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A JUSTIÇAIGUALITÁRIA

E SEUS CRÍTICOS

ÁLVARO DE VITA

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1. Justiça igualitária: Teoria política:Ciência política 320.011

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Para Lenice e Elisa

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]Se a miséria dos nossos pobres não é causada por leis da naturezamas por nossas próprias instituições, imenso é o nosso pecado.

  Charles Darwin

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SUMÁRIO

1 1 Apresentação

15 Capítulo 1Dois tipos de razões moraisLibertarianos, hobbesianos, utilitaristas e igualitários

43 Capítulo 2O neoliberalismo moral

Moralidade neoliberal: faz alguma diferença?O libertarianismo de NozickO que há de errado com uma concepção deontológicaResponsabilidade negativa coletivaLiberdade individual para todos?A teoria de Nozick da apropriação

Uma teoria histórica da justiçaO princípio das transferênciasA cláusula lockeana

89 Capítulo 3O contratualismo hobbesiano

Harsanyi & GauthierMercado e moralidadeA mão visível da cooperaçãoConcessão relativa minimaxO status quo inicial

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Uma teoria do contrato social?Tolos e velhacosÉ racional ser moral?

153 Capítulo 4Preferências individuais e justiça socialO utilitarismo de preferênciasA maleabilidade das preferênciasO que há de errado com o relativismo moral

Concepções objetivas de bem-estarPreferências e neutralidade liberal

181 Capítulo 5Pluralismo moral e acordo razoávelO contratualismo rawlsiano

O argumento da arbitrariedade moralDuas interpretações da motivação moralMaximin ou utilidade média?

207 Capítulo 6A justiça igualitáriaA prioridade das liberdades fundamentais

O valor eqüitativo das liberdadespolíticasA concepção geral de justiça Um argumentolibertariano Um argumento comunitaristaDireitos negativos e positivos

 Justiça distributivaDa liberdade natural à igualdade democrática

O princípio de diferença A democracia decidadãos-proprietários O eu dividido

277 Capítulo 7A tolerância liberalAcordo unânime e discussão pública

Consenso moral e acordo razoávelDuas concepções de neutralidadeValidade universal

301 Referências bibliográficas

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APRESENTAÇÃO

Este livro, resultado de uma tese de doutorado defendida noDepartamento de Ciência Política da Universidade de São Pauloem abril de 1998, dá seqüência aos esforços de pesquisa queiniciei, no campo da teoria da justiça, em um trabalho anterior

( Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo). Destavez me empenhei, além de retomar a discussão da teoria da justi-ça proposta por John Rawls, em dar um tratamento muito maisdetalhado a algumas das principais teorias políticas normativasque se propõem como alternativas àquilo que aqui estou denomi-nando justiça igualitária.

O capítulo 2 é uma versão bastante alterada de um trabalhoque apresentei no encontro anual da ANPOCS (Associação Na-cional de Professores de Ciências Sociais) de 1996. O capítulo 4é uma versão um pouco modificada de um artigo, com o mesmotítulo, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.29,outubro de 1995. Apresentei um esboço dos capítulos 5 e 7 no

Colóquio Teoría de la justicia: 25 años después, realizado peloCentro Latinoamericano de Economía Humana (CLAEH) em ou-tubro de 1996 em Montevidéu. Beneficiei-me dos comentáriosque foram feitos a este esboço inicial por Philippe Van Parijs e,

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posteriormente, também por Pablo da Silveira. Uma segunda ver-são deste texto foi publicada na revista Lua Nova, n.39, 1997,com o título Pluralismo moral e acordo razoável. Mantive estetítulo para o capítulo 5 que, entretanto, só parcialmente coincidecom o artigo da Lua Nova. Uma outra parte deste capítulo resul-ta de um trabalho que apresentei no Simpósio InternacionalSobre a Justiça, realizado em agosto de 1997 pelo Núcleo deEstudos em Ética e Filosofia Política da Universidade Federal deSanta Catarina. Finalmente, uma parte do capítulo 6 foi publicada,com o título de Uma concepção liberal-igualitária de justiçadistributiva, na Revista Brasileira de Ciências Sociais n.39, feve-reiro de 1999.

No decorrer deste trabalho, recebi um precioso apoio de vá-rias instituições e pessoas. Eu não poderia tê-lo desenvolvido senão tivesse contado com uma bolsa do CNPq, pela qual sou muitograto. No Departamento de Ciência Política da USP, no qualingressei como professor em 1997, encontrei um ambiente mui-to hospitaleiro à discussão teórica. Espero que este livro repre-sente uma contribuição à área de Teoria Política na qual váriosprofessores do Departamento entre os quais me incluo es-tão empenhando seus esforços.

Sou ainda grato aos colegas do CEDEC (Centro de Estudosde Cultura Contemporânea) pela convivência enriquecedora queme permitiu conhecer melhor e debater vários temas afins a mi-nha área de pesquisa. Sou especialmente grato a Gabriel Cohn,com quem tive a feliz oportunidade de dividir o trabalho de edi-ção da revista Lua Nova, do CEDEC, ao longo já de quase 10 anos.Ainda mais do que a orientação formal deste trabalho, forammuito importantes para mim as muitas conversas informais quetivemos ao preparar os números da revista e nas quais não raroafloravam os temas que fazem parte de nossas preocupações in-telectuais comuns.

Procurei levar em conta e, na medida do possível, responderàs objeções que me foram feitas, na ocasião da defesa da tese, pelabanca examinadora constituída pelos professores Gabriel Cohn,

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Fábio Konder Comparato, Ricardo Terra, Leda Paulani e MariaHermínia Tavares de Almeida. É claro que segue sendo minha aresponsabilidade pelos equívocos ou insuficiências que possamter permanecido no texto.

AVmarço de 2000.

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CAPÍTULO 1

DOIS TIPOS DE RAZÕES MORAIS

Este trabalho tem o propósito de examinar os méritos rela-tivos de algumas das formulações contemporâneas mais impor-tantes, produzidas no mundo anglo-saxão, no campo da teoriapolítica normativa. Digo algumas porque um escrutínio exaus-

tivo desse campo e mesmo das teorias que serão estudadas está fora de questão. Há inúmeras maneiras de introduzir essadiscussão. Não reivindico nenhuma originalidade para aquela queescolhi. O que fiz foi procurar um ponto de vista amplo o sufi-ciente para permitir uma visão de conjunto da paisagem normativaque temos diante de nós, sem ter a preocupação, pelo menos

inicialmente, de identificar detalhes e contornos nítidos. Acre-dito que é possível ter essa visão abrangente a partir de umadistinção, proposta por Derek Parfit e Thomas Nagel, entre doistipos de razões morais para agir: as razões neutras em relação aoagente e as razões relativas ao agente.1 Antes de discuti-la,observo que essa distinção deriva das duas proposições mais sim-

1 Nagel, 1986, cap.VIII e IX; 1991, p.40, 45-6, 85-6; Parfit, 1991, p.27,cap.4, p.143. Sen, 1982 e 1987, também devota uma considerável atençãoa essa distinção.

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ples e fundamentais que creio ser possível à razão prática con-ceber. Elas são as seguintes:

(1) a vida de todas as pessoas tem valor e um valor igual;(2) cada pessoa tem sua própria vida para levar.2

É muito mais fácil escrever essas duas proposições, uma em-baixo da outra, do que combiná-las em uma ética política plau-sível. Passemos à distinção a que fiz menção. As razões moraisneutras em relação ao agente originam-se de valores comuns eimpessoais e, como ficará evidente, derivam da primeira dasduas proposições já enunciadas. Uma razão para o que devemosfazer é dessa natureza quando é possível dar a ela uma formageral que não inclua uma referência essencial à pessoa que a tem.3

Posso considerar, por exemplo, que é desejável reduzir o númerode mortes causadas por desnutrição ou por moléstias que podemser facilmente prevenidas ou curadas. Essa crença constitui umarazão para agir que independe de meus interesses e de minhaperspectiva individual (ou dos interesses e da perspectiva indivi-dual de qualquer outro agente). Reconhecemos razões desse tipoquando olhamos para o mundo de um ponto de vista imparcial edesinteressado, isto é, quando nosso julgamento sobre seja lá oque for digamos, uma política governamental ou uma institui-ção não é significativamente enviesado pela posição específicaque ocupemos na situação avaliada e pelos desejos e interessesque dependem dessa posição. É dessa forma que John Harsanyi,por exemplo, caracteriza o ponto de vista a partir do qual profe-rimos julgamentos qualificados como morais.4

As razões neutras em relação ao agente são tipicamente asque nós temos para fazer alguma coisa, porque fazê-la resultará

2 Tomo essas duas proposições de Nagel, 1991, p.44. Harsanyi diz algo seme-lhante sobre o ponto de partida da ética: os seres humanos têm somenteduas preocupações básicas que outros podem, sem que outras explicações

se façam necessárias, imediatamente reconhecer como preocupações racio- nais. Uma delas é seu próprio bem-estar. A outra é o bem-estar de outras pessoas. Harsanyi 1994, p.3.

3 Nagel, 1986, p.152.4 Harsanyi, 1977, p.48-64.

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em um estado de coisas que avaliamos como moralmente supe-rior ao status quo. Há dois componentes nessa definição. Umdeles, mencionado no parágrafo anterior, é um componente deimparcialidade e de impessoalidade: existem razões para a açãoque decorre de uma consideração imparcial que cada um de nósdeve ter pelo bem-estar e pelos interesses das outras pessoas.Há ocasiões, diz Harsanyi, em que as pessoas fazem, ou pelomenos se espera que façam, um esforço especial para avaliar assituações sociais de um ponto de vista imparcial e impessoal,atribuindo um peso igual aos interesses legítimos de cada partici-pante. Por exemplo, esperamos que os juízes e autoridades pú-blicas se guiem por esse critério imparcial, exercendo suas prer-rogativas oficiais como guardiões da justiça equânime e de inte-resses sociais gerais (isto é, do interesse público). Supõe-se, naverdade, que qualquer pessoa siga esse critério imparcial ao fazer julgamentos de valor moral.5 O outro é um componente deconseqüencialismo: as ações eticamente acertadas são aquelas quetêm por conseqüência estados de coisas em que a exigência degarantir uma consideração igual pelo bem-estar e pelos interessesde todos é melhor satisfeita. As razões neutras em relação aoagente são, em resumo, de natureza imparcial e conseqüencial.

Existem versões de reflexão moral conseqüencialista outilitarismo, em particular para as quais somente os valoresimpessoais e comuns são valores morais genuínos. Mesmo as quenão vão tão longe, no entanto, aceitam a idéia de que algumavariante do que Harsanyi denomina ponto de vista moral é afonte da objetividade possível e apropriada para a ética. Enfatizo

o apropriada porque certas objeções céticas à existência de va-lores (neutros) se baseiam em uma noção de objetividade quenão é apropriada para a reflexão prática. Dizer que existem ra-zões para agir, que somos capazes de reconhecer desde que fa-çamos abstração de nossos desejos e interesses particulares, é umasuposição normativa e não uma proposição de natureza causal.

As razões relativas ao agente são aquelas que um determi-nado agente tem para agir quando olha o mundo não de um

5 Ibidem, p.48.

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ponto de vista objetivo e imparcial, e sim de seu ponto de vistaindividual. Elas derivam da proposição (2) enunciada no primei-ro parágrafo. Nagel e Parfit distinguem três tipos de razões mo-rais desse tipo: (1) as razões de autonomia pessoal; (2) as razõesque derivam de obrigações especiais; e (3) as constrições deontológicas.

As razões de autonomia pessoal dizem respeito aos objeti-vos e projetos que um indivíduo tem motivos, de sua própriaperspectiva, para levar adiante. Podemos relacioná-las à capaci-

dade que um indivíduo tem de desenvolver uma concepção deseu próprio bem e de empenhar-se em realizá-la. Usualmente asinterpretamos com base em preferências individuais e ao inte-resse próprio individual. Interesse próprio e razões morais nãosão coisas antagônicas? Muitas vezes sim. Mas o ponto a enfatizarno momento é o seguinte. Mesmo quando assumimos um pon-

to de vista imparcial sempre lembrando que, na nossa discus-são, um ponto de vista imparcial tem a ver com uma conside-ração igual pelo bem-estar de todos podemos reconhecer a ca-pacidade de cada ser de satisfazer suas preferências e de fazersuas próprias escolhas. De uma perspectiva imparcial, podemosvalorizar, por exemplo, a capacidade de cada um de praticar suas

próprias crenças religiosas pacificamente. Mas isso não significaque as opções que os indivíduos façam em virtude de suas cren-ças religiosas (e preferências) tenham um valor imparcial.6 Parase valer de um exemplo de Amartya Sen, duas pessoas podemse encontrar em um mesmo estado de inanição, mas por razõesmuito distintas. Enquanto a primeira passa fome porque vive em

uma situação de pobreza extrema, a segunda passa fome porqueoptou por jejuar por razões religiosas.7 Atribuímos um valor im-pessoal à satisfação da necessidade de alimentos da primeira isto é, consideramos a satisfação dessa necessidade um valor co-mum e universal que não consideramos adequado atribuir àescolha da segunda de fazer jejum. Nos termos da distinção que

estamos examinando, a satisfação das necessidades urgentes de

6 Scanlon, 1975.7 Sen, 1992, p.52.

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pessoas destituídas é um valor neutro em relação ao agente; aescolha de jejuar é uma razão para agir só para o agente que afaz é um valor relativo ao agente.

 Jejuar, no exemplo mencionado, é uma opção do agente. (Emcontraste, as circunstâncias de destituição se impõem à vida deuma pessoa impedindo-a, em um grau significativo, de exercersua autonomia individual.) Muito do que fazemos na vida, e muitodo que faz da vida algo valioso, tem uma natureza opcional. Você

e eu podemos reconhecer que, para uma pessoa com as crençasreligiosas do jejuador, jejuar não só faz sentido mas também éparte daquilo que, para ela, torna a vida digna de ser vivida. Eispor que as razões de autonomia individual, que abrangem o queusualmente se denomina interesse próprio, não são meramentepetições de isenção com respeito às exigências da moralidade. E

é por isso que qualquer ideal político plausível precisa acomodá-las de alguma forma. Mas dizer isso não nos compromete com aidéia distinta de que a satisfação de preferências individuais devese erigir no fundamento da distribuição interpessoal de direitos,liberdades, recursos e oportunidades. Voltarei a este ponto naseção seguinte.

Uma segunda categoria de razões morais relativas ao agentediz respeito às obrigações que temos para com as pessoas comas quais temos algum vínculo especial. As obrigações dos paispara com seus filhos, as que decorrem de uma relação de amiza-de, as que temos para com nossos concidadãos ou membros deuma comunidade da qual sejamos parte encontram-se nessa se-

gunda categoria. Cada uma dessas relações pode, em certas cir-cunstâncias, autorizar certa medida de parcialidade em relação àpessoa ou às pessoas a quem o agente esteja ligado por vínculosespeciais. O seguinte exemplo, apesar de ser destituído de umreal significado prático, é útil pela sua simplicidade. Uma pes-soa deve escolher entre evitar que um grave dano ocorra à vidade seu filho ou à de um estranho. Nesse caso, nossas intuiçõesmorais nos dizem que é mais certo priorizar o bem-estar do pró-prio filho. A existência de razões que o agente tem para agir quederivam, não de uma consideração igual pelo bem-estar de to-

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dos, e sim de compromissos que se impõem de vínculos espe-ciais que podem ser voluntários ou não-voluntários é o quedá sentido a essas intuições. De um ponto de vista puramenteimparcial, é indiferente em qual dos dois cursos de ação recai aescolha do agente (o estado de coisas resultante será avaliado damesma forma). Mas o agente tem razões suas para preferir umdesses dois cursos e um dos estados de coisas que poderiam re-sultar de sua ação.

Basta alterar um pouco o exemplo, entretanto, para que nos-sas intuições se tornem mais hesitantes. Por exemplo, já não énada claro se as razões relativas ao agente devem prevalecer quandoo agente se defronta com a escolha entre evitar que um danograve ocorra à vida do filho de um estranho e evitar um ferimentomais leve ao próprio filho. A questão mais geral que essa segun-da categoria de razões relativas ao agente levanta é a seguinte. Atéque ponto é legítimo dar prioridade ao bem-estar dos nossos(filhos, parentes, amigos, clientes, representados, correligionários,irmãos de fé, membros de uma mesma comunidade étnica ounacional, compatriotas) sobre o bem-estar de estranhos (poten-cialmente, a humanidade toda)?

Há, finalmente, a deontologia. Esta é uma palavra feia, mui-tas vezes empregada para transmitir idéias diferentes. Vou utilizá-la, neste trabalho, em um sentido bastante especializado. Ao pas-so que as razões de autonomia dizem respeito àquilo que é (e édesejável que seja) opcional ao agente, as constrições deontológicassão interdições à ação individual ou coletiva. Há formas de trataros outros que são injustas, ainda que fazê-lo permitisse realizarobjetivos que consideramos valiosos. A proibição à tortura, porexemplo, hoje pode ser considerada uma constrição deontológicanão-excepcionável em nenhuma circunstância. Há outras interdi-ções desse tipo que, a despeito de também carregarem um consi-derável peso moral, são menos nítidas no que se refere a essacaracterística não-excepcionável da proscrição da tortura. De modogeral, consideramos injusto que alguém pessoa privada ou au-toridade pública prive uma pessoa arbitrariamente de sua vida,integridade física, liberdade ou propriedade, ou deixe de cumprirum contrato que com ela foi voluntariamente firmado.

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A JUSTIÇA IGUALITÁRIA E SEUS CRÍTICOS 21

Libertarianos, hobbesianos,utilitaristas e igualitários

Acredito que é possível articular toda a discussão entre asdiferentes perspectivas teóricas, no campo da teoria políticanormativa, em torno dessa distinção entre dois tipos de razõespara agir. Mais do que isso, ela nos oferece uma visão clara dequal é o problema mais fundamental da ética política. Voltarei a

esse segundo ponto adiante. O restante deste capítulo é um mis-to de esclarecimento sobre como este trabalho está organizadoem seu conjunto e de início de discussão.

Nos dois próximos capítulos, examinarei duas perspectivasnormativas para as quais somente razões relativas ao agente po-dem ser admitidas como fundamento da moralidade política: o

libertarianismo e o contratualismo hobbesiano. Para a primeiradessas teorias, a moralidade política se resume às constriçõesdeontológicas. A concepção de Hayek de justiça é um exemplodisso. As normas de justiça, segundo Hayek, aplicam-se somenteà conduta humana (elas não se aplicam à avaliação de estados decoisas) e consistem de normas de proibição de ações que podem

causar danos a outros.8 Examinarei os problemas de uma teoriadeontológica da justiça tendo por foco a teoria proposta por RobertNozick. O contratualismo hobbesiano, por sua vez, que aqui seráestudado tendo por referência central a teoria da moralidadepor acordo de David Gauthier, faz toda a força normativa dateoria depender de uma outra forma de relatividade ao agente: as

razões de autonomia individual. A noção mais central para essaperspectiva, da qual e somente da qual podemos ter a expectativade derivar constrições morais à conduta dos indivíduos, é a deracionalidade entendendo-se esta no sentido do empenho dosindivíduos de maximizar a realização de seus próprios objetivos,quaisquer que sejam. Não é impróprio considerar essas duas teo-

rias como variantes de um neoliberalismo moral, ainda que eu

8 Hayek, 1976, v.2, p.35-44.

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só tenha empregado essa denominação para intitular o capítulodedicado ao libertarianismo.

Um dos argumentos deste trabalho é o de que nenhumaconcepção plausível de justiça política pode se fundar exclusiva- mente em razões relativas ao agente. Não é possível dar sentidoàs preocupações morais genuínas das duas teorias já mencionadas,pelo menos se o que estamos procurando é uma moralidade quepossa servir de fundamento à vida coletiva, sem que se admitauma certa medida de consideração igual pelos interesses de ou-tros. Os capítulos 2 e 3 desenvolvem esse argumento. Os capí-tulos seguintes enfocam sobretudo duas variantes de reflexãonormativa que dão um peso considerável à imparcialidade mo-ral, no sentido aqui especificado: o utilitarismo e o liberalismoigualitário.

A teoria da justiça como eqüidade, de John Rawls, é a refe-rência central de modo algum a única para a discussão doliberalismo igualitário. (Empregarei também as denominações jus-tiça igualitária e contratualismo rawlsiano para me referir aessa perspectiva.) Não será nem um pouco difícil para o leitorperceber para onde se inclinam as simpatias do autor. Este tra-balho pode ser interpretado como uma defesa do que julgo ser asposições centrais do liberalismo igualitário, perante as formu-lações rivais que também serão discutidas. Faço um parêntesepara um esclarecimento importante. Não é o meu propósito fazerexegese dos textos de Rawls. O feito extraordinário de Rawls,sobretudo em Uma teoria da justiça, foi o de ter proposto umaforma de pensar com rigor um problema que muitos supunhamestar fora do alcance da reflexão racional: considerando-se que opluralismo de valores é um traço de todas as sociedades seculari-zadas do presente, é possível conceber um ideal político prati-cável em uma sociedade democrática? Em que medida Rawls teveêxito em responder a essa questão, eis o parâmetro adequadopara avaliar sua teoria e não, digamos, até que ponto sua inter-pretação da teoria moral de Kant é correta.9 Em uma escala mui-

9 É claro que essa segunda questão pode ser levantada, mas ela é, a meu ver,bem menos interessante do que a primeira, a não ser que se possa mostrar

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to mais modesta, a linha de argumentação que julgo ser maisapropriada em favor das posições liberal-igualitárias deve ser ava-liada da mesma forma, isto é, segundo seus méritos (ou deméritos)próprios para enfrentar problemas da teoria política normativa.Como se verá nos capítulos 5 e 6, o que denomino contratualismorawlsiano nem sempre corresponde inteiramente à letra dos tex-tos de Rawls ou mesmo à forma como Rawls interpreta sua pró-pria teoria. A pergunta pertinente, em meu entender, não é: éessa uma interpretação correta dos textos de Rawls?, e sim: atéque ponto o argumento que está sendo proposto para enfrentaro problema x é válido?. Há dois pontos principais de afasta-mento em relação a uma interpretação mais canônica da teoriade Rawls. No capítulo 5, argumento que as suposições moti-vacionais do contratualismo rawlsiano são mais fortes do que oargumento a partir da posição original deixa entrever. Essa éuma divergência que se apresenta em relação à formulação dateoria que aparece em Uma teoria da justiça. No capítulo 7 (etambém na primeira parte do capítulo 6), tornar-se-á evidenteque subscrevo uma interpretação mais cosmopolita do liberalismoigualitário do que o próprio Rawls parece disposto a reconhecerem seus textos mais recentes.

Há dois pontos claros de divergência entre as duas perspec-tivas normativas que reservam um lugar bastante grande a valoresneutros em relação ao agente, e um terceiro que deixarei em aber-to o julgamento sobre até que ponto trata-se ou não de uma diver-gência genuína. Comento brevemente cada um desses pontos.

O utilitarismo será examinado tendo por referência centralas formulações de John Harsanyi no campo da ética.10 Para outilitarismo, o espaço moral relevante para a avaliação do bem-estar dos indivíduos é o da utilidade individual quer ela seja

que a interpretação equivocada de Kant tem um efeito significativo sobre

os esforços de Rawls para enfrentar aquele que é o seu problema. De fato,farei algo assim, no capítulo 2, em relação à interpretação que Nozick dáà segunda formulação do imperativo categórico de Kant.

10 Hare, 1982 e Arneson, 1990 e 1991 são também trabalhos importantesno campo do utilitarismo filosófico.

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entendida em termos hedonistas ou em termos da satisfação depreferências individuais.11 No nível mais fundamental da argu-mentação moral, o utilitarismo e o liberalismo igualitário diver-gem sobre que valor atribuir à satisfação de preferências indivi-duais. No capítulo 4, argumentarei que a satisfação dessas prefe-rências, embora seja algo valioso da perspectiva individual, nãopode constituir o fundamento da distribuição de bens que, comoé o caso de direitos, liberdades e oportunidades, são valores neu-tros em relação ao agente. Essa discussão é prévia ela se colocaem um espaço normativo mais fundamental à questão de serou não possível derivar uma função social de utilidade de utili-dades individuais.

O segundo ponto de divergência diz respeito às suposiçõesmotivacionais em conexão com a forma pela qual a noção deigualdade entra em uma estrutura moral utilitarista. O utilitarismonão recomenda aos indivíduos que maximizem a realização deseus próprios interesses e objetivos, isto é, sua própria utilidadeindividual. Não há nenhuma interpretação plausível da éticautilitarista na qual a relatividade ao agente ocupe uma posiçãocentral. Quando escolhas coletivas estão em questão, exige-se dosindivíduos que ajam de forma a maximizar o total líquido de uti-lidade (caso do utilitarismo clássico) ou a utilidade per capita(utilitarismo médio).12 A maximização da utilidade total ou mé-dia é a tradução utilitarista da exigência da razão prática de que,ao decidirmos entre linhas alternativas de conduta ou entre dis-tintas configurações institucionais, levemos em conta igual e im-parcialmente o bem-estar e os interesses de todas as pessoas en-

11 Ver capítulo 4 para a distinção entre utilitarismo hedonista e utilitarismode preferências. Harsanyi é o mais articulado defensor contemporâneodo utilitarismo de preferências.

12 Para a distinção entre o princípio clássico de utilidade e o princípio dautilidade média (ou per capita), que não é essencial para minha discus-

são no momento, ver Rawls, 1971, p.161-3. Harsanyi sustenta que umindivíduo racional avaliará diferentes situações sociais, a partir do pontode vista moral, de acordo com a média aritmética dos níveis de utilidadeque os membros individuais da sociedade desfrutariam nessa situação.Harsanyi, 1977, p.51.

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volvidas. Nossa escolha deverá recair na linha de conduta que(mais provavelmente) tenha por conseqüência um estado de coi-sas em que a utilidade total ou média será maximizada. Outilitarismo atribui esse objetivo a maximização da utilidadetotal ou média a todos os indivíduos; trata-se, portanto, de umobjetivo comum. E quando os interesses individuais conflitamcom esse objetivo comum, são os primeiros que devem ceder opasso ao segundo. Em outros termos, os indivíduos devem estarsempre dispostos a abrir mão até mesmo de sua utilidade indivi-dual se isso for necessário para fazer o bolo (a utilidade agre-gada) crescer isto é, se isso for o melhor, da ótica utilitarista,para a sociedade. A premissa motivacional que há por trás damoralidade utilitarista é muito forte: só é possível justificar asescolhas sociais recomendadas de uma perspectiva utilitarista casose suponha que os objetivos e valores comuns prevaleçam sempre sempre, pelo menos, que houver conflito sobre o interessepróprio e os objetivos individuais. Fazer o que seria aprovado deum ponto de vista puramente imparcial e objetivo constitui aúnica motivação para a agência moral utilitarista.

Apesar de exigente em termos motivacionais, o utilitarismo,entretanto, oferece uma interpretação singularmente restritivado que é uma consideração igual pelos interesses de todos.Sobre isso, o ponto a ser ressaltado é o de que o utilitarismo nãoestá necessariamente comprometido com uma concepção de igual-dade distributiva. As considerações agregativas, relacionadas aocritério paretiano de eficiência, normalmente desempenham umpapel muito mais importante, na argumentação moral utilitarista,do que as considerações distributivas. Em princípio, o utilitarismopode considerar justificado que se desconsiderem os interessesdos mais destituídos, se isso for conducente à maximização dasoma total de utilidade ou da utilidade média. Isso constitui, comoargumentarei no capítulo 5, uma das razões mais fortes para pre-ferir o princípio maximin de justiça social, proposto por Rawls,ao princípio da utilidade média. O casamento de consideraçõesde eficiência agregativa com as de igualdade distributiva só se tor-na possível quando entra em cena uma hipótese adicional: a deque a utilidade marginal de um recurso x (tipicamente, a renda)

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é decrescente. Quando a hipótese da utilidade marginal decres-cente se confirma, um utilitarista pode sustentar que uma distri-buição mais igualitária de x já que cada unidade suplementar de x gera mais utilidade para quem tem pouco do que para quemtem muito desse recurso é também a mais recomendada porum critério de otimalidade paretiana.13 Um dos problemas desseraciocínio está em supor a comparabilidade das utilidades. Masmesmo deixando-se esse problema de lado, se a hipótese da utili-dade marginal decrescente não se verifica, por exemplo porqueos indivíduos mais privilegiados desenvolvem gostos caros, de talforma que a utilidade derivada de unidades suplementares de xsó decaia muito lentamente, as recomendações utilitaristas dis-crepam fortemente de considerações igualitárias. O utilitarismooferece uma interpretação da imparcialidade moral. Imparciali-dade e igualdade, no entanto, são conceitos distintos. A teoria dajustiça de Rawls reserva um lugar mais claro e direto para a noçãode igualdade.

Há um terceiro ponto sobre o qual não estou certo haveruma divergência significativa entre o utilitarismo ou pelo me-nos, uma de suas variantes e o contratualismo rawlsiano. Umacrítica muitas vezes feita ao utilitarismo é a de que, em razão doviés de hiper-objetividade14 que impõe à teoria políticanormativa, não acomoda adequadamente as razões morais rela-tivas ao agente. O utilitarismo constitui uma modalidade ra-dical de pensamento moral fundado em razões neutras em re-lação ao agente. É comum se argumentar que é sempre possívelinvocar considerações agregativas para justificar violações de di-reitos, liberdades, razões de autonomia individual, obrigações es-peciais e interdições deontológicas. Uma vez que um conse-qüencialismo puro é aceito como a forma mais apropriada de

13 Ver capítulo 3, seção Mercado e moralidade, para a noção de otimalidade

paretiana.14 Nagel, 1986, p.162-3. A objeção de hiper-objetividade se aplica a todaforma de reflexão moral conseqüencialista para a qual a única razão parauma pessoa fazer alguma coisa é a de que isso, considerando o mundocomo um todo, seria a melhor coisa a ser feita (ibidem).

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reflexão ética, não há nenhuma atrocidade tirar a vida de pes-soas inocentes, torturar opositores políticos, invadir os direitosdas pessoas que não possa ser justificada com base no estadode coisas, avaliado como benéfico pelos agentes praticantes doato atroz, que supostamente seria gerado. Mas pensemos em umasituação corriqueira e muito menos dramática do que isso.15 Umapessoa pobre tem de decidir o que fazer com respeito a um em-préstimo que lhe foi feito por um homem abastado: pagar oucalotear? Caso se recomende à pessoa pobre que decida aplican-do de forma direta o critério da maximização da utilidade social,ela se decidiria por não pagar. Considerando-se que a somade dinheiro emprestada tem uma utilidade marginal maior para apessoa pobre do que para o homem abastado, conclui-se que aconduta de passar o calote gera mais utilidade social do que a con-duta de pagar o débito. Teríamos de concluir, com o devedor,que calotear é o melhor para a sociedade. Exemplos similares po-deriam ser concebidos para não cumprir as próprias promessase obrigações contratuais, desrespeitar direitos de propriedade edireitos civis e ignorar interdições deontológicas e obrigaçõesespeciais.16

O argumento utilitarista, entretanto, pode ser sofisticado paradar conta dessa objeção. Não pretendo voltar a esse tema poste-riormente, por isso vou tratar dele já. Os teóricos utilitaristascontemporâneos mais importantes, como Harsanyi e RichardHare, rejeitam o utilitarismo de atos sumariado no parágrafoanterior em prol de um utilitarismo de normas. Este últimorecomenda que a avaliação conseqüencial não seja aplicada a atosisolados, e sim a práticas morais e instituições. A prática de assu-mir obrigações por meio de promessas, e os efeitos sociais bené-ficos que a ela estão associados, será destruída se cada um só

15 O exemplo que vem a seguir é de Harsanyi, 1977, p.62.

16 Essa lista pode ser ampliada. Maria Cecilia de Carvalho acredita que outilitarismo milliano não acomoda adequadamente garantias jurídicas paraevitar a condenação de inocentes, tais como o princípio in dubio pro reo, e,se consistentemente aplicado, poderia justificar, contrariamente aos desejosde Mill, a imposição de penas draconianas. Ver Carvalho, 1997.

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cumprir suas promessas quando fazê-lo for, em cada caso especí-fico, maximizador da utilidade social. Pagar os próprios débitosé uma forma de preservar uma prática (a de fazer empréstimos)

que tem efeitos sociais úteis. Se essa prática não for em geralrespeitada, o homem abastado não será motivado a fazer emprés-timos à pessoa pobre. O respeito, em atos isolados, à obrigaçãode pagar os débitos tem efeitos de incentivo e de confiança semos quais a prática de fazer empréstimos não se manterá. O mes-mo vale para cumprir as promessas e obrigações contratuais,

respeitar direitos de propriedade e assim por diante.De acordo com o utilitarismo de normas, o conteúdo da

moralidade não é especificado pelo princípio de utilidade e simpor princípios e normas morais substantivos estabelecendo, porexemplo, que os direitos das pessoas não devem ser desrespei-tados, que não se deve punir os inocentes, que os próprios acor-

dos e promessas sejam cumpridos. É a adesão generalizada a es-sas normas que tem o efeito de maximizar o total líquido de feli-cidade. O princípio de utilidade só desempenha um papel, emum segundo nível da reflexão prática, quando se trata de esco-lher entre códigos morais distintos.17 A questão a ser apresenta-da, dessa ótica, é algo do tipo: se a norma x for em geral cum-

prida, pelo menos pelas pessoas que têm preocupações genuínascom a moralidade, terá isso o efeito de elevar a utilidade social?.Se a resposta for afirmativa, a norma em questão será recomen-dada pelo princípio de utilidade. Uma formulação sintética deAustin exprime bem o que está sendo dito: Nossas normas seconformariam à utilidade; e nossa conduta, a nossas normas.18

Não vejo muitas razões para polemizar com essa interpreta-ção específica da ética utilitarista. Mas note-se que não deixa de

17 Harsanyi, 1994, p.4. Esse segundo nível, que é o da reflexão normativapropriamente dita, somente é apropriado, diz Hare, aos momentos deserenidade, em que há um tempo ilimitado para investigar os fatos.

Somente se fosse possível dispor de um conhecimento total dos fatos e deuma capacidade sobre-humana de reflexão sobre eles, seria possível dizero que é mais correto fazer, em cada caso, avaliando suas conseqüências(Hare, 1982, p.31).

18 Apud Mackie, 1977, p.136.

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ser tortuosa a forma pela qual os direitos e liberdades indivi-duais e os valores relativos ao agente encontram seu espaço emuma estrutura moral utilitarista. Há um descompasso entre osmotivos que as pessoas têm para conformar sua conduta às nor-mas e aos princípios morais e as razões pelas quais essas normase princípios são considerados, no segundo nível da reflexão prá-tica, benéficos. O utilitarista atribui um valor meramente ins-trumental àquilo que as pessoas tomam, ou se supõe que devemtomar, como razões de direito próprio para agir. E somente se elasconsiderarem dessa forma a obediência àqueles princípios e nor-mas, isto é, somente se houver um número considerável de pes-soas que, exceto em circunstâncias excepcionais, considerammoralmente errado descumprir suas promessas, os efeitos sociaisbenéficos esperados se produzirão. A valorização instrumentaldaquilo que se espera que as pessoas aprendam a valorizar deforma não-instrumental deixa sempre a suspeita de que a pri-meira e a última palavras serão concedidas a consideraçõesagregativas. Vale aqui uma observação de Jeremy Waldron sobrea dificuldade da teoria utilitarista de gerar considerações investidasda força moral que atribuímos a direitos: não devemos deixar

que a sofisticação formal do utilitarismo contemporâneo ocultede nós o fato de que, no nível do conteúdo, os utilitaristas per-manecem perfeitamente à vontade com a possibilidade (na ver-dade, eles estão necessária e profundamente comprometidos comisso) de barganhar os interesses relacionados à vida e à liber-dade de um pequeno número de pessoas por uma soma maior

de interesses menores de outros.19

A questão é: não há uma forma mais direta de acomodarconsiderações morais relativas ao agente em uma perspectivanormativa na qual a primazia cabe a valores neutros em relaçãoao agente? Mesmo não podendo, neste estágio da discussão, daruma idéia mais precisa de tudo o que está envolvido nessa per-

gunta, sustento que ela toca no problema central da teoria polí-tica normativa. O problema mais geral e relevante nessa área da

19 Waldron, 1985, p.18-9.

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teoria política é o de conceber um ideal político praticável quefaça justiça, na medida apropriada, aos dois tipos de razões paraagir que estamos considerando. Ao passo que as duas variantesde neoliberalismo moral que estudaremos enviesam-se para olado da relatividade ao agente, o utilitarismo tem uma irresistíveltendência a fazer que a moralidade política se desequilibre nadireção oposta. (Entretanto, como foi dito acima, é objeto dediscussão até que ponto o utilitarismo oferece uma interpreta-ção aceitável da idéia que o faz enviesar na direção oposta, a deigual consideração pelo bem-estar de todos.)

Seria muito fácil e confortador sustentar que o liberalismoigualitário oferece uma solução inteiramente satisfatória para esseproblema. Não estou certo disso. Prefiro encarar o empenho emchegar a tal solução como uma empreitada teórica em andamento.De momento, limito-me a apontar os componentes da teoria dajustiça de Rawls que objetivam equilibrar os dois tipos de razõesmorais. Um deles é a prioridade atribuída às liberdades civis epolíticas em face de considerações de igualdade distributiva e deutilidade geral. Esse é um dos componentes que justificam tratar-mos a teoria de Rawls como um esforço sistemático de articularuma moralidade política liberal. Discutirei a prioridade das liber-dades básicas no capítulo 6, tendo em vista sobretudo a objeção uma tradicional crítica socialista ao liberalismo de que a exis-tência de vastas desigualdades socioeconômicas torna formal agarantia dessas liberdades para os mais destituídos.

Do ponto de vista do que estamos discutindo no momento,há uma complicação a ser enfrentada. Seria tentador dizer sim-plesmente que a prioridade atribuída às liberdades e aos direitosbásicos tem o propósito de proteger, de uma forma mais diretado que no utilitarismo de normas já discutido, valores relativosao agente de exigências excessivas de imparcialidade moral istoé, das exigências que se impõem de uma igual consideração pelosinteresses de todos. Mas isso não é de todo exato. Há duas for-mas muito distintas de conceber a força especial que atribuímosa direitos. Estes podem ser entendidos exclusivamente como res-trições ou interdições à ação; ou, alternativamente, como inter-dições a determinadas condutas e como estados de coisas dese-

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jáveis, que deveríamos tentar alcançar por meio da ação política.Direitos podem ser entendidos como razões (relativas ao agente)para que você se abstenha de determinadas condutas ou comorazões (neutras em relação ao agente) para que uma determinadaestrutura institucional seja preferível a outra. O primeiro enten-dimento é próprio de uma teoria deontológica da justiça comosão as de Hayek e Nozick. O segundo, próprio de uma teorianormativa que tem um largo componente de conseqüencialismo.

Essa diferença na forma de conceber os direitos indica a exis-tência de um fosso, no nível dos princípios, entre as duas va-riantes de pensamento liberal que aqui serão confrontadas: olibertarianismo e o liberalismo igualitário. Não vou antecipar adiscussão do capítulo 2. Mas é conveniente explicitar desde jáque, da ótica da distinção proposta neste capítulo, a teoria dajustiça de Rawls não é deontológica. Isso pode parecer surpreen-dente, já que o próprio Rawls contrasta sua teoria com o utili-tarismo, caracterizando este último como uma teoria teleológicae justiça como eqüidade, como uma teoria deontológica.20 Ex-plico brevemente essa distinção de Rawls. O utilitarismo é umadoutrina ética teleológica por dar primazia a uma visão do bemhumano concebido em termos da máxima satisfação possívelde desejos e aspirações individuais sobre princípios de justiçae do direito. Estes são, em uma ética teleológica, instrumentaisàquela: que princípios devem ser implementados pelas institui-ções sociais básicas, depende de considerações agregativas sobreo total líquido de satisfação de preferências e desejos individuaisque pode ser alcançado. Já em uma teoria deontológica, no sen-tido que Rawls julga pertinente para caracterizar sua própria teo-ria, os princípios de justiça têm primazia sobre o bem em doissentidos: porque podem ser defendidos de uma forma que nãopressupõe a validade de nenhuma visão específica do bem; eporque colocam limites às formas pelas quais os cidadãos po-dem se empenhar em realizar as concepções do bem que julgamser verdadeiras. Com respeito ao que faz uma doutrina ética ser

20 Rawls, 1971, p.30.

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teleológica, nenhum problema.21 Mas, em relação à deontologia,estamos falando de coisas distintas. A prioridade da justiça so-bre o bem, em meu entender, alude a um elemento central deuma concepção igualitária de justiça: o tema da neutralidade ouda tolerância liberal. Essa questão, no entanto, é distinta daquelade que estou tratando no momento. Em termos breves, a idéiade neutralidade pode ser formulada assim. Uma concepção dejustiça que tem a pretensão de constituir o fundamento normativode uma sociedade democrática deve satisfazer a exigência de queseus princípios possam ser justificados, perante todos os cida-dãos, de uma forma que não pressuponha a validade de umadoutrina abrangente (moral, filosófica ou política) específica.22

Do ponto de vista normativo, a aceitação dessa idéia é um traçoainda mais significativo do que a prioridade das liberdades bá-sicas para caracterizar uma teoria política como liberal.

Podemos aceitar a primazia da justiça sobre as concepções dobem e, ao mesmo tempo, concebê-la em termos essencialmenteconseqüencialistas. Isso se aplica, acredito, à teoria de Rawls.(Como de resto se aplica a toda teoria normativa que abre umespaço considerável a valores neutros em relação ao agente.) Oconseqüencialismo é uma decorrência necessária de entender ajustiça como a virtude primeira das instituições sociais.23 Oobjeto da justiça, para Rawls, não é a correção ou a incorreção

21 Essa definição, note-se, não tem nada a ver com determinismo histórico.Uma doutrina é teleológica quando atribui um valor supremo a um

determinado fim ou concepção da boa vida e subordina tudo o mais quepodemos considerar moralmente significativo princípios de justiça,direitos e deveres à consecução desse fim. O componente ético domarxismo pode ser considerado uma concepção teleológica nesse sentido,e considerá-lo dessa forma não envolve nenhum compromisso com umavisão determinista da história.

22 Uma doutrina é abrangente, diz Rawls, quando inclui concepções sobre

o que é valioso na vida humana e ideais de caráter pessoal, assim comoideais de amizade, de relações familiares e associativas, e muito mais aindaque deve informar nossa conduta, no limite de nossa vida como um todo(1993a, p.13).

23 Rawls, 1971, p.3.

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moral da conduta de agentes individuais (quer se trate de indiví-duos, de organizações de todo tipo ou de governos) e sim o queRawls denomina a estrutura básica da sociedade. Contraria-mente ao que diz Hayek na passagem já citada, primariamente asnormas de justiça aplicam-se à avaliação, não da conduta indivi-dual, e sim de arranjos institucionais que incluem a organizaçãopolítica e a distribuição de direitos e liberdades fundamentais, asformas de propriedade e de organização da economia.24 A teoriade Rawls nos recomenda olhar, antes de mais nada, para os efei-tos ou as conseqüências que distintas configurações institucionaistêm para a distribuição de encargos e benefícios na sociedade.No essencial, esse enfoque é conseqüencialista-contratual ouinstitucional.25

Um exemplo corriqueiro da política brasileira ajuda a enten-der a diferença de perspectiva entre uma visão deontológica euma visão institucional. A prática generalizada do clientelismo emesmo da corrupção pode ser vista como uma incapacidade dospolíticos de reconhecer, em sua conduta, os deveres associadosao exercício de prerrogativas públicas. Essa seria a análisedeontológica da corrupção. Um tratamento similar àquele queestou sugerindo que o contratualismo rawlsiano propõe para ajustiça social consistiria em inquirir se a conduta clientelista ecorrupta não é incentivada pelo modo segundo o qual as insti-tuições políticas estão organizadas.

Há uma qualificação importante a ser feita a essa caracteri-zação conseqüencialista que estou propondo para o con-tratualismo rawlsiano. O foco em princípios para a estruturabásica tem o propósito de desonerar a teoria da justiça de fazerjulgamentos sobre transações e distribuições específicas, e tam-bém de levar em conta os níveis de satisfação individual. A espe-rança de Rawls é poder tratar da estrutura básica da sociedadecomo um caso de justiça procedimental pura.26 A idéia é a

24 Ver capítulo 7 para uma definição mais completa de estrutura básica dasociedade.

25 Pogge, 1995a.26 Rawls, 1971, p.84-7.

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seguinte. Vamos supor que a estrutura básica da sociedade rea-liza, de forma pelo menos aproximada, os princípios de justiçaque deveríamos considerar, levando-se tudo em conta, como osmais aceitáveis. Nesse caso, esse complexo institucional poderiaser visto como um procedimento eqüitativo tal que quaisquerresultados por ele produzidos deveriam ser considerados justos.A grande vantagem da justiça procedimental pura, diz Rawls,é a de que já não é mais necessário, para satisfazer as exigênciasda justiça, levar em conta a infindável variedade de circunstân-cias e as posições relativas cambiantes de pessoas em particular.... É um equívoco focalizar as posições relativas variáveis dos in-divíduos e exigir que cada alteração, considerada como uma tran-sação única e isoladamente, seja em si mesma justa. É o arranjoda estrutura básica que deve ser avaliado, e se deve avaliá-lo deum ponto de vista geral.27 A forma de avaliação conseqüencialque é pertinente à teoria de Rawls, portanto, é aquela que tempor objeto os efeitos da estrutura básica e não todos os estadosde coisas que podem se produzir sob essa estrutura.

Ao colocar a ênfase da análise normativa nos efeitos de ar-ranjos institucionais, o liberalismo igualitário se aproxima, nesseponto específico, do utilitarismo de normas.28 Como disse antes,não é aí que se deve esperar que alguma divergência importanteentre as duas perspectivas seja detectada. Para ambas, o estadode coisas produzido por uma determinada prática ou instituiçãoimporta e importa muito. Mas, assim como não há uma só formade levar em conta considerações deontológicas, também há maisde uma maneira de incorporar preocupações conseqüencialistasem uma doutrina ética.29 O utilitarismo (agora sem distinguir

27 Ibidem, p.87-8.28 O utilitarismo de normas, no entanto, não dá uma ênfase forte à noção

de estrutura básica entendida como o modo pelo qual as instituiçõessociais se articulam em um sistema único, que determina a distribuição

dos encargos e benefícios da cooperação social e condiciona as aspiraçõese perspectivas de vida de cada pessoa. O utilitarismo de normas apenasreconhece que o princípio de utilidade pode ser aplicado à avaliação deinstituições e não de atos.

29 Sen, 1987, enfatiza muito esse ponto.

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entre suas diferentes versões), propõe que se avaliem as conse-qüências, seja lá do que for ações, práticas ou instituições emtermos dos níveis de utilidade produzidos pelo estado de coisasresultante. É sobre isso que vale a pena debater (é o que farei,como já mencionei anteriormente, no capítulo 4).

Introduzi a distinção entre teorias deontológicas e teoriasconseqüencialistas, não para polemizar com o utilitarismo, e simpara dar relevo a distância entre duas versões de reflexão práticaassociadas ao liberalismo. Não é exagero dizer que a posição cen-tral que Rawls reservou para a noção de estrutura básica da so-ciedade noção essa para a qual uma teoria deontológica nãotem lugar30 equivale a uma revolução copernicana na teoriapolítica liberal. O significado dessa contribuição de Rawls é ade-quadamente realçado por Brian Barry:

Quando falamos da estrutura básica da sociedade, estamospreocupados com o modo pelo qual as instituições funcionamsistematicamente para beneficiar alguns e prejudicar outros. Aincorporação por Rawls dessa noção de estrutura social em suateoria representa a chegada da filosofia política liberal à era darazão. Pela primeira vez, uma personalidade central de uma tradição

em geral individualista levou em conta o legado de Marx e Weberao reconhecer que as sociedades têm padrões de desigualdade quepersistem ao longo do tempo e formas sistemáticas de distribuir aspessoas em suas hierarquias de poder, status e dinheiro.31

Vou me manter nos limites da discussão proposta neste ca-pítulo introdutório. Argumentei que o foco na estrutura básicada sociedade introduz um forte componente de conseqüen-cialismo na concepção de justiça de Rawls. Essa concepção é ba-seada em direitos mas, diversamente do que se passa com uma

30 Hayek chega a ponto de tratar uma posição distinta da sua sobre qual

deve ser o objeto primeiro da justiça se normas de conduta ou asinstituições básicas da sociedade como nada mais do que um erro decategoria (1976, p. 31). Ver Rawls, 1993a, p.262-5, para um comentáriosobre a teoria de Nozick desse ponto de vista.

31 Barry, 1995a, p.214.

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doutrina deontológica, os direitos são concebidos como valoresneutros em relação ao agente.32 Podemos, agora, recolocar a ques-tão de ordem mais geral que estamos discutindo. Como reconci-liar o ponto de vista conseqüencialista-contratual sobre a justiçasocial com as razões que o agente tem, de seu ponto de vista,para agir? Em tese, não é difícil de responder a essa questão. Aresposta liberal-igualitária apela à idéia de uma divisão moraldo trabalho.33 Se as instituições básicas da sociedade incorpo-ram uma consideração igual e imparcial pelo bem-estar de to-dos, então cada um pode se considerar livre, moralmente falan-do, para viver sua própria vida a sua maneira, empenhar-se emrealizar seus próprios planos de vida e concepção do bem, e daro peso necessário às obrigações especiais que deve reconhecerem sua conduta.34 Essa é uma idéia importante, e dela farei usomais de uma vez em outras partes deste trabalho.

Trata-se, entretanto, de uma resposta insuficiente. O con-tratualismo rawlsiano dá um peso muito maior do que o utili-tarismo à igualdade na interpretação da imparcialidade moral.Examinarei essa concepção de igualdade no capítulo 6. O libera-lismo igualitário, de acordo com a divisão moral do trabalhomencionada no parágrafo anterior, recomenda que dirijamosnossas preocupações de imparcialidade moral para as instituiçõessociais. Isso é próprio do enfoque institucional. O problema, noentanto, é que a interpretação liberal-igualitária sobre o que éuma consideração igual pelo bem-estar de todos faz exigênciasmuito mais fortes de imparcialidade moral, às instituições básicasda sociedade, do que aquelas que qualquer sociedade liberal dopresente incluindo os welfare states mais desenvolvidos foi

32 De modo mais geral, aquilo que Rawls denomina bens primários sãovalores neutros em relação ao agente.

33 Nagel, 1991, p.53-62.34 As interdições deontológicas, como já foi dito, não são objeto de escolha

individual. Aquelas que importam da ótica da moralidade política, detoda forma, normalmente já se encontram traduzidas em deveres legais.É claro que as objeções que mencionei (e vou desenvolver no capítulo 2)se aplicam às doutrinas éticas para as quais o alcance da moralidade polí-tica restringe-se exclusivamente ao respeito às constrições deontológicas.

