológico ao qual este setor midiático está filiado. No artigo abaixo, para aquele
pesquisador desatento, pode até parecer que o jornal tem um perfil denunciativo às injustiças.
21
COUTO, Ana Magna Silva. Das Sobras à Indústria de Reciclagem: a invenção do lixo na cidade
(Uberlândia-MG, 1980-2002). 2006. 345 f. Tese (Doutorado em História) – Pontifica Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2006. p. 48. 22
COUTO, Ana Magna Silva. Trabalho, Quotidiano e Sobrevivência: catadores de papel e seus modos de vida
na cidade – Uberlândia – 1970-1999. 2000. 200 f. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifica Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. p. 59.
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Rogério Lopes enche o carrinho três vezes por dia. Fonte: Correio de Uberlândia, 24/10/2008.
Mesmo na imprensa que tendenciosamente mascara os conflitos e defendem o ideal de
cidade ordeira e progressista, é perceptível o nível de exploração:
Nem a paralisia infantil impediu Rogério Lopes Barbosa, 26 anos, de tornar-
se um trabalhador braçal. Apesar das limitações físicas, ele tem a juventude
a seu favor e atravessa a cidade empurrando um carrinho de materiais
recicláveis com uma carga estimada em 200 quilos. Como ele, dezenas de
homens de várias idades percorrem as ruas movendo forças para recolher e
revender o lixo abandonado nas portas das empresas e residências.
Rogério, apesar do visível cansaço, disse estar acostumado à labuta. Sem o
movimento em um dos braços e com dificuldades para andar, não se mostra
nem um pouco abatido pelo trabalho que, em primeira instância, não lhe
seria recomendável.
Ele conta que sai de casa por volta de 8h e costuma encerrar o expediente
somente após as 18h. Na tentativa de engordar o faturamento, há dias em que
ele enche três vezes o seu carrinho.
Ele mora só, em um pequeno hotel, mas faz questão de, com o resultado de
seu trabalho, dar assistência à família. Solteiro, a renda, que em dias
excepcionalmente bons chega a R$ 80, divide entre as despesas pessoais e o
auxílio à família, composta de um irmão e duas irmãs.
Embora bastante esperto nos cálculos, Rogério não chegou a concluir a
terceira série primária. Isso talvez o tenha levado a este trabalho pesado.
Mas, nada que o desanime. Com o rosto sempre sorridente, ele se diz
“acostumado com a vida”. Mesmo em se tratando de um trabalho cansativo,
o garoto afirma valer a pena. “No final do dia, até posso estar cansado. Mas,
sempre tenho os meus trocados”, disse Rogério.23
23
COELHO, Carlos Guimarães. Catadores carregam até 300 quilos. Correio de Uberlândia, Uberlândia,
24/10/2008.
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Ainda descrevendo sobre a realidade dos coletores, o jornal destaca:
Edmundo Miguel Foto: Muriel Gomes.
Fonte: Correio de Uberlândia,
24/10/2008. Edmundo Miguel de Souza veio de Senhor do Bonfim, na Bahia, há cerca de
um ano e três meses. Lá, era gesseiro. Profissão com a qual não conseguiu
prosseguir em Uberlândia por ter complicações por causa de uma perna
quebrada.
Aos 45 anos, separado, pai de dois filhos, ele começa a trabalhar pela manhã,
antes das 8h, e só pára quando percebe que o dia não vai lhe render mais
nenhum trocado. Mora perto da rodoviária. O material que recolhe nas ruas
vende a um depósito no alto do bairro Brasil, região central de Uberlândia.
Apenas esse trajeto faz com que ele atravesse quase inteira uma das
principais avenidas da cidade.
Miguel conta que, às vezes, percorre até 50 quilômetros, quase sempre
carregando um peso como aquele, algo em torno de 100 quilos. Às vezes,
segundo ele, a carga é melhor. Em outras ocasiões, chega a carregar o carro
duas vezes por dia, ultrapassando os 300 quilos, o que lhe garante uma
receita superior à média diária, que é de R$ 25.
Naquele momento, o catador tinha apenas um sonho. O de entregar a
mercadoria e retornar à sua casa para um merecido descanso. Retorno que
seria percorrido a pé. Empurrando o seu carrinho. Felizmente, agora vazio.24
E para contrapor a situação dos dois trabalhadores acima, o periódico destaca a
situação de outro catador que conseguiu montar ser próprio negócio:
Depois de mais de 10 anos reciclando o lixo das ruas, Ivo Pimentel, de 71
anos, acabou mudando de lado na transação comercial. Há cerca de quatro
meses, ele mantém no bairro Esperança um depósito que recolhe material
reciclado coletado pela vizinhança.
24
Ibidem.
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Ivo conta que já carregou muito peso na vida, até ter o seu próprio ponto.
Reclama um pouco do mercado, mas diz que está indo bem. Em vários
momentos da entrevista, é interrompido por um catador que veio lhe trazer
materiais. Retira do bolso notas miúdas, acerta com o seu fornecedor e
arremessa o material para o terreno baldio, torcendo para que o seu dinheiro
se multiplique.
Ele paga R$ 0,04 pelo quilo de papelão, R$ 0,40 pelo de garrafa pet, de R$
0,10 a R$ 0,40 pelo mesmo peso em plásticos e R$ 2 em alumínios. Possui
três carrinhos que empresta a seus fornecedores. Quando precisa de mais,
pede emprestado aos depósitos maiores, para os quais revende a mercadoria.
O negociante abre o seu depósito às 7h e não tem hora pra fechar. Depende
das entregas, que vão noite adentro. Ele conta que tem de estar sempre
disponível. Mas, também vigilante. A vigilância principalmente pelo fato,
como ele lamentavelmente relata, de alguns de seus fornecedores terem
pressa em levantar alguns trocados para o consumo de drogas.
Ivo Pimentel se considera um homem forte. Diz que a sua “saúde de ferro” é
de dar inveja a muitos jovens. “O lucro é pequeno, às vezes temos prejuízo.
Mas eu não tenho medo do trabalho. Estou com 71 anos, mas com muita
saúde e disposição. Não dá pra fazer corpo mole, né?”25
Estes trabalhadores que não têm férias, não estão protegidos pela Seguridade Social, e
que raramente possuem planos de previdências, são explorados duplamente: quando separam
e limpam o lixo produzido, obrigação esta que cabe às prefeituras, e, através dos materiais
coletados e vendidos, promovendo a lucratividade dos empresários neste setor de reciclagem.
Deste ponto de vista, fica fácil compreender o motivo pelo qual o Estado e empresários são
omissos à implementação de políticas que ajudem realmente a preservação do meio ambiente
e estabeleçam mais dignidade a estes trabalhadores. Medidas de educação e uma organizada
separação do lixo seriam importantíssimas.
Para além da sensibilidade do redator para a situação de miséria e esforço vivenciados
por estes trabalhadores, fazendo uma leitura critica apurada do conteúdo impresso, é evidente
o ideário neoliberal, arregimentada na tese de que aquele que trabalha e persiste, vence. A
partir deste imaginário burguês, a compaixão à exploração humana é mais que necessária,
porém a pobreza é uma conseqüência justa e legítima àqueles que não batalharam, não
persistiram. Teria os jornalistas e os redatores acometidos do germe da ingenuidade a ponto
de não perceberem que a contradição da pobreza está encalacrada na sua própria estrutura
deste sistema perverso, desumano e desigual? Certamente que não, eles apenas expressam
uma visão difundida socialmente.
25
Ibidem.
12
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