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capaz de satisfazer. Uma sociedade liberal bem ordenada, tal comoRawls a concebe, é muito mais igualitária do que qualquer coisaque conhecemos. (Justifico essa afirmação no capítulo 6.)

Da ótica da teoria política normativa, o problema principal aser enfrentado não é o da exeqüibilidade política. Quando discu-timos as implicações de nossos ideais, parece razoável suspenderos julgamentos de exeqüibilidade política. Sem isso, nenhumadiscussão normativa séria pode se desenvolver. A questão funda-mental é outra. Se os princípios liberal-igualitários de justiça seaplicam primariamente à estrutura básica da sociedade, o pro-blema consiste em saber se é possível conceber instituições subs-tancialmente mais igualitárias do que as que hoje conhecemos eque, ainda assim, não façam exigências motivacionais que não érazoável esperar que os indivíduos possam honrar. O fato de umideal político enfocar configurações institucionais, antes do quenormas de conduta pessoal, não o exime, por assim dizer, defalar aos indivíduos e de levar em conta as motivações que sur-gem quando olhamos para o mundo do ponto de vista indivi-dual. A plausibilidade de princípios de justiça não depende so-mente de em que medida ou com que propriedade exprimam umideal de imparcialidade moral e de igualdade; também é precisosaber se as instituições que os realizariam fazem exigências que érazoável supor que os indivíduos possam cumprir. Podemos des-cartar uma concepção de justiça social (ou um ideal político) comoutópica em um sentido negativo caso as instituições necessá-rias para colocá-la em prática só funcionem se os indivíduos fo-rem motivados a agir por razões altruístas ou benevolentes. Comodiz Nagel, o grande problema não-resolvido da teoria políticaigualitária, da social-democracia e da esquerda antiautoritária é ode projetar instituições que sirvam a um ideal de imparcialidadeigualitária sem exigir demasiada imparcialidade dos indivíduosque nelas ocuparão posições instrumentais.35

Não tenho, infelizmente, nenhuma contribuição importan-te a oferecer para a solução desse problema. Ao longo deste tra-

35 Nagel, 1991, p.61.

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balho, manterei uma atitude que beira o agnosticismo com res-peito a recomendações institucionais específicas. Mas por ser esseum problema não-resolvido, não deixo de me sentir incomo-

dado com os rumos do debate teórico sobre o contratualismode Rawls em anos recentes. A começar do próprio Rawls, a preo-cupação central se deslocou, ao longo da década de 1980, dequestões de igualdade distributiva para questões que são perti-nentes àquilo que denominei anteriormente ideal de tolerâncialiberal. Essa mudança de rumo não se deve às democracias li-

berais contemporâneas terem se tornado mais igualitárias nosentido rawlsiano. Aliás, precisamente o inverso disso é verda-deiro.36 Por que, então, a mudança de rumo? A causa disso tal-vez tenha sido a crítica comunitarista ao liberalismo, que cos-tuma recair sobretudo na justificativa teórica e/ou nas implicaçõespráticas da neutralidade liberal.37 Ou talvez, uma percepção mais

clara dos desafios que o multiculturalismo apresenta, inclusivenos países ocidentais desenvolvidos, aos fundamentos do Estadoliberal-democrático.38

36 Kuntz, 1995, resume as evidências empíricas sobre isso. Faço uma discussãodo problema no capítulo 6 (na seção Da liberdade natural à igualdade

democrática).37 Por razões que não têm a ver com a lógica interna deste trabalho, e sim

com a necessidade de mantê-lo dentro de limites manejáveis, não tratareide forma sistemática das objeções comunitaristas à justiça igualitária. Elaspoderiam ser facilmente integradas à classificação de teorias normativasque estou propondo. Essas objeções podem ser consideradas um enfoquenormativo que põe em questão no limite, rejeita o ponto de vista

moral, tal como aqui o estou entendendo, em nome do peso moral quedevemos atribuir a uma das três modalidades de relatividade ao agente: asobrigações especiais. As diferentes modalidades de comunitarismo arti-culam as objeções mais sérias à justiça igualitária que invocam o pesomoral da proximidade contra os valores neutros em relação ao agente que, recordemos, só são valores de um ponto de vista despegado de posi-ções e identidades específicas. No capítulo 6 (na seção Um argumento

comunitarista) examino e rejeito um argumento anticosmopolita deMichael Walzer.38 Sem falar de clivagens mais antigas, o Islã, como mostra Therborn (1997,

p.37-40), tornou-se uma minoria cultural significativa em vários paíseseuropeus-ocidentais.

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Quaisquer que tenham sido as razões para essa mudança derumo, elas me parecem mal fundadas. Não que os problemas detolerância não sejam importantes, mas é incorreto, acredito, tra-tar deles negligenciando-se as questões de justiça distributiva emsentido estrito. Na primeira das conferências de seu O liberalismo político, Rawls afirma que nada mudou no componente igualitá-rio de sua concepção de justiça.39 Isso não é claro. O princípio dejustiça distributiva proposto em Uma teoria da justiça o princí-

pio de diferença não desempenha nenhum papel relevante noentendimento que Rawls hoje tem de sua teoria como uma va-riante de liberalismo político. Não vou me estender sobre esseponto agora (e nem, aliás, no restante deste trabalho).

De momento, quero enfatizar que o liberalismo igualitário,caso tenha pretensões de se apresentar como um ideal político

plausível, está obrigado a defender suas pretensões nas duas fren-tes ao mesmo tempo. E o déficit teórico é maior com respeito aocomponente igualitário. (Observo que, da mesma forma que oque estou denominando componente igualitário ou justiçadistributiva em sentido estrito, o ideal de neutralidade liberaltambém está conectado com a idéia normativa mais fundamental

de uma igual consideração pelo bem-estar de todos. Um Estadoliberal justo deve ser neutro entre as concepções do bem abran-gentes afirmadas por seus cidadãos porque essa é, considerandoque não há nem pode haver consenso nessa matéria, a únicaforma de eles serem tratados como iguais pelas instituições sobas quais têm de viver. Creio que me faço entender, de todo modo,

quando falo em duas frentes de problemas.) Muitos entre aque-les que rejeitam a teoria da neutralidade liberal, certamente hesi-tariam em rejeitar também pelo menos quando essa idéia écorretamente interpretada suas implicações institucionais maisimportantes: a vigência de procedimentos políticos eqüitativospara a tomada de decisões políticas e a proteção aos direitos civis

e políticos (com tudo o que isso supõe em termos de independên-cia do judiciário e vigência do império da lei). Qual é o arranjo

39 Rawls, 1993a, p.7.

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institucional necessário (e praticável) para realizar o componenteespecificamente igualitário da teoria de Rawls, permanece, comojá foi dito anteriormente, uma questão em aberto.

Examinarei o ideal de imparcialidade igualitária do con-tratualismo rawlsiano nessas duas dimensões: na da igualdadedistributiva (capítulo 6) e na da neutralidade liberal (capítulo 7).Discutirei esses dois temas com uma dupla preocupação em men-te: a de precisar as exigências que a justiça igualitária faz às insti-

tuições básicas da sociedade; e a de inquirir se o arranjo insti-tucional que a colocaria em prática pode ser estável em termosmotivacionais. Observe-se que há um problema de congruênciaentre o ponto de vista moral, que esperamos que seja levado emconta nos arranjos institucionais básicos, e o ponto de vista in-dividual nas duas frentes mencionadas. Com respeito ao com-

ponente igualitário, a questão fundamental é a de saber se e comoos princípios liberal-igualitários de justiça podem ser justificadossobretudo aos membros mais privilegiados da sociedade. Comrespeito ao problema da neutralidade, trata-se de inquirir se es-ses princípios podem ser justificados a pessoas que professamdoutrinas religiosas, filosóficas ou políticas distintas e que terão

de restringir a forma como as praticam de acordo com aquelesprincípios. Nos dois casos, a justiça igualitária impõe um ônusmotivacional considerável.

Seria um pouco artificial enquadrar tudo o que será dito emum único argumento. Mas o texto tem, pelo menos essa é aminha expectativa, uma estrutura argumentativa. Apresento-a

de uma forma extremamente abstrata. Uma teoria políticanormativa que tenha a pretensão de apresentar uma visão, a maisplausível que podemos conceber, dos fundamentos éticos de umEstado liberal-democrático, não pode se fundar, como o li-bertarianismo e o contratualismo hobbesiano, exclusivamenteem razões morais relativas ao agente. A discussão passa, por isso,

para as perspectivas normativas para as quais a ética política su-põe que sejamos capazes de avaliar as práticas e instituições sobas quais vivemos de um ponto de vista de neutralidade em re-lação ao agente ou de imparcialidade moral. O passo seguinte

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consiste em mostrar que o liberalismo igualitário tem uma inter-pretação da imparcialidade moral que é mais aceitável do que ado utilitarismo de preferências. Restam, entretanto, dúvidas so-bre em que medida o largo componente igualitário da visão deimparcialidade moral do primeiro pode se integrar com as razõesque um agente tem, de seu ponto de vista individual, para agir.

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CAPÍTULO 2

O NEOLIBERALISMO MORAL

Os teóricos liberais associados à perspectiva que vamos exa-minar neste capítulo podem ser considerados os companheirosde viagem no terreno da filosofia política e moral dos defen-sores mais radicais das políticas públicas que vêm sendo denomi-

nadas, em muitos países do mundo, reformas de mercado: asprivatizações de empresas estatais e de considerável parte do siste-ma de proteção social, a desregulamentação econômica, financei-ra e da contratação trabalhista, a abertura comercial, a reduçãodos subsídios públicos a empresas e grupos privados. Neo-liberalismo é o rótulo comumente associado a qualquer uma

dessas políticas ou ao conjunto delas. E, como inevitavelmenteocorre com qualquer termo excessivamente utilizado no debatepolítico e ideológico, o conteúdo semântico preciso a que o ró-tulo alude torna-se crescentemente indiscernível.

Ainda que esse não seja o objetivo central da discussão quedesenvolverei neste capítulo, acredito que ela poderá contribuir

para esclarecer os conteúdos legitimamente associados ao termoneoliberalismo. Mas a perspectiva da qual examinarei oneoliberalismo provavelmente não é a mais comum não , pelomenos, na discussão pública sobre as reformas de mercado. Os

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economistas e as autoridades governamentais da área econômicacostumam se preocupar quase que exclusivamente com um úni-co aspecto dessas reformas: em que medida elas promovem, nocurto prazo ou em algum momento futuro, a eficiência, a estabili-zação e o crescimento econômicos. Os cientistas políticos dis-cutem menos as reformas em si mesmas do que o processo polí-tico pelo qual elas foram incorporadas à agenda política e trans-formadas em política pública. E há os que se preocupam com os

efeitos das reformas neoliberais para as políticas sociais e para ajustiça social.Não há dúvida que é indispensável constituir sólidos julga-

mentos empíricos sobre os efeitos das reformas de mercado parao desenvolvimento econômico, para a consolidação do regimedemocrático e para a promoção da justiça social. Mas a via pela

qual enveredarei a seguir é outra. Em vez de inquirir pelas conse-qüências das reformas neoliberais, seja lá para o que for, enfocareios princípiosde razão prática que podem ser invocados para justificá-las. Existe algo como uma moralidade neoliberal?

Examinarei, neste capítulo, a vertente libertariana doneoliberalismo moral, na formulação filosoficamente mais so-

fisticada que essa perspectiva recebeu de Robert Nozick.1 Trata-se da tentativa de fundar a moralidade neoliberal em uma con-cepção de direito natural. No capítulo 3, examino a vertentecontratualista-hobbesiana do neoliberalismo moral, que dispen-sa o recurso ao direito natural e que se empenha em retirar aforça normativa das restrições morais que propõe da idéia decontratação racional.

1 Nozick, 1974. Acredito que é preferível designar o partidário dessa posiçãopor libertariano, já que usualmente utilizamos o termo libertário comosinônimo de anarquista. Ainda que seja adepto de um Estado mínimo

para outras finalidades (promover a justiça social, por exemplo), umlibertariano como Nozick é um ferrenho defensor de um Estado forte osuficiente para proteger algo que os anarquistas históricos odiavam: umdireito de propriedade adequado a uma sociedade livre (isto é, a umaordem econômica capitalista).

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Moralidade neoliberal: faz alguma diferença?

Antes de examinarmos os elementos constitutivos de umamoralidade neoliberal, permita-me considerar uma objeção quelogo de início poderia ser feita à minha escolha de perspectiva.Por que é importante perceber qual é o componente normativoespecífico do neoliberalismo? Por acaso os proponentes das refor-mas de mercado preocupam-se minimamente com a justificação

moral? A objeção poderia prosseguir mencionando exemplos daexperiência latino-americana recente. Os líderes governamentaisque iniciaram as reformas de mercado em seus países, como CarlosMenem (Argentina), Paz Estenssoro (Bolívia) e Salinas de Gortari(México), o fizeram muito mais por pragmatismo do que porconsiderações de ordem moral. O receituário neoliberal acaboupor se impor como o remédio mais radical, ainda que amargo,para o problema do desequilíbrio macroeconômico, em face dofracasso das tentativas anteriores de estabilização.2 A aceitaçãodesse receituário pelos governantes latino-americanos, e por seuseleitores, não se deveu tanto aos méritos morais das reformas

propostas quanto à percepção de que era preciso alcançar a esta-bilidade econômica a qualquer preço.Mas não devemos menosprezar o fato de que é sempre possí-

vel mobilizar razões morais independentes para justificar refor-mas que, à primeira vista, somente responderam a exigências deordem pragmática. Isso fica mais nítido quando levamos em con-

ta o furor ideológico com que o receituário reformista neoliberalfoi defendido, pelo menos até meados dos anos 90, por econo-mistas norte-americanos e por organismos financeiros multilate-rais tais como o FMI e o Banco Mundial. (Diga-se de passagemque as recomendações de política pública do Banco Mundial,invariavelmente na linha de mais mercado, menos Estado, pa-

recem ignorar os World Development Reports preparados anual-

2 Torre, 1996.

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mente por pesquisadores do próprio Banco.3) É duvidoso queconsiderações puramente pragmáticas, por exemplo com a efi-ciência e a competitividade econômicas, tivessem sido suficientespara gerar semelhante furor ideológico.

Caso se pudesse argumentar de forma persuasiva e é bempossível que se possa que considerações de eficiência econô-mica nem sempre recomendam a adoção do receituário neoliberalestrito, nosso neoliberal convicto ainda poderia retrucar o se-guinte: pode até ser verdade que o desenvolvimento econômicopossa ser promovido mediante um grau de intervenção estatalna economia maior do que acreditamos ser recomendável. Mas,para nós, o lema mais mercado, menos Estado exprime um com-promisso não só com a eficiência e a competitividade econômicascomo também com a ampliação da liberdade individual.4 É exa-tamente esse o sentido de uma das declarações de MiltonFriedman de inícios dos anos 70: Do que estamos falando desdeo início, é da liberdade. Ainda que um certo número de minhasproposições tenham tido o efeito imediato de melhorar nossobem-estar econômico, este não é, para falar a verdade, mais doque um objetivo secundário, em comparação à preservação daliberdade individual.5 Se um argumento desse tipo vem à baila,entretanto, é porque nosso ideólogo neoliberal já abandonou apretensão de justificar suas recomendações de política pública

3 Przeworski, Adam. The Neoliberal Fallacy. Journal of Democracy, p.45-50,jul. 1992. Estou empregando a edição brasileira deste texto. Ver Przeworski,

1993, p.210. Os Development Reports do Banco Mundial recomendamum papel muito mais ativo para a intervenção estatal, no combate à pobrezae à desigualdade de gênero, na provisão de serviços de educação e saúde ena promoção do desenvolvimento econômico, do que aquele que o Bancodefende oficialmente.

4 O argumento poderia se apoiar, por exemplo, em Friedman (1984, p.21):como liberais, consideramos a liberdade do indivíduo ... como o objetivo

último das organizações sociais.5 A declaração aparece em uma entrevista que Friedman deu à revista Playboyem 1973, conforme Van Parijs, 1997, p.189. Naquele momento aindanão estava nada claro que o capitalismo fosse realmente superior ao socia-lismo do ponto de vista da eficiência econômica.

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em nome de nada mais do que os duros fatos da economia. Aofalar em liberdade individual que Friedman julga ser o obje-tivo fundamental quer queira quer não, ele vem participar denossa conversação moral.

E não surpreende que, afinal, as coisas se passem dessa for-ma. Nenhuma reforma de larga escala (como é o caso das reformasde mercado) poderia ser defendida somente com base nos efeitosbenéficos que supostamente traria para o crescimento econômi-co sustentado, para a democracia política ou para seja lá o que for.O conhecimento de que dispomos sobre o mundo social, e isso éalgo que os economistas nunca parecem levar suficientemente emconta, é insuficiente para realizar previsões sobre as conseqüên-cias de reformas de larga escala que tenham alguma credibilidade.6

As razões para o êxito da ideologia neoliberal não devem ser pro-curadas em sua capacidade de prever com precisão o desempenhoeconômico de longo prazo que resultaria da adoção das reformasde mercado. Esse êxito se deveu muito mais, acredito, à hábilcombinação de um conjunto de críticas aos padrões de interven-ção estatal, que tomaram forma sobretudo no segundo pós-guer-ra, com um argumento de justiça. De um lado, os partidários doEstado mínimo argumentaram que quanto maior fosse a presençado Estado na economia, maiores seriam também as oportunida-des de captura dos recursos e capacidades estatais por parte deinteresses privados (o que os economistas norte-americanos da

6 Elster (1990b) e Elster & Moene (1989) desenvolvem um argumento desse

tipo para considerar como fadadas ao fracasso as defesas puramenteconseqüencialistas de reformas de larga escala que tenham por objetivoimplementar alguma alternativa ao capitalismo (o socialismo de mercado,por exemplo). Para Elster (1990b, p.114), as ciências sociais estão a anos-luz de permitir-nos prever os efeitos do equilíbrio líquido global de longo

 prazo das grandes mudanças institucionais. Apesar de as reformasdiscutidas por Elster & Moene serem diametralmente opostas (no espectro

ideológico) às que estou considerando, acredito que o ponto metodológicoque enfatizam se aplica também às reformas neoliberais. Curiosamente,essa nota de cautela metodológica de Elster e Moene se inspira noanticonstrutivismo de Hayek (1976, v.1, cap.1), um dos precursores doneoliberalismo moral que vou examinar.

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escola da escolha pública denominaram rent seeking ). Por outro,argumentaram e agora se trata de um argumento de um tipomuito distinto que políticas públicas redistributivas de qualquertipo, tais como as implementadas peloswelfare states, constituíamuma afronta à liberdade.

Repetindo a tese que estou propondo: os ideólogos neoliberaisdificilmente teriam tido tanto êxito em passar uma mesma agen-da de reformas a um sem-número de países, fazendo tábula rasade toda a diversidade de situações e de experiências que há entreeles, se o segundo argumento que mencionei antes (o de justiça)não tivesse um apelo próprio poderoso. Por isso, os críticos doneoliberalismo fazem bem em devotar um esforço considerávelpara discernir, e examinar seus títulos morais, o componentenormativo específico da ideologia neoliberal.

Trazendo a lume esse componente normativo, estaremos con-tribuindo para desvelar uma das camadas de conteúdo que estãoespremidas sob o rótulo neoliberalismo. Melhor ainda se, alémdisso, formos capazes de mostrar que o neoliberalismo se apóiaem uma moralidade deficiente. Se conseguíssemos mostrar quehá ponderáveis razões para rejeitar a fundamentação moral doneoliberalismo, isso traria algum reforço teórico para a posiçãodos que acreditam que as reformas de mercado devem ser avalia-das, uma a uma, somente segundo razões de conveniência, ra-zões essas subordinadas, ademais, a exigências morais provenien-tes de outras direções.

O libertarianismo de Nozick

É comum considerar-se a teoria política proposta por RobertNozick em Anarquia, Estado e utopia como uma variante de con-cepção de justiça fundada em direitos individuais. Inicio minha

discussão da teoria de Nozick colocando em questão esse enten-dimento. Isso talvez cause certa surpresa. O próprio Nozick con-sidera o propósito central de sua concepção de justiça que o deoferecer uma alternativa à moralidade utilitarista que dê o peso

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que o respeito aos direitos individuais merece em nossos argu-mentos morais. Ele endossa a avaliação de Rawls de que outilitarismo não leva a sério a distinção entre as pessoas.7 Enão o faz, segundo Rawls, porque os moralistas utilitários cedoou tarde teriam de considerar aceitável (nos termos da moralidadeutilitarista) a violação dos direitos de algumas ou mesmo demuitas pessoas em nome de considerações de natureza agregativa.Que cada um tenha uma vida sua para levar, distinta de todas asdemais, essa é a razão pela qual não se justifica sacrificar osinteresses mais fundamentais de algumas pessoas em benefíciodo total maior de utilidade que seria alcançado (ou da utilidademédia maior que seria realizada) caso se ignorassem esses inte-resses. A preocupação com o caráter único da vida de cada in-divíduo certamente não é a preocupação mais proeminente daética utilitarista. Mas uma das razões que levaram Nozick a es-crever Anarquia, Estado e utopia foi o julgamento de que tampoucoa teoria de Rawls e o liberalismo igualitário de modo geral faz justiça à distinção entre as pessoas. O liberalismo igualitário,como o utilitarismo, não levaria os direitos individuais a sério.

Essa objeção tem vários desdobramentos, alguns dos quaisserão considerados adiante. Mas de imediato quero argumentarque a teoria de Nozick não é fundada em direitos. Ela só poderiaser considerada como tal caso se aceitasse uma visão injus-tificadamente restritiva de direitos individuais. Sobre sua con-cepção de direito, Nozick afirma que:

[O libertariano] pode considerar a não-violação de direitos

como uma restrição à ação, ao invés de (ou ademais de) embuti-lano estado final a ser realizado. A posição sustentada por essedefensor do Estado ultramínimo será consistente se sua concepçãode direitos estabelecer que forçar você a contribuir para o bem-estar de outros viola seus direitos, ao passo que alguém deixar deprovê-lo de coisas de que você necessita muito, inclusive daquelas

coisas que são essenciais à proteção de seus direitos, isso por si sónão é uma violação dos direitos que você tem, mesmo que em

7 Rawls, 1971, p.27.

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razão disso [isto é, da omissão da parte do alguém mencionadoacima] a violação desses seus direitos por alguma outra pessoanão seja dificultada.8

O ponto a enfatizar é o seguinte. Nozick quer nos conven-cer de que nossa preocupação com a garantia de direitos indi-viduais pode ser adequadamente interpretada como restriçõesà ação e não como um estado final a ser realizado. Essa éuma distinção central para entender as divergências entre olibertarianismo e o liberalismo igualitário. Este último será obje-to de atenção em outras partes deste trabalho. Por enquanto,limito-me a dizer que, para o liberalismo igualitário, somente podeser justificada moralmente uma estrutura institucional que pro-picie a todos que a ela estão sujeitos, e sobretudo aos que seencontram em pior situação, os direitos, os recursos e as opor-tunidades que permitam a cada um empenhar-se em realizar suaprópria concepção da boa vida. Estruturas institucionais distin-tas podem ser comparadas, do ponto de vista da justiça, segundoo grau em que cada uma é capaz de garantir efetivamente osdireitos de cada indivíduo. Mas isso significa conceber os direitosnão só como constrições à ação mas também como componentesde estados de coisas desejáveis. Do ponto de vista liberal-iguali-tário, avaliamos moralmente as normas institucionais que dis-tribuem direitos e deveres também por suas conseqüências paraos estados finais resultantes, isto é, para a qualidade de vidadaqueles que têm de viver sob essas normas. Dessa perspectiva,pode ser moralmente justificado estabelecer um arranjo institu-cional que, digamos, restrinja a discricionariedade que cada umtem sobre a renda (bruta) que obtém exercendo seus talentos ecapacidades discricionariedade essa que o libertariano julga serum direito com o objetivo de produzir um estado de coisasno qual direitos fundamentais de outros sejam garantidos.9

8 Nozick, 1974, p.30.9 Nozick critica esse ponto de vista como uma forma de utilitarismo de

direitos: as violações de direitos (que se quer minimizar) simplesmente

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Tudo isso parece muito abstrato, mas as implicações políti-cas da distinção que estou examinando são muito importantes.Nozick rejeita inteiramente uma interpretação conseqüencialistae institucional-coletiva dos direitos, que julgo ser um componen-te do liberalismo igualitário, em favor de uma concepção dosdireitos como restrições laterais (side-constraints) à ação.10 Aidéia básica é a de que os direitos não prescrevem o que devemosfazer coletivamente; eles somente impõem restrições ao leque de

escolhas coletivas permissíveis:Os direitos não determinam uma ordenação social, mas sim

estabelecem as constrições sob as quais a escolha social deve serfeita ... Os direitos não determinam a posição de uma alternativaou a posição relativa de duas alternativas em uma ordenação social;eles operam sobre uma ordenação social para limitar a escolha quedela pode resultar.11

Os direitos não nos dizem o que devemos fazer, individualou coletivamente; eles só estabelecem o que não devemos fazer.Podemos fazer o que bem entendermos, empenharmo-nos em

realizar qualquer concepção individual ou comunitária da boavida que julguemos ser mais valiosa, desde que para fazer issonão seja preciso violar os direitos de outros à integridade física,

entrariam no lugar da felicidade total como o estado final que é pertinente

para a estrutura utilitária (1974, p.28). Note-se, no entanto, que a diver-gência central entre libertarianos e liberais igualitários não diz respeito,como Nozick quer dar a entender, à questão de se é lícito, em certas circuns-tâncias, violar certos direitos de alguns para garantir determinados direitosde outros, e sim à questão de que esquema institucional de direitos e deve-res deveria ser estabelecido em primeiro lugar. A questão não é a de setitularidades podem ser violadas para realizar objetivos que os detentores

da autoridade pública considerem valiosos e sim a de que esquema detitularidades tem mais razões morais a seu favor. Esse ponto é enfatizadopor Pogge, 1989, p.15-20.

10 Nozick, 1974, cap.3.11 Ibidem, p.166.

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à propriedade legitimamente adquirida12 e ao cumprimento deobrigações voluntariamente contraídas (por exemplo, em contra-tos). Se violamos as constrições morais que o respeito a essesdireitos impõem à nossa conduta, tratamos outras pessoas comomeros meios para nossos próprios fins, isto é, não respeitamossua inviolabilidade pessoal.

Antes de prosseguir, cabe observar que Nozick interpreta asegunda formulação do imperativo categórico kantiano de umaforma particularmente forte. O que Kant diz na Fundamentaçãoda metafísica dos costumes é que devemos agir de forma a tratar ahumanidade, em nós mesmos ou em outros, não somente comoum meio mas sempre também como um fim em si mesmo. O queNozick não justifica, ao fundamentar sua concepção de invio-labilidade pessoal no imperativo kantiano, é por que devemosconsiderar todas as circunstâncias da vida de uma pessoa deseus talentos naturais à posse de recursos externos como atri-butos de sua humanidade.13 Sem essa interpretação forte do im-perativo, ficaria difícil a Nozick sustentar que privar uma pessoamesmo que de uma pequena parte de sua renda, por exemplomediante taxação redistributiva, equivale a tratá-la como meiopara os fins de outros, isto é, equivale a desrespeitar aquilo queem uma pessoa está acima de qualquer preço, sua humanidade.De acordo com a interpretação sugerida por Thomas Hill Jr., oque Kant quer que valorizemos não é a individualidade de cadapessoa e sim as disposições racionais o que, para Kant, inclui acapacidade de agir segundo a lei moral e a prudência racional e acapacidade de determinar e perseguir racionalmente os próprios

fins que ela tem em comum com outros.14 Beira o inacreditávelsustentar que qualquer redistribuição de recursos materiais, mes-

12 Discutirei mais adiante o que se pode entender por propriedadelegitimamente adquirida na teoria de Nozick.

13 Como se verá no capítulo 6 (na seção Da liberdade natural à igualdadedemocrática), a justificação de um princípio de justiça distributiva, nateoria de Rawls, passa ao largo de discussões sobre o que é essencial oucontingente na identidade pessoal.

14 Hill, 1992, cap.2.

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mo quando isso é indispensável para que todos tenham oportu-nidades para desenvolver suas próprias capacidades racionais,possa contar como uma violação ao preceito de Kant.

Aqui é pertinente a interpretação que Jeremy Waldron pro-põe para a idéia de direitos. Quando o que se propõe envolvesacrificar os interesses de alguns em benefício dos interesses deoutros, parece plausível insistir em que devemos pelo menosoferecer razões para nossa ação que em princípio podem ser acei-tas pelas pessoas cujos interesses estão em questão. Mas essa exi-gência tem a implicação de que devemos deixar intactos aquelesinteresses que são centrais à capacidade de cada pessoa de reco-nhecer e de entender a razão e a argumentação morais (sua liber-dade de expressão e de pensamento e talvez certos interesses fun-damentais de bem-estar material). De outro modo, estaríamossinalizando que não levamos a sério a tarefa de justificar nossaação para elas.15 Não é preciso nada mais do que isso, quanto àinviolabilidade pessoal, para que o preceito kantiano seja devida-mente levado em conta.

É dessa noção específica e controversa de inviolabilidade pes-soal que podemos derivar a interpretação de Nozick da neutrali-dade liberal.16 Um Estado justo e neutro em relação aos fins

perseguidos por seus cidadãos nada mais é do que um Estado quegarante o respeito às constrições morais à conduta individual eacima de tudo que as respeita no que se refere à sua própria ação.Um Estado que força uma pessoa (mais privilegiada) a contribuirpara o bem-estar de outra (mais desafortunada) admite, segundoNozick, que a primeira seja utilizada como um instrumento paraos fins da segunda, e, portanto, é um Estado que não é neutroentre seus cidadãos: usar uma pessoa dessa forma não leva sufi-cientemente em conta e não respeita o fato de que ela é umapessoa separada, que essa é sua única vida. Ela não obtém ne-nhum bem que compense o sacrifício que lhe é exigido, e nin-guém tem o direito de forçá-la a isso muito menos um Estado ou

15 Waldron, 1985, p.19-20.16 Voltarei ao tema da neutralidade liberal no capítulo 7.

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um governo que tem a pretensão de contar com sua fidelidade(pretensão essa que os outros indivíduos não têm) e que, con-seqüentemente, deve ser escrupulosamente neutro entre seuscidadãos.17

Um Estado liberal neutro não deve somente levar em contaas constrições morais que se impõem à ação, sobretudo à açãoestatal; ele deve respeitá-las de uma forma absoluta. Nenhumobjetivo a ser realizado por meios políticos pode justificar, paraNozick, uma violação, por menos importante que seja, àsconstrições morais propostas por sua teoria. Será esta uma teoriafundada em direitos? À primeira vista sim, já que as constriçõesmorais por ela defendidas derivam de uma preocupação com osdireitos individuais e com a inviolabilidade da pessoa. Entretan-to, um pouco mais de reflexão nos mostrará que a noção centralna teoria de Nozick não é a de direitos e sim a de dever.18

Ronald Dworkin sugeriu que as teorias políticas normativaspodem ser classificadas em três categorias básicas: as teorias basea-das em objetivos, as teorias baseadas em direitos e as teorias ba-seadas em deveres.19 As teorias baseadas em objetivos são aquelaspara as quais há um objetivo supremo a ser promovido pela açãoestatal ou pela ação política, objetivo ao qual a atribuição de di-

reitos e de deveres aos indivíduos deve se subordinar. Esse obje-tivo pode ser o aumento da utilidade geral ou da utilidade média(utilitarismo); ou a busca de uma forma de comunidade políticacomprometida ativamente com a promoção de um ideal de exce-lência ou de virtude individual (teorias políticas perfeccionistasinspiradas em Aristóteles);20 ou ainda o de dar impulso à realiza-

ção de uma forma utópica de comunidade em que a parcela dosrecursos sociais que caiba à vida de cada um obedeça somente àsdiferenças de necessidades individuais e de requisitos para a auto-realização individual (marxismo).

17 Nozick, op. cit., p.33.18 Ver Waldron, 1984, p.15-6, para uma argumentação similar à quedesenvolvo a seguir.

19 Dworkin, 1977, p.169-73.20 MacIntyre, 1985, é um exemplo disso.

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Mais relevante para nossa discussão no momento é a distin-ção entre as duas outras categorias de teoria normativa. As teo-rias baseadas em direitos e as baseadas em deveres são modalida-des de individualismo moral tendo em vista que, para umas eoutras, a fonte última de valor é o bem-estar de indivíduos.21 Masessa preocupação com o bem-estar individual pode ser interpre-tada tomando-se a noção de direitos ou, alternativamente, a dedeveres como a mais central. Pode parecer estranho fazer essadistinção, já que uma forma possível de sustentar a existência deum direito consiste em apresentar um argumento do seguintetipo: um indivíduo A tem um direito a X (à liberdade de expres-são, digamos) se, e somente se, é possível plausivelmente susten-tar-se que há um aspecto do bem-estar de A (sua capacidade deexprimir-se, no caso) que consideramos tão importante eticamen-te a ponto de fundamentar a imposição de um dever a um indiví-duo B (o de não impedir A de exercer essa sua capacidade).

Note-se, entretanto, que nessa definição a noção de dever émeramente derivativa de algo que é moralmente mais fundamen-tal. Para as teorias baseadas em direitos, o princípio normativo quederiva da preocupação com o bem-estar de cada indivíduo é o deque o Estado deve empenhar-se em proteger e promover determi-

nados interesses de todos os indivíduos. O ideal é aproximar-se tantoquanto possível de um estado de coisas em que todos os cidadãosencontrem condições propícias para o exercício de seus direitosindividuais. Dessa perspectiva, as normas de conduta ou os deve-res não são valorizados em si mesmos; eles o são somente comoinstrumentos para a proteção de interesses individuais aos quais

21 Os dois tipos de teoria normativa rejeitam a idéia de que valores associadosa alguma mítica superindividualidade coletiva o poderio do Estado, aidentidade étnica de uma dada comunidade ou a grandeza da Nação possam ser considerados últimos e interpretados como um fundamentoaceitável para a imposição de quaisquer sacrifícios aos indivíduos. Entes

coletivos tais como o Estado, a Comunidade ou a Nação não dispõem deum núcleo de consciência individual, de um eu que é capaz de buscar suafelicidade ou sua auto-realização e de sofrer privações e frustrações. Porisso, de uma perspectiva individualista-moral, é absurdo se falar, porexemplo, no bem-estar da Nação. (Ver também a nota 51 do capítulo 3.)

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se atribui um significado moral.22 O que importa, acima de tudo,não é a conformidade individual a normas de conduta, mas sim aexistência de condições que permitam a cada um se empenharativamente na realização daquilo que julga ser valioso na vida.

As teorias baseadas em deveres, por sua vez, interpretam apreocupação com o bem-estar individual em termos da observân-cia não-excepcionável a determinadas normas de conduta. O queagora está em questão não é em que medida os direitos de cadaindivíduo são ou poderiam ser efetivamente protegidos nos ter-mos de Nozick, isso equivaleria a considerar que os direitos de-terminam uma ordenação social. A preocupação central dessaperspectiva restringe-se à não-violação de deveres morais porindivíduos ou pelo Estado quaisquer que sejam as conseqüênciasdisso, inclusive para a  proteção de direitos individuais. Isso vale atémesmo para a proteção dos direitos prezados pelos próprios teóri-cos libertarianos. Se, entretanto, estamos mais preocupados comdireitos do que com a observância estrita de deveres, não temosuma razão de princípio para descartar um curso de ação que limi-ta ou mesmo viola um direito menor de uma pessoa (ou de algu-mas pessoas) com o propósito de impedir que um direito maisfundamental de outra (ou de outras) seja desrespeitado.23

Se a preocupação com os direitos individuais deriva daimportância moral que atribuímos aos interesses das vítimas dasviolações de direitos, nossa perspectiva normativa assumirá umafeição mais coletiva e, nos termos da distinção proposta no capí-tulo 1, mais conseqüencialista. É dessa forma que a preocupaçãocom os direitos entra em uma perspectiva normativa liberal-igua-litária. Só há individualismo nessa forma de se preocupar com osdireitos individuais no sentido especificado na nota 21. Mas oque normalmente se quer dizer com o termo individualismo éuma coisa muito diferente: trata-se da preocupação exclusiva comos próprios interesses, ou então, nos termos da teoria de Nozick,com o cumprimento dos próprios deveres deontológicos, poucoimportando se outros têm até mesmo os seus interesses mais

22 Dworkin, op. cit., p.17223 Ver exemplo analisado na seção Liberdade individual para todos? adiante.

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fundamentais violados e pouco importando se outros não sãocapazes (por exemplo, porque vivem em condições de pobrezaextrema) de cumprir seus deveres adequadamente. A perspectivaliberal-igualitária não é individualista neste último sentido. Seconsideramos desejável atingir um estado de coisas em que osdireitos de todos sejam protegidos, é porque não valorizamossomente a realização de nossos próprios interesses e sim tambématribuímos um peso moral aos interesses mais fundamentais deoutros. Da ótica libertariana, em contraste, não são os interessesdas vítimas das violações de direitos que contam; importa somen-te a conformidade da conduta do agente aos deveres morais reco-nhecidos pela teoria moral libertariana. Um agente libertarianodiria algo do gênero: Para mim, somente importa fazer valermeus próprios interesses e realizar minha concepção da boa vida,desde que para isso eu não cause danos a outros. Aliás, eu cum-pro religiosamente as restrições morais que cada um está obriga-do a reconhecer em sua conduta. Mas, se outros têm seus direitosfundamentais violados, ou se são incapazes de cumprir a conten-to com seus deveres porque lhes faltam os recursos necessáriospara tanto, isso não me diz respeito. Nenhum Estado tem o direi-to de interferir nas transações voluntárias das quais escolho par-ticipar com o objetivo de produzir um estado de coisas em que osdireitos desses outros sejam melhor protegidos. Se o fizer, esseEstado violará ele próprio as restrições morais que escrupulosa-mente observo em minha conduta.

Há uma outra forma de caracterizar a perspectiva que estoudiscutindo. Essa outra forma faz uso da distinção, discutida nocapítulo 1, entre razões morais neutras em relação ao agente erazões morais relativas ao agente.

O que há de errado com uma

concepção deontológica

Como é próprio de teorias fundadas em deveres, uma formade relatividade ao agente ocupa todo o espaço da moralidade

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libertariana.24 Um Estado liberal justo, para Nozick, limita-se adar, quando isso é possível, uma expressão institucional adequa-da a um conjunto de interdições ou de constrições deontológicas.Mas por que essas interdições devem ser entendidas como razõesmorais relativas ao agente? Se como regra geral as constriçõesdeontológicas são obedecidas, se em geral não se atenta contra avida ou a propriedade alheia e se cumprem os contratos livre-mente firmados, não há nisso um elevado valor impessoal? Afi-nal, as constrições deontológicas não podem ser interpretadascomo valores para todos os agentes, isto é, como valores neutrosem relação ao agente? A resposta para esta última pergunta énão, e entender por que nos ajuda a perceber a natureza e aslimitações da moralidade libertariana.

As restrições deontológicas são razões para quevocê não mate,não roube, não viole seus contratos, mas elas não exigem quevocê se empenhe em evitar que essas coisas ocorram no mundo.A preocupação que o agente deve ter de não praticar determina-dos atos é distinta da preocupação de evitar que eventos simila-res ocorram à sua volta. Somente a primeira preocupação éabarcada pelas constrições deontológicas. Nagel nos dá alguns

exemplos de intuições morais deontológicas:Ao que parece, você não deve quebrar uma promessa ou dizer

uma mentira para obter algum benefício, mesmo quando não seexigiria que você abrisse mão de um benefício comparável paraimpedir uma outra pessoa de quebrar uma promessa ou dizer umamentira. E parece que você não deve torcer o braço de uma

criancinha para forçar sua avó a fazer alguma coisa, e mesmo algo

24 E também do que podemos denominar moralidade de senso comum.Se fossem perguntadas sobre o que entendem por normas morais, muitoprovavelmente uma imensa maioria das pessoas (deixando-se de lado asinevitáveis referências a preceitos de conduta sexual) nos apresentaria

uma lista de mandamentos (ou de constrições deontológicas) similar aque acabei de mencionar: não matar, não roubar, não violar os contratosou a palavra empenhada. É claro que essa proximidade com a moralidadede senso comum é uma vantagem para os teóricos libertarianos, mas nãoconta como um argumento em favor da moralidade que defendem.

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importante a ponto de que não se exigiria de você que abrisse mãode um benefício comparável para impedir uma outra pessoa detorcer o braço de uma criança. E parece que você não deve praticar

certos tipos de tratamento discriminatório injusto (no exercício deuma função pública, por exemplo) mesmo que fosse para produzirum resultado de tal forma bom que não se exigiria que você abrissemão dele para impedir uma iniqüidade similar praticada poroutros.25

E como se traduziria institucionalmente, da ótica libertariana,essa distinção entre abster-se de praticar determinados atos e nãose empenhar para impedir que esses atos ocorram? As constriçõesdeontológicas não exigem que nós, por meio de nossas institui-ções comuns, nos empenhemos em produzir um estado de coisasem que violações a elas não ocorram ou só ocorram de forma

infreqüente. O Estado libertariano neutro se limitaria a conver-ter em deveres legalmente exigíveis os deveres deontológicos quecada um cidadãos privados e sobretudo autoridades públicas está obrigado a respeitar em sua conduta individual. Mas esseEstado não teria nenhum compromisso com a produção de umestado de coisas em que todos tivessem os meios e as condições

para desincumbir-se adequadamente de seus deveres, ou com aprodução de um estado de coisas em que se reduzissem ao míni-mo as violações às constrições deontológicas. Note-se que estamosfalando dos deveres que os teóricos libertarianos reconhecem enão de deveres morais reconhecidos por outras perspectivasnormativas.

É claro que o teórico libertariano assim como eu e você preferiria viver em um mundo em que as restrições determinadaspor sua própria teoria fossem em geral obedecidas. Mas ele nadatem a dizer sobre como podemos chegar até lá. Ele só tem a nosdizer, como já vimos, sobre o que não podemos fazer para chegarlá. (Lembre-se da frase de Nozick que mencionei antes: os direi-

tos não determinam uma ordenação social. Uma vez que a teo-ria de Nozick, como venho argumentando, não é baseada em

25 Nagel, 1986, p.177.

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direitos, melhor seria se dissesse: as restrições deontológicas nãodeterminam uma ordenação social.) A obediência geral aos de-veres morais, mesmo que se aceite que só existem aqueles deve-res especificados pela teoria libertariana, pode ser interpretadacomo um bem público. Se em uma dada sociedade existe umadisposição geral ao cumprimento dos deveres, cada um dos mem-bros dessa sociedade pode cumprir mais de seus deveres e me-lhor. Se o dever de respeitar a integridade física alheia é obedeci-do por todos, eu também posso respeitá-la mais do que se o con-trário fosse verdadeiro (não necessitarei, por exemplo, recorrer aesquemas para garantir minha segurança pessoal que põem emrisco a vida de outros). Se os comerciantes de modo geral reco-lhem os impostos que incidem sobre os produtos que vendem,eu não precisarei sonegá-los para garantir a competitividade deminha empresa. Se os contratos e as promessas são via de regracumpridos, encontro-me em condições melhores para cumprir osmeus do que se as fraudes e a esperteza forem freqüentes. Acapacidade de cada um de cumprir seus próprios deveres dependedo que os outros façam. De modo geral, estarei em condições decumprir mais de meus deveres se me dispuser (e os demais igual-mente se dispuserem) a contribuir para gerar um estado de coisasem que todos têm como desempenhar seus deveres. Mas conside-rando-se as restrições deontológicas de Nozick que só estabelecemo que não podemos fazer, não há, de uma perspectiva libertariana,como dar este último passo.

O confinamento às razões morais relativas ao agente colocao libertariano diante de situações similares a um Dilema do Pri-sioneiro.26 O ponto a ressaltar é que essas situações se produ-ziriam precisamente se os agentes seguirem as recomendaçõeslibertarianas: cada um deve cumprir seus próprios deveres e nin-guém está obrigado a contribuir para que outros possam cumprircom os seus. Considere o seguinte exemplo. Vamos supor que eue você somos comerciantes cônscios de nossos próprios deveres.Gostaríamos de não ter de violar nenhuma constrição deontoló-

26 Parfit, 1991, p.98.

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gica nas transações voluntárias de que participamos. A situação étal que se um sonega seus impostos e o outro não, o não-so-negador pode se ver impossibilitado (por sofrer uma perda decompetitividade) de honrar seus outros compromissos digamosque o não-sonegador se veja obrigado a descumprir seus contra-tos, não cumprir suas promessas, e assim por diante, e que cadaum veja isso como ainda pior, quanto à violação de seus própriosdeveres, do que a sonegação.27 Supondo-se ainda que não po-demos nos comunicar, cada um pode escolher uma dessas duascondutas: (I) preocupar-se somente com o cumprimento dospróprios deveres, mesmo tendo de violar o dever de não-sone-gação ou (II) contribuir para que o outro possa cumprir todosos seus deveres (no exemplo, não sonegando). Os resultados sãoos seguintes:

Você escolhe(1) (2)

27 Para o exemplo manter sua coerência deontológica, a conduta sonega-dora é adotada por ser a que permite ao agente cumprir pelo menos al-guns de seus deveres, e não por ser a que maximiza seu interesse próprio(se acreditamos que constrições deontológicas existem, então tambémacreditamos que elas devem limitar a maximização do próprio benefício).Um deontologista mais religioso poderia argumentar que, se a tributação

considerada no exemplo é moralmente legítima (e digamos que o sejamesmo aos olhos de um libertariano), então a conduta sonegadora não sejustifica em nenhuma circunstância, quaisquer que sejam as conseqüênci-as da conduta de não-sonegação, inclusive, como estou supondo, para acapacidade de cada um cumprir seus outros deveres. Essa objeção ao meu

(1) Ambos sonegamos ecada um cumpre seusdemais deveres

Você não sonega e deixade cumprir seus outrosdeveres

Eu escolho

(2) Eu não sonego e deixode cumprir meus outrosdeveres

Nenhum de nós sonega ecada um é capaz de cumprirseus demais deveres

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Uma moralidade deontológica, como argumentei acima, nosrecomendaria optar pela alternativa (I). E seguindo essa reco-mendação, o resultado é que cada um de nós teria um desempe-nho pior, em relação ao cumprimento dos seus próprios deveres,do que se ambos seguíssemos a recomendação de uma outra pers-pectiva normativa. Uma moralidade puramente deontológica,como diz Parfit, derrota seus próprios propósitos coletivamente.Há muitas situações em que, se todos fizermos o que o libertarismodiz que devemos fazer (cuide de cumprir seus deveres; até queponto os outros estão capacitados a fazer o mesmo, não é umproblema seu), cada um terá um desempenho pior, em termosestritamente libertarianos, do que de outro modo poderia ser ocaso.

Acredito que essa é uma forte objeção à teoria políticalibertariana. Se queremos pelo menos nos aproximar de umasociedade libertariana bem ordenada, isto é, de uma sociedadeem que cada um empenha-se em realizar sua própria concepçãodo bem sem deixar de observar as restrições morais prescritaspela teoria libertariana, não podemos nos limitar a fazer o queessa teoria nos recomenda. Para isso, não será suficiente um Esta-do que reconheça como fundamento normativo de sua ação so-mente a conversão de constrições deontológicas em deveres le-gais. Do que necessitaremos, nesse caso, é de um Estado que seempenhe positivamente em capacitar todos os seus membros arespeitar os deveres que lhes forem atribuídos. Mas se admiti-mos isso, já extrapolamos o âmbito das razões morais relativas aoagente das quais o libertarianismo não quer se afastar. Comoprocurei mostrar no exemplo anterior, cada um ampliará sua ca-pacidade de respeitar integralmente seus próprios deveres se to-dos nos dispusermos a contribuir para que outros possam fazer omesmo. Ainda que cada um se limite ao seu próprio ponto de

exemplo em nada reforçaria o argumento em favor de uma moralidadebaseada unicamente em interdições deontológicas. Se cada uma dessasinterdições deve ser vista como não-excepcionável pelo agente, então, seseguimos uma moralidade desse tipo, as situações do Dilema do Deon-tologista (Parfit, 1991) descrita no exemplo se multiplicarão.

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vista individual (-deontológico) só me preocupo com a realiza-ção dos meus objetivos, desde que para isso eu não tenha dedesrespeitar as restrições morais que se impõem à minha ação será melhor para cada um se todos dermos algum peso aos inte-resses de outros. Nenhuma moralidade pública plausível pode sebasear somente em razões morais relativas ao agente.28 Para evi-tar os Dilemas do Deontologista, nossa perspectiva normativadeverá incorporar, em alguma medida, uma consideração impar-cial pelo bem de todos. Em que medida? Essa pergunta, evidente-mente, não é fácil de ser respondida. Mas se quisermos respondê-la, é melhor deixar o libertarianismo de lado e voltarmos nossosolhos para as teorias normativas que explicitamente dão um pesoa uma consideração igual pelos interesses de todos: o utilitarismoe o liberalismo igualitário.

Responsabilidade negativa coletiva

Examinemos uma vez mais a distinção entre abster-se de sero autor de determinados atos danosos e nada fazer para evitar

que eventos similares ocorram no mundo. Para a visão libertariana,não estamos obrigados a reconhecer, em nossa conduta pessoalou nas instituições e decisões coletivas das quais participamos,nenhuma responsabilidade negativa pelas circunstâncias desfavorá-veis das vidas de outras pessoas.29 De acordo com esse ponto de

28 É essencialmente esta mesma objeção, como veremos no próximo capítu-lo, que pode ser apresentada ao contratualismo hobbesiano. As teoriasrelativas ao agente são, de acordo com a terminologia de Parfit, de umaforma direta, coletivamente self-defeating . Uma teoria T é direta e coletiva-mente self-defeating quando é certo que, se todos seguirmos T com êxito,dessa forma faremos que os objetivos de cada um derivados de T venham

a ser pior realizados do que o seriam se nenhum de nós tivesse seguido Tcom êxito. Parfit, 1991, p.55.29 Para a noção de responsabilidade negativa no sentido em que aqui estou

utilizando, ver Nagel, 1991, p.83-4. Os parágrafos seguintes são umaadaptação de Vita, 1995, p.172-3.

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vista, não somos responsáveis pelos danos ou privações que ou-tros sofrem porque deixamos de fazer o que estava ao nosso al-cance para evitar esse dano ou diminuir esse sofrimento. Se nãocausamos diretamente as privações alheias isto é, se não somospositivamente responsáveis por elas , podemos ignorá-las e nadapode justificar as interferências da sociedade em nossas preferên-cias e escolhas. Essa linha de argumentação normativa leva a umadiferenciação nítida entre os deveres negativos e os (supostos)deveres positivos, isto é, os deveres de prestar auxílio a outraspessoas quando elas se encontram necessitadas ou em situaçãode risco. Somente os primeiros (nossas já conhecidas restriçõesdeontológicas) são deveres em sentido forte para o libertarianismo.Quanto aos segundos, ainda que cumpri-los seja sempre meritó-rio, eles são moralmente opcionais o que significa dizer quenão são deveres genuínos.

O liberalismo igualitário compartilha em parte da preocu-pação libertariana de estabelecer limites às exigências que a vidae o bem-estar de outros fazem às escolhas pessoais de cada um.Não queremos viver sob o peso da idéia de que somos indivi-dualmente responsáveis pelos sofrimentos de outros se não fa-zemos tudo aquilo que estaria ao nosso alcance (ao alcance de

cada um de nós) fazer para minorar esse sofrimento. É certo queeu e você poderíamos fazer individualmente muita coisa que nãofazemos para diminuir os terríveis sofrimentos a que estão sub-metidas pessoas miseráveis do Vale do Jequitinhonha, em Mi-nas Gerais. No limite, poderíamos empregar todos os nossos re-cursos e esforços para tirar, digamos, vinte pessoas da situação

de miséria absoluta em que se encontram. Mas, nesse caso, nãomais nos restaria uma vida que cada um de nós reconheceriacomo sua  com seus próprios objetivos, vínculos e afeições para ser vivida. Nenhum espaço restaria para as razões para agirque antes designamos por razões relativas ao agente de autono-mia pessoal. Passaríamos a viver uma vida preenchida inteira-

mente pelas exigências ditadas pela consideração imparcial pelobem-estar de outros. Essa é a vida que Madre Teresa de Calcutá para quem não basta dar aos pobres o que é supérfluo; é pre-ciso ajudar os pobres até que isso nos doa escolheu viver. Masesta é uma vida de super-rogação e a justiça não trata de atos

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super-rogatórios e sim da determinação de direitos e deveres.30

Além disso, para retomar um ponto que foi mencionado antes,as razões relativas ao agente de autonomia pessoal não sãomeras petições de isenção em relação às exigências da moralidade;elas têm um valor moral genuíno.31

Podemos aceitar a distinção moral mencionada, entre o deverde não causar danos diretamente a outros e o dever positivo deprestar auxílio, mas restringir sua aplicação ao domínio damoralidade individual. Do ponto de vista da conduta individual,de fato há uma diferença moralmente relevante entre não praticarum determinado ato por exemplo, assassinar uma pessoa enada fazer para evitar que determinado ato seja praticado nãoevitar, supondo-se que isso estivesse ao alcance do agente, quealguém seja assassinado.32 Há uma diferença entre eu reduzir umapessoa à miséria destruindo sua propriedade e não fazer o queestaria ao meu alcance para tirar da miséria uma pessoa que teve

30 Super-rogação é a tradução que inventei para supererogation, termo quedesigna a conduta de fazer muito mais do que aquilo que é exigido pelocumprimento do dever moral (não me ocorre nenhuma palavra da línguaportuguesa que transmita esse sentido). Os atos super-rogatórios são

dignos da admiração de todos justamente porque são atos opcionais quevão muito além do estrito cumprimento do dever. E o que é opcional nãofaz parte do escopo de uma teoria da justiça social. Apesar disso, não éclaro até que ponto a realização de uma concepção utilitarista de justiçanão exigiria converter uma forma de super-rogação em dever moral.

31 Como argumenta Derek Parfit, se fôssemos todos fazedores do bempuros, motivados unicamente somente por uma preocupação benevolente

de aumentar a felicidade existente no mundo, isso teria o efeito de reduzira soma total de felicidade. Para nos tornarmos puros fazedores do bem,teríamos de suprimir aqueles desejos e disposições que estão associados,em qualquer concepção plausível de felicidade, aos vínculos, às afeições eaos objetivos que cada um desenvolve em sua própria vida. Se todos nostornássemos pessoas puramente benevolentes, é provável que issoreduziria drasticamente a soma de felicidade. Parfit, 1991, p.27-8. No

limite, um conseqüencialismo puro, a doutrina segundo a qual devemospraticar aqueles atos cujos resultados maximizarão o total de bem douniverso, derrota seus próprios propósitos.

32 Um juiz certamente levará em conta essa distinção quando for preciso, porexemplo, apurar as responsabilidades pessoais em um caso de homicídio.

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sua propriedade destruída. Mas o liberalismo igualitário não acei-ta todas as implicações dessa distinção quando a estrutura básica dasociedade está em questão. Ainda que não tenhamos, em termosindividuais, um dever positivo de ajudar a quem quer que necessi-te de auxílio no mundo, temos um dever de não contribuir para avigência de um arranjo institucional que constitui a causa primei-ra dos danos e privações que muitos sofrem. Se for possível argu-mentar que essas privações resultam, não de escolhas individuaisdos que a elas estão sujeitos, e sim da forma como as instituições

sociais lidam com circunstâncias naturais ou sociais que estão forado alcance da escolha individual, então é preciso admitir que umdever desse tipo existe. E trata-se de um dever negativo cujo reco-nhecimento implica reformular a noção de responsabilidade nega-tiva que foi mencionada acima.

A solução liberal-igualitária, em contraste com a libertariana,

consiste em transferir o peso da responsabilidade negativa, doqual queremos nos ver livres em nossas escolhas pessoais, para asinstituições básicas da sociedade. A idéia é que o reconhecimentocoletivo da responsabilidade negativa é a condição para poderignorá-la na conduta pessoal. Coletivamente, somos responsáveispelas privações (digamos, a fome endêmica) a que muitos dentre

nós estão sujeitos, se for possível apontar uma estruturainstitucional distinta e praticável sob a qual esses danos e priva-ções seriam eliminados ou muito mitigados. Se houver uma alter-nativa desse tipo, e nada fazemos para colocá-la em prática, entãosomos  positivamente responsáveis pelas privações que ocorrem sobo status quo, ainda que essas privações não resultem de atos inten-

cionais de ninguém em particular. Uma vez que essa responsabi-lidade negativa coletiva tenha sido suficientemente reconhecidapelas instituições sob as quais vivemos, prossegue o argumento,então (e só então) podemos reclamar o direito de viver nossasvidas pessoais de acordo com uma moralidade libertariana denão-interferência. Empenhamo-nos, nesse caso, em realizar nos-sas preferências sem permitir que seu valor intrínseco (até queponto elas são moralmente meritórias ou puramente egoístas)seja colocado em questão por quem quer que seja. A formulaçãomais técnica que Thomas Nagel dá a essa idéia é a seguinte: acondição da aceitabilidade moral de estabelecer limites estreitos à

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responsabilidade negativa nas normas de conduta pessoal é aexistência de uma estrutura social aceitável de distribuição deresponsabilidades negativas interpessoais.33 A responsabilidadenegativa tem um papel na teoria política que ela não tem na éticada conduta pessoal.

O ponto importante da noção de responsabilidade negativacoletiva é o de que o status quo deixa de ser visto como a referênciapara avaliar a justiça de instituições, decisões coletivas e políticaspúblicas. Qual é o status quo apropriado para avaliar, do ponto de

vista da justiça, o que as autoridades públicas fazem em nossonome e também aquilo que as instituições sob as quais vivemosnão são capazes de evitar que ocorra, esse é um dos principaispontos de controvérsia entre libertarianos e liberais igualitários.

Um dos truques da moralidade libertariana consiste em to-mar a distribuição de benefícios produzida por uma sociedade

capitalista de mercado como dada, e somente colocar sob suspeiçãoas injustiças pelas quais o Estado pode ser considerado direta-mente responsável: a matança indiscriminada de civis pela polícianas grandes cidades brasileiras, por exemplo; ou então, e o que,evidentemente, só constitui uma injustiça da ótica libertariana,a taxação redistributiva estabelecida para financiar as transferên-

cias e políticas sociais. Para ser mais preciso, o status quo que osteóricos libertarianos (e também, como veremos, Gauthier) to-mam como dado, para fins de avaliação moral, é um estado denatureza lockeano no qual já há uma sociedade de mercado aindamais auto-regulada do que aquela imaginada por Locke. É hora deexaminar mais em detalhe essa situação inicial. Antes de passar aesse tópico, há um último ponto a ser explorado em conexão como que já foi dito.

Liberdade individual para todos?

É muito comum se criticar o lugar muito modesto reservadoà igualdade na teoria política libertariana. De fato, a única forma

33 Nagel, 1991, p.84.

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de igualdade que é possível detectar no libertarianismo diz res-peito à exigência, a que todos estão igualmente submetidos, deagir em conformidade com as restrições morais (convertidas emdeveres legais pelo Estado mínimo libertariano) que se impõem àconduta de cada um. Mas o que dizer da liberdade individual? Apreocupação com a liberdade individual parece tão central aoslibertarianos a ponto de originar a própria denominação da pers-pectiva normativa que defendem. Teóricos como Nozick dirãoalgo do gênero: a preocupação central da teoria que propomos éa de garantir que cada um possa fazer o que quiser com aquiloque possui legitimamente, com a condição de que as restriçõesmorais que essa teoria especifica não sejam violadas. O objetivo éassegurar um âmbito de não-interferência (por parte de outros esobretudo por parte da autoridade política) aos indivíduos, den-tro do qual cada um deve poder realizar seus objetivos segundosua própria escala de valores e de preferências. É com a liberdadeindividual, em suma, que estamos preocupados.

De fato. Mas é interessante explicitar até que ponto mesmoessa preocupação com a liberdade individual é restrita. Conside-remos, por exemplo, duas situações em que um indivíduo A estáa ponto de infligir um sério dano (espancando, violentando etc.)à integridade física de um indivíduo B e em que há um indivíduoC que só pode impedir a agressão de ocorrer se, por sua vez,violar algum direito menor de um indivíduo D (digamos que,para conseguir avisar a polícia, C não tenha outra opção que nãoa de violar o direito à privacidade ou algum direito de proprieda-de de D).34 O que C deve fazer? Na situação 1, C nada faz paraimpedir a agressão a B. Na situação 2, C opta por violar um oumais direitos menos fundamentais de D para impedir que a agres-são se concretize.

A teoria de Nozick tem de considerar a situação 1 comoeticamente superior à situação 2. Em primeiro lugar, C não temo dever de fazer o possível para impedir que a agressão a B ocorra.

34 Aqui estou me valendo de exemplos e das análises de Sen (1982; 1987,p.70-3).

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Essa agressão representa uma violação às constrições morais que A deveria ter observado em sua conduta, mas isso não torna Cco-responsável pelo dano infligido ao bem-estar deB. Em segun-do lugar, e esse é o ponto mais importante, para impedir que aagressão a B se concretize, C não pode, porque tem o dever deobedecer às constrições morais colocadas a sua própria conduta,violar quaisquer direitos de uma outra pessoa não diretamenteenvolvida na situação (no caso, D). C está obrigado a observaressas constrições (isto é, deveres), ainda que fazê-lo tenha porconseqüência um estado de coisas em que mais direitos, ou direi-tos mais fundamentais, são violados. Como vimos anteriormen-te, a teoria de Nozick (e as que a ela são assemelhadas) não ébaseada em direitos. Agora podemos complementar essa conclu-são dizendo que o libertarianismo, a despeito de sua própria de-nominação, não tem por objetivo promover a liberdade indivi-dual de todos ou assegurar que mais liberdade individual exista nomundo. No exemplo apresentado, a liberdade negativa de todosencontra-se melhor protegida na situação 2 do que na situação 1(que é aquela à qual as recomendações libertarianas nos levariam).

Philippe Van Parijs vem se notabilizando pela defesa de umaalternativa ao capitalismo de welfare state, que consiste na intro-dução da renda básica mais elevada que seria possível assegurarincondicionalmente a todos.Não vou discuti-la agora. Mas háaspecto (relativamente secundário) da argumentação ética de VanParijs em favor de sua proposta que está relacionado com a discus-são acima. Ele acredita ser apropriado denominar sua posiçãoreal-libertarianismo. A idéia é voltar contra o libertarianismoseus próprios compromissos normativos. Assim como a posiçãolibertariana, o real-libertarianismo atribui uma importância ex-clusiva à liberdade de todos. Mas, contra a primeira, sustentacom a maior energia que é da liberdade real que se deve tratar e,especialmente já que [os libertarianos] dizem se preocupar coma liberdade de todos , da liberdade real que cabe àquele quemenos a tem.35

35 Van Parijs, 1997, p.191.

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Van Parijs argumenta que, se estamos genuinamente preocu-pados com a liberdade de todos, temos de nos preocupar não sócom a dimensão negativa da liberdade que consiste em não serimpedido arbitrariamente de fazer o que se deseja e se é capaz defazer mas também com sua dimensão positiva aqui entendidaem termos de ter acesso aos meios e recursos que capacitam umapessoa a fazer de sua vida o que ela deseja.36 De uma óticaliberal-igualitária nada há a objetar a esse argumento. Esta é, emsíntese, a forma como o liberalismo igualitário interpreta a liber-

dade como um valor.37

Mas o libertariano sequer necessitaria entrar nessa discus-são de liberdade negativa versus liberdade positiva. Ele diria (oumelhor, teria de dizer; o argumento nem sempre é tão explícito)a Van Parijs algo do gênero: de fato, [nós, os libertarianos] re-jeitamos sua concepção de liberdade real. Mas, antes disso, ao

contrário do que você afirma, nós simplesmente não estamospreocupados com a liberdade de todos  positiva ou negativa. Vocêestá entendendo de forma equivocada a natureza da moralidadeque defendemos. A ênfase na liberdade de todos envolve inter-pretar a liberdade como um valor neutro em relação ao agente eem termos conseqüencialistas. O valor que você atribui à liber-

dade de todos deriva de uma consideração igual pelo bem-estarde todos. Mas nós não aceitamos que direitos e deveres possamser atribuídos às pessoas com base em uma consideração impar-cial pelo bem-estar de todos. Nossa moralidade é puramente re-lativa ao agente. Em uma moralidade dessa natureza, não exis-tem objetivos coletivos de espécie alguma, nem mesmo a liber-

36 Ibidem.37 Faço um comentário um pouco lateral à discussão que estou desenvolven-

do no momento. Note-se que a crítica de Isaiah Berlin não se aplica a essaconcepção específica de liberdade positiva. Propiciar os meios e os recursospara que cada pessoa possa se empenhar na realização daquilo que, a seu

ver, torna a vida digna de ser vivida, não abre lugar para o tipo de manipu-lação que Berlin temia em concepções que justificam uma autoridade exer-cer controle sobre os indivíduos em nome de garantir às pessoas a formade liberdade que seus (supostos) eus verdadeiros reconheceriam como aúnica forma de vida digna de ser vivida. Berlin, 1981, p.133-75.

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dade individual. Tudo o que queremos (como já foi visto antes)é que cada um, desde que não viole as constrições deontológicasque acreditamos que devem ser reconhecidas, possa dispor livre-mente daquilo que é legitimamente seu. É isso que temos emmente quando dizemos que é preciso levar a sério a distinção(separateness) entre as pessoas. E, ademais, somente será possí-vel alcançar um estado de coisas em que a liberdade de todos(nos seus de Van Parijs termos) seja garantida, violando-sealgumas dessas constrições (por exemplo, por meio de taxaçãoredistributiva que interfere em direitos de propriedade legítimos),o que consideramos moralmente inaceitável.

O libertarianismo não é, como Van Parijs parece supor, umadoutrina internamente incoerente.38 Criticá-la em nome de seuspróprios compromissos normativos não nos leva muito longe.Se acreditamos que a garantia de liberdade individual de todos éum dos componentes centrais de uma sociedade justa, é melhorexprimir essa preocupação por meio de uma teoria normativaque reconhece compromissos mais amplos do que os que sãoaceitos por uma moralidade estritamente relativa ao agente.

A teoria de Nozick da apropriação

Há mais ainda a ser dito sobre o lugar que o valor da liberda-de individual ocupa, retórica à parte, em uma teoria políticalibertariana. A conclusão da seção anterior a de que o compro-

misso normativo do libertarianismo com a liberdade individual é

38 Dizer que a aplicação estrita de uma teoria acaba por frustrar seus propósi-tos explícitos, como argumentei antes em relação ao libertarianismo, não éa mesma coisa que considerar que essa teoria seja contraditória em seuspróprios termos. Argumentei antes que o libertarianismo frustra seus pró-

prios propósitos quando procuramos imaginar o que ocorreria se todos nóstentássemos seguir as recomendações libertarianas. Mas isso não torna ateoria contraditória em si mesma. O libertariano se limitaria a retrucar quesua teoria estabelece normas para avaliar a conduta individual e não paraavaliar estados de coisas.

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muito menos significativo do que muitas vezes se supõe podeparecer surpreendente. Afinal, estamos acostumados a pensarnos teóricos do neoliberalismo, entre os quais Hayek, Friedmane Nozick, e eles próprios gostam de se conceber dessa maneira,como paladinos da liberdade. O debate normativo entre oneoliberalismo e seus críticos, entretanto, é muito mais comple-xo do que alguns teóricos neoliberais gostariam que fosse: nadamais do que um embate entre os campeões da liberdade indivi-dual e os defensores de alguma concepção mais substancial deigualdade de condições (e os defensores de alguma concepçãomais substancial de comunidade). Note-se que para criticar olibertarianismo não necessitei, até aqui, invocar nenhuma con-cepção mais forte de igualdade de condições. Só recorri a umanoção fraca de igualdade que pode ser formulada da seguinteforma: se a liberdade individual é um valor central para nós,então, em uma sociedade justa, deveríamos garanti-la igualmentea todos. E mostrei que a idéia de liberdade igual para todos eainda que a interpretemos somente como liberdade negativa não faz parte de uma moralidade que rejeita totalmente a atribui-ção de direitos e de deveres que derivam da exigência de umaconsideração imparcial pela vida e pelo bem-estar de todos.

Podemos agora trazer à discussão um outro componente doneoliberalismo moral que também ajuda a esclarecer o porquêdesse lugar relativamente modesto ocupado pelo valor da liber-dade individual.Trata-se simplesmente do seguinte. A tese cen-tral da filosofia política libertariana não diz respeito, diretamente,à liberdade, e sim à propriedade. Seu propósito primeiro consisteem evidenciar a legitimidade moral de um sistema de titularidadessemelhante àquele que seria produzido por um capitalismo delaissez-faire. O valor da liberdade individual é meramente deriva-tivo do valor moral atribuído à propriedade adquirida em con-formidade com os princípios de aquisição e transferência. Nãohá nada na teoria de Nozick que nos autorize a supor que o ca-minho trilhado seja o inverso: de uma reflexão sobre por quedeveríamos prezar a liberdade individual para a definição do sis-tema de titularidades que melhor se ajusta à concepção de liber-dade especificada.

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É inegável, entretanto, que a proposição central da teorialibertariana tem um poderoso apelo intuitivo. Podemos formu-lá-la da seguinte forma: (1) cada indivíduo é o proprietário mo-ralmente legítimo de si próprio (de seu corpo e de seus talentose capacidades); (2) cada indivíduo é o proprietário moralmentelegítimo de tudo aquilo que obteve empregando seus própriostalentos e capacidades e/ou por meio da cooperação de outros,ou ainda por meio de transações voluntárias e de contratos váli-dos com outros, também proprietários legítimos de si mesmos.Se as titularidades existentes emergem de um processo em queas premissas (1) e (2) são satisfeitas, então pode-se afirmar quecada pessoa tem um direito moral às possessões (de recursos ex-ternos39) de que dispõe. E dizer que cada pessoa tem um direitomoral àquilo que possui tem uma implicação normativa muitoforte: ainda que a desigualdade de condição que resulta de umprocesso em que (1) e (2) são satisfeitas seja gigantesca, ninguém,em particular a autoridade política, está (moralmente) autoriza-do a interferir nesse direito. Fazer isso por exemplo, por meiode taxação redistributiva, de transferências e de políticas públicasvoltadas para reduzir a desigualdade de condição significa co-

meter uma injustiça.

40

A preocupação primeira de Nozick, portanto, não é com aliberdade individual e sim com a inviolabilidade do direito moralde propriedade de si próprio e dos recursos externos obtidos pormeios permissíveis. A liberdade é meramente derivativa da não-violação desse direito mais fundamental: ela consiste em cada um

39 Recursos externos em contraste com recursos internos, isto é, ostalentos e capacidades de cada um.

40 Note-se como o neoliberalismo moral difere das formas mais usuais e ascomplementa de neoliberalismo econômico. Não se está dizendo que ataxação redistributiva seja ruim porque a interferência nos direitos depropriedade tem efeitos negativos sobre os incentivos econômicos, gera

deadweight losses ou afugenta os investidores externos. O argumentoprimeiro dos libertarianos é o de que a taxação redistributiva é injustaporque viola direitos morais. (Esses direitos morais podem facilmente sertraduzidos em termos das constrições deontológicas que foram examinadasantes.)

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poder fazer, sem sofrer interferências, o que desejar com os recur-sos (internos e externos) dos quais se é o proprietário (moralmen-te) legítimo. Esse direito deve ser garantido de forma absoluta porum Estado liberal justo, por mais desastrosas que possam ser asconseqüências que resultem disso. É claro que já de início sepoderia objetar, por exemplo, que uma moralidade que não admi-te a imposição nem mesmo de modestos sacrifícios àqueles quepossuem a maior parte dos recursos sociais escassos, ainda queisso permitisse reduzir em muito o sofrimento de muitos outrosque são destituídos desses recursos, simplesmente não é plausí-vel. (O que Nozick quer refutar é a suposição de que a transferên-cia de uma parte, ainda que modesta, das possessões dos maisprivilegiados para os mais destituídos possa ser justificada comouma questão de justiça. Recusar-se a contribuir para minorar osofrimento de pessoas que vivem em um estado de privação atrozpode não ser meritório para os mais abastados, mas isso, paraNozick, não autoriza em termos morais o Estado a obrigá-losa isso.)

Nosso libertariano, entretanto, não se daria por vencido. Elepoderia retrucar o seguinte: vamos supor que se permita aoEstado redistribuir uma parcela (modesta) das titularidades dosmais privilegiados, que da ótica de nossa teoria deveriam ser con-sideradas moralmente legítimas, para minorar a privação extre-ma a que os mais destituídos estão sujeitos. Mas então, seguindo-se a mesma lógica, por que não autorizar o Estado, digamos, aextrair um dos rins de uma pessoa saudável e transplantá-lo parao organismo de uma pessoa cujos dois rins não funcionam, con-siderando-se que o sacrifício imposto ao bem-estar da primeiranão a impediria de continuar vivendo sua vida e que o beneficiáriodessa doação morreria se não recebesse o transplante?.

Esse exemplo provavelmente não seria suficiente para alterara intuição, mencionada nos dois parágrafos anteriores, de que amoralidade libertariana é profundamente implausível. Mas pode-ria causar uma certa inquietação. Afinal, se pode haver um direi-to moral à propriedade de recursos externos, com base em quepoderíamos estabelecer uma distinção nítida entre a violação des-se direito e a violação do direito moral de propriedade que cada

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um tem sobre seu próprio corpo? De fato, Nozick quer nos con-vencer de que, se aceitamos a existência de um direito moral so-bre si próprio, então temos de admitir que titularidades igual-mente fortes de recursos externos podem ser geradas.

O liberalismo igualitário rejeita a existência que, para oslibertarianos, deveríamos reconhecer por intuição moral de umdireito de propriedade absoluto sobre si próprio. Não vou discutireste ponto agora.41 Para argumentar, vamos admitir que um direi-to assim existe. Partindo-se dessa premissa, será mesmo possível,como quer Nozick, justificar a existência de um direito igualmen-te inviolável a quinhões desiguais (e mesmo imensamente desi-guais) de recursos externos? Esta é a questão que quero examinar.Antes disso, porém, apresento a teoria de Nozick da titularidadeem suas linhas gerais.

Uma teoria histórica da justiça

Podemos resumir a teoria da justiça de Nozick da seguinteforma. Tudo o que necessitamos, sob a rubrica da justiça, são três

princípios: (1) um princípio de aquisição original de possessões;(2) um princípio de transferências de possessões; e (3) um princí-pio de retificação de possessões obtidas por meios que violam (1)ou (2) ou ambos.42 Nozick gosta de denominar sua teoria histó-rica, em contraste com princípios estruturais de justiça. Escla-reço brevemente essa distinção.43

Os princípios estruturais (ou end-state), tal como Nozick osinterpreta, são aqueles que objetivam avaliar a justiça de umadistribuição de vantagens sociais independentemente de como

41 Para o liberalismo igualitário, a titularidade de cada um de seu própriocorpo, talentos e capacidades não se estende, com a mesma força moral,

a todas as vantagens e benefícios sociais que cada um é capaz de obterexercendo esses talentos e capacidades. Deixo a discussão desse pontopara o capítulo 6.

42 Nozick, 1974, p.150-3.43 Ibidem, p.153-60.

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ela foi gerada. Um utilitarista, por exemplo, julgará injusta umadada distribuição, independentemente de como se chegou até ela,se houver uma distribuição alternativa em que a utilidade totalou média seja maior ou se houver uma distribuição alternati-va, caso nosso utilitarista acredite ser preciso combinar conside-rações agregativas de utilidade com considerações de igualdadedistributiva, em que tanto a utilidade agregada quanto a igualda-de possam ser maximizadas. Um liberal-igualitário, a la Rawls,considerará uma dada distribuição injusta se houver uma distri-buição alternativa em que os benefícios sociais garantidos aosmais destituídos sejam maiores do que os benefícios sociais ga-rantidos aos mais destituídos sob a distribuição vigente. Nos ter-mos da distinção entre razões morais que examinei anteriormente,essas duas teorias têm um forte componente conseqüencialista,isto é, os princípios de justiça que propõem têm por objetodiscernir estados de coisas que possamos considerar mais justos.

 Já vimos que a moralidade neoliberal só se aplica à condutados agentes, e não à avaliação de estados de coisas. O que umateoria histórica (ou genealógica) de justiça coloca em ques-tão não é a distribuição de encargos e benefícios sob o estado decoisas vigente e sim o  pedigree moral das possessões de cadaum sob a distribuição vigente. Como por meio de que condu-tas, transações e operações a presente distribuição detitularidades foi alcançada? Aqui Nozick se preocupa em distin-guir sua própria teoria de uma subclasse de princípios históri-cos que ele denomina padronizados ( patterned).44 São padro-nizados os princípios que avaliam o pedigree moral de uma dadadistribuição de possessões segundo sua maior ou menor confor-midade a um padrão do tipo a cada um segundo seu méritomoral, a cada um segundo sua contribuição ou a cada umsegundo suas necessidades.

A objeção de Nozick às concepções padronizadas é essencial-mente a mesma que ele dirige às teorias estruturais da justiça.Deixemos que ele próprio a formule:

44 Nozick, op. cit., p.155-60.

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Supor que a tarefa de uma teoria da justiça distributiva consisteem preencher a lacuna em a cada um segundo seu (sua) _______é se predispor a procurar um padrão; e o tratamento diferenciado

de cada um segundo seu (sua) _________ significa considerar aprodução e a distribuição como duas coisas independentes eseparadas. Em uma teoria baseada em titularidades, essas não sãoduas coisas distintas. Quem quer que produza algum bem, tendocomprado ou contratado todos os demais recursos utilizados paraproduzi-lo ... tem direito a possuí-lo. A situação não é a de uma

coisa ser produzida e permanecer em aberto quem deve ficar comela. As coisas vêm ao mundo já vinculadas a pessoas que têm titularidadessobre elas.45

A frase crucial é esta última. Tanto as teorias estruturaisquanto as padronizadas ignorariam as titularidades e trata-riam os recursos existentes como se viessem do nada como omaná que cai do céu e pudessem ser distribuídos à vontade,seja para se alcançar um estado de coisas considerado mais dese-jável, seja para se realizar o princípio padronizado consideradomais correto. Já a teoria histórica de Nozick (isso é o que nos édito) é a única em que as titularidades são levadas a sério: seforam geradas por um processo de aquisição original ao qualninguém pode objetar, e por transferências de posses realizadaspor meios permissíveis (transações voluntárias de mercado, he-rança ou doações), então elas estão moralmente insuladas deinterferências.46 Apoiando-se em um argumento de Hayek con-tra a distribuição de acordo com o mérito moral, Nozick susten-ta que só há um padrão distributivo, se é que se pode chamarassim, que não é incompatível com a perspectiva das titularidades:em uma sociedade livre, a distribuição será de acordo com ovalor e não com o mérito moral, isto é, de acordo com o valorque as ações e serviços de uma pessoa mostram ter para ou-

45 Ibidem, p.159-60 (meu grifo).46 Nos termos da discussão anterior, os agentes pessoas privadas ou aautoridade pública que nelas interferem violam as constrições deon-tológicas não-excepcionáveis que todos estão obrigados a respeitar em suaconduta.

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tros.47 É claro que só há um mecanismo que permite que adistribuição de recursos se faça de acordo com o valor que ou-tros percebem nas ações e serviços de uma pessoa: o mercado.(Nozick ressalva que em uma economia capitalista livre hátransferências de titularidades, como as doações, as heranças e acaridade, que não obedecem a essa noção de valor percebido.48)Temos um direito àquilo que obtemos, empregando nisso osrecursos aos quais estamos titulados para prover outros de bense serviços que eles valorizam, em transações não-coercitivas nomercado.

Tudo o que foi dito até agora sobre a perspectiva históricade Nozick diz respeito ao princípio (2) já enunciado. Se os indiví-duos têm títulos legítimos a todos os recursos existentes, então,em uma economia capitalista livre, nada há a objetar a que adistribuição de parcelas desses recursos a cada um se faça em

transações não-coercitivas de mercado e segundo os ditames dovalor percebido. A crítica mais forte à teoria das titularidades,como procurarei mostrar adiante, incide sobre o princípio (1),que diz respeito à apropriação original. Mas será o princípio (2)tão isento de objeções morais quanto supõem os libertarianos?

O princípio das transferências

A plausibilidade do princípio (2) parece residir na não-coercitividade das transações de mercado. Mas a teoria das

titularidades não nos oferece nenhum critério nítido para distin-guir que formas de coerção são aceitáveis em uma sociedade li-vre.49 Que usos posso dar aos recursos dos quais sou o legítimoproprietário, sem que ninguém tenha o direito de me impedir defazê-lo, e que usos desses recursos (incluindo a propriedade de simesmo) envolvem coagir outros a fazer o que é de meu interesseou causam danos a outros pelos quais eu deveria ser responsabi-

47 Nozick, op. cit., p.158.48 Ibidem.49 De Gregori, 1979, p.22-6.

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lizado? Não há nenhum critério derivado da teoria de Nozick quenos permita distinguir a priori entre esses dois casos, não pelomenos além das ações (roubo, atentado à integridade física deoutro, fraude etc.) que de forma mais óbvia são excluídas pelasconstrições deontológicas especificadas pela teoria.

O próprio Nozick nos fornece exemplos esclarecedores dessadificuldade. Ele acredita que as transações realizadas em virtudede ameaças chantagistas não deveriam ser incluídas entre as tran-sações não-coercitivas, que são aquelas, como vimos, das quais oprincípio (2) retira sua plausibilidade. Vamos supor os exemplossão de Nozick que alguém ameace publicar um livro contendoinformações comprometedoras a respeito de uma outra pessoacom o único propósito de arrancar dinheiro dela para não fazê-lo;ou que alguém ameace erguer uma estrutura horrorosa no terre-no que possui, e que desagradará profundamente a seus vizinhos,com o único propósito de levá-los a oferecer-lhe uma compensa-ção para deixar de fazê-lo.50 Transações desse tipo são, diz Nozick,claramente coercitivas e improdutivas. (As transações produti-vas são aquelas que levam os compradores a uma posição me-lhor do que a que se encontrariam caso o vendedor não tivesseabsolutamente nada a ver com eles.51 Uma transação envolvendochantagem é improdutiva porque os compradores do silêncio dochantagista estariam melhor se este não existisse.) Mas basta umapequena alteração para que Nozick deixe de considerar os exem-plos citados como casos de transação coercitiva e improdutiva.Assim, se alguém obtém uma informação igualmente comprome-tedora sobre uma outra pessoa, e que pode ser utilizada em umlivro com o propósito de fazê-lo vender mais, o primeiro podeexigir um pagamento daquela outra, que deseja que essa informa-ção seja mantida em segredo ... para deixar de incluí-la no livro.Ele pode cobrar uma quantia de dinheiro equivalente à diferença,em termos dos direitos autorais que espera receber, entre o livrocontendo a informação e o livro sem ela.52

50 Nozick, op. cit., p.84-6.51 Ibidem, p.84.52 Ibidem, p.85.

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Em que este último tipo de transação difere da chantagemexplícita? Simplesmente no seguinte: na intenção do agente! Aquinos defrontamos novamente com os becos sem saída a que umamoralidade rigidamente deontológica nos conduz. Se uma pes-soa ameaça publicar uma informação com a intenção de me ex-torquir, então, supostamente, sua conduta envolve a violação deuma interdição deontológica. Mas se sua intenção é a de fazer seulivro vender mais, e eu me disponho a pagar para que ela mante-nha a informação em segredo (porque para mim isso é benéfico)então, supostamente, ela está apenas maximizando sua própriautilidade sem violar nenhuma interdição deontológica. Mas, doponto de vista da vítima, faz alguma diferença saber qual é aintenção do agente que pode lhe causar um dano? Como diz DeGregori: o benefício que eu obtenho do segredo é o mesmo,quer a informação seja vantajosa para ele, quer ele tenha umprazer sádico em divulgá-la, quer isso lhe seja indiferente masesteja utilizando a informação somente para arrancar dinheiro demim.53 O critério pelo qual Nozick quer distinguir entre umatransação realizada sob chantagem, que deveria ser avaliada deacordo com o sistema libertariano de interdições deontológicas, euma transação voluntária, que só é avaliada pelas próprias partesenvolvidas de acordo com o valor percebido, é puramente sub-jetivo (depende de se saber qual é a intenção do agente) e mo-ralmente irrelevante (do ponto de vista daqueles que sofrem umdano com a transação, importa pouco saber qual é a intençãodo agente causador do dano).54 Melhor é admitir logo, como fazMurray Rothbard, que, em uma sociedade livre (em que a dis-tribuição de recursos é regida pelo princípio hayekiano do valor

53 De Gregori, op. cit., p.26.54 Os teóricos que se empenham em dotar as transações de mercado de

fundamentos normativos parecem acreditar, como observou Brian Barry

(1989, p.68), que há uma distinção moral entre um dano ser causado pelabusca não-estratégica do interesse próprio (como no caso em que adivulgação da informação comprometedora visa aumentar as vendas deum livro) e o mesmo dano ser causado pela busca estratégica do interessepróprio (a divulgação da informação tem por objetivo primeiro me coagir

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percebido), não há como excluir as transações realizadas sobchantagem.55

Poder-se-ia argumentar que as formas permissíveis de exercí-cio dos direitos de propriedade são determinadas pelas disposi-ções institucionais vigentes em uma dada sociedade. Esse é umbom argumento, mas não serve à teoria política libertariana. Nãoserve porque esvazia em uma medida considerável as transaçõesde mercado do conteúdo normativo que os libertarianos queremenxergar nelas. Ao contrário do que diz Nozick, as coisas nãovêm ao mundo já vinculadas a pessoas que têm titularidadessobre elas. As transações de mercado fazem intercâmbios detitularidades dadas, mas não geram o sistema de titularidades.Admitindo-se isso, nossa atenção se desloca dessas transaçõespara a estrutura institucional vigente.56 Em vez de nos deixar-mos seduzir pela suposta não-coercitividade das transações demercado, perguntaremos (do ângulo da teoria normativa), então,pelos fundamentos normativos dos arranjos institucionais quedefinem a distribuição e os usos admissíveis dos direitos de pro-priedade. Mais ainda, nos daremos conta de que esses arranjossão produzidos não por transações de mercado, e sim por decisãocoletiva. E se são produzidos por decisão coletiva, eles tambémsão passíveis de alteração por decisão coletiva. Admitir isso, paraNozick, significa admitir que sua teoria fracassou. (Lembre-se deque o objetivo central da teoria de Nozick é o de estabelecer umdireito moral de propriedade de si mesmo e dos recursos exter-nos obtidos em conformidade com os princípios (1) e (2) men-cionados anteriormente. E se um direito é moral, ele é anterior

a aceitar uma posição inicial de barganha desfavorável). Volto a este pontoquando tratar de Gauthier.

55 Em uma passagem citada pelo próprio Nozick, Rothbard afirma que achantagem não seria ilegal em uma sociedade livre. Já que a chantagem

consiste no recebimento de dinheiro em troca do serviço de não publicardeterminada informação sobre a outra pessoa. Não há nisso nenhumaviolência, ou ameaça de violência, à pessoa ou à propriedade. ApudNozick, op. cit., p.86.

56 De Gregori, 1979, p.25-6.

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aos arranjos institucionais estabelecidos e está moralmente insu-lado de interferências sobretudo por decisão coletiva. A pers-pectiva libertariana, como a de Hayek ou a de Gauthier, não temnenhuma afinidade com o positivismo legal.57

Passo, a seguir, ao exame do princípio (1) da teoria de Nozick.

A cláusula lockeana

A afirmação de que as coisas vêm ao mundo já vinculadas apessoas que têm titularidades sobre elas não é verdadeira tam-bém em um outro sentido. É preciso especificar um ponto emque o processo de geração de títulos de propriedade por meio detransações voluntárias no mercado pode ter início. Mesmo que

existam direitos de propriedade sobre todos os recursos externos,as coisas que são hoje produzidas com esses recursos foram feitascom coisas, que foram feitas com coisas, e assim por diante, queum dia não eram de propriedade de ninguém. Em algum mo-mento, recursos que não eram possuídos por ninguém foramapropriados. Para que o princípio (2), de transferências de titu-

laridades, possa pelo menos pretender se revestir de todo o pesomoral que Nozick quer lhe atribuir, primeiro é preciso mostrarque essas titularidades derivam de uma apropriação original derecursos previamente não-possuídos à qual ninguém, nem mes-mo os que são destituídos de titularidades, teria razões para obje-tar moralmente.

Nozick quer mostrar que as desigualdades de recursos inter-nos e externos que caracterizam as condições e as oportunidadesde vida dos membros das sociedades capitalistas do presente po-deriam ter emergido de transações voluntárias a partir de uma

57 Se os arranjos institucionais de uma dada sociedade, por exemplo em umpaís de welfare state desenvolvido, distribuem direitos legais que interferemem titularidades geradas em conformidade com os princípios (1) e (2),esses arranjos e os correspondentes direitos legais que definem serãoconsiderados, pela teoria de Nozick, como injustos.

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apropriação original moralmente justificável. E isso ele faz ofere-cendo uma interpretação da célebre cláusula de Locke à apropria-ção justa. O recurso a uma cláusula desse tipo equivale,conceitualmente, à introdução de uma estrutura de direitos depropriedade e de direitos pessoais ainda no estado de natureza um expediente que, em teorias como a de Locke e de Nozick, nãotem como ser justificado a não ser por intuição moral. SegundoLocke, um indivíduo torna-se proprietário de alguma coisa queera previamente de uso comum misturando nela seu trabalho

o trabalho é a atividade que transmite a propriedade que cadaum tem de si próprio para recursos externos, gerando direitosexclusivos sobre o que antes pertencia ao estoque de coisas queDeus oferecera à Humanidade em comum; mas esses direitosexclusivos só poderiam ser aceitos esta é a cláusula se restaro bastante e igualmente de boa qualidade em comum para os

outros.58

A parte relevante da teoria de Locke da apropriação originalestá nessa cláusula, argumenta Nozick, porque ela enfoca comoos atos de apropriação por parte de uma pessoa afetam a situaçãode outros: um objeto que cai sob a propriedade de uma pessoaaltera a situação de todas as demais. Ao passo que anteriormente

elas estavam livres ... para utilizar o objeto, agora já não mais oestão. Essa mudança na situação das outras pessoas (privando-asda licença que tinham para agir sobre um objeto que antes nãoera de propriedade de ninguém) não necessariamente piora suasituação.59 Esta última frase resume a cláusula lockeana tal comointerpretada por Nozick: para que uma apropriação seja moral-

mente legítima, é suficiente que ela não piore a situação de ou-tros; e uma apropriação que de outro modo violaria a cláusulapode mesmo assim dar origem a títulos legítimos de propriedadese o apropriador compensar os que ficaram impedidos de utilizaro recurso apropriado.60 Outro ponto relevante é o seguinte: acláusula lockeana não é um princípio end-state: ela focaliza a

58 Locke, Segundo tratado sobre o governo, cap. V, par. 27.59 Nozick, 1974, p.175.60 Ibidem, p.178.

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forma específica pela qual as ações de apropriação afetam outros,e não a estrutura da situação que se produz.61

Argumentarei a seguir que as cláusulas lockeanas (como asdo próprio Locke e a de Nozick) são inúteis para avaliar os arran-jos socioeconômicos do ponto de vista da justiça; e que, quandoparecem fundamentar uma avaliação, só é possível torná-lasoperativas recorrendo exatamente àquilo a que elas se apresen-tam como uma alternativa, isto é, uma concepção estrutural(end-state) de justiça distributiva.

As cláusulas de Locke e de Nozick são inúteis para avaliar ajustiça de uma dada distribuição de recursos porque não há ne-nhum sistema econômico, existente ou não, capaz de satisfazê-las. Com base em que afirma Nozick que a apropriação privada(sob uma economia capitalista de mercado) de recursos que emalgum momento foram de uso comum não piora a situação deninguém? Aqui o argumento apela a uma variedade de conside-rações familiares em favor da propriedade privada: ela aumentaa produtividade colocando os meios de produção nas mãos da-queles que são capazes de utilizá-los mais eficientemente; pro-move a experimentação; permite às pessoas escolherem os ris-cos que querem correr; oferece alternativas de ocupação a pes-soas impopulares; e se presta até mesmo acredite! à proteçãodo meio ambiente, ao levar algumas pessoas a poupar recursosdo consumo corrente para os mercados futuros.62 Apelando aessas considerações, Nozick quer nos persuadir de que os quesão destituídos de propriedade sob a organização capitalista hojevigente pelo menos não estão em pior situação do que estariamem um hipotético estado de natureza no qual todos os recursosseriam de uso comum.

Mas a questão que se apresenta, então, é a seguinte: por quedeveríamos atribuir essa posição de superioridade ao status quo

61 Ibidem, p.181.62 Ibidem, p.177. Essa forma de conceber a proteção do meio ambiente emuma sociedade nozickiana é um dos pontos que confirma a avaliaçãocontundente de Brian Barry (1995a, p.xi), para quem a teoria de Nozickse apóia em premissas idioticamente individualistas.

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no caso, aos arranjos socioeconômicos das sociedades capita-listas de hoje em uma argumentação que se pretende essen-cialmente moral? (Tenha sempre em mente que o que estamosfazendo é examinar os títulos morais do direito capitalista depropriedade porque esse é o terreno em que a teoria de Nozickapresenta suas proposições específicas.) Por que seria moralmen-te legítimo considerar que a justiça da apropriação privada deveser avaliada comparando-se somente duas alternativas: ou bemum estado de natureza em que os recursos não são propriedadede ninguém, mas em que a produtividade é baixa, não há incen-tivo à experimentação e à invenção e por aí afora, ou bem aforma capitalista de produção e distribuição de bens econô-micos?63 Por que não ampliar o leque de alternativas e compararo free-for-all do estado de natureza com um sistema de proprieda-de coletiva ou cooperativa dos recursos produtivos, ou aindacom um sistema que autoriza (moralmente falando) a apropria-ção privada de recursos produtivos desde que os que são impe-didos de utilizar esses recursos sejam compensados com umaparcela eqüitativa de tudo aquilo que foi produzido com recursosnaturais?64

O quer que pensemos dessas outras alternativas, uma coisaé certa: o juízo sobre o que significa uma apropriação não pio-rar a situação de outros tem de levar em conta os arranjosinstitucionais que não podem ser excluídos arbitrariamente deconsideração. E se não excluímos arbitrariamente nenhuma al-ternativa de consideração, a cláusula lockeana não serve paranada no que diz respeito à avaliação normativa de arranjossocioeconômicos.65 Como sustenta Cohen, uma vez que ... uma

63 Cohen (1985) desenvolve em detalhe a objeção de que Nozick restringiuilegitimamente o rol de alternativas que teriam de ser levadas em contaem um argumento de natureza normativa.

64 Van Parijs, 1992, p.9-17, argumenta que se poderia justificar dessa forma

isto é, como uma forma de compensação à violação da cláusula lockeanaque a apropriação privada de recursos naturais necessariamente implica o direito de todos a uma renda básica universal.

65 John Mackie descarta a aplicabilidade da cláusula de Locke argumentandoque os recursos relevantes são e sempre foram objeto de competição. E

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cláusula lockeana justificadamente forte à formação e à preserva-ção de sistemas econômicos terá de estabelecer que ninguémdeve se encontrar em pior situação em um dado sistema econô-mico do que se encontraria em alguma alternativa não ignorável,é quase certo que, não somente o capitalismo, mas qualquer outrosistema econômico fracassará em satisfazer uma cláusula lockeanadefensivelmente forte; portanto, é preciso abandonar a formalockeana de testar a legitimidade dos sistemas econômicos.66

Ampliando-se o leque de alternativas a serem comparadascom o estado de natureza, é forçoso concluir que a propriedade eo controle capitalista dos meios de produção violam a cláusulalockeana. Essa conclusão, a que chegamos por meio de uma argu-mentação puramente normativa, é corroborada por montanhasde evidências históricas. Até um colegial sabe que a propriedadecapitalista não surgiu de nenhum processo lockeano virtuoso esim da expropriação violenta e privatização de recursos que pre-viamente eram de uso comum, da proletarização forçada de cam-poneses e artesãos, da colonização e da escravização de africanose de indígenas americanos, entre outros eventos idílicos quepoderiam ser mencionados. Na história real, como diz Marxem sua análise da acumulação primitiva do capital, a conquis-ta, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência,desempenham o papel principal.67

De acordo com a teoria histórica de Nozick, se a estruturaatual dos direitos de propriedade de alguma forma incorporouviolações aos dois primeiros princípios de justiça (os princípios

mesmo que um estado mítico de ausência completa de escassez pudesseter existido, com base em que é legítimo supor que a cláusula só tivesse deser satisfeita uma única vez e para sempre? Com base nos princípios deLocke, diz Mackie (1977, p.176), é preciso supor que Deus ofereça emqualquer tempo dado a Terra toda em comum para todos os homens quenela se encontrem nesse tempo. Por essa razão, quando a cláusula vital

deixa de ser satisfeita, os bens que uma vez foram legitimamente adquiridosjá não podem mais ser mantidos em possessão exclusiva e devem reverterà propriedade coletiva.

66 Cohen, 1985, p.101.67 Marx, 1984, p.262.

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de apropriação original e de transferências), então é preciso queo terceiro princípio, de retificação de injustiças passadas, entreem cena. Admitamos, como o próprio Nozick está disposto aadmitir, que é plausível supor que aqueles que se encontram napior situação sob a estrutura institucional vigente são vítimasou descendem das vítimas de injustiças passadas. Nesse caso,uma regra prática aproximativa para a retificação de injustiçaspode ser a seguinte: organize-se a sociedade de forma a elevar aomáximo a posição de qualquer grupo que nela acabe por seencontrar na situação mais desvantajosa.68 Esta é, precisamen-te, uma formulação possível para o princípio de diferença deRawls que, para Nozick, constitui um exemplo nítido de prin-cípio end result de justiça que negligenciaria as titularidades exis-tentes. Uma vez que é impossível voltar, no processo de geraçãoe transferências de titularidades, a um ponto de partida nãomaculado por injustiças, Nozick está admitindo que o melhorsubstituto para isso consiste em criar as condições para a igual-dade tal como interpretada, por exemplo, pelo princípio dediferença de Rawls ou por alguma outra concepção estruturalde justiça distributiva.

Ainda que introduzir o socialismo como uma puniçãopor nossos pecados passados seria ir longe demais, diz Nozickna frase que encerra sua discussão sobre a justiça distributiva,as injustiças passadas podem ser tão grandes a ponto de quepor algum tempo um Estado mais extenso torne-se necessáriopara retificá-las.69 Podemos colocar em questão até mesmo avaga condicionalidade enunciada nesta frase, por algum tem-po. Vamos supor que se corrijam as injustiças passadas colo-cando-se em prática uma concepção rawlsiana de justiçadistributiva. Restaria ainda um problema, apontado por ThomasDe Gregori.

Para poder funcionar somente com base nos princípios dateoria da titularidade, uma sociedade libertariana bem ordenada(a Utopia de Nozick) depende da perfectibilidade humana. Fiz

68 Nozick, 1974, p.231.69 Ibidem, p.231.

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uma objeção similar anteriormente, ao discutir os impasses deuma moralidade fundada exclusivamente em interdições deonto-lógicas, interdições essas que, como vimos, são interpretadas emtermos puramente relativos ao agente. Imaginemos que em al-gum momento, nessa sociedade, violações às interdições deon-tológicas ocorram em uma escala significativa. Os princípios deaquisição e de transferência de titularidades seriam violados e,novamente, o princípio de retificação teria de entrar em cena. E,uma vez mais, essa retificação teria de ocorrer com base em prin-cípios outros que não os especificados pela teoria da titularidade.Como diz De Gregory, a teoria de Nozick, no melhor dos casos,só pode ser empregada como complemento de alguma teoria dajustiça que seja operacional.70

70 De Gregory, 1979, p.22.

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CAPÍTULO 3O CONTRATUALISMO HOBBESIANO

Neste capítulo examinarei aquela que me parece ser a maisimportante entre as formulações teóricas alternativas à justiçaigualitária que hoje se fazem presentes na reflexão normativa.

Tal como o libertarianismo, o contratualismo hobbesiano recusaa idéia, compartilhada por liberais igualitários e utilitaristas, deque o ponto de partida para a justificação dos princípios de justi-ça para as instituições básicas da sociedade está na idéia de umaconsideração igual pela vida e pelos interesses de todos que terãode viver sob essas instituições. Todo o peso da teoria política

libertariana, como vimos, recai em interdições deontológicas que,tal como os direitos naturais, deveríamos considerar evidentespor si mesmas. Agora vamos estudar uma perspectiva normativaque focaliza de acordo com a distinção que foi proposta nocapítulo 1 uma outra forma de relatividade ao agente: asrazões para agir que têm a ver com o interesse próprio e com os

objetivos individuais. Qualquer concepção plausível de justiçapolítica está obrigada a propor, como sustentei no capítulo 1,uma forma de acomodar as razões para agir que só o são daperspectiva individual do agente. O ponto controverso não está

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aí e sim na suposição de que somente razões desse tipo podemser tomadas como um ponto de partida apropriado para a refle-xão normativa.

Vou me concentrar sobretudo na teoria da moralidade poracordo proposta por David Gauthier.1 Gauthier é provavelmenteo mais importante filósofo moral hobbesiano da atualidade. Mi-nha expectativa é evidenciar aquelas dificuldades do argumento deGauthier que também seriam enfrentadas por qualquer teorizaçãoque adotasse o mesmo ponto de partida e as mesmas premissas.Essas premissas são as seguintes. A teoria política normativahobbesiana aceita inteiramente três concepções tomadas da eco-nomia: (1) uma concepção subjetivista de bem-estar individual, se-gundo a qual o valor é o mesmo que utilidade sendo esta inter-pretada como uma medida de preferências individuais; (2) umaconcepção maximizadora de razão, segundo a qual um indivíduoage racionalmente quando se empenha em elevar ao máximo suautilidade individual; e (3) uma concepção de indiferença mútuaentre os indivíduos (o que não é necessariamente o mesmo queegoísmo; o que se supõe é que, para as finalidades da teoria, osindivíduos não têm interesse pelos interesses dos demais2).

Gauthier sustenta que esses três dogmas da economia en-contram-se presentes (não, evidentemente, de uma forma tão

1 Gauthier, 1986, 1990 e 1991.2 Esta é uma das formulações de Rawls (1971, p.13) que Gauthier gosta de

citar de uma forma um pouco astuciosa. Para Rawls, a indiferença mútua

caracteriza as partes situadas na posição original, às quais cabe selecionaros princípios de justiça para uma sociedade bem ordenada. Na teoriada justiça de Rawls, entretanto, uma interpretação distinta dos motivosda conduta individual (em especial a capacidade de se colocar no lugar deoutros e de dar um peso ao interesse de outros na forma como se concebeo próprio interesse) está pressuposta na caracterização do status quo apartir do qual os princípios de justiça devem ser escolhidos (a posição

original) e no argumento em favor da estabilidade dos princípiosescolhidos. Para recorrer a uma distinção que propus em outro trabalho(Vita, 1993a), ao passo que a teoria de Rawls é uma modalidade deliberalismo kantiano, a de Gauthier talvez seja o exemplo mais acabadode liberalismo hobbesiano na teoria política normativa contemporânea.

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explícita) na filosofia moral de Hobbes.3 Mas não é tanto a inter-pretação de Hobbes que me interessa no momento. Cabe enfatizara natureza do empreendimento teórico de Gauthier: é possívelconceber uma teoria aceitável da moralidade que acomode as trêspremissas apresentadas? De um lado, Gauthier aceita a concepçãode racionalidade que a concebe como a maximização do bem-estarindividual (interpretando-o em termos de utilidade individual, eesta, por sua vez, como uma medida de preferências individuais)por indivíduos mutuamente indiferentes. Por outro, Gauthierabraça uma concepção de moralidade que a interpreta como res-trições razoáveis à conduta individual maximizadora. As duas coi-sas razão e princípios morais são compatíveis? É possível justi-ficar racionalmentea aceitação de restrições morais à conduta indivi-dual maximizadora? Gauthier resume assim sua hipótese central:

Nossa suposição é a de que, em certas situações envolvendointeração com outros, um indivíduo escolhe racionalmente somen-te na medida em que restringe o empenho por seu próprio interesseou benefício, de forma a conformá-lo a princípios que exprimem aimparcialidade característica da moralidade. Para escolher racio-nalmente, é preciso escolher moralmente. Esta é uma suposição forte.

A moralidade, argumentaremos, pode ser gerada como uma restri-ção racional a partir das premissas não-morais da escolha racional.4

Uma discussão mais substancial desse argumento terá deaguardar até as três seções finais deste capítulo. À parte uma ououtra observação crítica, as quatro seções seguintes têm uma na-

tureza mais expositiva.

Harsanyi & Gauthier

A interpretação de Gauthier sobre qual é a forma apropria-

da de relacionar razão e moralidade pode ser contraposta, de

3 Gauthier, 1990, p.11-23.4 Gauthier, 1990, p.4.

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uma forma esclarecedora, à forma como Harsanyi pensa o mes-mo problema. Para Harsanyi, uma teoria geral do comporta-mento racional abrange dois ramos: a teoria da conduta racio-nal individual (que inclui a teoria da escolha racional (1) emcondições de certeza, (2) em condições de risco e (3) sob incerte-za) e a teoria da conduta racional em um contexto social, que sesubdivide na teoria dos jogos e na ética.5 A teoria dos jogos éuma teoria da interação racional entre dois ou mais indivíduos,cada um deles empenhando-se racionalmente por seus próprios

objetivos contra o(s) outro(s) indivíduo(s) que se empenha(m)racionalmente por seus próprios objetivos.6 A teoria da nego-ciação racional, em particular, sobre a qual direi alguma coisaadiante, limita-se a prever com que ganhos de utilidade termina-rão dois ou mais indivíduos maximizadores de utilidadeinteragindo entre si. Até que ponto o resultado de uma barga-

nha racional pode ser aprovado de um ponto de vista moral,isso constitui uma questão separada e externa à teoria dos jogos.A ética, finalmente, é a teoria da conduta racional a serviçodos interesses comuns da sociedade como um todo.7

E o que constitui a racionalidade no campo específico daética? A conduta racional, no caso, é aquela que pode ser aprova-

da de um ponto de vista moral ou imparcial. Harsanyi sustentaque o ponto de vista moral apropriado é aquele de um observa-dor empático imparcial (a expressão é de Adam Smith). Parajulgar do ponto de vista moral demandas conflitantes por umdeterminado recurso social escasso, ou então para decidir qualentre dois estados de coisas é eticamente mais desejável, um

observador empático imparcial pode levar em conta informaçõesde todo tipo sobre os demandantes (suas funções de utilidade,capacidades e crenças) ou sobre os estados de coisas a respeitodos quais deverá emitir um julgamento ético. Mas sua decisãodeverá ser tomada por trás de um véu de ignorância fino (emcomparação àquele que é imposto à deliberação na posição origi-

5 Harsanyi, 1982, p.43.6 Ibidem.7 Ibidem.

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nal de Rawls). Para decidir que parcelas de um recurso escasso Xé moralmente recomendável distribuir a um indivíduo A e a umindivíduo B (supondo-se que as demandas de  A e B por Xconflitam), um observador empático imparcial não sabe qual é aprobabilidade de que ele próprio seja A ou B ou melhor, eleconsidera que há uma igual probabilidade de que, levantado ovéu de ignorância, ele seja A ou B. Ou então, para julgar qualdentre dois estados de coisas é moralmente preferível digamosque se trate de escolher entre os sistemas socioeconômicos C(capitalismo) e S (socialismo) um árbitro imparcial não podelevar em conta sua própria posição social (mais favorável oumais desfavorável) em C ou em S.

O problema de escolha racional enfrentado pelo observa-dor empático imparcial, nessa posição original proposta porHarsanyi, não pertence ao território da teoria dos jogos e sim aoda teoria da decisão (pode-se considerar o problema como o deuma decisão racional sob incerteza).8 A escolha racional deverárecair, segundo Harsanyi, na alternativa que maximizaria a utili-dade esperada do árbitro imparcial, isto é, a alternativa quemaximiza a quantidade representando a média aritmética detodos os níveis individuais de utilidade da sociedade.9 Não é

preciso entrar em detalhes sobre a forma como Harsanyi chegaa essa solução. O que importa ressaltar, por agora, é o seguinte.Um julgamento que exibe a imparcialidade, que é característicada moralidade, é aquele que seria realizado por um ou maisindivíduos maximizadores de utilidade deliberando por trás deum véu de ignorância que proíbe os deliberantes de levar em

conta suas posições sociais e características específicas. Os jul-

8 A escolha do árbitro imparcial é paramétrica, isto é, aquela em que oescolhedor racional toma a conduta de todos os demais como fixas (comoparâmetros) e sua própria conduta como a única variável. A racionalidade

própria à teoria dos jogos é estratégica. A escolha racional, nesse segundocaso, leva em conta as expectativas do agente quanto às escolhas de outros,ao mesmo tempo em que as escolhas destes também se fazem com baseem expectativas similares.

9 Harsanyi, op. cit., p.46. Ver também Harsanyi, 1977, p.48-61.

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gamentos realizados nessas condições, argumenta Harsanyi, es-tarão sempre de acordo com um princípio de maximização donível médio de utilidade esperada de todos os indivíduos afeta-dos. (O que tem por implicação que, uma vez levantado o véu deignorância, alguns dos que se colocaram na posição do observa-dor empático imparcial poderão descobrir que um outro resulta-do lhes teria sido mais vantajoso.) Razão e moralidade harmoni-zam-se nas escolhas que têm por objetivo elevar a utilidade mé-dia. Mas só se harmonizam porque o recurso ao observadorempático imparcial já envolve situar a escolha racional em umaestrutura de deliberação moral.

É essa forma de conceber a relação entre razão e moralidadeque Gauthier rejeita. Sobre isso, há um esclarecimento inicial aser feito. A aceitação dos três dogmas da economia mencionadosno início não compromete ninguém com a aceitação de umamoralidade utilitarista. Posso considerar a maximização da utili-dade individual como a motivação fundamental da conduta dosindivíduos e, sem incorrer em nenhuma inconsistência, rejeitar aproposição de que se deve (em nome de exigências morais)maximizar a utilidade média de todos os indivíduos da sociedade.Em termos dos compromissos morais substantivos de sua teoria,Gauthier está muito mais próximo do libertarianismo de Nozickdo que do utilitarismo de Harsanyi. Como está sugerido na fraseentre parênteses no parágrafo anterior, a maximização da utilidademédia pode selecionar um resultado que, para alguns indivíduos,é pior do que aquele que obteriam em uma barganha racional.10

Mas o ponto mais importante da rejeição de Gauthier à for-ma como Harsanyi equaciona moralidade e racionalidade é o se-guinte. Gauthier quer justificar racionalmente determinadas res-trições morais à conduta maximizadora de utilidade individual,mas não quer fazê-lo com base na interpretação da imparcialidadeproposta por Harsanyi. A teoria ética de Harsanyi nos diz qual é a

10 Esse esclarecimento se deve ao fato de perspectivas aparentadas a deGauthier, como a de James Buchanan, serem às vezes denominadas,incorretamente a meu ver, neo-utilitaristas.

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escolha racional uma vez que assumimos a ótica do observadorempático imparcial, mas ela não diz por que é racional aceitar essaestrutura de deliberação moral em primeiro lugar. Um cético moralapontaria o dedo para essa escolha primeira e a consideraria des-provida de fundamentação. A ambição de Gauthier é a de desen-volver um argumento tal em favor das restrições morais propostaspor sua teoria que, para o cético rejeitá-lo, seria preciso que eleinvestisse não só contra uma noção de identificação empática comos interesses de outros, mas também contra uma noção muitomais fraca de racionalidade individual. Não é uma ambição peque-na. Se um argumento desse tipo fosse bem-sucedido, o cético severia na posição incômoda de ter de sustentar que a escolha ra-cional, e não somente a escolha moral, é arbitrária. E é mais difícilsustentar que a escolha racional é injustificada porque, diversa-mente da escolha moral, ela não tem nenhuma dimensãointersubjetiva; o critério de racionalidade em questão só impõecertas condições formais de consistência à conduta de escolha,tais como a suposição de que, se um agente escolhe a alternativaA quando B também se encontra disponível, é porque A é aopção que maximiza a satisfação das preferências desse agente.11

A concepção de restrições (constraints) morais de Gauthier ésimilar à de Nozick.12 As exigências de natureza moral somentelimitam as formas pelas quais é legítimo empenhar-se na realiza-

11 Esta é a idéia central da teoria da preferência revelada (Binmore, 1994,p.50-1 e 104-6) adotada pelos economistas neoclássicos. A suposição não

é a de que a opção A é escolhida porque a utilidade de A excede a deB, o que exigiria a possibilidade de mensurar algum atributo de naturezapsicológica (por exemplo, o total líquido de prazer produzido) que pudesseservir de explicação à conduta de escolha. Ao contrário, atribui-se umautilidade maior a A porque a conduta de escolha do agente mostrouque ele prefere A a B. A relação de preferência é inferida da condutade escolha. Da conduta dos políticos, por exemplo, inferimos que eles

preferem ganhar a perder eleições e que, portanto, maximizar votos éaquilo que maximiza sua utilidade. Inversamente, um agente age de formairracional somente se não é possível dar uma interpretação maximizadoraa suas escolhas.

12 Ver discussão no capítulo 2.

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ção de objetivos quaisquer, mas por si mesmas não estabelecemobjetivos coletivos de qualquer tipo (tais como, por exemplo, amaximização da utilidade média). Gauthier, portanto, rejeita adefinição de Harsanyi da ética como a teoria da conduta racionala serviço dos interesses comuns da sociedade como um todo.

Se a ética tem a ver com restrições à conduta individualmaximizadora, e não com objetivos coletivos de qualquer tipo,então é preciso eliminar o último nível da teoria da conduta ra-cional tal como concebida por Harsanyi. E se, mesmo assim, ain-da se quer como é o caso de Gauthier justificar racionalmentecertas restrições morais, é preciso (1) mostrar como umaconstraintà conduta maximizadora pode emergir no âmbito da barganharacional; e (2) mostrar por que devemos considerar que essaconstraint satisfaz às exigências de imparcialidade próprias damoralidade.

Gauthier sustenta que essa é a única forma de chegar à impar-cialidade moral que é consistente com os três dogmas da econo-mia mencionados. Se realmente queremos conciliar razão e mo-ralidade, temos que proceder por dentro, por assim dizer, de umaestrutura interativa constituída de indivíduos racionais e mostrarque o reconhecimento de restrições morais lhes é racional. Qual-

quer outra forma de derivar restrições desse tipo embutiria supo-sições morais prévias, e, por isso, não poderia ser justificada aindivíduos racionais.13 As restrições à conduta individual quederivam do princípio de maximização da utilidade média, porexemplo, só podem ser justificadas racionalmente para aquelesque estão previamente de acordo com a interpretação da impar-

cialidade moral tal como proposta por Harsanyi. Isso de fato éassim, mas é duvidoso, como espero demonstrar neste capítulo,que a teoria da moralidade por acordo não embuta suposiçõesmorais prévias.

13 Gauthier está inteiramente certo quando afirma que as implicações dosprincípios de justiça de Rawls para a conduta individual podem serconsideradas restrições razoáveis, mas o que é razoável consiste [paraRawls] em uma questão moral substantiva que ultrapassa as fronteiras daescolha racional (Gauthier, 1986, p.5).

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A JUSTIÇA IGUALITÁRIA E SEUS CRÍTICOS 97

Mas voltemos ao problema que nos importa mais no mo-mento. A relação entre razão e moralidade que a Gauthier pareceser a mais apropriada o leva a conceber a justiça como uma ques-tão que pode ser pensada no contexto da negociação racional.Mas, antes de examinar o núcleo central da teoria da moralidadepor acordo, há ainda um ponto a ser esclarecido: por que, paraGauthier, é preciso haver restrições morais à conduta individualmaximizadora?

Mercado e moralidade

A opção primeira do contratualismo hobbesiano contempo-râneo (estamos examinando a versão de Gauthier, mas ele não

está sozinho nisso) recairia, se isso fosse possível, em um mundoem que a justiça distributiva, qualquer que seja o entendimentoque disso se tenha, seria supérflua. A economia neoclássica nosforneceu um elegante modelo de um mundo que tem essa preten-são: o mercado competitivo perfeito.14 Sua característica maisnotável é a seguinte. Preocupando-se com nada mais do que com

seus próprios interesses, os agentes que habitam esse modelo sãolevados, graças a uma estrutura de interação humana voluntária,a gerar e a manter continuamente um estado de coisas que ébenéfico para todos. O resultado da interação é coletivamentevantajoso, ainda que tal resultado (o bem coletivo), como disseAdam Smith, não fizesse parte das intenções de nenhum de seus

participantes. E ninguém teria razões para se queixar desse resul-tado em nome da justiça: cada um é livre para empregar seustalentos e recursos de acordo com suas próprias preferências e érecompensado exatamente na medida de sua contribuição à ofer-ta de bens e serviços que outros participantes da interação valori-zam e que, por isso, estão dispostos a ceder parte de seus recursos

14 Aqui a referência é à teoria do equilíbrio geral desenvolvida nos anos50 por Arrow e Debreu. Ver Stiglitz, 1994, cap.3 e 4, para uma discussãocrítica acessível do modelo de Arrow e Debreu

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para adquiri-los. Supõe-se que, nessa interação, o princípio acada um segundo sua contribuição, funcione à perfeição. O es-forço produtivo de cada um é recompensado exatamente na me-dida de sua contribuição marginal à oferta global de bens e ser-viços. Sustentar que essa equação entre contribuição produtiva ebenefício tem validade nas condições do mercado perfeito é in-dispensável para mostrar que, em tais circunstâncias, o resultadoda interação entre os participantes satisfaz a critérios de imparcia-lidade e de eqüidade, isso sem que seja preciso supor que eles

ajam com base em normas de imparcialidade e eqüidade.Gauthier quer nos fazer crer que, se uma estrutura de interação

semelhante ao mercado perfeito pudesse existir, ela prescindiriada moralidade. A primeira concepção central de nossa teoria,diz ele, é a de uma zona moralmente livre, um contexto no qualas restrições da moralidade não teriam lugar. Essa zona livre se

mostra ser aquele hábitat que é familiar aos economistas, o mer-cado perfeitamente competitivo.15 É difícil entender o queGauthier quer dizer com uma zona moralmente livre, uma vezque sua própria teoria considera que as transações de mercado pressupõem, como veremos adiante, que os participantes dessastransações aceitem restringir sua conduta pela estrutura de direi-

tos pessoais e de propriedade determinados pela cláusula lockeanaà apropriação justa. Nenhuma transação de mercado pode terinício sem que esses direitos sejam reconhecidos. Deixemos, po-rém, passar esse ponto como um excesso retórico.

O mercado perfeito, observa Gauthier, é o avesso exato doDilema do Prisioneiro.16 O Dilema do Prisioneiro formaliza uma

situação que só pode ser considerada uma modalidade de interaçãohumana em um sentido muito limitado. Para exemplificar, supo-nhamos que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, procuran-do atenuar a deterioração de um recurso de uso comum (o ar querespiramos), faça um apelo para que todos os proprietários decarros, em um sistema de rodízio, deixem seu carro na garagem

em um dia determinado da semana. Suponhamos ainda que não

15 Gauthier, 1986, p.13.16 Ibidem, 1986, p.83.

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se imponham sanções de espécie alguma (legais ou morais) paraos que desobedecerem ao apelo. Minha melhor estratégia (isto é,aquela que é mais apropriada à maximização de meu próprio be-nefício), o que quer que os outros façam, será sempre não aderirao rodízio. Se os outros não aderirem (ou se um grande númerodeles não o fizer), é mais racional que eu também não o faça. Secoopero unilateralmente, assumo um encargo sem ter qualquerbenefício como contrapartida (nesse caso, escolho uma estratégiaque me propicia uma utilidade inferior àquela que eu teria noponto de não-cooperação universal, o que é claramente irracio-nal). Se os outros aderirem (ou se pelo menos um grande númerode pessoas o fizer), continua sendo mais racional para mim nãoaderir. Ademais de respirar um ar de melhor qualidade, possofazer isso sem assumir o ônus de ter de utilizar um transportecoletivo desconfortável e superlotado (sem falar no benefício ex-tra de guiar meu carro por ruas menos congestionadas). Se todosforem racionais como eu, ninguém participará do rodízio, e, con-seqüentemente, o ar continuará ruim para todos.17 Cada jogadortem um incentivo forte para jogar sua estratégia dominante, inde-pendentemente de quais sejam as escolhas dos outros. O resulta-do dessa estrutura de interação tem duas características: (1) é umequilíbrio de Nash produzido por estratégias dominantes (cadajogador tem uma estratégia que domina todas as demais e ne-nhum jogador tem um incentivo para abandonar sua estratégiadominante);18 e (2) é subótimo, tendo em vista que há um outroresultado que assegura a todos os jogadores uma utilidade maior

17 Aqui não vem ao caso discutir a eficácia do rodízio para melhorar o ar. Sesubstituíssemos o bem público a ser provido por melhorar o trânsito,a estrutura interativa descrita seria idêntica.

18 Estou me baseando nas definições de Morrow (1994, p.73-81) de estra-tégia dominante, equilíbrio de Nash e equilíbrio de Nash produzidopor estratégias dominantes. A conduta cooperativa, no contexto do

Dilema do Prisioneiro, é uma estratégia fortemente dominada, isto é,ela sempre leva a resultados inferiores, para o jogador que a escolhe, doque a conduta não-cooperativa. Por isso na análise desse tipo de jogo, ocritério de escolha racional consiste simplesmente na proibição da esco-lha de estratégias fortemente dominadas.

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do aquela que cada um deles obtém nas condições de não-coope-ração universal do Dilema do Prisioneiro.19

Note-se que a otimalidade paretiana pode ser consideradaum critério de racionalidade conjunta, mas isso não deve ser en-tendido como a realização de algum bem ou interesse coletivo. Ateoria da escolha racional não reconhece a existência de valorescoletivos que, por si mesmos, tenham força suficiente para seimpor às escolhas individuais. A suposição de que o resultadoPareto-superior (cooperação, cooperação) é mais racional simples-mente por ser aquele que maximiza a realização do bem comumseria vista, pelos teóricos de jogos, como uma falácia rous-seauniana. Um resultado A de uma determinada interação éPareto-superior a um resultado B se A permite a cada um dosparticipantes maximizar a realização de seus próprios interesses(ou, pelo menos, se isso é verdade para pelo menos um dos parti-cipantes sem que a situação dos demais se altere para pior). Oproblema, na situação do Dilema do Prisioneiro, está em que oresultado Pareto-superior (cooperação, cooperação) simplesmen-te não faz parte do conjunto de alternativas possíveis (esse resul-tado não é um equilíbrio de Nash). Não há como as escolhasindividuais possam ser coordenadas em torno da estratégia con-junta mutuamente benéfica. Só é possível evitar o problema sus-tentando-se que fazer o que a Vontade Geral exige constitui amotivação mais forte para a conduta de escolha dos indivíduos,impondo-se sempre, pelo menos sempre em que houver conflitoentre o bem comum e o interesse individual, à motivação que

19 Sen (1992, p.136) denomina otimalidade paretiana forte o critério segundoo qual um resultado é superior a outro se o primeiro permite elevar autilidade de pelo menos um indivíduo sem reduzir a utilidade de nenhumoutro. Morrow (1994, p.95) formaliza assim essa versão da otimalidade:um resultado x é Pareto-superiora um resultado y se para todos os jogadores

i, ui(x)≥ui(y) e para um jogador j, uj(x) > uj(y). A interpretação da otimalidadeparetiana que estou utilizando estabelece que um resultado x é superior aum resultado y se x propicia uma utilidade maior a todos os indivíduos. Naformulação de Morrow: o resultado x é estritamente superior ao resultado

 y se para todos os jogadores, ui(x) > ui(y).

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cada um tem para fazer o que é melhor para si próprio.20 Para ateoria da escolha racional, em contraste, trata-se de saber como autilidade conjunta pode ser maximizada por agentes racionaisque só se empenham em fazer o que é melhor para si própriosindividualmente. Nenhuma força motivacional própria é atribuí-da à utilidade conjunta, isto é, ao bem comum.

O mercado perfeito é a antítese do Dilema do Prisioneiroporque assevera que, sob certas condições (bastante restritivas),e apesar de as decisões dos agentes serem como no Dilema doPrisioneiro independentes, um equilíbrio ótimo será continua-mente gerado e preservado. Sob o modelo neoclássico de mer-cado perfeito, cada um emprega a melhor resposta de que dis-põe às escolhas dos demais (por isso o resultado do mercadoperfeito é um equilíbrio), considerando-se uma dada distribui-ção de preferências, de talentos e capacidades e de fatores deprodução entre os indivíduos. Cada indivíduo só visa seus pró-prios ganhos de utilidade, buscando a relação custo-benefíciomais favorável entre seu esforço produtivo (o que cada um acres-centa à produção de bens e serviços) e seu consumo dos bens eserviços produzidos por outros; e o resultado produzido poressa interação é Pareto-ótimo porque propicia ganhos de utili-dade iguais para todos.

Vários problemas poderiam ser apontados já nesse ponto daexposição do argumento. Dois deles não são reconhecidos pelateoria de Gauthier, ao passo que um terceiro é crucial para asproposições específicas que Gauthier quer sustentar. Comentoos dois primeiros brevemente. Um deles diz respeito àquilo queGauthier toma sem críticas dos economistas neoclássicos. Trata-se da suposição de que o mercado competitivo é um mecanismoque distribui o excedente social de acordo com a contribuição

20 Não se trata meramente de um problema de interpretação do pensamento

de Rousseau. O individualismo metodológico rejeita a suposição moti-vacional do contratualismo rousseauniano, isto é, a suposição de que rea-lizar o que é desejável de um ponto de vista coletivo possa constituir umamotivação suficiente para a conduta individual para cada um se dispor afazer sua parte no empreendimento coletivo.

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que cada um fez para gerá-lo. É duvidoso que se possa entenderessa suposição de alguma outra forma, como diz Barry, que nãono sentido tautológico de que o mercado dá alguma coisa às pes-soas que, se assim o desejarmos, podemos denominá-la a contri-buição que cada um faz.21 Mas concedamos que um mercadoperfeito possa fazer essa mágica de distribuir as recompensas deforma exatamente proporcional às contribuições de cada um paragerar o produto social. Podemos concordar com Gauthier quenessas condições ninguém teria razões de justiça para se queixardo quinhão que lhe coube? Acredito que não. Mesmo um merca-do perfeito ainda deixaria fora da distribuição de recompensassociais as pessoas que não têm capacidade produtiva ou têm umacapacidade produtiva muito baixa.22 Seriam elas deixadas comaquilo que obteriam com seus próprios esforços, ou seja nada,caso nenhum esquema de cooperação com outros fosse criado?Esse ponto se presta para esclarecer quão peculiar é uma concep-ção que restringe o escopo da justiça à distribuição eqüitativa doexcedente gerado pela cooperação. Os que não dispõem de dota-ções comerciáveis os que estão em situação mais vulnerável estão fora da proteção oferecida pela moralidade!

Mas retomemos o encadeamento da argumentação. Se nin-guém tem queixas razoáveis a fazer à distribuição operada porum mercado perfeitamente competitivo, então a justiça só entraem cena quando essa distribuição sofre distorções. E é esse oproblema que Gauthier está ansioso por reconhecer. O círculovirtuoso entre equilíbrio e otimização só se estabelece sob certascondições que não se aplicam aos mercados realmente existen-tes. Menciono-as apenas para poder dar seqüência à nossa dis-cussão. No modelo do mercado perfeito, há informação perfeitae sobretudo não há desigualdade de informação entre os parti-

21 Barry, 1989, p.253. Ver também a nota 25.

22 Como observou Leda Paulani, comentando essa passagem do texto, entreas condições restritivas do modelo de Arrow e Debreu está a suposiçãode uma distribuição dada de recursos. As observações de Leda Paulanime ajudaram a eliminar (assim espero) imprecisões nas referências à Teoriado Equilíbrio Geral.

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cipantes;23 todos os bens são de consumo privado (não há bensde consumo coletivo, tais como as ruas e praças públicas e a ma-nutenção da ordem pública, por isso não há também o proble-ma de saber quem irá contribuir para provê-los); todos os recur-sos e fatores de produção são de propriedade privada (não hárecursos de uso ou de propriedade comum, tais como os ocea-nos e a atmosfera, as florestas tropicais ou, em uma outra esca-la, todo e qualquer sistema de recursos que dá sustentação à ati-vidade econômica de um determinado grupo, por isso não hátambém o problema de saber quem assumirá o ônus de fazer oque é preciso para evitar que sejam degradados). Em resumo,nenhuma transação impõe custos para quem dela não participanem se beneficia (as externalidades negativas, tais como noclássico exemplo da indústria poluente que não embute no pre-ço de seus produtos o custo de equipamentos antipoluição, trans-ferindo o custo do combate à poluição à coletividade); e nenhu-ma transação gera benefícios para quem dela não toma parte (asexternalidades positivas, tais como as que são geradas, por exem-plo, por um sistema público de educação que, ao elevar a qualifi-cação dos trabalhadores, traz benefícios às empresas privadas quertenham elas contribuído para a provisão desse benefício ou não).24

23 A eficiência com que os preços transmitem informações dos produtorespara os consumidores e vice-versa depende, no modelo de Arrow-Debreu, deuma condição informacional muito forte. Toda a informação necessária paraum determinado produtor se resumiria a saber os preços de seus inputs e ospreços de seus produtos. Pode-se formular essa condição afirmando-se que

no mercado perfeito não há custos de transação, que, em mercados reais,decorrem sobretudo da assimetria de informação entre os participantes(North, 1992). Obter informação é algo custoso e as empresas tiram partidodisso para obter certo poder de mercado. Um exemplo simples é o seguinte:quando uma empresa eleva seus preços, representa um ônus para os seusclientes descobrir se os competidores fizeram o mesmo ou não.

24 Joseph Stiglitz vem se empenhando em demonstrar que as imperfeições do

mercado são muito mais disseminadas e, por assim dizer, mais capilares,do que as imperfeições facilmente identificáveis e, em princípio, passí-veis de serem enfrentadas por meio de políticas governamentais definidas que antes eram associadas a bens públicos e externalidades de poluição.(1994, p.27-44).

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Nenhuma dessas suposições é realista para os mercados reais.Nestes, há assimetria de informação, economias de escala,25 benspúblicos e recursos de uso ou de propriedade comum. E o em-penho na maximização da utilidade individual, nessas condiçõesmais realistas, gera dois tipos de condutas que envolvem tirarproveito do esforço alheio: a conduta do carona que se bene-ficia de um bem público sem ter contribuído para provê-lo por exemplo, o trabalhador que faz corpo mole, deixando paraseus companheiros de equipe o encargo de alcançar as metas de

produtividade estabelecidas pela empresa; e a do parasita, quepassa para outros uma parte dos custos de benefícios que sóele próprio usufrui digamos, a conduta de tirar proveito deum recurso de uso ou propriedade comum sem se dispor a con-tribuir para sua conservação (e, em alguns casos, para sua pro-visão) permanente. Podemos considerar ambas as condutas como

manifestações distintas de um mesmo problema de exter-nalidades: nos dois casos, é externo ao cálculo da decisão a sertomada pelo agente individual o fato de que essa decisão gerebenefícios ou custos para outros. E em um e outro caso distorce-se a equação entre benefício e contribuição que, como vimos, éo que garante a imparcialidade distributiva nas condições do

mercado perfeito.

25 Na presença de ganhos crescentes ou decrescentes de escala, como observaElster, a máxima a cada um segundo sua contribuição pode fazer sentidona margem, para determinar a remuneração de um trabalhador individual

de acordo com sua produtividade marginal, mas não faz sentido para adistribuição do produto final como um todo. Não há, nesse caso, ummétodo segundo o qual se possa determinar que porção do produto finalpode ser causalmente atribuída aos vários fatores de produção. Os fatoresde produção interagem de forma não-aditiva para gerar o produto final, demodo que deixa de ser verdade que o produto corresponde exatamente àscontribuições totais dos fatores (entendendo-se isso como as produções

marginais). Com ganhos crescentes de escala, a soma total das contribui-ções excederá o produto final; com ganhos decrescentes, essa soma ficaráaquém do produto (1983, p.39-40). Gauthier nada teria a responder aessa crítica, já que a cada um segundo sua contribuição é o único princí-pio que ele reconhece para a distribuição do excedente cooperativo.

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A mão visível da cooperação

E que restrições morais à conduta individual Gauthier estádisposto a admitir? A idéia geral é a de que deveríamos aceitaraquelas restrições que nos levem para tão perto quanto possíveldo ideal de interação voluntária caracterizada pela otimização epela imparcialidade que o modelo do mercado perfeito procuracaptar.

Como disse na seção anterior, o que há de específico aoempreendimento teórico de Gauthier é a tentativa de mostrarcomo restrições desse tipo podem e têm de ser aceitas por indi-víduos maximizadores de seu benefício individual. Lembremosque este é o ponto crucial da conciliação entre razão (dogma 2)e moralidade. Essa conciliação passa a ser concebível quando se

leva em conta que as pragas do caronismo e do parasitismo amea-çam tornar a racionalidade maximizadora inútil à própriamaximização do benefício individual. Se todos os indivíduos fo-rem racionais, todos acabarão encerrados na armadilha do equi-líbrio subótimo do Dilema do Prisioneiro. Em face da existênciade externalidades, se os indivíduos quiserem aproveitar as opor-

tunidades para obter todos os ganhos de utilidade que estão aseu alcance, eles terão de substituir a mão invisível do merca-do perfeito pela mão visível da cooperação.26 É nesse pontoque o tipo de contratualismo que estamos examinando vai alémda teoria normativa libertariana. As recomendações libertarianasse restringem à defesa de um capitalismo de laissez-faire limitado

unicamente pela estrutura de direitos ou melhor, de interdi-

26 Gauthier, 1986, p.113. Os mercados não são arranjos cooperativos nosentido técnico que Gauthier atribui à idéia de cooperação racional.Nas transações de mercado, os agentes escolhem estratégias individuais

maximamente eficientes, ao passo que só há cooperação quando as partesenvolvidas aceitam restringir suas escolhas individuais por uma estratégiaconjunta escolhida de comum acordo (isto é, um contrato). Neste últimocaso, nos termos de Gauthier, a escolha racional seria maximizadora deotimalidade, não de utilidade.

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ções que está embutida na cláusula lockeana. Gauthier acre-dita que é preciso, ademais disso, formular uma teoria da coo-peração racional e voluntária cujo objeto são as iniqüidadesdistributivas geradas pelas imperfeições do mercado. As restri-ções morais que Gauthier quer justificar têm por objetivo garan-tir a integridade e a autonomia pessoais, os direitos de proprie-dade e a provisão dos bens públicos que o mercado fornece deforma subótima. A moralidade, dessa ótica, pode oferecer uma

contribuição específica para as duas únicas funções que os eco-nomistas conservadores acreditam que o Estado deve desempe-nhar: fazer que externalidades sejam internalizadas e prover benspúblicos.

Gauthier argumenta que são racionalmente justificáveis asrestrições à conduta maximizadora que os participantes de uma

barganha estariam dispostos a reconhecer se quisessem se asse-gurar, para cada um individualmente, dos benefícios que só umesquema cooperativo é capaz de oferecer. Os passos são os se-guintes. Primeiro é preciso estabelecer os termos de um esquemacooperativo que indivíduos racionais considerariam mutuamen-te benéfico. É o acordo em torno desses termos que permite aos

barganhistas se moverem do ponto de não-cooperação universalpara um determinado ponto localizado na fronteira paretiana que abrange o conjunto dos resultados possíveis da barganhaque contém a utilidade máxima agregada que os participantes dabarganha podem gerar cooperando entre si.

Consideremos o exemplo simples de uma quantia de dinhei-

ro, digamos cem reais, que dois indivíduos podem dividir entresi com a condição de que ambos estejam de acordo sobre a for-ma de fazer a partilha. Se não conseguirem chegar a um acordo(porque cada um insiste no resultado que lhe assegura a utilida-de máxima possível), os dois terminarão o jogo com um ganhode utilidade igual a zero. Se conseguirem chegar a um acordo

que divida os cem reais integralmente (e não, digamos, somentenoventa), qualquer que seja a fórmula de divisão adotada, o re-sultado da negociação se localizará na fronteira paretiana (a somados ganhos de utilidade propiciados pelo resultado equivale à

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utilidade agregada máxima que a negociação poderia produzir).O critério de otimização paretiana, entretanto, não selecionanenhuma distribuição específica de quinhões, ele apenas estabe-lece que um resultado que distribui o benefício máximo que podeser gerado pela cooperação é superior a qualquer resultado quedistribua menos do que isso. Ainda falta, portanto, algum méto-do que permita selecionar um resultado específico localizado nafronteira paretiana, e que também seja mutuamente aceitável aosbarganhistas (ou, em outros termos, aquele ponto localizado nafronteira paretiana que também tenha a propriedade de ser umequilíbrio de Nash). Da ótica da teoria da negociação racional,todo o problema se resumiria à questão de saber se há uma for-ma de chegar a esse resultado, isto é, de prever a solução da bar-ganha.

Mas Gauthier quer mais do que isso. Tenhamos sempre emmente que ele não está interessado na teoria dos jogos em simesma e sim na contribuição que ela pode oferecer à justificaçãoracional de princípios morais. Essa justificação só entra em cenano momento em que um acordo sobre os termos de um esquemacooperativo mutuamente vantajoso já foi alcançado. Gauthier quermostrar que a obediência a determinados princípios morais com o princípio que ordena o cumprimento das promessas e acor-dos encabeçando a lista é o que permite a indivíduos racionaisajustarem suas condutas às estratégias que são requeridas de cadaum para dar uma existência continuada ao esquema cooperativoacordado.27 Os princípios morais determinam as mesmas restri-ções à conduta individual maximizadora que são necessárias àpreservação do esquema cooperativo e à preservação, em con-seqüência, das vantagens que esse esquema propicia a cada um.28

27 O exemplo da divisão de cem reais não é adequado para ilustrar essesegundo momento do contrato social de Gauthier porque nele não se

apresenta o problema da obediência continuada aos termos do acordo. Éesse o problema crucial, no entanto, em todos os casos que têm relevânciaprática.

28 Não há por que supor, nem Gauthier supõe isso, que as restrições moraisse apliquem somente ao interesse próprio concebido de forma estreita.

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Obedecê-los, por isso, é do interesse próprio de cada um. Essa éa tese mais forte que Gauthier quer defender.

Estamos, agora, em condições de apontar os problemas maisimportantes que se apresentam ao tipo de empreendimento teó-rico que estamos estudando.

Em primeiro lugar, há o problema da especificação de umaposição inicial de barganha. Isso diz respeito àquilo que os bar-ganhistas trazem para a negociação e não ao que dela retiram. Osegundo problema é o de chegar a uma fórmula de distribuição doexcedente gerado pela cooperação, conforme os barganhistas semovem de seu nível de reserva para um resultado localizado nafronteira paretiana. No exemplo da divisão de cem reais, tudo sepassa como se os barganhistas escolhessem de comum acordo umárbitro encarregado de propor uma fórmula racional de distribui-ção do excedente cooperativo, com a condição de que cada umaceite os resultados, quaisquer que sejam, da aplicação da fórmula.O terceiro problema já foi mencionado. Uma vez que uma solu-ção racional para o problema da barganha é alcançada, ainda res-ta mostrar por que é racional para os participantes aceitar restrin-gir sua conduta de forma a conformá-la ao resultado acordado.

O restante deste capítulo está organizado da seguinte forma.As quatro seções seguintes são dedicadas ao tratamento queGauthier dá a cada um desses problemas, começando pela suaproposta de solução para o problema da negociação racional. Oobjetivo será o de examinar a teoria de Gauthier em seus própriostermos, isto é, verificar até que ponto é bem-sucedida sua tenta-tiva de estabelecer uma conexão profunda entre a moralidade ea racionalidade, o que significa mostrar que há uma concepçãode justiça que é passível de justificação racional, adotando-se ocânone de racionalidade da economia neoclássica. Uma vez que aidéia mais original de Gauthier aparece em seu argumento sobre

Elas se aplicam a quaisquer interesses que os indivíduos se empenhemem realizar no grau máximo possível, quer se trate de preferênciasestritamente pessoais, quer de concepções da boa vida que só podem serpraticadas com o concurso de outros.

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a obediência aos termos da cooperação estabelecidos por um acor-do racional, é no exame desse ponto que me deterei mais.

Concessão relativa minimax

A situação de barganha que aqui estamos considerando é talque, se houver cooperação, todos os participantes ganham com

isso, mas não ganham igualmente. Que distribuição do excedentegerado pela cooperação (excedente cooperativo, para encurtar)deveria ser aceita por barganhistas racionais? Gauthier propõe suaprópria fórmula como uma alternativa àquela que é mais aceitapelo mainstream da teoria dos jogos: a solução de Nash.29 A dis-cussão que vem a seguir sobre as duas soluções deixa muito a desejar

do ponto de vista técnico, mas rogo ao leitor levar em conta quesó a desenvolverei na medida em que isso for necessário para oentendimento do princípio de justiça proposto por Gauthier.30

Uma solução ao problema da negociação só pode seralcançada, na teoria cooperativa dos jogos, fazendo-se abstraçãodos fatores que no mundo real costumam determinar os resul-

tados de barganhas. Idealiza-se uma situação de negociação entredois indivíduos em que os dois indivíduos são altamente racio-nais, em que cada um é capaz de comparar acuradamente seusdesejos por coisas diversas, em que ambos são iguais em capaci-dade de barganhar e em que cada um tem pleno conhecimentodos gostos e das preferências do outro.31 Em particular, parte-se

do suposto de que seja possível atribuir valores numéricos às

29 A solução de Nash (1950) para barganhas representa a contribuiçãopioneira para o desenvolvimento dessa área da teoria dos jogos. Sobre asolução de Nash ver, entre outros, Harsanyi, 1977, p.143-9; Murrow,

1994, p.112-6; Barry, 1989, cap.1; e Gaertner & Klemisch-Ahlert, 1991.30 Não tenho como deixar de admitir que esta seção será considerada áridapara os que não têm familiaridade com a teoria dos jogos e insuficien-temente precisa por aqueles que a utilizam de uma forma mais rigorosa.

31 Nash, 1950, p.155.

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110 ÁLVARO DE VITA

preferências que cada uma das partes tem pelos resultados danegociação.32 Supondo-se que tudo isso seja possível, o problemapode pelo menos ser colocado. Determinam-se o par de utili-dades na posição inicial de barganha a utilidade de cada umcaso nenhum acordo seja alcançado ou o nível de reserva decada jogador e os pares de utilidades dos resultados que sesituam na fronteira paretiana, isto é, que asseguram a ambos osjogadores ganhos de utilidade em relação ao que cada um tinhana posição inicial. Qual desses resultados deve ser selecionado

por barganhistas racionais?

32 Uma forma de fazer isso, bastante popular entre os teóricos de jogos, consis-te em especificar funções cardinais de utilidade de von Neumann-Morgensternpara cada um dos jogadores. As utilidades de von Neumann-Morgenstern sãodefinidas de acordo com a ortodoxia econômica da teoria da preferênciarevelada, já que a idéia é determinar a força das preferências individuais, istoé, as utilidades individuais, da observação do comportamento de escolha.Em situações de escolha sob risco, as utilidades individuais são definidas emtermos de escolhas que têm por objeto loterias hipotéticas. Limito-me a es-clarecer a idéia geral recorrendo a um exemplo. Vamos supor que se quei-ra ordenar de forma cardinal os resultados, para um determinado indiví-duo, de um conjunto cujo pior resultado é 0 reais e cujo melhor resultadoé 100 reais. Atribui-se arbitrariamente utilidade 0 a obter 0 reais e utili-dade 1 a obter 100 reais. Digamos que se queira saber que valor numé-rico exprime a utilidade que o agente atribui a obter 25 reais. Pede-se aele, então, para escolher entre as opções de receber 25 reais com certezae uma loteria na qual ele pode obter 100 reais (1 unidade de utilidade)com uma probabilidade p e 0 reais (0 de utilidade) com uma probalidade1 p. Se  p for suficientemente próximo de 1, muito provavelmente a

loteria será preferida. Conforme p diminui, haverá um ponto em que apessoa será indiferente entre receber os 25 reais com certeza ou arriscar-sena loteria. Digamos que esse ponto seja aquele em que p = 0,5, isto é, aloteria na qual há uma probalidade igual (de 50%) de obter 100 reais ounada. Como a utilidade esperada dessa loteria é 0,5 (que é obtida multipli-cando-se a utilidade do resultado mais desejado pela probabilidade desua ocorrência, 1 x 0,5 = 0,5), chega-se à utilidade 0,5 para obter 25 reais.

Ver Luce & Raiffa, 1957, p.21-2. Introduzindo-se suposições adicionaisde consistência das preferências (de totalidade e de transitividade),torna-se possível afirmar que um indivíduo racional age como se procu-rasse maximizar o valor esperado de sua função de utilidade de vonNeumann-Morgenstern.

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A JUSTIÇA IGUALITÁRIA E SEUS CRÍTICOS 111

Nash propôs que há uma única solução que satisfaz as se-guintes condições:

1 racionalidade conjunta: qualquer possível solução situa-sena fronteira paretiana;

2 simetria: qualquer solução deve ser simétrica em relaçãoaos dois jogadores, isto é, ela deve propiciar ganhos de uti-lidades iguais para ambos os jogadores. Isso porque ne-nhum dos jogadores poderia racionalmente esperar queo outro lhe oferecesse termos de acordo melhores do queaqueles que ele próprio está disposto a oferecer;

3 invariância linear: a solução deve ser invariante com res-peito à unidade segundo a qual as utilidades são medidase com respeito ao ponto zero escolhido para as funções deutilidade de cada jogador. A escolha desses parâmetros,como esclarece Harsanyi, não tem nenhuma influênciasobre o resultado em termos reais.33 Se esses parâmetrosforem alterados para a função de utilidade de um jogador,mas não para o outro, a solução não se alterará;34

4 independência das alternativas irrelevantes. Se o espaço deresultados possíveis for restringido, mantendo-se a soluçãoe ponto de conflito, a solução não deve se alterar.35

33 Harsanyi, 1977, p.145. Os próprios von Neumann e Morgenstern expli-caram essa condição fazendo uma analogia entre a unidade que inventa-ram para medir utilidades, utils, com as unidades utilizadas para medira temperatura. Quaisquer que sejam o ponto zero da escala e a unidadede medida empregada, a temperatura aferida será sempre a mesma (uma

temperatura não se altera por ser medida em graus Celsius ou em grausFahrenheit). Apud Binmore, 1994, p.275.

34 O sentido disso, novamente seguindo Harsanyi, está em excluir compara-ções interpessoais de utilidade entre os jogadores. A função cardinal deutilidade de von Neumann-Morgenstern só permite comparações in-trapessoais de utilidade. Como, para Harsanyi, as comparações interpessoaisde utilidade desempenham um papel importante em julgamentos éticos,

estamos concebendo uma situação de barganha na qual as considera-ções éticas não desempenham nenhum papel essencial (1977, p.145).35 Essa é, conforme esclarece Harsanyi, uma suposição de natureza

institucional. Esse postulado corresponde ao fato institucional de quea barganha, por sua própria natureza, consiste em uma redução gradual

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112 ÁLVARO DE VITA

Nash mostrou que há uma única solução que satisfaz essesquatro postulados: o ponto x da fronteira paretiana que maximizaos ganhos de utilidade dos dois jogadores. Se c (c

1, c

2) é o ponto

de conflito, a solução é dada por aquele ponto x (x1, x2) do espa-ço de resultados possíveis que maximiza [(x1 − c1).(x2 − c2)]. Aestrutura de negociação pressuposta na solução de Nash foi de-pois explicitada por Harsanyi, com base em um modelo de ne-gociação que o economista dinamarquês Frederik Zeuthen de-

senvolveu para explicar as negociações coletivas no mercado detrabalho.36 Harsanyi mostrou que a solução de Nash resulta deum processo de negociação em que a parte que tem mais a per-der, caso a negociação seja interrompida, faz uma pequena con-cessão ao outro lado, e essas ofertas e contra-ofertas prosseguematé que um acordo final seja alcançado.

Para Gauthier, um barganhista racional raciocina da seguin-te forma. Suponhamos que:

(1) a posição inicial de barganha c propicie uma utilidade c1para o jogador 1 e c2 para o jogador 2;

(2) sob as melhores circunstâncias possíveis para si próprio,o jogador 1 obtém uma utilidade x

1

' e o jogador 2 obtémuma utilidade x2';

(3) ambos os jogadores aceitam um resultado  x quecorresponde ao par de utilidades (x1, x2).

A novidade da solução defendida por Gauthier, em relação à

de Nash, é uma decorrência da suposição (2).37 Cada barganhista,de acordo com essa suposição, começa pleiteando o resultadoque lhe seria maximamente favorável. Em uma barganha de duaspessoas, isso corresponde a todo o excedente cooperativo. Evi-

do conjunto de alternativas sob consideração para subconjuntos cada vezmenores do conjunto original (1977, p.146).36 Harsanyi, 1977, p.149-53.37 Na verdade, Gauthier adota a solução que foi formalizada por E. Kalai e

M. Smorodinsky (solução Kalai-Smorodinsky).

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A JUSTIÇA IGUALITÁRIA E SEUS CRÍTICOS 113

dentemente, o resultado (x1',x2') não é um contrato possível.38 Sequerem chegar a um acordo, ambos os jogadores terão de se dis-por a fazer uma concessão. Cada um só se dispõe a fazer a conces-são mínima suficiente para que um acordo seja alcançado. Amagnitude absoluta da concessão do jogador 1 é x1'− x1 (a dife-rença entre a utilidade do resultado que lhe seria maximamentefavorável e aquela do resultado aceito); e a magnitude total de suaconcessão é x1'− c1 (a diferença entre a utilidade do resultadomais favorável e a utilidade do ponto de não-acordo). A magnituderelativa de sua concessão é dada pelo quociente x1'− x1/x1'− c1. Essequociente exprime a proporção do ganho máximo de utilidade queo jogador 1 aceitou ceder para tornar viável um contrato. O mes-mo vale para o jogador 2. A solução da barganha é dada poraquele ponto x (x1,x2) em que a magnitude da concessão relativade um jogador não é maior do que a do outro. Podemos formulá-la da seguinte forma: escolha o ponto x da fronteira paretianano qual a concessão relativa máxima de cada um é minimizada.Essa solução, para Gauthier, oferece o único princípio de justiçadistributiva capaz de ganhar o consentimento unânime de barga-nhistas racionais: um princípio de concessão relativa minimax.39

A idéia é a de que ninguém racionalmente aceitaria participar deum empreendimento cooperativo que lhe desse uma parcela doexcedente cooperativo inferior àquela que a aplicação desse prin-cípio lhe concederia.

38 Cada jogador, no entanto, avalia sua concessão por referência à utilidade

que obteria nesse resultado impossível. Isso implica rejeitar o postuladoda independência das alternativas irrelevantes de Nash e a estrutura denegociação passo a passo proposta por Harsanyi.

39 Minimizar a concessão relativa máxima, como observa Gauthier, é a mesmacoisa que maximizar o benefício relativo que cada um pode ter a expectativade receber sem levar a outra parte a desistir do acordo. Trata-se, portanto,de maximizar o ganho relativo mínimo, idéia essa que pode ser expressa

por um princípio do ganho relativo maximin. Gauthier, 1986, p.154-5.Não é por acaso que a terminologia de Gauthier lembra a de Rawls. Comoveremos adiante, alterando-se as suposições de Gauthier sobre a posiçãoinicial de barganha, seu princípio de concessão relativa minimax seriaequivalente ao princípio de diferença, ou princípio maximin, de Rawls.

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114 ÁLVARO DE VITA

A solução de Nash não é concebida como uma solução éti-ca para o problema da barganha racional.40 O resultado (x1, x2)é simplesmente aquele que seria acordado por dois espécimes dehomo economicus que estivessem barganhando uma forma de divi-dir entre si o produto de sua cooperação. E quanto à soluçãodefendida por Gauthier? Em princípio, ela deveria ser interpre-tada da mesma forma. Mas Gauthier quer dizer algo mais do queisso. Se o excedente cooperativo é distribuído de acordo com oprincípio da concessão relativa minimax, cada participante retirado arranjo cooperativo um benefício que é proporcional a suaprópria contribuição para gerar esse excedente. E, uma vez queesse princípio distribui eqüitativamente41 os ganhos da coope-ração, ele se qualifica como o fundamento de uma constraint im-parcial à conduta individual maximizadora. Voltarei adiante (naseção seguinte à próxima) à forma como Gauthier concebe a rela-ção entre seu princípio de justiça distributiva e princípios moraisestabelecidos.

Colocarei em questão somente um ponto da lógica que levaà solução. Como vimos acima, a solução só se torna possívelporque cada jogador, depois de inicialmente reivindicar o re-sultado que lhe é maximamente favorável, se dispõe a fazer, de

uma só vez, a concessão mínima que é necessária para levar aoutra parte a aceitar um acordo. Gauthier trata essa disposiçãode fazer concessões como uma condição de racionalidade. A jus-tificativa apresentada para isso é muito breve: uma vez que cadapessoa, como maximizadora de utilidade, procura minimizar suaconcessão, então ninguém pode esperar que qualquer outra pes-

soa racional se disponha a fazer uma concessão sem também sedispor a fazer uma concessão similar.42 Essa justificativa é equí-voca. Um jogador não faz concessões porque, sendo racional,está obrigado a fazer suas escolhas pressupondo uma racio-nalidade igual da parte dos outros. Um barganhista racional faz

40 Ver nota 34.41 Desde que se aceite, é claro, a máxima a cada um segundo sua contribui-

ção como um princípio de eqüidade.42 Gauthier, 1986, p.43-4.

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A JUSTIÇA IGUALITÁRIA E SEUS CRÍTICOS 115

ou não concessões de acordo com sua capacidade de insistir noresultado que lhe é mais favorável, levando em conta o riscode levar a negociação ao fracasso e, conseqüentemente, termi-nar com a utilidade do ponto de não-acordo. E essa capacidade,por sua vez, não tem nada a ver com a racionalidade e sim como poder de barganha e com a preferência temporal dosbarganhistas.43 O barganhista que mais desesperadamente ne-cessitar que algum acordo seja alcançado, cederá mais. Isso valetanto para a estrutura de negociação passo a passo de Zeuthen-Harsanyi quanto para a concessão única suposta pela solução deGauthier.

A máxima a cada um segundo o seu poder de barganhanão parece se qualificar como um princípio de justiça. Do pontode vista de uma teoria do contrato social, equilíbrios que mera-mente espelham as posições relativas de barganha são inerente-mente instáveis. Se uma das partes melhora sua posição relativa,ela terá um incentivo para propor termos de acordo que lhe se-jam mais favoráveis. A parte mais forte poderá sempre se valer deum argumento contratualista-hobbesiano para justificar essa al-teração à parte mais fraca: do ponto de vista do seu interesse

próprio, dirá a primeira a esta última, é melhor aceitar aredefinição que estou propondo do que ficar com nada ou ir aoconflito. Sen recorre a um exemplo familiar para comentar asolução de Nash (o mesmo vale para a de Gauthier): em ummercado de trabalho com desemprego, os trabalhadores podemser levados a concordar com salários subumanos e condições ruins

de trabalho, uma vez que na ausência de um contrato eles po-dem passar fome, mas isso não torna essa solução um resultadodesejável em nenhum sentido.44 Esse é só o primeiro dosdesencontros produzidos pela tentativa de casar a teoria da jus-tiça com uma teoria da negociação racional.

Não há nenhuma diferença entre as duas soluções compara-

das no parágrafo anterior que tenha uma real relevância normativa.

43 Weikard, 1994, p.70.44 Sen, 1970, p.121.

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Teremos de inspecionar outros componentes da teoria da mora-lidade por acordo para encontrar seu conteúdo ético.

O status quo inicial

Como disse antes, a definição de uma posição inicial eqüita-tiva não é uma questão problematizada pela teoria dos jogos. Em

um jogo de dois participantes, define-se a posição inicial de bar-ganha simplesmente pelo par de utilidades de von Neumann-Morgenstern associadas ao ponto de não-acordo. Mas a questão érelevante para uma teoria da justiça como a de Gauthier. Como alógica da derivação da solução da barganha só obedece (ou sódeveria obedecer) ao padrão da racionalidade maximizadora, uma

parte considerável do conteúdo ético da teoria de Gauthier recaina definição da posição inicial. Aqui Gauthier aceita, fazendo-avaler também para a cooperação racional, uma observação deDavid Winch sobre o mercado perfeito: o sistema perfeitamen-te competitivo depende da propriedade privada dos fatores deprodução, de modo que a essência do sistema está em que a

justiça distributiva é um atributo dos inputs do sistema, e não deseus outputs.45 Se a distribuição inicial dos fatores de produção éjusta, então os resultados do mercado serão justos desde que omecanismo de mão invisível, sempre que arranjos cooperativosse fizerem necessários para sanar as imperfeições do mercado,seja suplementado pela aplicação do princípio de concessão rela-

tiva minimax.E o que é uma distribuição inicial justa? Não se imagine

nada de muito igualitário. Gauthier especifica a posição inicialrecorrendo à condição lockeana à apropriação justa no estado denatureza, interpretando-a exatamente como Nozick. Já examina-mos essa interpretação no capítulo 2. A posição inicial de barga-

nha (o estado de natureza) é constituída por indivíduos preocu-pados em maximizar seu benefício próprio, mas que consideram

45 Apud Gauthier, 1986, p.94-5.

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A JUSTIÇA IGUALITÁRIA E SEUS CRÍTICOS 117

racional respeitar a cláusula lockeana, isto é, que não se envol-vem, e nem mesmo ameaçam fazê-lo, em atividades coercitivas,espoliativas ou predatórias em atividades, em suma, que pio-ram a situação de outros. O respeito à cláusula lockeana admitea maximização irrestrita do benefício próprio no caso de indiví-duos que vivem e produzem de forma independente uns dosoutros; mas exclui a maximização estratégica do interesse pró-prio, quando isso envolve piorar a situação de outros com osquais se interage. Como observa sarcasticamente Brian Barry,para esses metafísicos do mercado [como Gauthier e Nozick], ointeresse próprio lava mais branco desde que não envolvaconsiderações estratégicas.46

Por que é preciso excluir as condutas coercitivas ou predató-rias da especificação da posição inicial? Admitir que o empregoda coerção possa interferir na definição da posição inicial im-plica admitir que o resultado da barganha seja contaminado poressa coerção (ou predação).47 Não há nenhuma solução para oproblema da negociação racional que altere o equilíbrio da dis-tribuição inicial de recursos de barganha. Conforme argumentaGauthier, ao defender sua proposta de solução, não é racionalpara os barganhistas aceitar qualquer acordo somente porque oresultado é Pareto-superior às utilidades do ponto de não-acor-do. Uma vez que uma posição inicial tenha sido especificada,nenhum barganhista racional aceitará aderir a uma estratégia

46 Barry, 1989, p.68. Ver a seção O princípio das transferências do capítulo

2 para uma discussão mais extensa desse ponto.47 Essa é a razão pela qual Gauthier rejeita a distribuição natural de

Buchanan (1975) como a posição inicial de barganha. No primeiro está-gio do modelo de Buchanan, a distribuição natural de dotações é umequilíbrio de Nash que surge das estratégias ótimas de produção e depredação/defesa de cada um dos indivíduos. Uma vez que não há nenhu-ma restrição à conduta individual maximizadora, a distribuição natural é

baseada na coerção. No segundo estágio do modelo (o contratualista),quando os indivíduos negociam as melhorias paretianas em relação àsutilidades propiciadas pela distribuição natural, as vantagens e desvanta-gens resultantes da atividades predatórias e dos esforços de defesa sãopreservadas.

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cooperativa que não lhe proporcione ganhos de utilidade pro-porcionais àquilo que ele trouxe para a mesa de negociação. Asvantagens posicionais no status quo inicial, incluindo a capacidadede infligir danos à outra parte, se transmitirão aos resultados danegociação.

Consideremos um exemplo proposto por Gauthier. Você eeu vivemos como pescadores às margens de um rio.48 Vivendorio acima, você despeja seu esgoto nas águas do rio, provocandouma poluição que diminui a disponibilidade de peixes para mim.Para avaliar essa ação poluidora, há duas situações distintas aserem consideradas. Na primeira, você e eu não mantemos quais-quer vínculos de mercado ou cooperativos. Somos dois RobinsonsCrusoés vivendo independentemente um do outro. Pelo critériopeculiar de Gauthier para determinar quando uma pessoa pode

atribuir sua situação mais desfavorável à conduta de outra (oude outras), eu nada tenho a pleitear de você. Eu posso me quei-xar que, despejando o esgoto no rio, você não dá nenhum pesoaos interesses dos que vivem rio abaixo; mas não posso dizerque você faça isso movido por considerações estratégicas, istoé, que você esteja poluindo o rio com o propósito de melhorar a

sua própria situação à minha custa. Não haveria, portanto, vio-lação à cláusula lockeana. A situação muda de figura quandovocê e eu nos propomos a estabelecer relações de mercado ou aviver sob instituições comuns. Ainda nos encontramos no esta-do de natureza, mas já estamos de olho nos benefícios que cadaum terá se conseguirmos chegar a um acordo sobre como atingir

a fronteira paretiana. Nesse caso, argumenta Gauthier, a cláu-sula lockeana impõe uma redefinição do status quo a partir doqual entabularemos relações de troca ou negociaremos a par-tilha do excedente gerado por nossa cooperação. Se já não so-mos mais dois Crusoés vivendo cada qual em seu próprio mun-do, se vamos interagir, então posso considerar sua conduta

poluidora como uma estratégia de que você se vale para melho-

48 O exemplo é de Gauthier, 1986, p.210-3.

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A JUSTIÇA IGUALITÁRIA E SEUS CRÍTICOS 119

rar sua situação piorando a minha. Antes que qualquer interação de mercado ou de cooperação racional possa ter início, vocêterá de internalizar os custos que jogou para mim. Sem essacorreção, você estaria em condições de se aproveitar de suaatividade predatória para enviesar a posição inicial de acordo emseu favor.

Mas recordemos que a cláusula lockeana não tem somente opropósito de excluir a coerção e as atividades predatórias da defi-

nição do ponto de não-cooperação. Seguindo Locke e Nozick,Gauthier recorre à cláusula para definir direitos de propriedadeque precedem as transações de mercado e o contrato social. Oreconhecimento à cláusula garantiria um ponto de partida eqüi-tativo, seja para as trocas de mercado, seja para arranjos coopera-tivos necessários para prover os bens públicos que o mercado

fornece de forma subótima. No exemplo acima, você pode terobtido mais possessões do que eu, sem que para isso tenha sidonecessário que você se envolvesse em esforços para piorar a mi-nha situação. Nesse caso, se vamos acordar um arranjo coopera-tivo que traga benefícios a ambos, cada qual comparecerá à mesade negociação com direitos plenos de propriedade sobre as pró-

prias capacidades e sobre os objetos externos que obteve no esta-do de natureza.

Em toda teoria contratualista, a escolha da posição inicial(ou a caracterização do estado de natureza) tem efeitos dramati-camente importantes sobre os termos do acordo que será alcan-çado. Na teoria de Gauthier, tal como na teoria de Nozick, os

direitos de propriedade fundamentados na cláusula lockeana fi-cam fora do alcance da justiça distributiva. E, tal como para Lockee Nozick, vastas desigualdades de propriedade podem serjustificadas sem que ninguém tenha razões de justiça para sequeixar delas. Gauthier recorre a um exemplo que explicita es-sas implicações do status quo inicial com a máxima crueza possí-

vel: objetar-se-á que cláusula não diz nada sobre igualizar. Ouentão se objetará que a cláusula não diz nada sobre a satisfaçãode necessidades. O homem rico tem o direito de se banquetearcom caviar e champanhe, enquanto à sua porta a mulher miserá-

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120 ÁLVARO DE VITA

vel morre de fome. E ela não tem direito de pegar nem mesmoas migalhas que caem da mesa do homem rico, se isso o privardo prazer de usá-las para alimentar seus pássaros.49

Gauthier se vale da cláusula para criticar, em particular, ostatus quo a partir do qual Rawls deriva seus princípios de justiça,a saber, uma posição inicial de igualdade.50 Os contratantes deRawls não levam em conta, no momento de deliberar sobre prin-cípios de justiça, quaisquer vantagens, nem mesmo aquelas quedecorrem do mero exercício dos próprios talentos naturais, obti-das antes de haver qualquer acordo. A suposição de Rawls parece-me muito mais plausível para uma perspectiva contratualista. Eladispensa recorrer a um critério fictício (a cláusula) para distinguirentre o que um indivíduo conseguiria por seus próprios meios,se vivesse em um estado de natureza, e o que ele obtém graças àinteração com outros isto é, aquilo que ele deve à existência dasociedade. Esse tipo de individualismo não faz nenhum sentidopara um contratualismo como o de Rawls.51 Examinarei adiantea posição inicial adotada por Rawls. Por enquanto, vejamos querazões há para rejeitar a posição inicial não-igualitária adotadapor Gauthier.

Do ponto de vista de uma teoria da negociação racional, oproblema espinhoso de Gauthier é o seguinte: pode um con-tratualismo hobbesiano admitir um estado de natureza lockeanocomo seu status quo pré-acordo? Gauthier rejeita, evidentemen-te, a fundamentação última de natureza teísta concebida por

49 Gauthier, 1986, p.218.50 Ibidem, p.219-21.51 O individualismo ético que a teoria da justiça de Rawls esforça-se por

captar tem muito mais afinidade com o ponto de vista que Gabriel Cohnargumentou ser o de Durkheim: não é o indivíduo como partícula isoladaque está em jogo, mas sim o valor que a sociedade lhe confere (e que ele,sozinho, não saberia atribuir-se). É o individualismo, algo só possível

socialmente: essa espécie de paradoxo, pelo qual a dignidade inalienávelde cada qual só ganha substância na sua inserção num conjunto maior,supra-individual (1997, p.10). Nozick e Gauthier, em contraste, tentamencontrar um fundamento para a dignidade e para a separatenessindividuais que independe de qualquer forma de organização social.

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Locke para a introdução de direitos no estado de natureza.52

Também não serve supor, como Nozick, que os direitos de pro-priedade e a cláusula lockeana tenham um status moral indepen-dente. Gauthier se propõe a dar uma interpretação para o res-peito à cláusula lockeana que poderia ser denominada quase-contratualista. O quase fica por conta de que os direitosderivados da cláusula não resultam de um acordo, mas simpropiciam o ponto de partida para o acordo. Eles são aquilo quecada pessoa traz para a mesa de negociação, e não o que cadauma retira dela.53

A questão crucial é: por que indivíduos racionais aceitariamrestringir sua conduta pelo respeito à cláusula lockeana e aosdireitos que dela derivam? Gauthier se vale do mesmo argumen-to que emprega para justificar por que é racional a adesão contí-nua à estratégia cooperativa que resulta de uma negociação ra-cional. Em ambos os casos no do respeito a direitos prévios aqualquer barganha e no da adesão à estratégia cooperativa queresulta de uma barganha racional a noção de maximizaçãocontida entra em cena.54 No caso da posição inicial, os indiví-duos encontram-se no estado de natureza, mas já se dão contados benefícios que o mercado ou a cooperação lhes trariam. É

somente a perspectiva do benefício mútuo que dá existência aosdireitos, como constrições à conduta de cada pessoa.55 Uma vezque todos os (potenciais) barganhistas são racionais, cada umsabe que, se não restringir sua conduta maximizadora pelo res-peito à cláusula lockeana, a participação em arranjos cooperati-vos não será racional para os demais. No exemplo anterior, não

52 Para Locke, Deus ofereceu a Terra como um recurso de uso comum paratodos os homens. E Deus inscreveu no coração dos homens a lei naturalque exige o respeito à apropriação que satisfaz a cláusula, tanto por partedos apropriadores quando por parte daqueles que deixam de ter qualquerdireito sobre aquilo que foi apropriado de forma legítima.

53 Gauthier, 1986, p.222.54 A noção de maximização contida será discutida em detalhe mais adiante. Éclaro que se o argumento em favor da maximização contida não funcionar,também o argumento em favor da cláusula lockeana fica debilitado.

55 Ibidem, p.222.

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é racional, para mim, levar em conta somente as melhoriasparetianas que seriam produzidas por interações de mercado ecooperativas, se os ganhos de cada um, quando passamos para afronteira paretiana, são estimados por referência a uma situaçãoinicial na qual você desloca uma parte dos seus custos para mim.

Gauthier quer mostrar que é possível interpretar o respeito àcláusula lockeana uma restrição moral de uma forma prospectiva. É assim que ele espera tornar um enfoque con-tratualista compatível com o reconhecimento de direitos pré-contratuais. Como os potenciais barganhistas estão de olho nosganhos de utilidade que somente os arranjos de mercado e co-operativos tornarão possíveis, eles se dispõem a reconhecer essesdireitos prévios como pré-condições sem as quais alguns não con-siderarão racional participar nem de mercados nem de empreen-dimentos cooperativos. O respeito a direitos lockeanos de pro-priedade parece se justificar como uma forma de interesse pró-prio sofisticado. Esse é um dos argumentos da teoria da mo-ralidade por acordo que os críticos vêem com ceticismo.56 Asuspeita é a de que Gauthier não conseguiu evitar recorrer a umpressuposto de natureza ética.

Examinemos o argumento de Gauthier sobre a racionalidade

do respeito à cláusula lockeana. A estratégia de Gauthier consisteem mostrar que, se não é racional para barganhistas racionaisfazer ameaças, então podemos ignorá-las na definição da posiçãoinicial. Na teoria de Zeuthen-Nash-Harsanyi da negociação racio-nal, o ponto de não-acordo é identificado ao ponto de amea-ça.57 Esse é o ponto no qual os barganhistas iriam parar se cada

um empregasse sua estratégia de ameaça maximamente efetiva.Gauthier objeta a essa identificação que o ponto de ameaça nãoguarda nenhuma relação específica com o resultado não-coopera-

56 Ver, por exemplo, Barry, 1989, p.56-60; Weikar, 1994, p.67 e Binmore,

1994, p.84-5.57 Em seu modelo de barganha, Frederik Zeuthen supôs, e essa suposição foigeneralizada por Nash e Harsanyi para todas as situações de barganha, queo ponto de não-acordo corresponde à eclosão do conflito. Harsanyi, 1977,p.149.

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tivo [isto é, com a utilidade de cada jogador no caso de fracasso danegociação].58 Isso porque o cumprimento de ameaças é custoso:um barganhista agiria irracionalmente caso se dispusesse a infli-gir gratuitamente uma perda a outro (ou outros), já que ele sópoderia fazê-lo ao custo de perdas de utilidade para si próprio. Ocumprimento de uma ameaça levaria os jogadores a um pontoPareto-inferior ao ponto de inexistência de acordo. E se cumprirameaças é irracional, fazê-las também o é. Nas barganhas co-muns as pessoas fazem ameaças, diz Gauthier, mas entre pes-soas plenamente racionais as ameaças são inúteis; ninguém acre-ditará em uma pessoa que promete agir de forma não-maxi-mizadora de utilidade se os outros não cederem a sua ameaça.59

Mas será mesmo sempre gratuita, do ponto de vista damaximização da utilidade do ameaçante, a estratégia de fazer amea-ças e de eventualmente cumpri-las em um contexto de nego-ciação racional? Gauthier conclui um pouco rápido demais peladesutilidade da conduta ameaçadora. O problema está em nãodistinguir claramente o recurso à coerção da ameaça de recorrer àcoerção.60 De fato, o cumprimento de ameaças (o recurso à coer-ção) impõe perdas de utilidade ao ameaçante, mas essa condutasó é irracional se as partes envolvidas não tiverem a expectativa

de voltar a negociar em outros momentos. Se houver a expectati-va de novas barganhas envolvendo as mesmas partes no futuro,ou de que outros possíveis alvos de ameaças venham a saber oque se passa, então fazer e cumprir ameaças pode ser racional doponto de vista de um cálculo de interesse próprio prudencial. Seuma das partes adquire a reputação de não hesitar em recorrer à

coerção, mesmo quando isso lhe impõe perdas de curto prazo, nofuturo ela poderá desfrutar das vantagens de fazer ameaças semter de incorrer no custo de cumpri-las. Nesse caso, como diz BrianBarry, cumprir uma ameaça é, por assim dizer, um investimentona maior eficácia das ameaças futuras.61

58 Gauthier, 1986, p.200.59 Ibidem, p.155-6.60 Weikard, 1994, p.67.61 Barry, 1989, p.59.

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Não estamos discutindo se é apropriado, para uma teoria dajustiça, definir a posição inicial segundo a vantagem de ameaçade uma das partes segundo o dano maior que uma das partespode causar à outra na hipótese de fracasso da negociação; o queestá em questão é se Gauthier pode eliminar a vantagem de amea-ça (de uma das partes) da posição inicial, sem que isso compro-meta seu projeto de derivar a moralidade das premissas não-mo-rais da escolha racional. Estou sugerindo que não. Um barganhistaracional não aceitaria facilmente a eliminação de ameaças que lhepoderiam ser úteis em barganhas futuras. O argumento deGauthier em favor da racionalidade de restringir a própria con-duta maximizadora pela cláusula só funciona se a dimensão tem-poral for ignorada. Esse mesmo problema a suposição de que ojogo é jogado uma única vez também compromete, como vere-mos, o argumento em favor da racionalidade de se dispor a res-tringir a própria conduta pelo princípio da concessão relativaminimax.

E que tal se empregássemos a solução de Gauthier para abarganha racional partindo, não de um mundo lockeano de di-reitos de propriedade garantidos, e sim do egoísmo universal?Allan Gibbard faz esse exercício, chegando a um resultado sur-preendente.62 Para Hobbes, no estado de natureza os homenspodem ser considerados iguais em sua capacidade de coagir e decausar danos aos demais. A que acordo chegariam com base nasolução de Gauthier? Lembremos duas noções que fazem parteda lógica dessa solução. Uma delas é a de que o resultado dabarganha é aquele que minimiza a concessão relativa máxima dosparticipantes. Isso é o mesmo que elevar ao máximo o ganhopossível daquele que obtém menos na negociação.63 A outra idéiaé a de cada barganhista faz uma exigência inicial que correspondeao ganho máximo de utilidade que pode obter do arranjo coope-rativo. Em um estado de natureza hobbesiano, esse ganho máxi-mo não guarda nenhuma relação com a capacidade produtiva de

62 Gibbard, 1991, p.270-1.63 Ver nota 38.

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cada um: se todos trabalhassem para você, por que você mesmoiria trabalhar?.64 Cada um pode começar pleiteando todo o ex-cedente cooperativo, independentemente de quanto contribuiupara gerá-lo. Como Gibbard argumenta, se o ponto de desacor-do de Gauthier fosse de egoísmo geral e não de mágica lockeana,a condição de todos no ponto de desacordo seria aproximada-mente a mesma. E o ganho máximo de todos também seria apro-ximadamente o mesmo. Maximizar o ganho de quem recebe me-nos [na negociação] equivale a melhorar tanto quanto possível asituação dos que estão na posição inferior que é a exigência doprincípio de diferença de Rawls. Faça-se uma pequena alteraçãono ponto de desacordo de Gauthier, e de sua teoria é Rawls quemeclode.65

Em outros termos, a concessão relativa minimax de Gauthiere o maximin de Rawls são equivalentes no caso especial em queos barganhistas têm aproximadamente o mesmo poder de infligirdanos uns aos outros. As implicações não-igualitárias do princí-pio de justiça de Gauthier decorrem de uma escolha arbitráriado ponto de inexistência de acordo. Há ainda uma outra hipoté-tica posição inicial a ser considerada, além das três que forammencionadas acima (a de Locke-Nozick-Gauthier, a de Hobbes ea de Rawls). Barganhistas racionais poderiam aceitar uma posi-ção inicial não-coercitiva, sem que isso os obrigasse a reconhe-cer, nessa posição, direitos de propriedades fundamentados nacláusula lockeana. Peter Danielson concebe uma posição inicialdistinta da de Gauthier, na qual somente os direitos pessoais se-riam reconhecidos como precondições para o acordo, ficando adefinição dos direitos de propriedade para o contrato social.66 Acláusula só não piora a situação de nenhum dos barganhistas,argumenta Danielson, se os efeitos da apropriação são localizadosna situação pré-acordo. Isso é admissível para a justificação detipo intuicionista de Nozick, mas não para a justificação pros-

64 Ibidem, p.271.65 Ibidem.66 Danielson, 1991, p.99-111.

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pectiva que Gauthier desenvolve para as precondições do con-trato. A moralidade, diz Danielson, está mais sujeita a acordo e a desacordo do que Gauthier admite. O métodocontratualista deixa mais para a convenção do que se desejaria.67

Se Gauthier supõe que seus barganhistas só admitiriam nego-ciar a partir de um status quo inicial não-coercitivo, e no qualdireitos de propriedade fundamentados na cláusula lockeana sãoreconhecidos, é porque sua barganha racional procede a partir dealgum tipo (não-especificado) de contrato social prévio.

Uma teoria do contrato social?

Coloquemos de lado o problema da eqüidade da posição ini-cial para prosseguir em nosso estudo. Antes de passar ao tópicocentral do cumprimento dos termos do contrato, há ainda umproblema a ser explicitado.

A moralidade por acordo é uma teoria da justiça e não,especificamente, uma teoria da negociação racional. Da ótica da

justiça política, que sentido podemos dar à idéia de que o prin-cípio de concessão relativa minimax não somente oferece umabase para a barganha racional mas também serve como funda-mento de uma constrição imparcial à conduta de cada pessoa?68

Gauthier evidencia uma lógica em favor de seu princípio minimaxque se aplica a jogos de dois participantes. Mas o que estamos

procurando é uma forma de justificar princípios morais dos quaisderivem restrições justas à conduta individual. Por que devería-mos aceitar que o que é válido para um contrato hipotético en-tre dois participantes também o é para o contrato, também hi-potético, que tem por objeto especificar os termos mais aceitá-veis para a convivência coletiva? Qual é o significado da solução

de Gauthier para uma teoria do contrato social? Confesso que

67 Ibidem, p.110.68 Gauthier, 1986, p.150.

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não consigo atinar muito bem que resposta deveria ser dada aessa questão (admito que eu possa estar deixando passar algumacoisa). Vejamos o que Gauthier diz sobre isso:

Estamos supondo que certos princípios morais podem serentendidos como representando estratégias conjuntas prescritas acada pessoa como parte dos arranjos cooperativos permanentesque constituem a sociedade. Esses princípios exigem que cada pessoase abstenha de ir em busca de sua utilidade máxima, de forma a

que resultados mutuamente benéficos e razoavelmente eqüitativospossam se produzir. Os princípios morais efetivos em geral nãosão aqueles aos quais teríamos de ter dado nosso assentimento emuma barganha plenamente racional, mas é razoável aderir a eles namedida em que ofereçam uma aproximação razoável a princípiosideais. Podemos defender princípios morais efetivos tomando por

referência arranjos cooperativos ideais, e quanto mais os princípiosse ajustarem a isso, tanto mais forte será a defesa.69

Como vimos antes, Gauthier sustenta que sua solução para abarganha racional produz uma estratégia conjunta que, por dis-tribuir eqüitativamente70 os ganhos produzidos pela coopera-

ção, satisfaz as exigências de imparcialidade que são próprias dasconstrições morais isto é, de princípios que têm uma pretensãoforte a exigir conformidade das condutas individuais. Mas há umsalto de escala na argumentação. No trecho citado acima, Gauthierestá nos dizendo que podemos interpretar determinados princí-pios morais estabelecidos tais como a honestidade e o princípio

que ordena o cumprimento dos acordos e promessas como sefossem os termos de um contrato social aos quais barganhistasracionais teriam de dar seu assentimento. E eles o fariam porque

69 Ibidem, p.168. Uma outra passagem nessa linha é a seguinte: o cumpri-mento de promessas, a honestidade e a prática do jogo limpo devem ser

defendidos mostrando-se que a adesão a esses princípios permite às pessoascooperar de forma que é de se esperar que igualizem, pelo menos aproxima-damente, os benefícios relativos propiciados pela cooperação. Ibidem, p.156.

70 Isto é: de forma proporcional à contribuição de cada um ao empreen-dimento cooperativo.

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sabem que a adesão geral a esses princípios constitui a únicaforma de garantir que os benefícios gerados pela cooperação, eminterações concretas, serão distribuídos de forma aproximadamenteproporcional às contribuições de cada um. Certos princípiosmorais podem ser entendidos como estratégias conjuntas queseriam especificadas pelo princípio de concessão relativa minimaxem uma barganha racional da escala da sociedade.

Note-se que nem todas as práticas morais vigentes passampor esse teste. O contratualismo hipotético de Gauthier nos in-centiva a comparar os benefícios que recebemos sob as práticasexistentes com a distribuição de quinhões que resultaria de umanegociação entre participantes igual e idealmente racionais queestivessem deliberando ex-ante os termos de sua interação.71 Sehouver discrepância, alguns de nós teriam um incentivo paraexigir uma mudança nas práticas estabelecidas. O individualis-mo desse enfoque tem o mérito indiscutível de nos fazer olharcom olhos críticos as práticas, instituições ou arranjos cooperati-vos de todo tipo nos quais outros se beneficiam unilateralmentede nossa disposição de cooperar e de nossos sentimentos solidá-rios. O contratualista, diz Gauthier, não precisa sustentar queas pessoas de carne e osso não se interessam por seus semelhan-tes; na verdade, supomos que algum grau de sociabilidade é ca-racterístico dos seres humanos. Mas o contratualista vê a sociabi-lidade como enriquecendo a vida humana; para ele, essa socia-bilidade se torna uma fonte de exploração se induz as pessoas aaquiescer a instituições e práticas que, não fosse por seus [daspessoas] sentimentos generosos, lhes seriam onerosas. O pensa-mento feminista tornou isso, talvez a forma fundamental de ex-ploração humana, transparentemente claro para nós.72 É issoque Jean Hampton acha atraente na reflexão normativacontratualista: ela nos ensina a ser advogados resolutos de nósmesmos e a rejeitar práticas nas quais os sentimentos de dever

71 Ver Gauthier, 1991, p.27-8, para uma discussão do significado do contratohipotético.

72 Gauthier, 1986, p.11.

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e de devoção ao outro de uma das partes podem ser instru-mentalizados por uma outra parte.73 Hampton tem em mentesobretudo as exigências da moralidade positiva à conduta damulher na família. Note-se, entretanto, que não é só uma parteda moralidade convencional que seria rejeitada. O testecontratualista-hobbesiano também rejeitaria, como formas deexploração humana, a aplicação de princípios de justiça social(tais como o princípio de diferença de Rawls e o princípio da

maximização da utilidade média) que prescrevem uma distribui-ção de encargos e benefícios que não necessariamente guarda umacorrespondência com a contribuição de cada um.

A interpretação do contrato social esboçada acima pode sersugestiva, mas não é mais do que isso. Quando passamos dainteração entre dois jogadores para os arranjos cooperativos bási-

cos da sociedade e é isso, afinal, o que nos interessa , temos denos virar com um raciocínio por analogia. Não há nada de tãoterrível nisso, mas é claro que algo se perde nessa passagem: origorismo dedutivo com que Gauthier cerca a justificação de seuprincípio de justiça e também, acredito, o sentido preciso que sepode dar a ele quando se trata de avaliar, da ótica da justiça, as

práticas e instituições vigentes.O problema que estou apontando surge porque Gauthier serecusa a recorrer a uma posição original para testar a justificaçãode princípios de justiça. Os teóricos que recorrem a um dispositi-vo de posição original como Rawls, Scanlon e Barry,74 Harsanyi o fazem porque supõem que certas exigências de eqüidade e de

imparcialidade obrigatoriamente têm de ser incorporadas à situa-ção de escolha de princípios de justiça social. Gauthier rejeitaessa suposição, como já vimos, porque ele quer tomar como pon-to de partida de sua teoria somente valores relativos ao agente.

73 Hampton (1991, p.53-55) observa, no entanto, que um contratualismokantiano também pode ser empregado para criticar práticas estabelecidasque são lesivas a uma das partes.

74 A variante de posição original proposta por Thomas Scanlon e defendidasobretudo por Brian Barry será discutida no capítulo 5.

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Como não há, nessa teorização, nenhum dispositivo similar àposição original, ficamos sem saber até que ponto as conclusõesalcançadas pela via da negociação racional envolvendo duas par-tes são também pertinentes, não para o jogo da vida como sepoderia mais trivialmente objetar, mas sim para um hipotéticocontrato social.

É possível, no entanto, que Gauthier esteja querendo dizeruma outra coisa. Na vida real, os princípios morais nada maisseriam do que estratégias conjuntas que permitem coordenar ascondutas individuais em torno de equilíbrios mutuamente bené-ficos. Sobre a explicação contratualista-hipotética para a escolhadessas estratégias conjuntas de escala macrossocial sobre aespecificação dos termos do contrato social , Gauthier nada te-ria de realmente novo a acrescentar àquilo que Hobbes disse.Hobbes mostrou como é possível justificar o reconhecimento pú-blico de padrões de justiça não apelando a nenhum outro valorque não o desejo mais relativo ao agente, impossível deautopreservação. O reconhecimento recíproco da segunda lei danatureza de Hobbes está solidamente fundamentado no valor quecada um atribui a sua autopreservação. Nenhuma motivação maisgenerosa do que essa necessita ser invocada para um acordo racional ser alcançado. É vantajoso para cada contratante indi-vidualmente abrir mão de seu direito por natureza a todas ascoisas, desde que os demais façam o mesmo, e submeter-se àrestrição imposta pelo contrato. Sobre isso, Gauthier poderia di-zer que sua teorização, incluindo a lógica da solução que propõepara o problema da negociação racional, limita-se a explorar oargumento básico do contratualismo de Hobbes com os recursosoferecidos pela teoria dos jogos.

Tolos e velhacos

Mas há um ponto com respeito ao qual Gauthier pleiteia ori-ginalidade. Trata-se da idéia que o próprio Gauthier provavelmen-te veria como sua única contribuição genuína à teoria contratualista.Identifiquemos primeiro o problema para o qual Gauthier acredi-

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ta ter proposto uma solução original. (Examinarei essa solução napróxima seção.) Imaginemos que, por um processo de negociaçãoracional, um determinado resultado, ou estratégia conjunta, éselecionado e que esse resultado se conforme ao princípio de con-cessão relativa minimax. Esse resultado pode ser justificado aosparticipantes como mutuamente benéfico no sentido estrito queo contratualismo hobbesiano dá a essa expressão: se todos ade-rem à estratégia conjunta selecionada, cada um tem ganhos deutilidade, em relação ao ponto de não-acordo, que são proporcio-

nais a sua própria contribuição ao empreendimento cooperativo.Mas aí uma questão perturbadora se apresenta. Por que não

deveria qualquer uma das partes ignorar o acordo, sempre quefazê-lo produza ganhos de utilidade maiores do que a condutacooperativa? Não seria racional ignorar o acordo no momentooportuno, depois de ter colhido os benefícios da conduta coope-

rativa da outra parte? Posso admitir que, se todos cumpriremsuas promessas, isso será melhor para cada um do que se nin-guém o fizer (estimando-se essa melhoria somente em termos deganhos de utilidade individual). Mas será essa uma razão sufi-ciente para que eu cumpra as minhas promessas?

É preciso diferenciar com nitidez dois problemas. Uma coisa

é a lógica do contrato: o que faz que um acordo sobre princípiosde justiça, entre indivíduos maximizadores de seu próprio benefí-cio, possa ser alcançado? Uma outra coisa bem diferente é a ló-gica do cumprimento do contrato: é racional conformar a pró-pria conduta aos termos de um acordo mutuamente benéfico? (Apassagem do estado de natureza para a sociedade civil é somente

uma parte da história contratualista.) Hobbes percebeu claramenteque ter uma resposta para a primeira pergunta não era o sufi-ciente para se desvencilhar da segunda. Pela boca do Tolo, nocapítulo XV do Leviatã, ele formula a objeção mais difícil de serenfrentada de uma perspectiva contratualista-hobbesiana:

Os tolos dizem em seu foro íntimo que a justiça é uma coisaque não existe, e às vezes dizem-no também abertamente, alegandocom toda seriedade que, estando a conservação e o bem-estar de cadahomem entregues a seu próprio cuidado, não pode haver razão emvirtude da qual cada um deixe de fazer o que imagina que seja

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conducente a esse fim. Em conseqüência, fazer ou deixar de fazer,cumprir ou deixar de cumprir os pactos não é contra a razão, noscasos em que isso contribui para o benefício próprio. Não se nega

com isso que existam pactos, que às vezes são desrespeitados e àsvezes cumpridos; e que o desrespeito desses pactos denomina-seinjustiça e o cumprimento deles, justiça. O que os tolos colocam emquestão é se a injustiça, deixando de lado o temor a Deus (já que ostolos também dizem em seu foro íntimo que Deus não existe), nãopoderá às vezes estar de acordo com aquela mesma razão que dita a

cada um seu próprio bem...75

Note-se qual é a objeção que está sendo apresentada pelostolos. Eles concordam com Hobbes em que é racional chegar aum acordo pelo qual cada um renuncia a seu direito por nature-za com a condição de que os demais façam o mesmo. Mas, obje-

tam, o fato de um contrato ser racional isto é, mutuamentevantajoso não é suficiente para explicar por que é racional cum-pri-lo. Os tolos lançam dúvida sobre a consistência da lógicacontratualista de Hobbes em favor da terceira lei da natureza: Queos homens cumpram os pactos que celebrarem. Poderá o reco-nhecimento recíproco dessa lei, tal como o argumento con-

tratualista em favor da segunda lei da natureza, dispensar qual-quer outro fundamento que não o desejo de autopreservação? Ostolos acham que não. Eles poderiam dizer a Hobbes: seu argu-mento em favor da segunda lei da natureza é sólido. É realmentemelhor para a autopreservação de cada um que os contratos epromessas sejam em geral cumpridos. Mas não podemos dizer o

mesmo com respeito ao seu argumento em favor da terceira lei danatureza: é ainda melhor para a autopreservação de cada um denós (os tolos) se outros se encarregam dos custos da provisão

75 Hobbes, 1968, p.119. Tradução minha. Infelizmente, na edição brasileirado Leviatã (tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da

Silva) feita pela Nova Cultural, coleção Os Pensadores, há um lamentávelerro de tradução nessa passagem central do texto: onde se lê justiça, nafrase ... [ Os tolos] perguntam se a justiça, pondo de lado o temor aDeus ... não poderá às vezes concordar com aquela mesma razão que ditaa cada um seu próprio bem (p.87), leia-se injustiça.

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do bem público representado pelo cumprimento geral dos con-tratos e promessas, enquanto nós nos damos o direito, quandoisso nos trouxer ganhos de utilidade, de burlar nossos próprioscontratos e promessas. Não estará você recuando ante as conse-qüências mais desagradáveis de sua própria concepção ma-ximizadora de racionalidade? É uma boa coisa que um bem públi-co seja provido, mas é ainda melhor pegar carona nos esforçosde outros para provê-lo.76 Se o contrato hobbesiano é uma solu-ção para o Dilema do Prisioneiro do estado de natureza, o proble-ma é que a cooperação, após um acordo ter sido alcançado, nova-mente apresenta-se com uma estrutura de tipo Dilema do Prisio-neiro. Haverá casos em que, o que quer que os outros façam, quereles cumpram os termos do contrato ou não, para mim será maisracional descumpri-los.

Hobbes sustenta que na lei natural que determina o cumpri-mento dos acordos reside a fonte e a origem da JUSTIÇA. Comefeito, onde não houve um pacto, não se transferiu direito ne-nhum, e todos os homens têm direito a todas as coisas; e conse-qüentemente, nenhuma ação pode ser injusta. Mas quando umpacto é realizado, rompê-lo é injusto. A definição de INJUSTIÇAnão é senão esta: o descumprimento de um pacto.77 Mas se a con-duta moral consiste em respeitar os pactos, por que pergunta otolo é racional ser moral?

Hobbes não deu nenhuma resposta para essa pergunta. (Voucomentar, adiante, a resposta que Hobbes deu à objeção do tolo,mas não se trata de uma resposta para essa questão.) O espectrodo tolo de Hobbes também assombrou um outro gigante da filo-sofia anglo-saxã. No penúltimo parágrafo de sua Investigação so-bre os princípios da moral, Hume considera a questão colocada porum velhaco sensato que, mesmo reconhecendo que nenhumasociedade pode subsistir sem um sistema geral de justiça,78

76 Olson, 1965.77 Hobbes, op. cit., cap.XV, p.202.78 Isto é, de direitos de propriedade reconhecidos e de uma disposição

amplamente compartilhada de respeitá-los e de cumprir os próprios pactose promessas.

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pode imaginar que um ato de iniqüidade ou de descumprimentode promessas produzirá um aumento considerável de sua fortunasem causar nenhum dano considerável à união e à confederação

sociais. Que a honestidade é a melhor linha de conduta, isso pode seruma boa regra geral, mas está sujeita a muitas exceções; e pode-sesupor que se conduz de forma mais sensata aquele que observa aregra geral e tira proveito de todas as exceções.79

O velhaco está dizendo que, a despeito da existência da con-

venção prescrevendo a conduta cooperativa, só cooperará quan-do fazê-lo lhe proporcionar uma utilidade maior do que a condu-ta não-cooperativa. Hume não tem, pelo menos na passagem queestamos examinando, nenhuma resposta convincente à objeçãodo velhaco.80 Uma das respostas aponta os riscos de o velhacocometer algum deslize e se deixar apanhar. Mas essa não é uma

razão para preferir a honestidade à velhacaria e sim para praticaruma patifaria cautelosa.81 Uma outra resposta de Hume é a deque em todas as índoles imaginativas, a aversão à perfídia e àvilania é muito forte para ser contrabalançada por quaisquer pers-pectivas de lucro ou vantagem pecuniária. A paz interna de espí-rito, a consciência de integridade, uma avaliação satisfatória da

própria conduta, essas são circunstâncias indispensáveis à felici-dade e serão prezadas e cultivadas por todo homem honesto, quepercebe a importância delas.82 Essa é uma boa razão para expli-car a um homem honesto porque a honestidade é um fim em simesmo e não, novamente, para explicar porque a conduta hones-ta deve ser racionalmente preferida à conduta velhaca.

Voltemos a Hobbes e à forma como ele enfrentou a objeçãolevantada pelo tolo. Como é bem conhecido, Hobbes deu umasolução puramente política ao problema: é preciso haver um

79 Hume, 1957 (1571) seç. IX, parte II, p.282-3. Tradução minha.

80 Não vou discutir (isso está além da minha capacidade no momento) se ateoria moral de Hume pode ser interpretada de forma a oferecer essaresposta. Ver Araújo (1996) para uma excelente discussão desse tema.

81 Barry, 1989, p.167.82 Hume, op. cit., p.283. Tradução minha.

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poder coercitivo que obrigue os homens, igualmente, ao cumpri-mento de seus pactos, pelo temor a alguma punição maior doque o benefício que esperam obter do rompimento de seu pac-to.83 Com o poder coercitivo à mão, Hobbes pode sustentarque é (individualmente) racional cumprir os próprios pactos,porque os que não o fizerem serão, pela ação coercitiva do sobe-rano, excluídos dos benefícios da cooperação social. É esse o teordo principal argumento de Hobbes contra o tolo: quem que-bra seu pacto, e, ao mesmo tempo, declara que fazê-lo está deacordo com a razão, não pode ser tolerado em nenhuma socie-dade que una os homens para a paz e a defesa, a não ser por umerro daqueles que o admitem ... e caso seja deixado fora ou ex-pulso da sociedade, o homem perece.84 Hobbes não diz que éracional ser moral (entendendo-se por isso a disposição de cum-prir os próprios acordos e promessas); ele se limita a argumen-tar que é irracional a conduta injusta que vai de encontro à leido soberano.

Duas questões se apresentam. Por que essa é uma soluçãopuramente política para o problema? Essencialmente, porque nãohá nenhuma mudança na motivação dos participantes. Antes oudepois do contrato, no estado de natureza ou na sociedade civil,os homens continuam sendo maximizadores de seu benefíciopróprio. É muito difícil persuadir pessoas motivadas dessa for-ma de que não devem tirar proveito de seus semelhantes, sem-pre que uma oportunidade de fazê-lo impunemente se apresen-te. Uma vez que os motivos internos necessários à estabilidadede arranjos cooperativos da sociedade estão ausentes, a únicasolução consiste em recorrer a um dispositivo político, a sobera-nia, que force cada um a fazer sua parte em pactos mutuamentevantajosos. A estrutura de tipo Dilema do Prisioneiro na coope-ração só pode ser superada pela ação de uma autoridade externaaos cooperantes que, mediante a ameaça de sanções, lhes impõea obediência à estratégia comum acordada.

83 Hobbes, op. cit., p.202.84 Ibidem, p.205.

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A segunda pergunta é mais desagradável para os seguidoresde Hobbes. Será satisfatória uma solução puramente política parao problema que estamos examinando? A resposta é não, e aquinos defrontamos com o ponto fraco do enfoque hobbesiano clás-sico. Voltemos um instante ao exemplo do rodízio de carros men-cionado anteriormente. Trata-se de uma estrutura de interaçãode tipo Dilema do Prisioneiro na qual as condutas individuais secoordenam em torno de um equilíbrio subótimo (não coopera,não coopera). A solução hobbesiana consiste em impor penalida-des à conduta não-cooperativa e atribuir a tarefa de identificar epunir os caronas a uma autoridade externa aos cooperantes,isto é, o Estado. A agência estatal entra em cena para alterar aestrutura de incentivos do jogo de forma a tornar o resultadomutuamente benéfico (coopera, coopera) um equilíbrio de Nash.Ao passo que no modelo do mercado perfeito, os resultados quesatisfazem simultaneamente às exigências da otimalidade paretianae do equilíbrio de Nash são alcançados por um mecanismo demão invisível, a solução hobbesiana clássica, em interações emque há externalidades, pretende ter o mesmo efeito substituindoa mão invisível do mercado pelas botas visíveis do Estado. Oque hobbesianos contemporâneos como Gauthier não gostamnessa história é que essas botas são muito caras e podem nãofuncionar da forma prevista.85

A implementação de pactos por uma agência externa aoscontratantes tem custos que são inteiramente negligenciados peloenfoque hobbesiano clássico. Esses custos podem não ser tão vi-síveis (nem por isso são inexistentes) no exemplo relativamentebanal do rodízio de carro, mas constituirão uma parte importan-te do problema em todas as interações de tipo Dilema do Prisio-neiro que têm relevância prática. Pense, por exemplo, na evasãofiscal, nas queimadas realizadas na Amazônia por agricultoresque querem expandir suas áreas de cultivo, ou na corrida entreos Estados da federação no Brasil para ver quem dá mais emtermos da infra-estrutura oferecida e de renúncia fiscal para

85 Gauthier, 1986, p.164.

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atrair investimentos. Menciono um exemplo ainda mais recalci-trante à solução hobbesiana. A prescrição e o uso descontroladoe inadequado de antibióticos, por pessoas que, ao fazê-lo, acredi-tam que estão fazendo o melhor para si próprias86 (ou para osseus pacientes), poderá dentro de pouco tempo gerar (por pro-cessos de mutação genética) agentes infecciosos resistentes a quais-quer antibióticos disponíveis. Uma infinidade de decisões indivi-duais que externalizam uma parte de seus custos acabarão porproduzir um malefício público que afetará tanto os que nãocooperam (os que tomam antibióticos de forma inadequada)quanto os que cooperam (os que só prescrevem ou tomam an-tibióticos quando estritamente necessário e da forma indicada).Em todos esses casos, as condutas individualmente maximizadorassó se coordenam em torno de equilíbrios subótimos. Vamos su-por que não seja difícil especificar, em todos eles, os termos deum acordo mutuamente benéfico, isto é, a estratégia conjunta deação que, se fosse observada por todos os participantes, produzi-ria ganhos de utilidade para todos. Será a intervenção do Leviatã,coagindo-os à conformidade, à conduta cooperativa, suficientepara fazer que todos os ganhos de utilidade (passíveis de seremgerados pela cooperação) sejam alcançados?

Isso só se verificaria sob certas suposições muito irrealistas.(Assim como são irrealistas as suposições sob as quais o mercadoproduz equilíbrios que satisfazem a exigência de otimalidade.) Oscustos de implementação dos acordos por uma agência externateriam de ser nulos; os agentes dessa implementação autorida-des e burocratas estatais teriam de agir somente no interessedaqueles a quem representam ou a quem estão subordinados; eesses agentes teriam de dispor de informação perfeita sobre asestratégias individuais e punir sem perdão as condutas caronistas.Nada disso, entretanto, é verdadeiro para os Leviatãs realmenteexistentes. Os custos administrativos da implementação de acor-dos por uma agência externa são elevados. Esses custos terão deser cobertos com uma parte do excedente cooperativo, de tal

86 Isto é, é possível dar uma interpretação maximizadora a suas escolhas.

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forma que restará menos a ser distribuído entre os próprioscooperadores. Os equilíbrios que só são alcançados pela açãoestatal coercitiva serão sempre subótimos (parte dos potenciaisganhos de utilidade serão engolidos pelos custos de implemen-tação). As autoridades eleitas e não-eleitas podem desenvolverfunções de utilidade próprias, distintas dos interesses dos cida-dãos a quem representam; e os burocratas estatais podem desen-volver funções de utilidade distintas das autoridades políticas àsquais devem obediência.87 Trata-se do clássico problema de saberquem supervisiona os supervisores. E, finalmente, mesmo agen-tes estatais dispostos a agir somente segundo os interesses dopúblico enfrentam um grave problema de informação. Se as in-formações que orientam a ação estatal coercitiva são incompletasou distorcidas, caronas podem passar despercebidos e coope-radores, punidos. (Se isso ocorrer, estes últimos terminarão comuma utilidade menor do que obteriam no Dilema do Prisioneiro.)

Esses três tipos de problemas oneram a implementação dospactos por uma autoridade externa, quer se trate do cumprimentodas normas de justiça especificadas pelo contrato social vigente,quer se trate do cumprimento de acordos de escala menor, taiscomo os arranjos institucionais colocados em prática (com grausmuito diferenciados de êxito) para evitar a degradação de recursosde uso comum.88 Reconhecendo esses problemas, não estamos

87 Aqui o problema é o de como fazer que um contratado (agent) aja segun-do a função de utilidade do contratante ( principal). Sobre isso, ver, por

exemplo, Moe, 1984.88 Ostrom (1990) considera que nem um modelo puramente privatista nem

um modelo puramente hobbesiano é o mais indicado para lidar com esseproblema. Muitos dos arranjos institucionais criados para a gestão derecursos de uso comum são uma mistura de instituições de tipo públicoe instituições de tipo privado. O modelo institucional mais promissor,para a autora, é aquele no qual os próprios participantes digamos, uma

comunidade de pescadores que necessita restringir a atividade de pescade cada um de seus membros de modo a conformá-la à capacidade desustentação do sistema além de estabelecer os termos de um acordomutuamente benéfico, criam as instituições necessárias para supervisio-nar seu cumprimento pelos participantes. A suposição é a de que estes

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necessariamente endossando a crítica neoliberal às imperfeiçõesdo mercado político; estamos, isso sim, rejeitando o desprezo quecerto tipo de realismo hobbesiano devota à moralidade, entenden-do-se por moralidade a disposição de fazer a própria parte emempreendimentos cooperativos. Uma sociedade na qual só se podeconfiar nas promessas de desempenhar determinados atos em ummomento futuro no tempo se o cumprimento disso for exigívelnos tribunais, será, provavelmente, o paraíso dos advogados; masserá também uma sociedade na qual uma parte substancial dosganhos gerados por arranjos cooperativos de todo tipo terá de serdestinado a esquemas de supervisão e de punição. Nessas condi-ções, muitos problemas de ação coletiva permanecerão insolúveis,a não ser que os benefícios gerados pela cooperação sejam grandesa ponto de compensar o investimento em mecanismos dispendiososde supervisão e de punição aos caronas e parasitas.89

Pode-se desprezar o papel prático da moralidade, mas o preçodisso é alto. Eis por que é insuficiente a solução puramente polí-tica que Hobbes dá à objeção do tolo. Pagamos um preço ele-vado, diz Gauthier, se realmente somos criaturas que ra-cionalmente não aceitam nenhuma restrição interna à busca denossa utilidade, e se, em conseqüência, só somos capazes de esca-par do estado de natureza, naquelas circunstâncias em queexternalidades inevitavelmente se fazem presentes, mediante dis-positivos políticos, não morais. Se pudéssemos cumprir volunta-riamente os acordos que racionalmente aceitamos, pouparíamosnós mesmos desse preço.90

Gauthier quer complementar a resposta que Hobbes deu aotolo. Seu propósito é o de demonstrar que, se não nos dispo-

estão em condições de fazer isso bem melhor, e a um custo muito maisbaixo, do que uma agência externa ao empreendimento cooperativo. Note-se que o estudo de Ostrom limita-se a sistemas de recursos de uso co-

mum de pequena escala, envolvendo não mais do que 15 mil pessoas. Adespeito disso, os problemas de implementação de estratégias cooperati-vas já se apresentam de forma aguda.

89 Ostrom, 1990, p.36.90 Gauthier, 1986, p.164.

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mos a fazer nossa parte em acordos mutuamente vantajosos, issonão se deve somente a nossa notória dificuldade de reconhecer avalidade per se de exigências morais em nossa conduta, mas tam-bém a uma deficiência em nossa racionalidade. Gauthier quermostrar ao tolo por que é racional ser moral. Trata-se de umargumento que, se fosse bem-sucedido, preencheria uma imensalacuna do enfoque contratualista-hobbesiano. Esse argumentomostraria que, quando a moralidade e o interesse próprioconflitam, nós agiríamos racionalmente se fizéssemos a primeiraprevalecer sobre o segundo isto é, se aceitássemos fazer o que,da ótica de nosso interesse próprio imediato, é pior para nós.Vale a pena examiná-lo com cuidado.

É racional ser moral?

Começo expondo esse que é o argumento mais importanteda teoria da moralidade por acordo. O significado normativoda concepção maximizadora de racionalidade muda conforme aconsideramos antes ou depois que os barganhistas chegam a umacordo. Para passar do ponto de não-acordo para a fronteiraparetiana, cada barganhista escolhe sua estratégia individualmen-te, empenhando-se somente na maximização de sua própria utili-dade. A solução da barganha, portanto, tem de pressupor quecada barganhista é um maximizador puro. Mas a situação mudade figura quando um resultado é selecionado: o ambiente deixade ser de barganha e passa a ser de cooperação. A questão já não émais a da escolha independente de estratégias individuais pelosbarganhistas, e sim a da adesão continuada dos cooperantes auma estratégia conjunta. O passo crucial da argumentação deGauthier é o de que a maximização pura do próprio benefício,que é a única motivação da conduta individual no contexto dejogo, torna-se irracional no contexto de cooperação. Neste últi-mo, indivíduos que só se empenham na maximização de sua pró-pria utilidade devem, desde que um número suficiente de outrosfaçam o mesmo, trocar a maximização pura (straightforward maxi-

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 mization) pela maximização contida (constrained  maximization)de seu próprio benefício.91 Em outros termos, Gauthier argu-menta que é racional restringir a própria conduta de forma aconformá-la a um resultado que traz benefícios mútuos (e que,ademais, supõe-se que sejam proporcionais à contribuição de cadaum). E se é racional fazê-lo, então a conexão profunda entrerazão e moralidade afinal se revela: é a disposição de cada um deaceitar restrições à própria conduta maximizadora, disposição essaque é racional adotar, que dá à cooperação seu significado pro-priamente moral. Dispor-se a cumprir as normas de justiça, desdeque um número suficiente de outros adote uma disposição simi-lar, encontraria apoio em uma forma de interesse próprio sofisti-cado. Essa é a idéia central da moralidade por acordo.

A ambição do argumento de Gauthier também se evidenciaquando um outro ponto é esclarecido: ele quer mostrar que podeser racional adotar a disposição do maximizador contido (MC)mesmo que a interação entre as partes só ocorra uma vez e mes-mo que os participantes não tenham a expectativa de que suasescolhas afetarão situações futuras de interação. O MC não é, dizGauthier, o maximizador puro (MP) sob seu disfarce mais efeti-vo: o maximizador contido não é meramente a pessoa que,enxergando mais longe do que seus semelhantes, devota-se a seuinteresse global sacrificando os benefícios imediatos que obteriaignorando estratégias conjuntas e violando arranjos cooperati-vos para, dessa forma, obter os benefícios de longo prazo de go-zar da confiança de outros. Uma pessoa assim não exibe nenhu-ma restrição real a sua conduta.92 Uma vez que o argumento deGauthier não incorpora a dimensão temporal, trata-se de demons-trar que pode ser racional cooperar mesmo em estruturas deinteração que exibem as propriedades de um Dilema do Prisio-neiro de uma só rodada.93

91 Gauthier, 1986, cap.6.92 Ibidem, p.169-70. Uma prudência genuína não é a mesma coisa que

uma moralidade genuína. Gauthier, 1991, p.24.93 Gauthier (1986, p.169-70, n.19) explicitamente rejeita que sua disposição

à maximização contida seja similar à estratégia tit-for-tat (segundo a qual

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Por que é racional dispor-se a ser um maximizador contido?Vou resumir o argumento de Gauthier em duas partes. A primei-ra pode ser formulada assim: Proposição (1): é racional se dispor a cumprir os termos de um

acordo aproximadamente ótimo e eqüitativo, desde que osdemais manifestem uma disposição similar, sempre que o re-sultado cooperativo propiciar, a cada um dos participantes,ganhos de utilidade superiores às utilidades de cada um na

hipótese da defecção universal.Gauthier argumenta em favor dessa proposição da seguinteforma. No contexto da cooperação, a natureza do cálculo racio-nal se altera. Deixa de fazer sentido comparar a utilidade da con-duta cooperativa com a da conduta de defecção, tendo em vistadeterminar qual é a estratégia individual maximamente eficiente

para ser empregada em resposta às estratégias também indivi-duais dos demais. O cálculo agora é outro. Um indivíduo racio-nal comparará os ganhos de utilidade para si próprio, se cada umcumprir sua parte, com a utilidade para si próprio no caso de acooperação fracassar. Se o que ele ganha com os outros aceitan-do restringir sua conduta pelo resultado cooperativo for mais do

que ele perde aceitando ele próprio restringir sua conduta damesma forma, esse indivíduo agirá de forma racional se fizer suaparte em um arranjo cooperativo em que todos, incluindo elepróprio, aceitam agir como MCs. Eis por que a conduta coopera-tiva, segundo Gauthier, seria recomendada pelo interesse pró-prio de cada um. Em contraste, se todos escolhem agir como

MPs, em vez de MCs, oportunidades de benefícios mútuos serãoperdidas para todos.

A segunda parte do argumento pode ser assim resumida: Proposição (2): é mais racional se dispor a ser um MC do que

um MP em arranjos mutuamente benéficos, porque os MPs

o primeiro jogador adota uma estratégia cooperativa, e, em seguida, co-pia as estratégias adotadas pela outra parte), que Robert Axelrod argu-mentou oferecer uma possibilidade de cooperação em Dilemas dos Pri-sioneiros reiterativos.

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(os tolos de Hobbes) serão identificados pelos MCs e excluí-dos dos benefícios da cooperação, benefícios esses que estarãoao alcance dos MCs.

Essa proposição se justifica assim. Os MCs não são trou-xas. Eles não se oferecem como presas fáceis aos MPs suadisposição de cooperar é de natureza condicional. Os MCs se-guem estritamente a primeira lei da natureza de Hobbes: esfor-çar-se pela paz, caso se tenha esperança de alcançá-la, e, caso issonão seja possível, valer-se de todos os recursos e vantagens daguerra.94 Os MCs percebem os benefícios que podem garantirpara si próprios (a paz) se dispondo a cumprir os acordos quefazem com pessoas que têm uma disposição similar. Mas se esti-verem interagindo com MPs, há duas possibilidades: se há umnúmero suficiente de MCs para sustentar o arranjo cooperativo,os MCs vão agir para excluir os MPs dos benefícios da coopera-ção; se não há, os MCs adotarão uma disposição similar à dosMPs e, como estes, também se valerão das vantagens da guerra.O ponto central é o de que os MPs serão privados de ganhos deutilidade que estarão ao alcance dos MCs.

Antes de examinarmos as duas proposições mencionadas,já há uma objeção inesperada, mas nem por isso desprezível, aoargumento de Gauthier. A objeção foi formulada por Holly Smith.Que tal se os MCs, em vez de se defrontarem com MPs sequio-sos de tirar proveito de sua disposição condicional à coopera-ção, tiverem de interagir com cooperadores incondicionais? Podeser irracional adotar a disposição de cooperar sempre, quaisquerque sejam as estratégias adotadas pelos outros, mas o que estáem questão é uma outra coisa: como poderia ser moral tirar pro-veito de cooperadores incondicionais? No entanto, é certo que,em interações com cooperadores incondicionais, os MCs deGauthier só maximizarão sua utilidade se agirem exatamentecomo MPs. A maximização contida, diz Smith, dificilmente podeser uma opção atraente se somente funciona contra parceirosperfeitamente racionais. Uma vez que muitas pessoas de fato são

94 Hobbes, op. cit., cap.XIV.

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irracionais, uma opção aceitável deve funcionar contra todos osdesafiantes, quer eles sejam racionais ou não.95 A suspeita aquinão é a de que pode não ser racional adotar a maximização con-tida, e sim a de que as credenciais morais dessa disposição nãosão tão inequívocas como Gauthier parece supor.

Deixemos passar essa primeira objeção e examinemos as duasproposições centrais de seu argumento em favor do cumprimen-to dos pactos e promessas. Infelizmente, ambas são falaciosas

para as estruturas de interação que têm as características de umDilema do Prisioneiro de uma só rodada. Há um defeito sério einsanável no argumento de Gauthier: a estrutura de interação naqual a maximização contida seria a estratégia mais recomendadada ótica do interesse próprio de cada um não é um Dilema do Prisio-neiro, e sim algum outro jogo no qual se faz suposições mais

fortes sobre a motivação dos jogadores.Considere a proposição (1). É verdade que o resultado coo-perativo produz ganhos de utilidade para cada um em compara-ção à defecção universal, mas há um dilema precisamente porqueesse resultado mutuamente benéfico só pode ser alcançado secada um dos jogadores escolher uma estratégia fortemente domi-

nada, o que constitui uma violação ao critério de racionalidadeempregado na análise de Dilema do Prisioneiro.96 O problema éque o resultado coletivo que é melhor para cada um só pode seralcançado se cada um se dispuser a fazer o que é pior para sipróprio. Seria possível reformular o que Gauthier está dizendoda seguinte forma. Pode ser melhor para o interesse próprio de

cada um se todos se dispuserem a não fazer aquilo que o interessepróprio de cada um dita (isto é, sempre adotar uma estratégianão-cooperativa quando a estrutura de interação tem as feiçõesde um Dilema do Prisioneiro). Podemos aceitar essa proposiçãocomo verdadeira, mas, à primeira vista, ela envolve o deslizar deuma teoria da racionalidade prática individual para uma teoria da

racionalidade prática coletiva, para a qual a pergunta é: como

95 Smith, 1991, p.239.96 Ver nota 18.

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 nós todos devemos agir?.97 Evidentemente, Gauthier não aceita-ria essa interpretação, já que ela envolve abandonar o critério deracionalidade aceito pela teoria dos jogos e os pressupostos derelatividade ao agente de sua própria teoria. (A pergunta comonós todos devemos agir? só faz sentido em teorias que articulamvalores neutros em relação ao agente.)

Mas ainda resta uma possibilidade de salvar todo esse esforçode derivar a moralidade da racionalidade individual. O queGauthier diz ser racional escolher é uma disposição de agir deforma justa. Trata-se, portanto, da escolha, não de condutas espe-cíficas, e sim de um traço de caráter. Se é racional adquirir essetraço de caráter, então pode fazer sentido, da ótica de um interessepróprio sofisticado, adotar uma conduta cooperativa em interaçõesespecíficas, mesmo quando fazê-lo envolve sacrificar parte do be-nefício máximo que se poderia esperar tirando proveito dos esfor-ços cooperativos de outros. Reapresentemos, pois, a pergunta:por que é racional possuir esse traço de caráter?

A resposta é essencialmente a seguinte: aqueles que adqui-rem esse traço de caráter vêem se abrir para si próprios oportuni-dades de maximizar seu benefício que são vedadas aos maxi-mizadores puros. É isso o que diz a proposição (2). Para examiná-la, permita-me citar, na íntegra, um exemplo oferecido pelo pró-prio Gauthier:

 Jones e Smith têm fazendas contíguas. Apesar de serem vizi-nhos, e de não serem hostis um ao outro, eles tampouco são ami-gos, de forma que nenhum dos dois tem prazer em ajudar o outro.

A despeito disso, ambos reconhecem que, se fizerem suas colheitasjuntos, isso será melhor para cada um do que se cada um fizer a suasozinho. O cultivo de Jones estará pronto para a colheita na próxi-ma semana; e o de Smith estará pronto para ser colhido dentro deduas semanas. Terminada a colheita, Jones se aposentará e se mu-dará para a Flórida, onde é improvável que ele venha a encontrarSmith ou outros membros de sua comunidade. Jones gostaria deprometer a Smith que, se Smith o ajudar a fazer a colheita na

97 Parfit, 1991, p.91-2.

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próxima semana, ele, Jones, ajudará na colheita de Smith daí a duassemanas. Mas Jones e Smith sabem que, dentro de duas semanas,ajudar Smith será somente um custo para Jones. Mesmo que Smith

o ajude, Jones não tem nada a ganhar reciprocando o auxílio, umavez que, nas circunstâncias, ele não é motivado nem por uma preo-cupação com Smith nem por um interesse em sua própria reputa-ção. Daí que, se tanto Jones quanto Smith sabem que Jones ageabertamente para maximizar a satisfação de suas preferências, am-bos também sabem que Jones não ajudará Smith. Por isso, Smith

não ajudará Jones mesmo que este último finja prometer retribuir oauxílio que recebeu. No entanto, seria melhor para Jones se elepudesse fazer e cumprir tal promessa e também o seria para Smith.98

O exemplo mostra que, se Smith e Jones possuem o traço decaráter que faz deles cumpridores (condicionais) de suas promes-sas, isso lhes abre oportunidades de estabelecer arranjos mutua-mente vantajosos. E se Jones não o possui, ele acaba sendo víti-ma de sua própria disposição de obter sempre a máxima utilidadepossível das interações das quais participa. Vamos supor que Smithtenha um outro vizinho, Adam, e que ambos se reconheçam comoMCs. Eles poderão cooperar e dividir os benefícios da coopera-ção entre si, deixando Jones fora disso. Os primeiros estarão emcondições de explorar oportunidade de maximizar a própria uti-lidade que serão negadas a este último. Aparentemente, aracionalidade de se dispor a ser um MC está estabelecida.

A proposição (2), entretanto, tem um grave defeito queGauthier não foi capaz de solucionar adequadamente nem con-

sigo ver como isso possa ser feito. Para ser racional adquirir otraço de caráter em questão, temos de ser capazes de identificar,entre nós, aqueles que são MCs e os que são MPs. Se isso não forpossível, poderemos nos dispor, como MCs, a cooperar com MPsque se  fazem  passar por MCs, o que é irracional novamente,estaríamos nos oferecendo como presas fáceis para o tolo de

Hobbes e para o velhaco sensato de Hume. E por que seriairracional para o tolo e para o velhaco se fazerem passar por

98 Gauthier, 1991, p.24-5.

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cooperadores condicionais, evitando assim serem excluídos dosbenefícios da cooperação, enquanto aguardam o momento propí-cio para descumprirem suas promessas? O momento propíciose apresenta quando o custo de enganar os outros é superadopelos benefícios obtidos com a conduta não-cooperativa. Por queseria irracional se dispor a ser, não um cooperador condicional, esim um egoísta prudente?

O argumento em favor da racionalidade de cumprir as pró-prias promessas só funciona se formos transparentes, ou pelomenos, como Gauthier prefere supor, se formos translúcidos.99

Se todos formos transparentes, todos saberemos com certeza seestamos interagindo com um MC ou com um MP. É isso o queGauthier está supondo no exemplo apresentado e o que eu pró-prio supus na continuação que sugeri para a história de Smith e Jones. Mas essa suposição é muito mais onerosa para a teoria doque a suposição de que somos todos racionais. Mesmo sendouma idealização, essa suposição de racionalidade igual pode serútil para esclarecer a natureza das práticas e instituições existen-tes. Perguntamos como estas últimas pareceriam a agentes perfei-tamente racionais, porque isso nos ajuda a entender os custos queelas impõem e os incentivos que oferecem a cada um de seusparticipantes. (Se descobrirmos que um determinado bem públi-co ou instituição só pode existir porque há pessoas capazes deagir segundo motivações altruístas, a suposição de racionalidadeserve, mesmo assim, para evidenciar os elevados custosmotivacionais envolvidos.) A suposição de transparência, em con-traste, é uma idealização que não nos diz nada sobre por quepessoas de carne e osso, em situações reais, cooperam ou nãocooperam. E, aliás, mesmo agentes perfeitamente racionais con-siderariam de seu interesse possuir uma capacidade de ocultarsuas verdadeiras disposições.

Substituir a suposição de transparência pela de translucidezé um remendo na teoria que não afasta a objeção que estamosconsiderando. Pessoas translúcidas não são nem transparen-

99 Gauthier, 1986, p.173-4.

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tes nem opacas, de forma que sua disposição de cooperar ounão pode ser percebida por outros, não com uma certeza absolu-ta, mas com uma probabilidade maior do que uma mera conje-tura.100 Gauthier emenda seu argumento para sustentar que éracional adquirir a disposição de ser um cooperador condicio-nal translúcido. De outra parte, pessoas opacas, isto é, aque-las que não deixam transparecer nada de seus verdadeiros traçosde caráter, serão tratadas, pelos MCs translúcidos, como poten-

ciaisMP

s e excluídas da cooperação. Não consigo ver nada demuito convincente nesse remendo na teoria. Infelizmente, é per-feitamente possível a um cafajeste hábil em maquiar seu própriocaráter enganar regularmente àqueles com quem interage, pare-cendo-lhes tanto translúcido quanto confiável. Para os que con-seguem isso e não há nenhuma razão para supor que isso não

ocorra com freqüência! , a cafajestagem exercida com prudên-cia será sempre mais racional do que adquirir a disposição de serum cooperador condicional. Não resisto à tentação de repro-duzir uma avaliação quase caricatural, mas precisa, dessa parteda teoria de Gauthier: É egoisticamente racional dar gorjetasao garçom que você jamais voltará a encontrar. Por quê? Porque,

se você fosse o tipo de pessoa que não dá gorjetas, ele leria issona sua face e não o teria atendido bem.101

É possível formular uma objeção similar a essa empregandoa linguagem da teoria dos jogos. Vamos supor que, no exemploda página 143, Jones escolha, tal como recomenda a moralidadepor acordo, a disposição de ser um MC. Ele deixa transparecer

essa disposição de cooperar a Smith e aguarda a escolha deestratégia deste último. Sendo um cooperador condicional, Jonesresponderá à cooperação com a cooperação e à não-cooperaçãocom a não-cooperação. Smith escolhe cooperação e auxiliana colheita de Jones daí a uma semana e Jones faz o mesmo e auxilia na colheita de Smith daí a duas semanas. O resultado,

supõe Gauthier, é que ambos cooperarão para seu benefício

100 Ibidem, p.174.101 Gibbard, 1991, p.267.

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mútuo. Os ganhos de utilidade gerados pela cooperação, paracada um, serão maiores, também para cada um, do que os cus-tos de aceitar restringir sua conduta de acordo com a estratégiaconjunta acordada. O problema, do ponto de vista da teoria dosjogos, é que Gauthier está descrevendo algum outro jogo quenão é o Dilema do Prisioneiro. Em um Dilema do Prisioneirogenuíno, a resposta maximizadora de utilidade para Jones, apósSmith ter escolhido cooperação, é não cooperar. Se fôssemos

dar valores numéricos para as utilidades que cada um obtémlevando-se em conta a escolha do outro, essa é a escolha queteria o valor mais alto para Jones. Se Jones responde à escolhacooperação de Smith também com cooperação, é porque Jones assumiu previamente um compromisso de cooperar e con-seguiu deixar transparecer a Smith que esse compromisso era

para valer. Tanto a capacidade de assumir compromissos quantoa translucidez são suposições ad hoc, que não fazem parte daestrutura do jogo de um Dilema do Prisioneiro.

Essas suposições colocam a teoria de Gauthier fora da orto-doxia hoje aceita pelos estudiosos da área, que é a teoria não-cooperativa dos jogos. Para James Murrow, os jogos cooperati-

vos ... tornam muito fácil para os jogadores fazer acordos; osjogadores podem se comprometer com acordos cujo cumpri-mento pode não ser exigível. Os jogos não-cooperativos nosforçam a examinar como a colaboração entre os jogadores éimplementada no jogo e que incentivos os jogadores têm paraviolar esses acordos ... Três das questões básicas que a teoria dos

jogos deve enfrentar são quando, como e por que os jogadorescooperam para seu benefício mútuo. O cumprimento dos acor-dos (ou o porquê das pessoas honrarem os acordos sujeitando-sea um custo de curto prazo) é uma questão crucial, e a teoriacooperativa dos jogos a coloca de lado.102 Gauthier não podecolocar essa questão de lado, mas dá a ela uma solução que, do

102 Murrow, 1994, p.76. Na análise de jogos cooperativos, tal como na soluçãode Nash para o problema da barganha racional, o problema documprimento do acordo alcançado é ignorado.

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ponto de vista da ortodoxia apropriada na teoria dos jogos, éfalaciosa. O problema está em supor que os jogadores possamassumir compromissos outros que não aqueles estritamente per-missíveis pela estrutura do jogo. Se queremos fazer suposiçõesde comprometimento, é preciso modelá-las para usar o jar-gão dos teóricos de jogos nas regras do jogo, estabelecendoainda os mecanismos de cumprimento desses compromissos. Oque não vale fazer é analisar um jogo que tem uma estrutura eregras definidas introduzindo suposições de comprometimentoque não fazem parte dessas estruturas e regras.103 Gauthier in-corre precisamente nesse erro, isto é, no erro de analisar umaestrutura de interação de tipo Dilema do Prisioneiro com baseem suposições que não se aplicam ao homo economicus e sim aalguma variante de homo ethicus.

Isso significa que a noção de maximização contida não temnenhum interesse? Não se trata disso. Podemos concordar comGauthier que a justiça, quando tem por objeto a conduta dosindivíduos, consiste na disposição de aceitar restrições, de acor-do com princípios válidos de justiça, ao empenho em maximizara satisfação dos próprios interesses e preferências.104 E não hádúvida, como o exemplo do cumprimento de promessas exami-nado nesta seção mostra claramente, que arranjos mutuamentevantajosos se tornam possíveis quando cada um desenvolve umadisposição de aceitar essas restrições. É mais ou menos isso que Joseph Stiglitz disse recentemente, ao ressaltar o valor econômicoda disposição de cooperar, da honestidade e da confiança.105

Somente em condições muito específicas (as do mercado perfei-

103 Binmore, 1994, p.162.104 Mesmo essa concordância, contudo, tem dois senões importantes, que

não devem ser esquecidos: Gauthier não mostrou, a não ser por umraciocínio por analogia, por que devemos considerar verdadeiros (ou mais

válidos) os princípios de justiça de sua teoria; e a noção de maximizaçãocontida, se queremos que ela tenha algum papel em uma teoria da justiça,deve ser emendada para excluir a exploração de cooperadores incondicio-nais por cooperadores condicionais.

105 Stiglitz, 1994, cap.16.

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to), o comportamento puramente auto-interessado é suficientepara promover a eficiência econômica. Creio que é pertinente ànossa discussão a seguinte observação de Stiglitz:

a confiança é essencial no mundo em que vivemos; para ser con-quistada, a confiança muitas vezes exige que se aja de uma formanão inteiramente auto-interessada. A confiança foi essencial para odesenvolvimento inicial dos mercados de capital. Em mercados im-perfeitos, certos tipos de comportamento auto-interessado preju-

dicam a eficiência econômica. Nós de fato sabemos que é precisooferecer incentivos que muitas vezes são bastante onerosos para fa-zer que indivíduos auto-interessados ajam de uma forma confiável.

Há nisso uma certa ironia: o capitalismo, na medida em quepromove o comportamento auto-interessado, pode criar umambiente menos propício à eficiência. O capitalismo prosperamelhor em um ambiente em que há uma peculiar combinação de

interesse próprio suficiente para induzir os indivíduos a seempenhar em atividades lucrativas e de comportamento não auto-interessado, no qual a própria palavra é a própria honra e no qualas sanções sociais, e não as econômicas, são suficientes para fazeros contratos serem cumpridos.106

Traduzindo o que Stiglitz está dizendo para a linguagem deGauthier, podemos dizer que uma sociedade na qual a disposiçãode ser um maximizador contido é amplamente disseminada darámais certo, em termos de eficiência paretiana, do que uma socie-dade na qual os maximizadores puros predominam. O problemaé que Gauthier não conseguiu mostrar que é racional adquirir

essa disposição, sempre entendendo-se por racionalidade práticaa maximização pelo agente de sua utilidade esperada. Será de fatomelhor para todos nós, individualmente, se cada um de nós forlevado a crer que é racional cumprir as próprias promessas. Mastudo o que esse argumento consegue demonstrar é que pode serracional para nós nos iludirmos com respeito à racionalidade.107

106 Stiglitz, 1994, p.271.107 É isso que Parfit (1991, p.18-23) conclui examinando um exemplo que

adota a suposição forte de transparência.

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A moralidade, diz Gauthier na passagem de Morals by Agreement que citei no início deste capítulo, pode ser geradacomo uma restrição racional a partir das premissas não-moraisda escolha racional. Ao longo deste capítulo, mostrei que hápelo menos dois componentes cruciais da moralidade por acor-do que não derivam de premissas não-morais: o emprego dacláusula lockeana para definir a posição inicial de barganha e aidéia de maximização contida. Tanto quanto Harsanyi ou Rawls,

Gauthier deriva a moralidade da moralidade.

108

Essa conclusãonão deveria nos surpreender. Partindo-se da suposição de que osagentes não atribuem valor a quaisquer outros objetivos quenão aqueles que lhes são dados por seu interesse próprio, omáximo que se consegue justificar é uma forma de interessepróprio prudencial. Mas a prudência e a moralidade são virtu-

des distintas. Não mostro nenhuma restrição moral à minhaconduta se só me disponho a aceitar restrições às minhas esco-lhas, hoje, com base em um cálculo dos benefícios que issopropiciará a meus eus futuros. Com isso Gauthier está de acor-do; mas seu esforço de derivar restrições morais genuínas derazões puramente relativas ao agente não foi bem-sucedido. Não

há como justificar restrições desse tipo sem apelar para umamotivação especificamente moral: o desejo de levar em conta,nas próprias ações, os interesses de outros eus.

 Já falei o bastante, acredito, de perspectivas normativas queprivilegiam unilateralmente as razões para agir relativas ao agen-te. É hora de mudar de ares.

108 Esta é uma frase de efeito. O quero dizer é que só é possível chegar aconclusões morais partindo-se de suposições morais. Isso não significaque as conclusões meramente repitam as suposições iniciais, ou que nãose possa argumentar em favor dessas suposições.

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CAPÍTULO 4

PREFERÊNCIAS INDIVIDUAISE JUSTIÇA SOCIAL

A discussão, nos dois capítulos que se seguem, terá por objetocentral as duas teorias éticas estudadas neste trabalho outilitarismo e a justiça igualitária que tomam por ponto de par-tida a idéia de que as instituições sob as quais vivemos deveriam

dispensar uma consideração igual pelo bem-estar de todos. Nonível mais fundamental da argumentação normativa, as divergên-cias entre as duas perspectivas se apresentam em relação à escolhadaquilo que Sen denomina o espaço moral pertinente à avalia-ção do bem-estar individual.1 Quais são os aspectos da vida deuma pessoa nos quais devemos nos concentrar para avaliar o ní-

vel de bem-estar que usufrui, ou que, em comparação ao que estáao alcance de outras pessoas (em uma mesma sociedade e tam-bém em sociedades distintas), ela deveria usufruir? As institui-ções sociais deveriam dispensar um tratamento igual e imparcialaos cidadãos com respeito precisamente a quê?

Uma resposta que é imensamente influente na economia dobem-estar, e mesmo em parte considerável da teoria política

1 Sen, 1992, p.12-30. No capítulo 5, os méritos relativos dos princípios dejustiça distributiva propostos por uma e outra, o princípio da maximizaçãoda utilidade média e o princípio de diferença, serão confrontados.

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contemporânea, é a que John Harsanyi propôs denominar prin-cípio de autonomia das preferências: para julgar o que é bomou ruim para um determinado indivíduo, somente seus própriosdesejos e suas próprias preferências podem constituir o critérioúltimo.2 Essa é uma resposta perturbadora para todos que, comoeu, acreditam que deve haver um fundamento não subjetivo paraestimar e comparar os níveis de bem-estar de diferentes indiví-duos. Basta dizer, por exemplo, que os direitos econômicos e so-ciais são previstos na Declaração Universal dos Direitos Huma-nos com base na suposição implícita de que um fundamento dessetipo existe.

Seria difícil demonstrar diretamente a maior plausibilidadede uma concepção objetiva de bem-estar. O que é possível fazer é,em primeiro lugar, mostrar por que a concepção subjetiva (isto é,que entende o bem-estar somente em termos das preferênciasdos próprios agentes) não oferece uma interpretação plausível dobem-estar individual e, sobretudo, não propicia um fundamentoaceitável à comparação de níveis de bem-estar. Em segundo, te-mos que nos perguntar se não há uma forma distinta de lidarcom o problema central (que explicitarei adiante) para o qual aconcepção subjetiva apresenta-se como uma proposta de solução.Esses são os dois temas principais deste capítulo. E apesar de nãome preocupar especificamente com isso no momento, acreditoque pelo menos algumas das razões que apontarei para rejeitar aspreferências individuais como um fundamento suficiente para osjulgamentos de bem-estar social também se aplicam a concepçõesrelativistas de bem-estar (isto é, as que entendem que sua estima-ção é indissociável de crenças e tradições morais locais).

Faço dois esclarecimentos sobre o que se pode esperar dadiscussão deste capítulo. O que faço a seguir é tratar de algunsdos problemas que dizem respeito à filosofia do bem-estar. Se oargumento que eu desenvolver for razoavelmente bem-sucedido,o que dele poderia resultar é uma resposta à questão: por que émais justificado avaliar o bem-estar individual com base no aces-

2 Harsanyi, 1982, p.55.

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so que as pessoas têm a determinados direitos, recursos e oportu-nidades, do que avaliá-lo somente em relação à satisfação depreferências individuais?. O que a resposta a essa questão pode-rá nos propiciar é um fundamento moral para as comparaçõesinterpessoais de bem-estar; constitui uma questão separada a desaber se desse fundamento é possível derivar-se uma métricaprecisa para a estimação de níveis de bem-estar.

O segundo esclarecimento é o seguinte. Tratarei aqui do lu-gar que as preferências individuais devem ocupar em compara-ções interpessoais de bem-estar, julgamentos estes dos quais nãopodemos nos furtar nos casos em que é preciso deliberar sobre adistribuição ou avaliar a distribuição efetivamente realizada de recursos sociais escassos. Esta é a ótica própria de uma teoriada justiça social. Um outro ponto de vista segundo o qual sepode considerar as preferências individuais é vê-las como inputsdo processo político. Desse ponto de vista, preocupamo-nos so-bretudo com os dispositivos institucionais de decisão coletiva.Algumas das perguntas que certamente faremos são do tipo: oprocesso de tomada de decisão coletiva deve organizar-se paraagregar, e exprimir, tão fielmente quanto possível, as preferênciasefetivas dos cidadãos?, ou ele deve organizar-se de molde a tam-bém permitir que os cidadãos criem ou revisem suas própriaspreferências acerca de questões públicas?. Essas são questões quedeveriam ocupar um lugar importante em nossas reflexões sobrea democracia.3 Mas elas não pertencem, estritamente falando, aodomínio da justiça.4 O que uma teoria da justiça social pode nosajudar a fazer é depurar um padrão segundo o qual é possíveljulgar a qualidade moral dos resultados do processo político. Ademocracia e a justiça, infelizmente, nem sempre caminham jun-tas. Mas uma teoria da justiça não se propõe ser um substitutopara a deliberação política; o máximo que se pode esperar da

3 Para uma discussão dessas questões, ver, por exemplo, Elster, 1983, p.33-42.

4 É claro que é de suma importância a questão de que dispositivosinstitucionais democráticos são mais propícios a gerar resultados justos.Direi algo sobre isso no capítulo 6.

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primeira é um exame rigoroso de idéias e argumentos que, deuma forma ou de outra, os próprios cidadãos empregam quandoparticipam da deliberação política de um modo informado eponderado.

O utilitarismo de preferências

Queremos saber por que julgamentos de justiça social nãopodem se basear meramente na satisfação de preferências indivi-duais ou, para colocar o problema de uma outra forma, que ra-zões há para rejeitar a idéia de que a utilidade social só pode serconcebida em relação à agregação de utilidades individuais. Esteé o ponto de vista de Harsanyi: A teoria utilitarista que propusdefine a utilidade social a partir de utilidades individuais, e defi-ne a função de utilidade de cada pessoa com base em suas prefe-rências pessoais. Dessa forma, a utilidade social é, por fim, defi-nida em relação às preferências individuais das pessoas.5 Mas,antes de criticá-lo, é preciso perceber de onde o utilitarismo depreferências retira sua plausibilidade.

Um primeiro ponto a esclarecer é o seguinte: o princípio deHarsanyi não necessita apoiar-se em uma psicologia hedonistaa laBentham.6 O utilitarismo hedonista e o utilitarismo de preferên-cias têm somente um ponto em comum. Ambos compreendem obem-estar individual de forma subjetiva: enquanto o primeiro oconcebe baseando-se na presença de certos estados mentais cons-cientes, de prazer ou de dor, discerníveis por introspecção, o se-

gundo o entende com base na satisfação ou frustração de prefe-rências. (Estados mentais e preferências, bem entendido, da pes-soa cujo bem-estar está sendo avaliado.)

As semelhanças, entretanto, param por aí. Um hedonismonão-qualificado oferece uma explanação por demais implausível

5 Harsanyi, op. cit., p.54. Este ponto de vista é denominado, na literatura,welfarismo subjetivo.

6 Harsanyi endossa a teoria da preferência revelada, a que fiz referênciana seção Harsanyi & Gauthier do capítulo 3 (ver nota 10).

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do bem-estar individual. Há muita coisa que fazemos indepen-dentemente das sensações subjetivas de prazer ou de dor que paranós possam resultar. Há excepcionais realizações profissionais,científicas ou artísticas, por exemplo, que só podem ocorrer àcusta de pesados sacrifícios pessoais seja porque impõem sofri-mentos, seja porque exigem a renúncia a coisas que produziriamestados conscientes de prazer a seus realizadores. Muitos ou-tros exemplos, que não necessariamente envolvem graus tão ele-vados de excelência individual, poderiam ser mencionados. Possofazer coisas objetivando produzir estados conscientes desejáveisem outros, ou então contribuir para algum estado de coisas obje-tivo. Se formos obrigados a dizer que tudo isso ocorre à custa debem-estar individual, então talvez seja melhor desconfiarmos queo problema está na concepção de bem-estar que estamos ado-tando (isto é, uma concepção hedonista).

 John Stuart Mill procurou escapar dessas dificuldades daconcepção hedonista valendo-se de uma distinção entre prazeressuperiores e prazeres inferiores e postulando que os sereshumanos, em condições normais, derivam mais utilidade dosprazeres superiores e do exercício de suas capacidades mais eleva-das. É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco

satisfeito; é melhor ser um Sócrates insatisfeito do que um tolosatisfeito. E se o porco e o tolo têm uma opinião diferente dessa,é porque eles só conhecem seu próprio lado da questão. A outraparte da comparação está consciente dos dois lados.7 Com essadoutrina dos prazeres superiores e inferiores Mill está, na ver-dade, adotando uma concepção objetiva da felicidade humana,

na suposição de que os ingredientes dessa concepção são tambémaqueles que produzem estados conscientes desejáveis, ou são aque-les pelos quais os indivíduos desenvolvem preferências mais in-tensas. Isso afasta o ponto de vista de Mill (que poderíamos deno-minar utilitarismo objetivista) das duas concepções subjetivasde bem-estar que estou confrontando.

Neste ponto, estamos em condições de perceber de onde vemo apelo do utilitarismo de preferências. Contra o hedonismo não-

7 Mill, 1961, p.333.

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qualificado, a noção de utilidade deixa de ter um vínculo necessá-rio com os estados sensoriais do agente. Um exemplo extremomencionado por Derek Parfit ajuda a esclarecer o que está emquestão.8 Sofrendo de dores agudas provocadas por um câncerem estágio avançado, Freud, no final de sua vida, viu-se diante deduas alternativas. Tomar drogas anestésicas que o mergulhariamem um estado de torpor, ou não as tomar e, mesmo em meio aotormento das dores, manter-se capaz de pensar com clareza. Freudpreferiu a segunda alternativa. Do ponto de vista do hedonismonão-qualificado, teríamos que dizer que a satisfação dessa prefe-rência reduziu o nível de bem-estar de Freud; de acordo com outilitarismo de preferências, diríamos que sua escolha foi a me-lhor, pesando-se tudo, para o seu próprio bem-estar.

Esse exemplo já evidencia o ponto forte do princípio deHarsanyi, que o opõe ainda mais frontalmente ao utilitarismoobjetivista que atribuí a Mill.9 Trata-se de um ideal de neutrali-dade: em nossos julgamentos de justiça social (ou de utilidadesocial), devemos evitar os julgamentos de valor que tenham porobjeto as preferências e as escolhas individuais. Para esclarecermelhor o que está em questão, vamos supor que nos encontra-mos na posição de decidir who gets what com respeito à distri-buição de um determinado recurso social escasso. O ideal deneutralidade rejeita que optemos por distribuir o recurso X (oumais do recurso X) ao indivíduo  A, em vez de distribuí-lo aoindivíduo B (ou que optemos por dar menos de X a B), porqueacreditamos que as preferências de A são mais valiosas (porqueacreditamos que X será empregado para satisfazer as preferênciasque, no caso, julgamos terem mais valor). Digamos que se trateda decisão de distribuir uma cesta básica a A ou a B (supondo-seque ambos encontrem-se em circunstâncias similares). A neutra-

8 Parfit, 1991, p.494.

9 O princípio de Harsanyi rejeita, de forma geral, todas as teorias moraisperfeccionistas, isto é, as que consideram que o bem-estar individualdeve ser avaliado, não pela satisfação das preferências efetivas dos agentes,e sim pela satisfação daquelas preferências que estão de acordo com umideal da melhor vida humana.

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lidade exclui que entreguemos a cesta a A, e não a B, porquesabemos (é um fato) que B costuma beber (e é possível que tro-casse a cesta por aguardente) e porque acreditamos (é um julga-mento de valor) que a preferência pela abstemia é melhor do quea preferência pela bebedeira. O princípio de autonomia das pre-ferências requer que encontremos outro fundamento para nossadecisão. Volto a este ponto mais adiante.

A plausibilidade prima facie do utilitarismo de preferênciasresulta da resposta, à primeira vista irretorquível, que oferece aoproblema da neutralidade (tal como caracterizado no parágrafoanterior) nas comparações interpessoais de bem-estar. A forçadessa resposta está na rejeição do paternalismo (na forma do eusei o que é melhor para você), sobretudo nas decisões de políticapública e no funcionamento de instituições sociais básicas. Nãoqueremos conceder às autoridades públicas o poder discricioná-rio de decidir sobre a distribuição de recursos escassos e sobreo emprego ou a abstenção do emprego da coerção coletiva demodo geral com base no que elas acreditam que cada um denós deveria preferir ou fazer.

O paternalismo, portanto, é o problema para o qual o uti-litarismo de preferências se propõe ser a solução. Se queremoschegar a uma concepção não-subjetiva de bem-estar individual (eda comparação de níveis de bem-estar), e também rejeitamos ainterferência discricionária nas preferências e escolhas individuais,então não podemos nos furtar a conceber uma solução distintapara o problema do paternalismo. Antes disso, porém, é tempode ver o que há de errado com o princípio de Harsanyi.

A maleabilidade das preferências

Há um ponto que precisa ser esclarecido na comparação que

fiz entre o utilitarismo hedonista e o utilitarismo de preferências.Ao passo que o hedonismo (subjetivo ou objetivista) só foi consi-derado na condição de uma concepção do bem-estar individual,isto é, na condição de uma teoria do que torna uma vida boa para

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quem a vive, o utilitarismo de preferências foi considerado dessaótica e também como uma teoria moral. Dizer que uma coisa é boapara a pessoa (é um interesse seu) porque produz nela um estadoconsciente prazeroso, ainda não nos diz nada sobre que espéciede exigência esse interesse apresenta para outros.

O princípio de Harsanyi, diversamente, já de início é de na-tureza distributiva. O que ele propõe é que a satisfação de prefe-rências individuais deve erigir-se no critério último para a distri-buição de recursos escassos (e, de modo geral, para todo e qual-quer emprego da coerção coletiva). Ao tomar decisões de políticapública, ou ao avaliá-las de um ponto de vista imparcial, só deve-ríamos levar em conta a intensidade das preferências individuais esua distribuição pela comunidade, abstendo-nos, como vimos naseção anterior, de julgá-las por seu valor intrínseco. O fundamen-to de nossas decisões distributivas deveria constituir-se somenteda força e do grau de difusão de preferências individuais.

Pode-se duvidar que seja possível realizar comparaçõesinterpessoais de bem-estar que levem em conta a intensidade daspreferências individuais. Mesmo que concordemos que o bem-estar individual deve ser estimado somente com base na utili-dade, e esta somente com base na satisfação de preferências indi-viduais, restaria ainda o problema de que procedimento de agre-gação adotar para o cálculo de uma função social de utilidade.A regra da maioria, uma possível candidata a desempenhar essepapel, é insensível à intensidade das preferências.10 Mas não que-ro me deter aqui em questões de praticabilidade, já que um prin-cípio pode ter importância prática ainda que não disponhamos

de nenhum algoritmo para aplicá-lo.

10 Na linguagem da economia do bem-estar, a regra da maioria é umprocedimento decisório que permite realizar comparações ordinais, masnão comparações cardinais de utilidade. No primeiro caso, tudo o queé possível dizer é que, por exemplo, a alternativa a é preferida à b, que é

preferida à c, e assim por diante. No segundo caso, a ordem leva em contaquão preferida é cada uma das alternativas. A ordenação de preferênciasdeveria, então, ser algo do tipo: a alternativa a, produzindo 40 unidadesde utilidade, é preferida à b, que produz 35 unidades de utilidade, que épreferida à c (5 unidades de utilidade), e assim por diante.

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As objeções mais fortes ao utilitarismo de preferências estãotodas relacionadas à seguinte questão: com base em que, e semque tenhamos que nos afastar decisivamente do princípio deautonomia das preferências, podemos excluir certas preferênciasde nossos julgamentos de justiça social? Essa questão suscitaimediatamente uma outra: que espécie de preferências devería-mos excluir desses julgamentos? Examino, a seguir, três tipos depreferências que desafiam qualquer concepção plausível de jus-tiça. Uma primeira categoria é a das preferências ofensivas. Emuma segunda estão as preferências cuja satisfação impõe exigên-cias excessivas aos outros (os gostos caros). E, finalmente, en-contram-se as preferências que fazem exigências mais modestasaos outros do que, fossem outras as circunstâncias, deveria ser ocaso.

Comento brevemente as preferências ofensivas, a saber, aque-las que são de natureza discriminatória e/ou cuja satisfação (sem-pre tendo por foco as decisões de política pública) causa dano àvida, à dignidade humana ou à liberdade de outros. Estaríamosdispostos a admitir, para ilustrar, que atitudes bastante popu-lares no Brasil do tipo preso tem mais é que morrer tenhamlivre curso para determinar como a coerção coletiva será empre-gada? Obviamente, não. A estratégia liberal clássica para lidarcom este problema consiste em resguardar certos interesses indi-viduais, protegendo-os de cálculos welfaristas que contenham umcomponente ofensivo desse tipo, por meio de uma carta constitu-cional de direitos e, eventualmente, também por meio de umprocedimento de revisão judicial ou de controle da consti-tucionalidade das leis aprovadas pelos legislativos.11 Harsanyi en-frenta o problema sugerindo que a compaixão humana em que sefunda a moralidade utilitarista torna legítima a exclusão de to-das as preferências nitidamente anti-sociais, tais como o sadismo,

11 Vão nessa linha a célebre definição, proposta por Dworkin (1985), dosdireitos individuais como trunfos que os indivíduos podem sacar contraos cálculos utilitaristas discriminatórios e a defesa de Samuel Freeman(1994), que não é relevante somente para o contexto norte-americano, doinstituto da revisão judicial.

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a inveja, o ressentimento e a malevolência do cálculo da utilida-de social.12

Ainda que aceitemos essa primeira qualificação ao princípiode autonomia das preferências, dificuldades mais sérias surgemquando passamos à segunda das categorias de preferências men-cionadas acima. O welfarismo subjetivo propõe-se a levar em con-ta as variações individuais de preferências. Digamos que, dessaótica, um objetivo fundamental deve ser o de tornar as pessoastão iguais quanto possível no grau de satisfação que alcançam desuas próprias preferências. O problema que se apresenta é o se-guinte: com base em que vamos arbitrar a razoabilidade das exi-gências que a satisfação das diversas preferências faz aos outros(isto é, à sociedade)? Adaptando um exemplo sugerido por KennethArrow, vamos considerar o caso em que, ao passo que um indiví-duo satisfaz suas preferências gastronômicas com água e farinhade soja, o outro se sente terrivelmente infeliz sem vinhos e comi-das finas e raras.13 Se tomamos a intensidade das preferênciascomo a métrica para estimar o bem-estar individual, e queremosigualar o nível de bem-estar dos dois indivíduos, então somoslevados, contra-intuitivamente, a propor que uma parcela maiordos recursos sociais escassos seja destinada ao indivíduo (o se-gundo), que é um consumidor mais eficiente de bens (aquele queé capaz de derivar sempre mais utilidade individual de parcelasadicionais de recursos).14 Note-se que um consumidor mais efi-ciente de bens, para quem a utilidade marginal de unidades adi-cionais de determinados bens só decresce muito lentamente, éum consumidor ineficiente de recursos sociais escassos, já que eledemanda parcelas maiores desses recursos para atingir o mesmonível de satisfação que alguém cujas preferências exigem menos.

É contra-intuitivo sustentar que uma pessoa que desenvol-veu gostos caros deva, para atingir o mesmo nível de satisfaçãode uma outra cujos gostos e ambições são mais modestos, fazerjus a uma parcela maior dos recursos escassos da sociedade. E, no

12 Harsanyi, op. cit., p.56.13 Arrow, 1973, p.254.14 Scanlon, 1975, p.659.

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entanto, não é fácil ver de que forma o welfarismo subjetivo po-deria fazer frente a essa objeção.15 Como Dworkin argumentoucom muita força, as concepções de igualdade de bem-estar, isto é,as concepções que propõem igualar o bem-estar das pessoas se-gundo a estimação subjetiva que cada uma faz de seu próprionível de bem-estar, acabam por se contradizer.16 Nas compara-ções interpessoais de bem-estar, qualquer que seja a concepção deigualdade que adotemos, somos inevitavelmente levados a avaliaraté que ponto são razoáveis as exigências que a satisfação dedeterminadas preferências faz à sociedade. Essa razoabilidade,entretanto, não é um atributo das próprias preferências ou desua intensidade trata-se de um padrão externo às preferências.Se não temos como evitar recorrer a uma noção de exigênciarazoável nas comparações interpessoais, então nossa concepçãode igualdade, mesmo que se atenha a uma métrica subjetiva, jáembute suposições prévias de eqüidade distributiva. E essas su-posições prévias necessitam de uma justificação que seja indepen-dente dos interesses individuais que serão comparados.

Harsanyi não ignora a objeção dos gostos caros. Seria absur-do, diz ele, asseverar que temos uma obrigação moral de ajudaras outras pessoas a satisfazer seus desejos mais desarrazoadosigual à que temos de ajudá-las a satisfazer seus desejos mais razoá-veis. Mas Harsanyi enfrenta a objeção recorrendo a uma distin-ção que dificilmente podemos considerar consistente com seupróprio princípio de autonomia das preferências:

Tudo o que temos que fazer é distinguir entre as preferências

manifestas e as preferências verdadeiras de uma pessoa. Aspreferências manifestas são suas preferências efetivas, tais como serevelam em seu comportamento observado, incluindo aquelas quetalvez se baseiem em crenças fatuais equivocadas, na análise lógicadescuidada, ou em emoções fortes que no momento impedem aescolha racional. Em contraste, as preferências verdadeiras de uma

pessoa são as que ela teria se dispusesse de toda informação fatual

15 Esta é uma das principais objeções de Rawls (sobretudo em Rawls, 1982)ao utilitarismo de preferências.

16 Dworkin, 1981, p.185-246.

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pertinente, se raciocinasse sempre com o maior cuidado possível, ese estivesse no estado mental mais propício à escolha racional.17

É difícil imaginar como essa distinção entre preferênciasmanifestas e preferências verdadeiras não acabe abrindo umabrecha precisamente àquilo que o princípio de autonomia daspreferências mais rejeita o paternalismo. A tentação a que esta-ria sujeito um formulador utilitarista de políticas públicas seria ade partir de sua função de utilidade social preferida, e então pos-

tular que ela está de acordo com as utilidades individuais quederivam da satisfação das preferências certas. Continua em péo ponto enfatizado por Dworkin: quando comparamos interessesindividuais, a métrica que empregamos não está contida nessespróprios interesses. E de nada adiantaria substituir o arbítrio dasatisfação de preferências individuais pelo das preferências dosque tomam as decisões de política pública.

Ainda resta considerar a terceira categoria de preferênciasmencionada anteriormente (que pode ser vista como um subcasoimportante da segunda categoria). Como devemos avaliar as pre-ferências cuja satisfação exige menos dos outros do que seria ocaso se as circunstâncias de background institucional fossem ou-tras? Esse é o problema que Elster denominou uvas verdes.18

Um bem, um direito ou uma oportunidade podem ser poucovalorizados por uma pessoa, ou mesmo sequer aparecer em suaescala de preferências, pela simples razão de que ela dificilmentepode desenvolver preferências por algo que não percebe (em ge-

ral, bastante realisticamente) como parte das circunstâncias desua vida. É querer demais que uma pessoa tenha uma preferênciapor alternativas que ela não vê como incluídas no conjunto dasopções que a ela estão disponíveis. Isso se aplica sobretudo quan-do se trata de avaliar as preferências de pessoas que se encon-tram em posição de vulnerabilidade. Essa é uma das mais graves

deformações nos julgamentos de bem-estar social que são pro-

17 Harsanyi, op. cit., p.55.18 Elster, op. cit., p.109-40.

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duzidas quando avaliamos as circunstâncias das pessoas de acor-do com a métrica da utilidade, como ressalta Sen:

É possível que os desejos relativos de uma pessoa por dife-rentes objetos ofereçam prima facie um fundamento aceitável paraavaliar esses objetos de seu ponto de vista. Mas, em comparaçõesinterpessoais, o mesmo procedimento pode produzir arbitrarieda-des de vários tipos. O oprimido social que aprendeu talvez pormeio de amarga experiência a esperar pouco da vida pode ter

aprendido a ter desejos que são facilmente satisfeitos e a se alegrarcom pequenos obséquios. Mas é difícil acreditar que essa pessoatenha, por essa razão, muito bem-estar; ou que ela esteja recebendoum excelente tratamento caso esses desejos disciplinados sejam sa-tisfeitos.19

Considere, por exemplo, o caso de um garoto nordestino

que, por ser obrigado a trabalhar, não pode freqüentar a escola.É possível que em sua escala de utilidade individual, e na de seuspais, aumentar a renda encontre-se em uma posição superior afreqüentar a escola. Se adotamos uma métrica welfarista paraavaliar o bem-estar, seremos levados a crer que o melhor é fazer opossível para aumentar a renda do garoto. Mas podemos, em vez

disso, colocar a questão: que mudanças nas circunstâncias devida do menino são necessárias para que a educação apareça comoum valor importante em sua escala de preferências (e na de seuspais)?.20 Não vejo como esta questão possa ser levantada da óticado utilitarismo de preferências.

A objeção que está sendo feita à perspectiva welfarista é a

seguinte. A satisfação de preferências individuais não é um guiaadequado às decisões de política pública porque o que as pessoaspreferem é, em grande medida, resultado dos bens, recursos edireitos que lhes foram providos em primeiro lugar pelas institui-ções sociais e pela ação pública. Cass Sunstein comenta que hásólidas evidências empíricas, na economia e na psicologia social,

19 Sen, 1984, p.34.20 Aqui a noção de Sen de comparação contrafatual, a que faço referência

no capítulo 6 (seção Um argumento libertariano), é pertinente.

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para o que pode ser denominado endowment effect, isto é, aexistência de um nexo causal entre as atitudes individuais comrespeito a determinados bens e direitos e a oferta desses mesmosbens e direitos. O efeito-provisão é a conseqüência, para as pre-ferências e a disposição de pagar, da alocação inicial de umatitularidade.21

A relevância do efeito-provisão para avaliar de que formaas preferências individuais devem contar em decisões políticas émuito grande. Os exemplos que podem ser apontados são inú-meros e referem-se a áreas distintas da intervenção estatal. Aconcessão de direitos trabalhistas a empregados domésticos in-fluencia fortemente a percepção que eles têm sobre sua atividadee sobre o que seus patrões podem exigir deles; a garantia daaposentadoria aos trabalhadores rurais afeta suas preferênciascom respeito ao valor da previdência social; as atitudes dos mo-radores de uma favela para com o meio ambiente urbano sãopesadamente influenciadas pela provisão (ou ausência de provi-são) de bens públicos essenciais (tais como água potável, sanea-mento básico e limpeza pública) a eles; a percepção que os mora-dores de bairros periféricos de São Paulo têm da importância doacesso a cuidados médicos pode ser afetada pela oferta de ser-viços de saúde nesses bairros;22 e assim por diante.

Admitamos que esteja correto o argumento de que a ofertade determinados bens, recursos, direitos, normas legais ou opor-tunidades condiciona, em larga medida, as atitudes que os indiví-duos têm em relação a cada uma dessas coisas. Nesse caso, ésimplesmente falso dizer que a distribuição desses mesmos bens,

21 Sunstein, 1991, p.8, nota.22 Esse exemplo encontra comprovação empírica em uma pesquisa sobre

movimentos populares de saúde realizada pelo Cedec (sob a coordenaçãode Amélia Cohn), nos anos 80, com moradores das zonas Leste e Sul dacidade de São Paulo. Apesar da carência por equipamentos de saúde ser

maior na zona Sul, foram os moradores da zona Leste que desenvolveramuma percepção mais aguda da saúde como um problema prioritário, e querevelaram mais disposição de participar de ações coletivas que tinham odireito à saúde por alvo, justamente porque lá houve mais investimentos do

 poder público em serviços de saúde. Cedec, 1989.

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recursos, direitos, normas legais e oportunidades possa justificar-se pela satisfação de preferências individuais. A eqüidade de umadistribuição não pode justificar-se pelas preferências que os indivíduossão levados a cultivar por essa mesma distribuição. Novamente, damesma forma como já ocorreu com respeito aos gostos caros, oproblema da maleabilidade das preferências nos pressiona a bus-car um fundamento não-subjetivo para a estimação e a compara-ção de níveis de bem-estar individual. Antes de passar a essetópico, há ainda um ponto que vale a pena comentar no contextoda presente discussão.

O que há de errado com o relativismo moral

A maleabilidade das preferências não levanta uma objeçãosomente para o welfarismo subjetivo (que coloca todo o peso navariação interpessoal de preferências). Uma objeção similar apli-ca-se às concepções relativistas de bem-estar social (que colocamtodo o peso na variação intercultural de padrões morais).

 Já argumentei que temos razões ponderáveis para rejeitar umprincípio que nos aconselha a satisfazer preferências individuaissem levar em conta que elas são condicionadas pelo backgroundsocioeconômico e pela modalidade de intervenção (ou pela abs-tenção) estatal. Similarmente, há razões fortes para rejeitar asconcepções que propõem que o bem-estar de uma pessoa somen-te pode ser avaliado pelas crenças e valores da comunidade daqual ela é um membro, sobretudo se: (1) esses valores e crençasperpetuam sua própria situação de inferiorização e de opressãono interior dessa comunidade; e (2) as circunstâncias de sua vidadificilmente permitem outra opção que não a de aderir a essesvalores e a de, conseqüentemente, valorizar positivamente suaprópria situação de opressão. Também nesse caso, o fato de que apessoa prefira a situação em que se encontra não é uma boarazão, e muito menos ainda uma razão de justiça, para que onosso julgamento sobre o que a ela é devido seja guiado por suapreferência.

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Para ilustrar o que estou dizendo, considere o seguinte exem-plo. A dominância de certas tradições morais e concepções devida familiar leva a que, em muitos países pobres, não existasomente um problema de injustiça na distribuição social de re-cursos. Há também um problema de distribuição intrafamiliarinjusta. Nas famílias pobres, essa distribuição (de alimentos acuidados médicos e oportunidades educacionais) em geral bene-ficia os homens e os adultos que têm renda, em primeiro lugar, eprivilegia os meninos em detrimento das meninas, em segun-do.23 Vamos supor (bastante plausivelmente) que as crenças etradições morais comunitárias que coonestam tal estado de coi-sas sejam indisputadas a ponto de que as próprias mulheres nãovejam nenhuma injustiça nele. Diante disso, como poderiam asdecisões de política pública basear-se na avaliação que essas mu-lheres fazem de sua própria situação? Estaríamos dispostos a di-zer, por exemplo, que propiciar-lhes oportunidades educacionaisnão é um objetivo urgente (ou não é tão urgente quanto o é paraos homens) porque seu próprio modo de vida não valoriza a edu-cação das mulheres? Esse é exemplo nítido, acredito, de comotomar as atitudes individuais condicionadas, nesse caso, pelaadesão a tradições morais locais como o critério último paraconstituir julgamentos de bem-estar social, pode levar a distorçõesabsurdas.

Diga-se de passagem que um erro de avaliação desse tipo, sepoderia ser cometido por defensores do relativismo, não o é peloRelatório do desenvolvimento mundial 1990, que foi dedicado àquestão da pobreza. O Relatório recomenda que os Estados dospaíses pobres invistam diretamente na melhoria da qualidade devida das mulheres pobres (que estão entre as maiores vítimas dasconcepções relativistas de justiça social). Essa recomendação, alémde ter a seu lado as considerações de justiça que mencionei noparágrafo anterior, apóia-se ainda em um fato dos mais impor-tantes. Comparando-se a forma pela qual homens e mulherespobres gastam suas rendas, verificou-se que uma proporção maior

23 World Bank, 1990, p.37.

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da renda das mulheres é despendida no bem-estar da família. Aconclusão do Relatório é clara: aumentar diretamente a renda dasmulheres, além de melhorar seu poder de barganha na família, étambém uma boa maneira de beneficiar as crianças.24

Há algo de muito errado com as concepções de justiça socialque enfraquecem a posição dos que são mais vulneráveis. Esta é,em resumo, a principal objeção que deve ser feita tanto aoutilitarismo de preferências quanto às concepções relativistas debem-estar social. Todo relativismo, como diz Onora ONeill,tende a prejudicar a posição dos fracos, cuja fraqueza reflete-seem, e é em parte constituída por, sua (dos fracos) marginalizaçãoem formas tradicionais de pensamento e sua subordinação e opres-são em ordens estabelecidas.25 O que é muito difícil de entenderé o fascínio que o relativismo parece exercer sobre algumas va-riantes de pensamento político de esquerda.

Concepções objetivas de bem-estar

Argumentei, até aqui, que as duas perspectivas teóricas sub-

jetivas de estimação e comparação de níveis de bem-estar, ohedonismo e o utilitarismo de preferências, são contraditóriasem si mesmas. Quando perguntamos (sempre do ponto de vistadas decisões de política pública) que estados conscientes devemser gerados nos indivíduos, ou que preferências individuais de-vem ser satisfeitas, somos impelidos a empregar, ainda que impli-

citamente, alguma métrica não-subjetiva isto é, algum padrãosegundo o qual julgar a razoabilidade, em termos das exigên-cias que fazem a outros, da geração de estados prazerosos de cons-ciência e da satisfação de preferências dos indivíduos.

Se abandonamos a métrica subjetiva, estamos entrando nocampo de uma família de concepções de bem-estar que se filiam

ao que Derek Parfit denominou teoria da lista objetiva. De acordo

24 Ibidem, p.37.25 ONeill, 1993, p.304.

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com este ponto de vista, há coisas que são boas e ruins à vidahumana, independentemente de as pessoas terem uma preferên-cia pelas boas e desejarem evitar as ruins. As coisas boas podemincluir a bondade moral, a atividade racional, o desenvolvimentodas próprias capacidades, ter filhos e ser um bom pai ou uma boamãe, o conhecimento, a percepção da verdadeira beleza. As coi-sas ruins podem incluir ser traído, manipulado, difamado, priva-do da liberdade ou da dignidade e gostar seja do prazer sádico,seja do prazer estético naquilo que de fato é feio.26

O que estamos considerando é uma teoria do bem-estar indi-vidual, e não, ainda, uma moralidade. Nada foi afirmado, atéaqui, sobre que deveres esses ingredientes de uma boa vida hu-mana impõem a outros. (Ser um bom pai ou uma boa mãe, porexemplo, mesmo sendo um aspecto importante do bem-estar in-dividual, não é um bem de que outros possam nos prover.27) Nãoserá essa teoria, esta é a objeção a considerar já de início, fundadaem um desavergonhado julgamento de valor (sobre o que é umaboa vida humana)?

Devagar com o andor. É verdade que o utilitarismo de prefe-rências invoca a seu favor a suposição de que os julgamentos devalor, se essa perspectiva é adotada, são tanto quanto possívelevitados. Para Harsanyi, a identificação e a comparação da inten-sidade das preferências individuais são julgamentos fatuais.28 Nãoé porque adotamos uma teoria da lista objetiva, no entanto, que

26 Parfit, op. cit., p.499.

27 Outros podem nos prover, entretanto, de oportunidades suficientes paraque possamos ser um bom pai ou uma boa mãe.28 Essa suposição, entretanto, é energicamente contestada por Donald

Davidson. Para ele, a mera atribuição de interesses e preferências a outrosjá envolve o apelo a um fundamento compartilhado: as proposições deque tenho que me valer para interpretar as atitudes de outros são definidaspelos papéis que essas mesmas proposições desempenham em meu pensa-

mento, em meus sentimentos e em meu comportamento; por isso, elas têmque desempenhar papéis adequadamente similares na interpretação. Segue-se desse fato que a interpretação correta faz que o intérprete e o interpreta-do compartilhem de muitos valores e crenças estrategicamente importan-tes (1986, p.209).

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estamos cedendo incontinenti a um julgamento de valor. Sobreisso, é pertinente um comentário de Amartya Sen à frase de MollieOrshansky de que a pobreza, como a beleza, encontra-se nos olhosdo observador. O que Orshansky quer dizer é que nossa avaliaçãoda pobreza como algo ruim (e que certamente tem um lugar dedestaque na lista de coisas ruins já mencionada) é um julgamentode valor. Mas há aí uma confusão entre dois tipos de julgamentos.Uma coisa é um julgamento prescritivo direto do tipo isto é ruim.Outra coisa é um julgamento do tipo de acordo com padrõesnormativos que são amplamente compartilhados, isto é ruim. Ape-sar de nossos valores de algum modo sempre interferirem na for-ma como avaliamos os fatos, devemos ter em mente que descre-ver uma prescrição existente, como diz Sen, é um ato de descri-ção e não de prescrição.29 Se o welfarismo subjetivo pretendeapoiar-se em fatos como eles são (ver, no entanto, a nota 28), ateoria da lista objetiva busca apoiar-se em fatos sobre valores.

Não é pecar por excesso de objetividade sustentar que hácertos bens que são valiosos, e há coisas que são prejudiciais, parauma diversidade de concepções individuais do bem (ainda quenão para todas) e para a vida humana em uma variedade de con-textos culturais (ainda que não em todos). Uma suposição dessetipo está presente em todas as concepções de bem-estar que per-tencem à família da teoria da lista objetiva. Entre seus membrosmais proeminentes, encontram-se a concepção de Rawls de que obem-estar individual deve ser estimado por referência a um índicede bens primários,30 a de Sen que propõe que o foco deve recairem um rol de  functionings e capacidades humanas e a de Doyal& Gough (e outras semelhantes) que propõe avaliar o bem-estartomando por referência certas necessidades humanas básicas.31

Todas essas concepções são não-subjetivas e anti-relativistas; e to-das elas podem ser compreendidas como interpretações da con-

29 Sen, 1981, p.17.30 Tais como a renda e a riqueza, as oportunidades educacionais, ocupacionaise de gozo do lazer e o auto-respeito.

31 Rawls, 1971, p.90-5 e cap. VII, 1982; Sen, 1992, 1993; Doyal & Gough,1994.

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cepção de bem-estar humano que está na base da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos.

E como comparamos interesses individuais conflitantes daótica da teoria da lista objetiva? Quando fazemos essa pergunta,nossa concepção de bem-estar individual torna-se a peça-chave deuma teoria moral (de uma teoria da igualdade distributiva). Oponto fundamental é o seguinte. Diversamente do que propõe owelfarismo subjetivo, não julgamos a legitimidade das exigênciasque esses interesses fazem aos recursos escassos da sociedade pelaforça com que seus portadores os defendem, nem pela intensida-de com que eles os preferem, e nem tampouco pelo grau de satis-fação que o atendimento dessas exigências lhes traria. O que faze-mos é inquirir as razões pelas quais algo é preferido.32 Se quere-mos escapar dos becos sem saída a que a métrica subjetiva nosleva, não há como evitar os juízos sobre o conteúdo das preferên-cias nas comparações interpessoais. Que alguém (ou grupo) tenhauma preferência por alguma coisa, isso em si mesmo não é umaboa razão para que esse interesse pese nas decisões de políticapública. Ainda temos que constituir um julgamento sobre a im-portância moral do interesse em questão. E fazemos isso recorren-do à nossa concepção de bem-estar individual (nossa, isto é, dosque aceitam a teoria da lista objetiva). Um interesse terá tantomais peso moral quanto mais relacionado estiver com um ou vá-rios dos bens que são percebidos, por pessoas que têm valoresdistintos, como os ingredientes indispensáveis de uma boa vidahumana. De acordo com esse ponto de vista, não é meramentepor ser objeto de uma preferência que uma coisa é boa ou valiosa.Porque constitui um bem, temos uma razão (de natureza intersub-jetiva) para preferi-la.

Note que julgar a importância moral de interesses individuaisem comparações interpessoais não envolve julgar o valor intrínse-co desses interesses, nem julgar até que ponto seus portadores sãocapazes de avaliar corretamente o que é melhor para as suas pró-prias vidas. O julgamento sobre a urgência moral de uma prefe-

32 Scanlon, 1975, 1991 e 1993.

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rência ou interesse individual é perfeitamente compatível com afórmula benthamita de que o indivíduo é o melhor juiz de seupróprio bem. Se uma pessoa se sente profundamente infeliz pornão poder desfrutar de bebidas e iguarias sofisticadas e raras, nãodizemos que ela tem uma preferência por um prazer inferior.Tampouco dizemos que tal preferência revela que ela não sabe oque é melhor para sua própria vida. A única coisa que julgamossão as exigências que a satisfação dessa preferência faz a recursossociais escassos. Quando, nas comparações interpessoais, inqui-rimos as razões de algo ser intensamente desejado, somente te-mos em mente o custo social de oportunidade da satisfação dessedesejo um custo que tem que ser avaliado por referência aosdesejos, intensos ou não, que serão frustrados. (Volto a essa ques-tão na seção seguinte.)

Se deixarmos de lado as considerações puramente estratégi-cas,33 a teoria da lista objetiva permite uma explanação mais plau-sível do fundamento das comparações de interesse individual quefreqüentemente realizamos. Normalmente consideramos que pre-servar a liberdade de expressão é um bem mais importante do quesatisfazer as preferências (mesmo que intensas) de algumas pes-

soas que detestam ver cenas de sexo ou de nudez na televisão; quegarantir a cada um suficientes oportunidades de desenvolver suascapacidades básicas é prioritário à satisfação das preferências dealguns por formas especialmente custosas de educação ou treina-mento; e que é mais importante garantir uma nutrição adequadaa pessoas que estão passando fome do que garantir a outras os

33 A teoria da justiça não leva em conta as considerações estratégicas. Assituações propícias à deliberação justa, tais como a posição original deRawls, são concebidas exatamente para neutralizar as desigualdes de poder.Não queremos que elas interfiram na formulação de princípios. Constituiuma questão separada a de saber como a aplicação de um princípio de

justiça terá que se ver com essas desigualdades. Isso vale também, é claro,para o utilitarismo de preferências. Este veria como moralmente incorreta,por exemplo, a decisão de satisfazer uma preferência fraca de um pequenogrupo poderoso em detrimento da satisfação de uma preferência forte deum grupo numeroso de pessoas desprovidas de recursos de poder.

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meios para satisfazerem uma determinada preferência derivada desuas crenças religiosas (a construção de um templo, por exemplo).Em todos esses casos, estamos implicitamente recorrendo a umamétrica não-subjetiva de avaliação de interesses individuais, deacordo com a qual alguns desses interesses serão vistos como pre-ferências privadas (isto é, que não fazem exigências à sociedade),enquanto outros serão reconhecidos como direitos (isto é, comoaspectos do bem-estar individual que impõem deveres a outros).

Preferências e neutralidade liberal

Vamos supor que concordemos com a existência de um fun-damento moral não-subjetivo, tal como proposto pela teoria dalista objetiva, às comparações interpessoais de bem-estar. Aindaresta uma questão a ser respondida. É possível, recorrendo-se aesse fundamento, conceber uma outra forma de enfrentar o pro-blema para o qual o utilitarismo de preferências se propõe ser asolução, a saber, o problema da neutralidade (tal como já foi carac-terizado)? Estaríamos sendo inaceitavelmente paternalistas ao pro-por que a avaliação do padrão de vida de uma pessoa se faça, nãopela apreciação subjetiva que ela tem de sua própria situação, esim pelo acesso que lhe é assegurado a determinados bens, re-cursos e oportunidades entre os quais os objetos dos direitossociais reconhecidos pela Carta da ONU têm um lugar de desta-que que acreditamos serem os ingredientes de uma boa vidahumana? Estaríamos, dessa forma, fazendo julgamentos de valor,do tipo o que a pessoa A quer não é o melhor para ela, sobre aspreferências e atitudes individuais? Que papel reservamos, afinal,à responsabilidade individual na vida que cada pessoa leva?

Esboçarei a linha geral de argumentação que é adotada, acre-dito, por todas as concepções de bem-estar individual que aceitama teoria da lista objetiva. Para isso, vou partir de uma incoerênciaque G. A. Cohen julgou ter detectado na filosofia política deRawls. O problema, que, como nota Cohen, se apresenta ao pen-samento igualitário de esquerda de modo geral, é o de reconciliar

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a representação do indivíduo como capaz de dirigir responsavel-mente a formação de seus próprios gostos com as suposições deque Rawls se vale em outros momentos para justificar seuigualitarismo.34

Vamos esclarecer melhor as duas coisas que parecem incon-ciliáveis. De uma parte, estão as suposições necessárias à justifi-cação do igualitarismo. Rawls (e o pensamento de esquerda demodo geral) rejeita a idéia de que a distribuição desigual derecursos e oportunidades possa justificar-se pelo mérito indivi-dual. O argumento é o de que o mérito individual um atri-buto que é indissociável das preferências, gostos e atitudes decada pessoa35 é fortemente condicionado por determinadascircunstâncias da vida de uma pessoa que estão fora do alcancede sua capacidade de escolha. Ninguém escolhe o país, região

ou comunidade em que nasceu e foi criado, sua posição inicialna sociedade, sua família e sua própria carga genética.36 E atri-buir a situação desfavorável de uma pessoa às suas próprias pre-ferências (ver isso como seu demérito), quando um exame maiscuidadoso da situação deveria atribuí-la em grande medida acircunstâncias que a pessoa não tem como escolher, é uma for-

ma familiar e inaceitável de victim blaming . Observe que se tratade uma variante do argumento da maleabilidade das preferên-cias que antes empreguei para criticar o welfarismo subjetivo.

De outra parte, está a suposição de que o indivíduo deve serresponsável pelo cultivo de seus próprios gostos, preferências efins. Rawls apela a essa suposição para explicar por que sua

concepção de igualdade distributiva não necessita preocupar-secom a satisfação de gostos caros. Vale a pena citar a passagemcompleta de Rawls que é pertinente ao ponto em questão:

34 Cohen, 1993, p.13-4.35 As atitudes individuais concernentes, por exemplo, a trabalhoversus não-

trabalho; a consumo imediato versus poupança; e à disposição de assumirriscos.

36 Esse é o argumento de Rawls da arbitrariedade moral, que será examinadoem detalhe no próximo capítulo e sobretudo na seção Da liberdade naturalà igualdade democrática do capítulo 6.

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enquanto pessoas morais, os cidadãos têm parte da responsabilidadena formação e no cultivo de seus próprios fins últimos e preferências.Não pode ser considerado uma objeção ao emprego dos bens

primários o fato de que isso não acomoda aqueles que têm gostoscaros. É preciso argumentar ainda que é desarrazoado, senão injusto,supor que tais pessoas são responsáveis por suas preferências eexigir que elas se virem o melhor que podem. Mas esse argumentoparece pressupor que as preferências dos cidadãos estão fora de seupróprio controle, como se fossem inclinações e anseios que

simplesmente ocorrem. Tem-se a impressão que os cidadãos sãovistos como portadores passivos de desejos. O emprego dos bensprimários, entretanto, apóia-se na capacidade que temos de assumira responsabilidade por nossos próprios fins.37

Cohen acha que as duas partes da teoria de Rawls não seencaixam. As preferências individuais são vistas de uma forma,quando se trata de desqualificar o mérito como um princípiodistributivo igualitário para a estrutura básica da sociedade, e deoutra, quando o problema é o de justificar a não-satisfação degostos caros. O igualitarismo parece defrontar-se com a desagra-dável impossibilidade de conciliar as suposições que fundamen-tam um princípio de igualdade distributiva com as suposiçõesque fundamentam um princípio de responsabilidade individual.Ou melhor, poder-se-ia supor que a justificação de instituições epolíticas igualitárias estaria sempre na dependência de julgamen-tos que muitas vezes é difícil constituir sobre o grau de autono-mia/heteronomia e de responsabilidade/não-responsabilidadeindividual na formação das preferências individuais. Quantomais heterônomas (isto é, mais atribuíveis a fatores que estãofora do alcance da escolha individual) pudéssemos considerar aspreferências de uma pessoa que contribuem para mantê-la emuma situação desfavorável,38 mais as políticas igualitárias esta-

37 Rawls, 1982, p.168-9.38 Pensemos no caso de uma pessoa pobre que prefere a realização de políticasviárias, que beneficiam sobretudo os não-pobres, a políticas de expansãoe de melhoria dos serviços públicos de educação, saúde e transportecoletivo, que beneficiam mais os destituídos.

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riam autorizadas a ignorá-las isto é, essas instituições e políticasteriam que se justificar por alguma outra coisa que não a satisfa-ção dessas preferências. Quanto mais autônomas as preferências(quanto mais seja possível percebê-las como fruto de escolhasgenuínas), menos se poderia deixar de levá-las em conta nosjulgamentos de igualdade distributiva.

Por que esse problema é relevante para a questão da neutrali-dade? Se a concepção de igualdade distributiva que julgamos sermais correta depende de julgamentos sobre o grau de autonomiadas preferências individuais, então nos vemos obrigados a fazerjulgamentos de valor acerca dessas preferências. As preferênciasgeradas de forma autônoma são boas (da ótica das decisões quedizem respeito à adoção de instituições e políticas igualitárias),enquanto as geradas de forma não-autônoma são ruins (e por

isso seus portadores poderiam fazer jus a alguma forma de com-pensação por parte da sociedade). E fazer distinções de valorintrínseco entre os interesses e atitudes individuais é precisa-mente o que o ideal de neutralidade rejeita.39

Há, entretanto, um sério mal-entendido na objeção de Cohena Rawls. Vimos que uma das razões para rejeitar o welfarismo

subjetivo deriva do problema da maleabilidade ou da hete-ronomia das preferências. Essa é uma objeção que se apresentaa uma teoria que propõe que nossos julgamentos de justiça socialdevem se governar pelo grau de satisfação (já alcançado ou aindaa alcançar) de preferências individuais. Mas, na mesma linha doque argumentei na seção anterior sobre a inquirição das razões

de porque algo é desejado, as comparações interpessoais de bem-estar fundadas no índice de bens primários de Rawls, ou nasdemais concepções que adotam a teoria da lista objetiva, nãorequerem qualquer julgamento sobre o grau de autonomia/hete-ronomia dos interesses, ambições e fins dos indivíduos. Não seestá dizendo que os indivíduos só podem ser compensados por

suas preferências, sobretudo as que os deixam em uma situaçãodesfavorável, nos casos em que seja possível demonstrar que

39 Esse ideal de neutralidade liberal será mais discutido no capítulo 7.

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essas preferências se devem a fatores ou atributos que estão forado alcance de suas próprias escolhas. Não é feito julgamentoalgum sobre o que as pessoas merecem. O que se está dizendo éque a distribuição básica de recursos e oportunidades na socieda-de deve ser independente de preferências, sejam elas constituídasde forma heterônoma ou autônoma.

Nem os julgamentos sobre o grau de injustiça das socieda-des em que vivemos, nem os julgamentos de bem-estar socialque constituiríamos caso vivêssemos em uma sociedade justa,necessitam apoiar-se em juízos sobre o grau de autonomia daspreferências e concepções individuais do bem.40 O objeto dajustiça, como diz Rawls, é a estrutura básica da sociedade e nãoo de constituir juízos moralizantes sobre casos particulares. Oque supomos é que existem bens, recursos e oportunidades queas pessoas, mesmo divergindo em seus valores e atitudes indivi-duais, têm razões para desejar. A suposição seguinte adotadapor todas as concepções de bem-estar que se filiam à teoria dalista objetiva é a de que as instituições básicas da sociedadedevem organizar-se e funcionar de forma a assegurar que umaparcela eqüitativa desses bens e oportunidades seja assegurada àvida de cada pessoa. O que cada um fará com os recursos quelhes foram propiciados que preferências cultivará, que finstentará realizar isso já não é, por via de regra, um assunto dasociedade.41 Mas ninguém terá, tampouco, uma pretensão legíti-ma a exigir compensação da sociedade por conta de preferênciase fins que deixam a pessoa em uma situação desfavorável emcomparação a outras. Não dizemos que a sociedade nos deve

40 Essa é uma formulação mais precisa, acredito, do que a que propus emVita, 1993a, p.69-71.

41 Por via de regra porque há os casos de interferência paternalista justificadanas escolhas individuais (por exemplo, a sujeição de uma pessoa que está

passando por um surto psicótico a um tratamento apropriado, ainda quefazê-lo contrarie sua vontade no momento). Mas isso, novamente, envolvejuízos sobre casos particulares. Supõe-se, além disso, que cada cidadãoempregue o quinhão de recursos que lhe coube para realizar fins quesejam compatíveis com as normas de justiça.

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alguma compensação, diz Rawls, somente em virtude de nos-sas preferências terem sido constituídas pela educação que ti-vemos e não por escolha. É uma parte normal da condiçãohumana lidar com as preferências com as quais nossa educaçãonos deixou.42

Digamos que uma parcela igual de recursos e oportunidadesfoi propiciada às pessoas A e B. Ainda que A sinta-se insatisfeitocom sua situação em razão da frustração de algumas de suaspreferências, ao contrário de B, que avalia sua situação de formapositiva, mesmo assim diremos, a despeito das apreciações subje-tivas divergirem, que o nível de bem-estar de A e B é o mesmo.Ou então digamos que, sob a mesma condição de igualdadedistributiva,  A invista todos os seus esforços em uma custosacarreira que promete recompensas financeiras ou prestígio pú-blico, enquanto B prefere uma vida de menos empenho profis-sional e de mais dedicação à família e aos amigos. Não temosnenhuma razão, do ponto de vista público, para julgar as prefe-rências e as escolhas de A mais valiosas do que as de B. Tal comodiz Rawls no parágrafo anterior, dada uma distribuição eqüitativade bens primários, podemos supor que os indivíduos são capazesde assumir a responsabilidade pelos seus próprios fins (o quesupõe a capacidade de revisá-los, quer tenham se constituído deescolha ou não, à luz da expectativa de ter acesso a um quinhãoeqüitativo desses bens primários). A isso Rawls denomina divi-são social de responsabilidade.43

A conclusão a que chegamos está muito longe de confirmara contradição apontada por Gerald Cohen (entre as suposiçõesnecessárias para justificar a igualdade distributiva e as suposi-ções de autonomia individual). Somente a garantia da igualdadedistributiva na estrutura básica da sociedade torna possível evitar os juízos sobre o mérito intrínseco de preferências e escolhas individuais.Essa é a resposta geral que as concepções não-subjetivas de bem-estar individual dão aos problemas da neutralidade e do pa-

42 Rawls, 1993a, p.185 (ver nota 15).43 Ibidem, p.189.

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ternalismo nas comparações interpessoais de bem-estar pro-blemas esses para os quais o utilitarismo de preferências, à pri-meira vista, parece oferecer a solução mais plausível. A despeitode ser formulada em um nível elevado de abstração, essa respos-ta tem implicações bastante definidas. Se queremos evitar opaternalismo nos julgamentos de justiça social, o melhor é foca-lizarmos, não as preferências, atitudes e interesses individuaisdiretamente, e sim as condições institucionais de provisão dosrecursos e oportunidades que são valiosos a uma diversidade deconcepções individuais do bem. E o que deveríamos contar comouma estrutura básica que promove uma distribuição igualitáriade bens primários? Essa é a questão que vou enfrentar na segun-da parte do capítulo 6.

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CAPÍTULO 5

PLURALISMO MORALE ACORDO RAZOÁVEL

Meu propósito, neste e nos dois próximos capítulos, é o deesclarecer aquela que me parece ser a forma mais vigorosa deargumentar em favor de princípios liberal-igualitários de justiça.Antes de mais nada, aponto o problema que torna um acordoem torno de princípios comuns de justiça tão urgente quanto

difícil de ser alcançado. As comunidades políticas modernas ca-racterizam-se não só por um pluralismo de interesses e de gru-pos e organizações como também por um pluralismo muito maisintratável de concepções do bem. Nisso se incluem as concep-ções que os indivíduos têm sobre o que é melhor para suas pró-prias vidas e, sobretudo, as concepções sobre o que é valioso

para a vida de todos nós, membros de uma mesma comunidadepolítica. Nós divergimos sobre em que consiste nosso bem (indi-vidual e coletivo) porque divergimos a respeito das doutrinasmorais, religiosas, filosóficas ou políticas que consideramos àsvezes de ponta a ponta,1 mais freqüentemente de uma formamenos englobante e estruturada como verdadeiras. Não é preci-

so muito esforço para caracterizar a relevância prática do proble-

1 Ver capítulo 1, nota 22, para uma definição de concepção abrangente dobem.

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ma. Só para mencionar os casos mais extremos, basta pensar-mos no que se passou na ex-Iugoslávia e em Ruanda, ou no quese passa no Afeganistão e na Argélia, países devastados por guer-ras civis originadas de manifestações desse tipo de pluralismo e no que pode vir a ocorrer em um país como a Índia.

A resposta liberal-igualitária ao problema do pluralismo tempor referência central a perspectiva normativa que foi propostapor John Rawls e ainda encontra neste livro sua melhor formu-lação em Uma teoria da justiça. Nem é preciso dizer que a formaque julgo ser mais promissora de interpretar esse tipo decontratualismo se propõe a ser fiel muito mais àquilo que meparece ser o espírito do empreendimento rawlsiano do que à letrados textos de Rawls. Em mais de um momento, como se verá, essainterpretação se afasta de formulações propostas pelo próprio Rawlsem Uma teoria da justiça e em seus textos mais recentes.

Explicito, neste capítulo, as características gerais mais impor-tantes dessa modalidade de contratualismo, comparando-a breve-mente com outras duas perspectivas normativas distintas que vi-mos estudando ao longo deste trabalho: o contratualismohobbesiano e o utilitarismo de John Harsanyi. No capítulo 6,desenvolvo uma discussão sobre os princípios substantivos dejustiça propostos por Rawls. A seguir, no capítulo 7, faço um es-forço para aplicar o contratualismo rawlsiano a duas questões queestão sujeitas às injunções de um ideal de tolerância liberal, doqual deriva uma das proposições normativas centrais docontratualismo rawlsiano. Trata-se da idéia de que um Estado li-beral justo deve ser neutro em relação às diferentes concepçõesdo bem que seus cidadãos empenham-se em realizar. A formacomo devemos entender essa neutralidade é essencial para avaliaros méritos da resposta liberal-igualitária ao problema do pluralismomoral. Uma das questões que examinarei diz respeito a comojustificar um princípio de justiça que histórica e teoricamente ocupauma posição fundante em uma moralidade política liberal: a tole-rância religiosa. A outra questão tem por objeto um tema quepertence à agenda e ao debate políticos brasileiros do momentoem que escrevo este texto: a legalização da união civil entre ho-mossexuais.

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A discussão dessas duas ordens de questões as que caemno âmbito da justiça distributiva e as que caem no âmbito datolerância tem o objetivo de examinar até que ponto a noção deacordo razoável, que argumentarei ser central ao contratualismorawlsiano, é capaz de produzir respostas específicas, e deaceitabilidade universal, para pelo menos uma categoria dos con-flitos de valor que afligem as sociedades modernas as que di-zem respeito a qual é a forma apropriada de reconhecer as exigên-cias da liberdade e da igualdade na estrutura básica de uma socie-dade democrática.

O contratualismo rawlsiano

Em Uma teoria da justiça, Rawls realizou um esforço intelec-tual quase sobre-humano para responder à questão: é possíveljustificar princípios comuns de justiça, e suas correspondentesconfigurações institucionais, a cidadãos que vivem em sociedadescaracterizadas pela forma de pluralismo a que antes fiz menção?A resposta é positiva, mas não se trata de uma justificação qual-quer. Rawls descreve assim seu empreendimento: o que tenteifazer foi generalizar e conduzir para um nível mais elevado deabstração a teoria tradicional do contrato social tal como repre-sentada por Locke, Rousseau e Kant.2 Trata-se, portanto, deuma justificação de tipo contratualista. Mas o que se deveriaentender por isso? Afirma-se, por vezes, que estão ausentes dateoria que Rawls apresentou em seu livro as características distin-tivas de uma teoria genuinamente contratualista. Na construçãoproposta por Rawls (1) não é especificado um ponto de ausênciade acordo, ou estado de natureza, em relação ao qual as partescontratantes teriam de estimar os benefícios que obteriam acei-

tando os termos de um acordo e (2) as partes contratantes nãoavaliam os termos do acordo motivadas unicamente pela

2 Rawls, 1971, p.viii.

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maximização do próprio benefício. Formulando-as de forma po-sitiva, as condições (1) e (2) são componentes centrais docontratualismo hobbesiano. Para esta versão de contratualismo,como foi visto no capítulo 3, só são legítimos aqueles princípiosde justiça sobre os quais se pode afirmar que seriam aquelesconvencionados em uma negociação hipotética em que as partesempenham-se em maximizar sua própria utilidade, cada qualtomando por referência a utilidade com que teria de se contentar

caso a negociação fracassasse isto é, caso não fosse possívelpassar do estado de natureza para um esquema cooperativo fun-dado em princípios acordados de justiça. Como nos contratosprivados usuais, ninguém racionalmente consentiria aos termosde acordo que rebaixassem sua posição relativa na distribuiçãode benefícios (estimados pela utilidade que cada contratante ob-

tém) em comparação à posição inicial de barganha.Essa breve retomada do contratualismo hobbesiano tem opropósito de ressaltar quanto a construção proposta por Rawlsestá distante disso. Proponho, a seguir, uma interpretação geraldo contratualismo rawlsiano. Qualquer estrutura institucional,na medida em que restringe o leque de escolhas e de oportunida-

des disponíveis para os agentes, e na medida em que estabelecenormas que são de cumprimento obrigatório por todos, inevita-velmente envolve algum grau de limitação e mesmo de coerçãosobre aqueles que a ela estão submetidos.3 O que estamos supon-do, quando nos valemos da linguagem da justiça, é que temoscomo oferecer àqueles que estão submetidos a essa estrutura ra-

zões para aceitá-la que são independentes do recurso à coerção.Idealmente, para a versão de liberalismo político que estou consi-

3 Como Rawls admite, mesmo uma sociedade bem ordenada isto é,uma sociedade cuja estrutura institucional realiza de forma aproximadaos princípios de justiça que são publicamente reconhecidos e cujos cida-

dãos, em sua maioria, aceitam regular sua conduta por esses princípios não tem como dispensar o emprego da coerção coletiva: é racional auto-rizar as medidas necessárias à preservação de instituições justas, supondo-se que as exigências da liberdade igual e do império da lei sejam adequada-mente reconhecidas (op. cit., p.576).

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derando, deveríamos ser capazes de justificar dessa forma as ins-tituições básicas da sociedade e as decisões políticas fundamen-tais a cada um dos cidadãos, sobretudo àqueles que se encon-tram em pior situação sob essa estrutura institucional. Se umajustificação desse tipo pudesse em boa-fé ser oferecida, entãoestaríamos em condições de afirmar que os direitos e deveresdistribuídos pelas instituições básicas da sociedade são tão volun-tariamente assumidos pelos cidadãos quanto isso é possível em

uma forma de associação humana a comunidade política que,de fato, nunca é (nem é preciso que seja) voluntariamente consti-tuída. (O Estado não é como uma outra associação voluntáriaqualquer: à parte o caso especial da emigração, trata-se de umaforma de associação na qual entramos ao nascer e só saímos aomorrer.) A questão não é a da gênese histórica da estrutura

institucional vigente em uma dada sociedade se ela emergiu dealgum tipo de contrato, de uma ruptura revolucionária, ou seconstituiu ao longo de um lento processo evolucionário queestá em questão. A questão é outra: esse complexo institucional,seja lá qual tenha sido o modo pelo qual se constituiu, pode serjustificado, por razões que ninguém poderia razoavelmente rejei-

tar, a cada uma das pessoas a quem impõe restrições? Se a respos-ta for negativa, haveria alguma outra estrutura institucional pra-ticável que passaria por esse teste de universalização?

É dessa forma que Thomas Scanlon interpreta a idéia centralda modalidade de contratualismo que encontrou na construçãoproposta por Rawls em Uma teoria da justiça  apesar das hesi-

tações do próprio Rawls sobre isso neste e em seus textos pos-teriores sua mais notável formulação na teoria política contem-porânea.4 É sobretudo nesse ponto, e não por supor que os prin-cípios para uma sociedade justa possam ser derivados somente deuma concepção de racionalidade, que o contratualismo propostopor Rawls pode ser visto como iluminista. A exigência iluminista

4 Ver Scanlon, 1982. Essa interpretação scanloniana da teoria de Rawls édesenvolvida em detalhe e defendida energicamente por Brian Barry. VerBarry, 1989, p.283-4, p.346; e sobretudo Barry, 1995b. Como ficará evi-

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em questão é a de que deve ser possível oferecer justificaçõesinteligíveis para os arranjos sociais básicos (e às formas de autori-dade que constituem) a cada pessoa que sob eles têm de viver. Seisso for possível (repetindo algo que já foi dito), estaremos emcondições de sustentar que a aceitação de formas institucionalizadase coletivas de conduta se funda na vontade livre dos indivíduos, enão na obediência costumeira, ou em um sentido de comunida-de, ou, pior ainda, no temor de sofrer punições.

Trata-se de um padrão extremamente exigente de legitimi-dade política. O contratualismo rawlsiano não pode justificar osprincípios de justiça que recomenda argumentando, como fazemos adeptos da perspectiva hobbesiana, que cada um dos mem-bros da sociedade seria racionalmente levado a aceitá-los consul-tando seu interesse próprio e nada mais. Em vez de nos pergun-

tarmos pelo que cada um pode aceitar, tendo em vista somenteseu interesse próprio, perguntamo-nos pelo que cada um nãotem como rejeitar se considerar eqüitativamente os interesses detodos aqueles (incluindo a si próprio) que deverão conduzir suasvidas sob uma mesma estrutura institucional. A justificação deveser conduzida, agora, de um ponto de vista adequadamente

construído de imparcialidade moral.5 Estamos nos aproximan-do, como não é difícil de perceber, do dispositivo concebido porRawls para testar as justificações oferecidas a diferentes princí-pios substantivos de justiça.

Diga-se de passagem que uma das razões para a influênciaexercida pelo livro de Rawls ao longo já de quase três décadas

está justamente no esforço de articular duas proposições

dente, essa é a interpretação que eu próprio adoto. Embora se possa su-por que essa interpretação trivialize o experimento contratualista, nãovejo muito futuro para os esforços de defender o contratualismo rawlsianoem sua versão, digamos, hard. As razões para isso ficarão claras adiante.

5 Nos termos da distinção discutida no capítulo 1, o contratualismo rawlsiano(e formulações similares) é basicamente uma teoria neutra em relação aoagente, isto é, as razões que invoca são as que todos os agentes podemreconhecer desde que se coloquem de uma perspectiva apropriadamenteimparcial.

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normativas distintas: uma que diz respeito aos procedimentos dejustificação que deveríamos adotar se o que queremos é chegar aum acordo razoável sobre princípios comuns de justiça; e outraconcernente a que princípios substantivos deveríamos esperarque resultassem da adoção desses procedimentos.

O argumento da arbitrariedade moral

O procedimento de construção proposto por Rawls emUmateoria da justiça, entretanto, acabou induzindo a não poucos equí-vocos. Rawls sugeriu que deveríamos considerar mais justifica-dos os princípios de justiça que surgissem da escolha de pessoasmotivadas unicamente por seu interesse próprio deliberando de-trás de um véu de ignorância que não lhes permitisse levar emconta suas concepções do bem, posição social, talentos e capaci-dades e preferências individuais. E sugeriu que o problema dedecisão nessa situação a célebre posição original teria umasolução definida, a saber a escolha dos dois princípios de justiçapor ele propostos.6

O problema central do procedimento da posição original éo de que ele mascara as premissas morais das quais um con-tratualismo como o de Rawls não tem como se afastar. É claroque Rawls está cônscio das premissas morais substantivas semas quais seu procedimento não faz sentido: dadas as circunstân-cias da posição original, a simetria das relações de cada qual paracom os demais, essa situação inicial é eqüitativa entre indivíduos

6 Um princípio de liberdades civis e políticas iguais para todos e um prin-cípio estabelecendo que desigualdades os cidadãos de uma sociedade jus-ta poderiam aceitar, em particular o princípio maximin (ou princípio

de diferença) segundo o qual só são aceitáveis as desigualdadessocioeconômicas estabelecidas para maximizar os benefícios para os mem-bros mais destituídos da sociedade. (O princípio maximin de justiça so-cial não deve ser confundido com a norma maximin de decisão em condi-ções de incerteza, ver nota 9.)

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considerados como pessoas morais, isto é, como seres racionaiscom seus próprios fins e capazes, pelo menos é isso o que vousupor, de um senso de justiça.7 Nessa passagem estão mencio-nadas as duas premissas cruciais: uma noção forte de igualdademoral e uma suposição motivacional, isto é, a de que as pessoassão capazes de agir a partir de um senso de justiça. São essasduas premissas morais substantivas que distinguem umcontratualismo como o de Rawls daquele que considerei ante-riormente. (Voltarei a elas logo adiante.) O problema é que Rawls,em Uma teoria da justiça, não deixou de flertar com o con-tratualismo hobbesiano. A impressão que temos, em muitosmomentos, é a de que ele gostaria de limitar o papel dessas duaspremissas morais à caracterização do status quo adequado à deli-beração sobre princípios de justiça; a partir daí, a argumentaçãopoderia se desenvolver de uma forma consistente com os padrõesde justificação próprios da perspectiva hobbesiana. Em particu-lar, Rawls supôs que o senso de justiça não desempenharia ne-nhum papel na deliberação das partes na posição original. Osenso de justiça só entraria em cena quando eu e você, habitan-tes do mundo real e não do dispositivo contratualista, nos per-

guntássemos: por que deveríamos conformar nossa conduta eas instituições sob as quais vivemos aos princípios de justiça quesão os mais justificados do ponto de vista da posição original?A motivação das pessoas na posição original, diz Rawls em Umateoria da justiça, não deve ser confundida com a motivação daspessoas na vida cotidiana que aceitam os princípios que seriam

escolhidos e que têm o correspondente senso de justiça.8

Não creio que essa tentativa tenha sido bem-sucedida. Entreoutros críticos, John Harsanyi argumentou que, empregando-seuma regra de decisão distinta daquela empregada por Rawls parasolucionar o problema de escolha racional sob a incerteza naposição original, a preferência das partes deliberando sob o véu

de ignorância deveria recair em um princípio de maximização

7 Rawls, op. cit., p.12.8 Rawls, 1971, p.148.

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da utilidade média (e não no princípio de diferença defendidopor Rawls).9

Rawls tem um argumento para rejeitar a objeção de Harsanyi,mas ele envolve apelar novamente às premissas morais que deter-minaram as características da posição original. É hora de explicitá-las um pouco mais. Esclareço, depois disso, com base em queconsiderações as conclusões de Harsanyi podem ser refutadas.Podemos interpretar as restrições à deliberação moral impostaspelo véu de ignorância da seguinte forma. Tenhamos em menteque o que se quer é especificar os princípios de justiça que pos-sam ser justificados a todos os cidadãos, em particular aos queviessem a se encontrar em pior situação sob o arranjo institucionalque colocaria esses princípios em prática. Se essa exigência delegitimidade é levada em conta, não é razoável argumentar-se queum determinado princípio deveria ser adotado simplesmenteporque isso é o que seria melhor para as pessoas que controlamdeterminados recursos materiais ou se encontram em determi-nada posição social, dispõem de determinados talentos e capaci-dades ou são adeptas de uma visão abrangente específica do bem.Em contraste com o contratualismo hobbesiano, que é concebi-do precisamente para permitir que as desigualdades existentesno ponto de não-acordo se transmitam para os resultados docontrato social hipotético, o contratualismo rawlsiano requer queos julgamentos de justiça política sejam proferidos de um contex-to inicial de igualdade.

Esse contexto inicial de igualdade não deve ser entendidocomo uma mera característica formal do procedimento de cons-trução proposto. Também é equivocado supor, como fez MichaelSandel em seu livro O liberalismo e os limites da justiça, que odesenho da posição original traduza ou embuta uma concepçãometafísica de pessoa como um ser que não pertence a este

9 Harsanyi (1975, p.594-606) argumentou que a melhor regra de decisãoracional em condições de incerteza não é a adotada por Rawls (a normamaximin de decisão, que recomenda que se escolha a alternativa cujopior resultado possível é superior aos piores resultados possíveis das demaisopções) e sim o princípio da maximização da utilidade esperada.

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mundo capaz de conceber sua natureza de agente moral à par-te de todos os atributos (incluindo os próprios talentos e capaci-dades), fins e vínculos que dão enchimento à identidade pes-soal.10 A plausibilidade do ponto arquimediano11 a partir doqual os julgamentos de justiça devem ser proferidos deriva, comojá sugeri antes, de uma premissa moral substantiva. Trata-se daidéia de que as oportunidades de vida e o bem-estar dos cida-dãos de uma sociedade democrática não podem depender doacaso genético ou social, isto é, de uma loteria na distribuiçãode posições sociais, renda e riqueza, talentos naturais e mesmode concepções do bem; e que, portanto, as instituições básicasde uma tal sociedade devem ser concebidas para funcionar deforma a tanto quanto possível neutralizar a influência dessesfatores que via de regra encontram-se ou inteiramente ou emgrande medida fora do alcance do controle individual12 sobrea vida que cada pessoa é capaz de levar.13 O que Rawls sustentaé que os fatores que respondem pelo acesso desigual a recursossociais escassos são arbitrários de um ponto de vista moral. Es-ses fatores, por isso, não podem ter nenhum peso no acordosobre os princípios de justiça que deverão vigorar em uma socie-dade constituída por cidadãos livres e iguais.

É um argumento moral substantivo uma visão, afinal decontas, do que é uma sociedade justa que nos dá a chave para

10 Sandel, 1989. Este é um livro brilhante, cujo argumento central, no entan-to, está montado sobre uma interpretação equivocada da teoria de Rawls.

11 Na reflexão normativa, o ponto arquimediano, como diz David Gauthier,é aquela posição que é preciso ocupar se o que se quer é que as própriasdecisões se invistam da força moral necessária para governar o mundomoral (1986, p.233).

12 Há mecanismos sociais de causação de preferências individuais (tais comoo nível de escolaridade dos pais ou as oportunidades que cada um encon-tra para cultivar seus próprios talentos) que estão fora do alcance dos indi-

víduos. E, no que se refere a visões abrangentes do bem, uma pessoa per-tencer, digamos, à comunidade muçulmana da Índia, e não à maioria adeptado hinduísmo, certamente não é algo que possa ser interpretado comouma escolha individual.

13 Rawls, op. cit., parág. 17.

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entender por que o ponto arquimediano desse contratualismodeve exprimir uma concepção de igualdade. Como observa JoshuaCohen, a posição original é concebida para levar à escolha deprincípios para uma sociedade que se supõe que seja bem-orde-nada, e não para avaliar o ideal ético de sociedade bem-ordena-da.14 Esse ideal não se justifica pela deliberação das partes naposição original, nem se fundamenta em uma concepçãometafísica de sujeito moral. Nós o consideraremos um ponto departida válido para a argumentação sobre princípios primeirosde justiça somente se aceitarmos a noção de igualdade humanafundamental, e se considerarmos correta a interpretação queRawls propõe para essa noção no argumento da arbitrariedademoral já mencionado. (Vou tratar desse argumento, de formamuito mais detalhada, na segunda parte do capítulo 6.)

Correndo o risco de ser redundante, permita-me tentar es-clarecer melhor o que está sendo dito. O ponto de partida é aidéia de que uma sociedade justa deve reconhecer, em suas insti-tuições básicas, a igualdade humana fundamental ou o valor in-trínseco igual dos seres humanos. As implicações dessa formade igualdade não são óbvias como vimos, isso é objeto de con-trovérsia entre as duas perspectivas normativas, o utilitarismo eo liberalismo igualitário, que tomam por ponto de partida a idéiade consideração igual e imparcial pelos interesses de todos. Comopodemos dar um conteúdo mais preciso para essa idéia? O quenos permite fazer isso, na análise filosófica da igualdade e dajustiça, é um critério substantivo de acordo com o qual possa-mos especificar que formas de igualdade e de desigualdade sãomoralmente relevantes. (Sem isso qualquer concepção formal deigualdade, do tipo trate os casos iguais da mesma forma e oscasos diferentes de acordo com suas diferenças, é inútil.) A teo-ria da justiça de Rawls nos fornece um critério desse tipo (ou-tros são possíveis): o da arbitrariedade moral. Uma vez quetenhamos especificado que desigualdades são moralmente arbi-trárias, estamos em condições de descrever com o que uma so-

14 Cohen, 1989, p.736.

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ciedade justa deveria se parecer. Só então a ferramenta intelec-tual da posição original entra em cena para nos fazer visualizara situação inicial que é apropriada à escolha de princípios parauma sociedade como essa. A posição original deve ser conce-bida de forma a que um acordo razoável sobre princípios possaser alcançado; concebê-la assim, por sua vez, é uma forma deexprimir a idéia de que uma sociedade bem-ordenada é aquelana qual a igualdade humana fundamental é apropriadamente re-conhecida. Esse argumento não deixa de ser circular, mas, comoafirma Brian Barry, trata-se de um círculo não-vicioso. O cri-tério da aceitabilidade razoável de princípios confere uma certasubstância à idéia de igualdade fundamental ao mesmo tempoem que deriva dessa mesma idéia.15

Duas interpretações da motivação moral

Intimamente associada à interpretação da idéia de igualdadehumana fundamental examinada anteriomente está a segundapremissa moral, que diz respeito ao tipo de motivação à qualrecorrer para tornar possível o acordo e, em seguida, para con-ferir estabilidade às instituições que colocariam em prática osprincípios acordados. Um contratualismo como o de Rawls sótem apelo para pessoas que são capazes de agir a partir de umamotivação moral (ou de um senso de justiça, como está ditona passagem que citei antes e em inúmeras outras de Uma teoriada justiça). Como deveríamos entender essa motivação moral? Amelhor interpretação, acredito, foi proposta por Thomas Scanlon:a motivação moral consiste no desejo de ser capaz de justificaras próprias ações a outros por razões que ninguém poderia ra-zoavelmente rejeitar.16 (A formulação negativa, como esclareceScanlon, tem o propósito de fazer que cada contratante pese mais

15 Barry, 1995a, p.8.16 Scanlon, op. cit., p.116.

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os ônus para os outros do que a aceitabilidade para si própriodos termos que está propondo para o acordo.)

Muito dessa definição recai sobre um termo de sentido no-toriamente vago, razoável. Teremos de voltar muitas vezes aesse ponto. Se alguém nos diz que não é razoável rejeitar umadeterminada proposta, nossa reação será a de perguntar de ime-diato: por quê?. Estaremos obrigados a inquirir as razões danão-rejeição razoável sempre que quisermos que o procedimentode construção que se vale desse critério seja capaz de justificarprincípios substantivos de justiça. Pelo momento enfatizo o se-guinte: a razoabilidade de uma dada justificação depende de emque medida aquilo que se quer justificar pode fornecer as basesde um acordo informado e livre entre pessoas que divergem emsuas concepções do bem.

Em seus textos mais recentes, Rawls reconhece que essa con-cepção de razoabilidade é um componente central de seucontratualismo. Em O liberalismo político, Rawls afirma que aspartes deliberando na posição original não somente estão sujeitasàs restrições impostas pelo véu de ignorância, como tambémrepresentam os cidadãos considerados pessoas racionais e razoá-veis.17 O termo racional é aqui empregado de uma forma quenão difere essencialmente daquela de Gauthier ou da teoria daescolha racional. Já a noção razoabilidade tem duas dimensõesinter-relacionadas. Ela é entendida como uma virtude que se es-pera que os cidadãos cultivem e como uma característica dosprincípios que aspiram ao reconhecimento público:

As pessoas são razoáveis em um aspecto básico quando sedispõem, entre iguais, a propor princípios e padrões que consistamem termos eqüitativos de cooperação e, desde que os outros façamo mesmo, a eles se submeter voluntariamente. Elas entendem queessas são as normas que é razoável que todos aceitem e por isso asvêem como justificáveis para todos; e se dispõem a discutir os termos

eqüitativos que outros propõem.18

17 Rawls, 1993a, p.48-54.18 Ibidem, p.49.

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Detenhamo-nos um pouco mais nessa suposição motiva-cional que estou argumentando ser um componente crucial dateoria da justiça de Rawls. Será puro wishful thinking supor queo desejo de justificar as instituições sob as quais se tem de viverpor razões que ninguém poderia razoavelmente rejeitar é forte osuficiente na maioria das pessoas o suficiente, pelo menos, paradar plausibilidade ao procedimento de construção proposto?Scanlon não vê nada de utópico em se pressupor a existência deuma motivação dessa natureza: as pessoas se dispõem a ir bas-tante longe, e a suportar sacrifícios bastante pesados, para nãoter de admitir que suas ações e instituições são injustificáveis. Anotória insuficiência da motivação moral para levar as pessoas afazer o que é correto não se deve simplesmente à fraqueza damotivação para fazê-lo, mas sim ao fato de que essa motivação éfacilmente deslocada pelo interesse próprio e pela inclinação ase auto-iludir.19 De sua parte, Rawls se limitaria a dizer, em seustextos de 1980 em diante, que a representação dos cidadãos comolivres e iguais e como racionais e razoáveis corresponde a umaconcepção normativa de pessoa que se encontra implicitamentereconhecida nas instituições e práticas de uma democracia cons-titucional.20 Constitui uma questão separada que diz respeitomais à sociologia política do que à teoria normativa a de saberem que medida a conduta dos cidadãos das democracias real-mente existentes de fato se conforma a esse ideal de pessoa. BrianBarry é ainda mais incisivo do que Rawls, além de não circuns-crever como este último a existência dessa motivação somente àspessoas que compartilham de uma determinada cultura política:

O desejo de ser capaz de justificar nossas ações para nós pró-prios e para outros de forma a propiciar um acordo livre é, como odemonstra a experiência ordinária, amplamente compartilhado e

19 Scanlon, op. cit., p.117.20 Em Uma teoria da justiça, no entanto, Rawls tinha uma visão inequivoca-mente mais universalista dessa questão. Depois de se perguntar quemestaria sob a proteção da justiça, ele responde o seguinte: a capacidadepara a personalidade moral é uma condição suficiente para ter direito à

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profundamente enraizado. Encontramos o mesmo desejo se mani-festando quando as pessoas defendem instituições das quais sebeneficiam. Não deixa de ser uma curiosa e notável ilustração da

força desse desejo o fato de que os beneficiários de instituições taiscomo a escravidão e a discriminação racial raramente defendemsua posição como uma asserção abertamente injustificável de po-der superior ... Em vez disso, nos deparamos com sofisticadas defe-sas sugerindo, por mais implausível que isso pareça, que mesmoaqueles que se encontram na extremidade perdedora deveriam, se

entendessem a situação corretamente, achar razoável aceitar seustatus. Admitindo-se que se trata de uma perversão do intelecto,não deixa de ser significativo que ela realmente ocorra.21

Barry prossegue argumentando que a concordância vir-tualmente unânime da raça humana em se preocupar com a pos-sibilidade de defender as próprias ações de uma forma que nãoapele simplesmente ao poder é uma consideração altamenterobustecedora.22 À parte a questão da universalidade da moti-vação moral suposta por Barry e pelo primeiro Rawls ostrês teóricos já mencionados parecem ter essencialmente o mes-mo ponto de vista sobre esse tópico. O curioso é que Rawls nãodeixa de se manter ambíguo em relação às exigências moti-vacionais de sua teoria da justiça como eqüidade, o que torna adiscussão um tanto mais complicada.

Em O liberalismo político, Rawls sustenta que essas exigên-cias são melhor captadas por uma idéia de reciprocidade que,segundo ele, encontra-se entre a idéia de imparcialidade, que éaltruística (consiste em motivar-se pelo bem geral) e a idéia debenefício mútuo tendo em vista a obtenção de vantagens portodos em relação à situação presente ou futura que cada um es-pera, sendo as coisas como são.23 Parece bastante claro que a

justiça igual. Nada além do mínimo essencial é exigido ... Estou supondo

que a capacidade para ter um senso de justiça é possuída pela esmagadoramaioria da humanidade... (1971, p.506).21 Barry, 1989, p.284.22 Ibidem, p.285.23 Rawls, 1993a, p.16-7.

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teoria de justiça como eqüidade não é compatível com a noçãode benefício mútuo tal como entendida, por exemplo, porGauthier. Vamos supor, diz Rawls, que transportemos as pes-soas de uma sociedade em que a propriedade é muito desigual,em grande medida em decorrência do acaso e da sorte, para umasociedade bem-ordenada regulada pelos dois princípios de justi-ça. Nada garante que todos ganharão com a mudança se eles aavaliam por suas atitudes anteriores. Os possuidores de vastaspropriedades podem sofrer grandes perdas e historicamente elestêm resistido a essas mudanças. Nenhuma concepção razoávelde justiça poderia passar pelo teste do benefício mútuo interpre-tado dessa forma.24 Essa é uma consideração importante pararejeitarmos (da ótica da justiça igualitária) a justiça como benefí-cio mútuo e a motivação à qual ela se limita, a saber, o interessepróprio.

Mas o que dizer da distinção entre reciprocidade e impar-cialidade? Aqui as coisas não se apresentam de uma forma tãoclara. Rawls não nos diz, na passagem que citei no parágrafo an-terior, o que ele está entendendo por imparcialidade. Ele selimita a citar com aprovação a resenha de Allan Gibbard do livrode Brian Barry, Teorias da justiça, em que Gibbard argumentaque a teoria de Rawls deve ser interpretada como uma forma dejustiça como reciprocidade e não como uma forma de justiçacomo imparcialidade.25 As coisas se complicam ainda mais seprocuramos esclarecimentos sobre a distinção no texto de Gibbard.

Gibbard distingue as duas concepções com precisão, mas oproblema é que a forma como ele o faz parece servir muitopouco aos propósitos de Rawls. Senão, vejamos. Para definir aidéia de imparcialidade, Gibbard se refere a uma passagem dolivro de Barry que reproduz a definição de Scanlon da motivaçãomoral e arremata dizendo que a pessoa justa [para a concepção

24 Ibidem, p.17.25 Gibbard, 1991. A mencão à resenha de Gibbard aparece em Rawls, 1993a,

p.17, nota 18. Justiça como imparcialidade é como Barry denomina avariante de contratualismo rawlsiano que julga ser mais promissora.

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de justiça como imparcialidade] é motivada a aderir a um acordoque é aceitável sob todos os pontos de vista.26 Gibbard rejeitaessa idéia de imparcialidade porque não se pode razoavelmenteesperar que uma pessoa dê apoio a uma ordem social a não serque dela se beneficie.27

Gibbard (e também Rawls?) parece supor que a motivaçãopara aderir a termos de acordo que são aceitáveis sob todos ospontos de vista é o altruísmo ou a benevolência. Creio que isso éum equívoco. Essa disposição não se confunde com o altruísmoporque os contratantes não aderem a termos eqüitativos de acor-do que ninguém poderia razoavelmente rejeitar motivados somentepor um interesse no bem-estar de outros; eles o fazem porquechegar a um acordo desse tipo é uma condição para que cada umdisponha dos meios e da segurança necessários para se empenharna realização de sua própria concepção do bem. Duas partes queprofessam religiões de conversão distintas podem concordar quea liberdade de consciência é o único princípio que ambas podemrazoavelmente aceitar para regular sua convivência, mas a moti-vação para respeitar o acordo não deriva somente de uma disposi-ção para realizar o bem comum (no caso, a tolerância). As partestambém são motivadas a respeitá-lo porque isso propicia as condi-ções para que cada uma possa praticar seu próprio credo religiosocom segurança. Não vejo por que desconsiderar esse aspecto ins-trumental da busca do acordo razoável. A motivação moral, talcomo caracterizada por Scanlon, requer que sejamos capazes deconsiderar os ônus do que estamos propondo para outros, master essa capacidade não faz de nós heróis ou santos.

Com respeito à noção de reciprocidade, faço duas observa-ções. A primeira é a seguinte: o que Rawls denomina reciproci-dade parece corresponder, no essencial, àquilo que Scanlon esobretudo Barry denominam imparcialidade. A cooperação,diz Rawls, envolve a idéia de termos eqüitativos de cooperação:esses são os termos que cada participante pode razoavelmente

26 Gibbard, op. cit., p.267.27 Ibidem, p.266.

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aceitar, desde que todos os demais também os aceitem. Termoseqüitativos de cooperação especificam uma idéia de reciprocidade:todos aqueles que estão envolvidos na cooperação, e que fazemsua parte tal como as normas e procedimentos o exigem, devemse beneficiar de uma forma apropriada, estimando-se isso por umpadrão adequado de comparação.28 Um pouco adiante, esse pa-drão adequado de comparação é definido como uma situação deigualdade. Há inúmeras outras passagens de O liberalismo políticonas quais a conotação scanloniana daquilo que Rawls denominareciprocidade salta à vista. Além das outras que já foram citadasacima, não vejo outra maneira de interpretar a seguinte passagem:

Um senso de justiça é a capacidade de entender, de aplicar e deagir a partir da concepção pública de justiça que define quais são ostermos eqüitativos de cooperação. Considerando-se a natureza da

concepção política de especificar uma base pública de justificação,um senso de justiça também expressa a disposição, senão mesmo odesejo, de agir em relação a outros em termos que eles tambémpodem endossar publicamente.29

Em segundo lugar, Gibbard entende a idéia de reciproci-

dade de uma forma muito mais restrita do que Rawls. Para oprimeiro, a motivação para a conduta justa consiste em um sen-tido de eqüidade que podemos exprimir, de uma forma um pou-co jocosa mas apropriada, assim: eu não coço as suas costas sevocê não coçar as minhas. Gibbard acredita que Rawls vê a jus-tiça como um sistema de cooperação de escala social que se apóia

nesse sentido restrito de reciprocidade ou de eqüidade. A jus-tiça consistiria na eqüidade nos termos que governam um siste-ma de reciprocidade das dimensões da sociedade. O sistema con-siste em cada pessoa dar apoio à estrutura social básica e delaretirar benefícios. O cidadão de uma sociedade bem-ordenada émotivado a reciprocar benefícios, e essa motivação geral torna-se

a motivação para se conformar às normas que ele considera eqüita-

28 Rawls, 1993a, p.16.29 Ibidem, p.19.

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tivas.30 Gibbard denomina essa concepção justiça como reci-procidade, entendendo-a como uma alternativa tanto à justiçacomo benefício mútuo quanto à justiça como imparcialidade.

Não vou examinar em detalhe a concepção de Gibbard.31 Paraos nossos propósitos no momento, é suficiente evidenciar as dife-renças com a interpretação do contratualismo rawlsiano que es-tou sustentando ser a mais defensável. Gibbard parece adotar omesmo critério de Gauthier para avaliar a justiça de princípios,normas e instituições. São justos os princípios, normas e institui-ções que as partes de um contrato hipotético considerariam mu-tuamente vantajosos (entendendo-se benefício mútuo na acepçãoestrita de Gauthier). A única diferença importante entre as duasconcepções diz respeito à motivação que as partes têm para cum-prir os termos do acordo que vêem como mutuamente vantajoso,isto é, como justo. Como vimos antes (no capítulo 3) Gauthierquer nos convencer de que o interesse próprio constitui umamotivação suficiente para levar cada um a fazer sua parte em acor-dos que são vantajosos para todos. Para Gibbard (e nesse pontoele tem razão), esse argumento não funciona. A motivação paracumprir os acordos que as partes envolvidas julgam ser eqüitati-vos é, como já disse, um sentido de reciprocidade: posso serdecente com ele porque ele foi decente comigo. Posso preferirtratar bem uma outra pessoa que me tratou bem, mesmo que elanão tenha nenhuma influência sobre mim depois. Costumamosdar gorjetas pelo bom serviço em restaurantes aos quais nuncatínhamos ido antes.32 Temos um dever, em suma, de reciprocareqüitativamente os benefícios que recebemos de um arranjo coo-perativo. Esse dever, acredita Gibbard, tem seu reconhecimentofacilitado pelo reforço que a motivação pela reciprocidade recebede forças evolucionárias.33

30 Gibbard, 1991, p.266.

31 Ver Barry, 1995a, p.46-51.32 Gibbard, 1991, p.266.33 Esse também é o ponto de vista de Ken Binmore (em uma seção do cap.

1 de seu livro que tem o sugestivo título de DeKantingRawls): há muitaevidência empírica que pode ser reunida em favor da proposição de que o

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Não há nenhuma razão, da perspectiva do contratualismoque estou defendendo, para se contrapor a tudo isso. Tantomelhor se há um fundamento biológico para pelo menos algu-mas de nossas disposições éticas mais limitadas. Mas é claro quenossa natureza, ainda que limite o leque de alternativas possí-veis, não dá a última palavra sobre o tipo de motivação que acre-ditamos que possa ser mobilizada para gerar e conferir estabili-dade a instituições justas. E, sobretudo, não há nenhum ganhoem disfarçar as exigências motivacionais de uma perspectivanormativa como a de Rawls. O contratualismo rawlsiano não éuma modalidade de justiça como reciprocidade tal como essaconcepção é entendida por Gibbard e Binmore.

Se somente somos motivados a cumprir os termos de acor-dos que são mutuamente benéficos, por que os que dentre nóssão mais privilegiados os de posição social superior, os quetêm mais recursos ou mais poder, os mais talentosos deveriamaceitar os sacrifícios que a implementação de uma concepção dejustiça como a de Rawls lhes imporia? Por que eles deveriam acei-tar, em primeiro lugar, que os julgamentos de justiça sejam pro-feridos de um ponto de vista de imparcialidade no qual todos osfatores que respondem por suas vantagens são anulados? Disseantes que a caracterização da posição original se apóia em umapremissa moral substantiva sobre o que é uma sociedade justa.34

homo sapiens tem propensões éticas embutidas em seu software ou em seuhardware. Ele vota. Ele dá gorjetas em restaurantes aos quais ele não temprevisão de voltar. Ele contribui para obras de caridade e para canais de

televisão públicos. Em muitos países, ele doa sangue sem recompensamonetária. Há ocasiões em que ele arrisca sua vida tentando salvar alguémque lhe é totalmente estranho. Por vezes, ele chega a sacrificar sua vida emnome de alguma causa ou de algum princípio. A evidência, tanto teóricaquanto fatual, para a proposição de que o homo sapiens tem algumas dasvirtudes do homo ethicus parece esmagadora (1994, p.22-3). Tambémpara Binmore, essas propensões éticas não nos autorizam a ir além da

justiça como reciprocidade.34 Somente para relembrar o que já foi dito antes: trata-se de uma suposiçãosobre que fatores que respondem pela capacidade produtiva desigual deve-riam ser vistos como moralmente arbitrários e que, tanto quanto possível,deveriam ter sua influência neutralizada em uma sociedade liberal justa.

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Ainda não desenvolvi esse ponto em detalhe, mas não é difícilmostrar que essa mesma premissa desempenha um papel impor-tante também na justificação do princípio de diferença. Não vejocomo essa suposição moral substantiva poderia ser recepcionadapor uma perspectiva normativa para a qual o critério de justiça éo benefício mútuo.

Há um outro problema que, embora tenha uma certasuperposição com aquele mencionado no parágrafo anterior, vaialém dele. Trata-se do problema da exclusão do contrato e, emconseqüência, da proteção oferecida pela moralidade. Como lidarcom aqueles que nada têm a oferecer a hipotéticos co-contratantese que não têm como reciprocar os benefícios recebidos? Gibbardmenciona alguns dos candidatos mais conspícuos à exclusão (semfalar no vasto contingente de destituídos): há pessoas congenita-mente deficientes que podem ser ignoradas porque são incapazestanto de contribuir quanto de causar perturbação. Os bebês po-dem reciprocar algum dia se vierem a crescer, mas eles poderiamser torturados até a morte sem que as exigências de reciprocidadeeqüitativa fossem violadas. As gerações futuras são incapazes deafetar diretamente os vivos.35 Como Gibbard admite, a concep-ção de justiça como reciprocidade não tem como lidar com essescasos, justamente aqueles que apelam de uma forma mais direta anossa sensibilidade moral.36

Há um último ponto a ser mencionado que, acredito, falacontra reduzir a teoria de Rawls a uma forma de justiça comoreciprocidade. O argumento decisivo que Rawls tem contra aobjeção de Harsanyi mencionada no início da seção anterior nãotem como não se apoiar na interpretação de sabor mais kantiano em contraste com a motivação pela reciprocidade, de óbviasressonâncias humeanas que Scanlon propôs para a motivaçãomoral. É disso que trato a seguir.

35 Gibbard, 1991, p.272.36 O mesmo vale para a teoria de Gauthier. Lembre-se de que a diferença(entre justiça como benefício mútuo e justiça como reciprocidade) nãoestá no critério de justiça e sim na motivação para cumprir os termos doacordo.

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Maximin ou utilidade média?

Disse antes que Rawls tem um argumento para rebater aobjeção de Harsanyi de que a escolha das partes na posição ori-ginal deveria recair não em um princípio maximin de justiça, esim em um princípio de maximização da utilidade média. Exa-minemos esse argumento mais detidamente. Vamos admitir quea escolha mais racional para as partes na posição original fosse

realmente um princípio de maximização da utilidade média. Oproblema é que as instituições voltadas para dar substância a esseprincípio não seriam consistentes em termos da motivação ne-cessária para lhes conferir estabilidade. É isso que Rawls estádizendo na seguinte passagem:

os princípios de justiça se aplicam à estrutura básica do sistemasocial e à determinação das perspectivas de vida. O que o princípiode utilidade exige é precisamente o sacrifício dessas perspectivas.Supõe-se que as vantagens maiores de outros ofereçam uma razãosuficiente para aceitarmos expectativas mais baixas ao longo detoda nossa vida. Isso é certamente uma exigência extrema. Quan-do a sociedade é concebida como um sistema de cooperação estru-

turado para promover o bem de seus membros, parece demasiadoinverossímil que se possa esperar, com base em princípios políti-cos, que alguns cidadãos aceitem expectativas de vida mais baixasem benefício de outros.37

A exigência extrema em questão não é a de que os mais

talentosos e os mais abastados tenham de contribuir para o bem-estar dos que se encontram na posição mais desfavorável. Já queisso é precisamente o que uma estrutura institucional concebidapara implementar o princípio de diferença exigiria dos primeiros.Suas expectativas de vida não se tornariam por isso mais baixasdo que as de outros, porque a eles (aos mais privilegiados) ainda

caberiam os quinhões maiores dos recursos sociais escassos ou(nos termos de Rawls) de bens primários. A exigência extrema

37 Rawls, 1971, p.178.

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está na suposição de que os mais destituídos deveriam aceitar aredução de suas expectativas de vida, e os benefícios maioresgarantidos aos mais abastados e aos mais talentosos, se isso semostrasse ser, como muitas vezes é o caso, uma condição para amaximização da utilidade agregada ou média. O princípio de utili-dade admite não só o sacrifício de cima para baixo, como o princí-pio de diferença, mas também o sacrifício de baixo para cima.38

Estamos agora em condições de precisar o sentido da célebreafirmação de Rawls de que o utilitarismo não leva a sério a dis-tinção entre as pessoas.39 Existem circunstâncias sob as quais outilitarismo, em qualquer de suas variantes, seria levado a reco-mendar que o bem-estar de algumas (e mesmo muitas) pessoasseja tratado de uma forma instrumental à elevação máxima dobenefício total ou da utilidade  per capita. E Rawls recusa issocom base em uma interpretação do imperativo kantiano segun-do o qual não devemos tratar os outros somente como meios,mas sempre também como fins em si mesmos.40 Mas levar a sé-rio a distinção entre as pessoas, isto é, considerar que o bem-estar de cada pessoa tem valor, não nos compromete com a su-posição como pensa Nozick41 de que também o sacrifício decima para baixo não possa ser justificado. Discutirei adiante (nocapítulo 6) com base em que considerações se poderia justificaraos mais privilegiados os sacrifícios que lhes seriam impostos poruma estrutura institucional regulada pelo princípio de diferen-ça. Pelo momento, quero somente ressaltar a natureza kantianada resposta de Rawls a Harsanyi e explicitar (deixando a justifi-cação disso para depois) que essa resposta não envolve o empre-go de um sistema de dois pesos e duas medidas do tipo: é ina-ceitável que o bem-estar dos mais destituídos seja tratado comoum meio para o bem-estar de outros, mais privilegiados, masnão há nenhum problema em tratar o bem-estar destes últimoscomo um meio para o bem-estar dos primeiros.

38 Nagel, 1991, p.78-80.39 Rawls, 1971, p.27.40 Ibidem, por exemplo, p.179-83.41 Nozick, 1974, p.189-97.

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Faço um parêntese para observar o seguinte. O sacrifício debaixo para cima, que estou argumentando ser um resultado pos-sível do utilitarismo médio de Harsanyi, está longe de se consti-tuir somente uma hipótese teórica. Como Nagel argumenta: quan-do esses dois princípios [o princípio de utilidade e o maximin]implicam resultados diferentes, como no caso em que uma mino-ria destituída só poderia ser ajudada à custa de um sacrifício agre-gado quantitativamente maior por parte de uma classe média nu-merosa, o ônus motivacional menor imposto pelo igualitarismo[no caso, pelo princípio de diferença] será sentido por mais pes-soas do que o ônus motivacional mais pesado imposto por umutilitarismo estrito. Esta é uma entre inúmeras outras razões pe-las quais a igualdade enfrenta tempos tão difíceis nas democraciasmodernas.42 A regra da maioria é o único procedimento decisórioque, pelo menos de forma aproximada, pode levar à maximizaçãoda utilidade média.43 E não há nada na decisão majoritária quefaça que os membros de uma maioria, ocupando uma posiçãointermediária na distribuição de encargos e benefícios sociais, se-jam levados a aceitar uma modesta redução no nível de seu bem-estar se isso for necessário para elevar significativamente o bem-estarde uma minoria destituída. Quando os pobres deixam de cons-tituir a maioria da sociedade, a tomada de decisões pelo métododemocrático pelo menos se entendemos a democracia simples-mente como um mecanismo de agregação das preferências de facto dos cidadãos não oferece nenhuma garantia de que seusinteresses serão levados em conta pela maioria relativamente maisprivilegiada. Ao passo que um utilitarismo médio teria de sancio-nar essa exclusão como justa, ela seria considerada profundamen-te injusta da ótica de um princípio maximin de justiça social. Esseé o principal foco de tensão entre a democracia e o componentemaximin do ideal de justiça social. Só não haverá tensão (oumesmo oposição), no caso que estamos discutindo,44 se uma

42 Nagel, 1991, p.80.43 Dahl, 1989, p.142-4,44 Há outros pontos de tensão entre a democracia e a justiça, alguns dos

quais são apontados em outras partes deste trabalho.

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maioria dos cidadãos e de seus representantes estiverem conven-cidos de que devem se valer das instituições políticas democráti-cas para realizar ou chegar tão perto disso quanto possível uma concepção de justiça social.45

Voltemos à objeção de Harsanyi à escolha do princípio dediferença. As partes deliberando na posição original de Harsanyi,não sendo avessas ao risco, seriam racionalmente levadas a esco-lher o princípio de maximização da utilidade média porque este éo princípio de justiça distributiva que permitiria maximizar onúmero de posições em que os benefícios que lhes seriam assegu-rados seriam maiores maiores, no caso, do que os benefíciosque o princípio de diferença garantiria aos que se encontrassemna posição mínima. Mas, uma vez que o véu de ignorânciafosse levantado, os que se encontrassem na pior posição, sob aestrutura institucional concebida para colocar o princípio esco-lhido em prática, poderiam razoavelmente rejeitar o princípio dautilidade média. Os mais mal situados poderiam razoavelmenterejeitar um princípio de justiça política que lhes exige, como ar-gumenta Rawls no trecho citado, considerar os benefícios maio-res colhidos pelos mais privilegiados como uma razão suficientepara se contentar com suas próprias expectativas mais baixas aolongo da vida inteira. Uma sociedade utilitarista bem ordenadaseria inconsistente do ponto de vista motivacional.

É esse o argumento decisivo de Rawls contra o utilitarismo.Mas não se trata, como Rawls parece supor, de um argumento do

45 Para Rawls (sobretudo em Rawls, 1993a), a concepção política de justiçadesempenha o papel de oferecer uma estrutura de discussão pública (oude razão pública) dentro da qual se espera que os cidadãos ou seusrepresentantes constituam suas preferências em questões de fundamen-tos constitucionais e de justiça básica. Mesmo Dahl (1989), que tem mui-to mais simpatia pelo ideal democrático do que por qualquer concepçãode justiça social, não se satisfaz com uma concepção meramente agregativa

de democracia. Para ele, é parte do ideal democrático a idéia de que oscidadãos deveriam ter uma oportunidade de constituir percepções refle-tidas sobre os assuntos públicos e chega mesmo a ponto de esboçar umformato institucional (por ele denominado minipopulus) para colocar ademocracia deliberativa em prática (1989, p.340).

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ponto de vista da posição original e sim de um argumento sobrea motivação para cada um fazer o que é exigido de si pelas institui-ções sociais e políticasdepois que o contrato hipotético foi alcança-do e quando seus termos deverão ser colocados em prática.46 Ouentão, seria preciso supor que o contrato rawlsiano tem uma se-gunda rodada na posição original, em que as partes, depois deterem acordado os princípios de justiça, examinariam a razoa-bilidade do compromisso que assumiram. É o que Rawls pareceter em mente quando fala nas exigências do comprometimen-to: as partes contratantes não podem entrar em acordos cujaspossíveis conseqüências elas podem não ter como aceitar.47 Masisso, como argumenta corretamente Barry, somente significariacontrabandear o padrão scanloniano de justificação para a delibe-ração na posição original.48

É plausível defender o princípio de diferença contra o prin-cípio de utilidade argumentando-se que o ônus motivacionalimposto pelo primeiro é mais aceitável do que o do segundo.Mas esse argumento não tem como deixar de se apoiar na moti-vação moral tal como a estou entendendo.

46 Aqui o problema é similar àquele ao qual devotei muita atenção na discussãodo contratualismo hobbesiano: a lógica que leva ao acordo deve serdistinguida da lógica que leva os participantes a respeitar os termos doacordo. Depois que um acordo é alcançado, ainda resta o problema damotivação que os participantes têm para honrar seus termos.

47 Rawls, 1971, p.176.48 Brian Barry sustenta que o argumento de Rawls sobre a maior estabilidade

motivacional dos dois princípios de justiça de sua teoria, que apela à idéiadas exigências do compromisso deve ser entendido como um argumentoindependente (do argumento da posição original) em favor desses princípios.E esse argumento não tem como não recorrer ao padrão scanloniano dejustificação (1995a, p.61-7).

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CAPÍTULO 6

A JUSTIÇA IGUALITÁRIA

No capítulo anterior, argumentei que o igualitarismo, talcomo interpretado pelo princípio de diferença, é mais consis-tente, em termos de suas exigências de motivação, do que oprincípio de maximização da utilidade média. Mas a motiva-ção moral não é capaz, por si mesma, de nos levar até onde épreciso chegar na justificação de princípios liberal-igualitários

de justiça. Vimos que o liberalismo igualitário concebe arazoabilidade tanto como uma virtude de pessoas (na condiçãode cidadãs) quanto dos princípios que aspiram ao consentimentouniversal. A seguinte questão é a mais espinhosa: com base emque considerações podemos defender a aceitabilidade, sob todosos pontos de vista, do princípio de diferença para regular as desi-

gualdades socioeconômicas de uma sociedade liberal justa?Antes de enfrentá-la, discutirei um outro componente cen-

tral do liberalismo igualitário: a prioridade que a garantiadas liberdades fundamentais tem sobre a redução das desi-gualdades socioeconômicas. Trata-se de uma clássica preocu-pação liberal e, como tal, sujeita às também clássicas obje-ções de socialistas e democratas radicais a fim de que taisliberdades, na vigência de desigualdades socioeconômicasconsideráveis, seriam meramente formais. Essas objeçõestradicionais ainda são mais relevantes, acredito, do que uma

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crítica de Habermas à teoria de Rawls que também tem umacerta incidência sobre a questão da prioridade das liberdadesfundamentais. Examino essa crítica imediatamente.

Para Habermas, o caráter de dois estágios de sua [de Rawls]teoria gera uma prioridade dos direitos liberais que degrada oprocesso democrático a um status inferior.1 Entre os direitosliberais, que Habermas também denomina direitos privados sub-jetivos, encontram-se a liberdade de pensamento e de consciência,o direito à vida, à liberdade pessoal e o direito de propriedade.2

Esses direitos, que Habermas supõe que definam, na teoria deRawls, a identidade não-pública dos cidadãos, teriam prioridadesobre a autolegislação democrática.3 Habermas está criticando,então, não a prioridade da proteção às liberdades fundamentaissobre a busca de igualdade socioeconômica, e sim a preeminênciados direitos liberais sobre o direito de autogoverno democrático.

Habermas não distingue, como seria necessário, duas obje-ções distintas.4 Quando ele diz que a teoria de Rawls tem doisestágios, ele está se referindo à escolha dos princípios de justiça naposição original (estágio 1) e, em seus (de Habermas) própriostermos, à formação da vontade política (estágio 2). Habermas pensaque o estágio 2 é indevidamente restringido pelo estágio 1, o queequivale a estabelecer pelo menos é isso o que ele dá a entender

1 Este texto de Habermas (1995, p.128) faz uma apreciação crítica da teoriade Rawls e, juntamente com a resposta de Rawls, foi publicado em The

 Journal of Philosophy. Os dois textos foram traduzidos por Otacílio Nunes

 Júnior e publicados em Educação & Sociedade, n.57, 1996 (Centro deEstudos Educação e Sociedade, Unicamp).

2 Ibidem, p.127.3 Ibidem, p.128-9.4 Ricardo Terra comentou que o estilo que adoto neste trabalho (com o

foco mais em problemas do que na exegese de textos e na interpretaçãode autores) não funciona tão bem quando se trata de confrontar dois

teóricos importantes como Habermas e Rawls. Decidi manter essareferência crítica a Habermas, no entanto, considerando que não estouemitindo um julgamento sobre a teoria de Habermas em seu conjunto esim somente à forma, no meu entender imprecisa, como Habermas estátratando de idéias de um outro autor.

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a primazia da argumentação filosófica sobre a deliberação de-mocrática. Esse é um tipo de crítica freqüentemente dirigida atoda e qualquer modalidade de contratualismo hipotético. Nessalinha se objetaria à concepção em seu conjunto e não somentea um de seus componentes específicos. Uma outra objeção, quenão tem uma conexão necessária com a primeira, diz respeito aolugar que os ditos direitos liberais ocupam na concepção dejustiça selecionada na posição original. É essa segunda objeçãoque discuto agora.

A visão de Habermas desses direitos como direitos privadossubjetivos parece-me um tanto anacrônica. Ela nos faz lembrar acrítica de Marx aos direitos humanos em A questão judaica. Osdireitos humanos são interpretados por Marx como direitos doindivíduo burguês, empenhado na realização de seu interesse pró-prio e preocupado sobretudo com a proteção a seus direitos depropriedade, e em oposição àquilo que deveria motivar o indiví-duo na condição de cidadão, a saber, a realização de interessesgerais na esfera da política. Não é dessa forma que hoje concebe-mos o lugar que os direitos civis, que correspondem aos direitosprivados mencionados por Habermas, ocupam no ideal e naprática da cidadania. Não se trata apenas do fato de que nãopodemos conceber a deliberação por meio do processo democrá-tico sem que certos direitos civis tais como as liberdades depensamento, de expressão, de associação, o império da lei sejam garantidos.5 Ao contrário da interpretação de Habermassobre onde passa a linha divisória entre as identidades pública enão-pública na teoria de Rawls, também nossa identidade públicaé, em um grau significativo, determinada pela titularidade dessesdireitos. Se sou um católico praticante, isso certamente será im-portante para minha identidade privada, mas minha identidadepública será definida, nesse aspecto em particular, pela minhadisposição de conformar minha conduta a um direito liberal (aliberdade de consciência) e ao correspondente dever de respeitar

5 Como diz Dahl, não somente como um ideal mas também na prática oprocesso democrático está envolto em uma penumbra de liberdade pessoal(1989, p.88-9).

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o princípio da tolerância religiosa. O mesmo vale para os demaisdireitos mencionados por Habermas.6 A não ser para os defenso-res de um majoritarismo irrestrito (com os quais Habermas cer-tamente não tem nenhuma afinidade) conferir uma força moralespecial aos direitos civis não rebaixa o autogoverno democráticoa um status inferior, porque a titularidade desses direitos é umaparte essencial do que é ser um cidadão de uma democracia. E acriação das condições institucionais que tornam possível o exercí-cio efetivo desses direitos por todos é um dos objetivos uminteresse geral, portanto que esperamos realizar na esfera polí-tica. Isso talvez seja mais claro para aqueles que vivem em umpaís, como o Brasil, em que o componente civil da cidadaniaencontra-se muito mais precariamente institucionalizado e garan-tido a todos, sobretudo aos mais destituídos, do que os direitosde participação política. A cidadania não envolve somente os di-reitos que temos como agentes políticos e sim também os direitossem os quais não é possível participarmos como iguais da socie-dade civil.

A crítica de Habermas teria de discriminar melhor, como fazAmy Gutmann, entre um liberalismo negativo e um liberalis-mo positivo.7 Para o primeiro, o valor supremo é o da não-inter-ferência na liberdade pessoal e na autonomia privada. Nesse caso,as instituições políticas e a deliberação democrática são, no me-lhor dos casos, instrumentais à proteção desse valor supremo.Para o segundo, a liberdade pessoal não consiste somente emnão sofrer interferências arbitrárias na autonomia privada, mastambém na liberdade de deliberar e decidir as questões políticasde forma consistente com uma liberdade igual de cada um dos

6 Note-se que Rawls não inclui a propriedade de meios de produção e derecursos naturais entre os direitos aos quais o primeiro princípio de justiçaatribui um status especial. Ver, por exemplo, Rawls, 1993a, p.298 e 338-9.A propriedade dos recursos produtivos e naturais, portanto, de modo algum

está insulada do autogoverno democrático.7 Gutmann, A. The Disharmony of Democracy. In: Chapman, J., Shapiro,

I. (Org.). Democratic Community. New York, London: The New YorkUniversity Press, 1993. Estou me valendo da edição brasileira deste texto.Ver Gutmann, 1995.

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membros adultos da sociedade da qual se é membro.8 O libera-lismo rawlsiano, como observa Gutmann, é desse segundo tipo.9

Essa é a razão pela qual o primeiro princípio de justiça protege,sem que uns tenham primazia sobre outros, tanto os direitos deliberdade pessoal quanto os de participação política.10

O restante deste capítulo está dividido em duas partes. Asseções da primeira parte, que tratam de uma variedade de tópi-cos distintos, têm o propósito de esclarecer qual é, em meu en-tender, a melhor forma de interpretar a prioridade das liberdadesfundamentais. A segunda parte é dedicada à discussão do princí-pio de diferença.

A prioridade das liberdades fundamentais

Rawls dispõe os princípios de justiça propostos por sua teo-ria em uma ordenação léxica (ou serial). O primeiro princípio que prescreve um esquema de liberdades iguais para todos temprioridade sobre a primeira parte do segundo princípio queprescreve uma igualdade eqüitativa de oportunidades para to-

8 Gutmann, 1995, p.31.9 Gutmann prossegue argumentando que há decisões políticas envolvendo

conflito de valores que a concepção de democracia deliberativa por eladefendida e o liberalismo positivo avaliariam de formas distintas. Esteúltimo consideraria injustas certas decisões que aquela veria como resul-

tados legítimos do exercício da autonomia política pelos cidadãos. Penso,entretanto, que o padrão de aceitabilidade universal do contratualismorawlsiano pode ser interpretado de modo a dar conta dessa objeção. Es-clareço essa interpretação no capítulo 7, discutindo o mesmo caso dedecisão controversa (o subsídio público à arte e à cultura) com respeito àqual, acredita Gutmann, as avaliações divergiriam.

10 As liberdades fundamentais protegidas pelo primeiro princípio abrangem

os direitos civis (as liberdades de consciência, de pensamento, de expressão,de associação, de movimento), os direitos e garantias associados ao impérioda lei e ao devido processo legal) e os direitos políticos (direito de votoe de concorrer a cargos eletivos, a liberdade de informação e as liberdadesde associação e expressão políticas).

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dos; este último, por sua vez, tem prioridade sobre o princípio dediferença segundo o qual as desigualdades socioeconômicas sósão justificáveis se forem estabelecidas para o máximo benefíciopossível daqueles que se encontram na extremidade inferior daescala social.11 Essa disposição serial pode ser interpretada daseguinte forma. Ao comparar diferentes arranjos institucionaisda ótica da justiça, devemos primeiro selecionar aqueles em queas liberdades civis e políticas encontram-se adequadamente pro-tegidas (prioridade do primeiro princípio) e em que as institui-ções e políticas de promoção da igualdade socioeconômica nãoexigem, por exemplo, a conscrição ao trabalho (prioridade daprimeira parte do segundo princípio12); em seguida, seleciona-mos aquele arranjo institucional no qual a distribuição de bensprimários é igualitária (ou mais igualitária) de acordo com o crité-rio estabelecido pelo princípio de diferença.

Uma primeira qualificação a fazer é a de que a vigência daprioridade léxica do primeiro princípio somente pode ter lugaruma vez que as necessidades básicas dos indivíduos tenham sidosatisfeitas, entendendo-se por necessidades básicas interessesvitais do seguinte tipo: a garantia da integridade física, de nutri-ção adequada, do acesso à água potável, ao saneamento básico,ao atendimento médico e à educação. É preciso supor que algocomo um princípio de satisfação de interesses vitais encontra-seimplicitamente reconhecido na prioridade atribuída às liberda-des civis e políticas.13

11 Isso corresponde à formulação dos dois princípios, e à ordenação serialentre eles, que Rawls vem empregando em seus textos mais recentes, porexemplo em Rawls, 1993a, p.291.

12 O valor dos arranjos de mercado decorre não só de razões de eficiênciaalocativa mas sobretudo (da ótica de uma concepção de justiça como a deRawls) do fato de que parecem ser os únicos compatíveis com a realizaçãode um importante bem moral: a livre escolha da ocupação. O princípio

da igualdade eqüitativa de oportunidades exclui, por essa razão, que aspessoas mais talentosas e capacitadas possam ser forçadas a trabalharpelo bem comum em uma sociedade liberal justa.

13 Barry (1994, p.67) argumenta que um princípio de satisfação de interes-ses vitais se encontraria entre os princípios escolhidos em uma posição

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Como tem sido a regra ao longo deste livro, importa menosinterpretar ao pé da letra os textos de Rawls do que precisar levando em conta quaisquer outros conhecimentos teóricos ouempíricos que possam ser relevantes o que deveríamos pensarsobre o problema em discussão. Mas acredito que há apoio tex-tual nas obras de Rawls para a interpretação que estou propon-do. Até que as necessidades básicas dos indivíduos possam sersatisfeitas, a urgência relativa do interesse que eles têm pela liber-dade não pode ser firmemente atestada de antemão.14 Ou en-tão, de forma ainda mais clara:

o primeiro princípio, que trata dos direitos e liberdades funda-mentais e iguais, pode facilmente ser precedido de um princípiolexicamente anterior prescrevendo a satisfação das necessidadesbásicas dos cidadãos, na medida em que a satisfação dessas necessi-

dades é necessária para que os cidadãos entendam e tenham condi-ções de exercer de forma proveitosa esses direitos e liberdades. Éevidente que um princípio desse tipo tem de estar pressuposto naaplicação do primeiro princípio.15

original scanloniana, se o que se quer é que aqueles que se encontram na

posição mais desfavorável não tenham nenhuma objeção razoável aos prin-cípios acordados. Pogge (1989, p.134-48) argumenta na mesma linha queestou propondo no texto, sustentando ser isso uma emenda ao critériode justiça (com a ordenação serial dos dois princípios) de Rawls.

14 Rawls, 1971, p.543.15 Rawls, 1993a, p.7. Leda Paulani observou que, se há um princípio de satis-

fação de necessidades básicas que é lexicamente prioritário ao primeiro

princípio de justiça, então ações como as do Movimento dos Sem-Terra eos saques de famélicos no Nordeste teriam de ser vistas como justificadaspela teoria de Rawls. Não se pode perder de vista, no entanto, que essateoria é de natureza institucional seu objeto são arranjos institucionais enão, diretamente, as ações dos agentes que estão submetidos a esses arran-jos. A ocorrência de saques de famélicos, isso sim, evidencia de formadramática a necessidade de reformar a estrutura institucional da sociedade

brasileira. Atrevi-me, em outro lugar (Vita, 1996, p.316-8), a caracterizar oMovimento dos Sem-Terra como uma forma de desobediência civil. Essacaracterização não tem nada a ver com a auto-identificação de seus partici-pantes e sim com a questão de como considerar um movimento dessanatureza da ótica da teoria da justiça social que estamos examinando.

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Digamos que, conforme as pessoas se tornam livres da pres-são que lhes é imposta por necessidades básicas, aumenta o inte-resse que elas têm em exercer suas liberdades fundamentais iguais.Essa é, acredito, a intuição ética que se encontra por trás daprioridade do primeiro princípio. Como diz Rawls, conformemelhoram as condições de civilização, diminui o significado mar-ginal para o nosso bem de ulteriores benefícios econômicos esociais em comparação aos interesses de liberdade, que se tor-nam mais fortes conforme as condições para o exercício das liber-dades iguais são mais plenamente realizadas.16

Tenhamos em mente, em segundo lugar, que a prioridade doprimeiro princípio, para Rawls, só seria plenamente reconhecidapelos cidadãos de uma sociedade bem ordenada. E esta é umasociedade cujas instituições fundamentais satisfazem não somen-te as necessidades básicas dos indivíduos mas sobretudo aquiloque Rawls denomina necessidades dos cidadãos.17 Estas se defi-nem em relação a um objetivo muito mais ambicioso do que me-ramente garantir um mínimo social adequado para todos. Elastêm a ver com as condições que tornam possível o exercício dasduas faculdades morais que constituem a identidade pública daspessoas: a capacidade de constituir e de revisar (se isso se fizernecessário) uma concepção do bem (do seu próprio ou de ou-tros); e a capacidade de ter e de agir de acordo com um senso dejustiça. Rawls supõe que, em uma sociedade liberal justa, a distri-buição de bens primários18 segundo os dois princípios de justiçaseria de molde a permitir que cada cidadão possa desenvolver eexercitar plenamente essas duas faculdades morais. As creden-

16 Rawls, 1971, p.542.17 Rawls, 1993a, p.187-90.18 Entre esses bens estão os direitos e liberdades fundamentais, as vantagens

e prerrogativas associadas às posições de responsabilidade em instituiçõeseconômicas e políticas, a renda e a riqueza e as bases sociais do auto-

respeito. Este último é o bem primário que Rawls julga ser o maisimportante e é também o de sentido mais obscuro. Volto a este pontoadiante. Em seus textos mais recentes, Rawls vem enfatizando a relaçãoque há entre sua interpretação dos bens primários e a noção, a que fizreferência no texto, de necessidades dos cidadãos.

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ciais dessa suposição devem ser avaliadas sobretudo em relaçãoao senso de justiça que significa, acima de tudo, a capacidade deconformar a própria conduta às exigências apresentadas por ins-tituições justas. Temos de supor que, em uma sociedade justa, oscidadãos encontrem condições institucionais apropriadas paraafirmar seu senso de justiça, isto é, para conformar sua condutaàs exigências institucionais sem que a motivação para isso seja otemor da coerção ou a mistificação ideológica.

Para seguir adiante na discussão, há uma distinção importan-

te a ser feita. A prioridade do primeiro princípio se apresenta deforma distinta quando se examina o problema no âmbito do queRawls denomina teoria ideal ou, alternativamente, no âmbitoda teoria não-ideal. Os princípios e a prioridade léxica entreeles fazem parte do que Rawls denomina teoria ideal, que ope-ra com base em duas suposições cruciais: a de que os dois princí-

pios de justiça são realizados de forma pelo menos aproximadapela estrutura básica da sociedade e a de que há obediênciaestrita, isto é, a suposição de que todos aceitam conformar suaconduta aos princípios de justiça publicamente reconhecidos.Quando há sérias injustiças nas instituições sociais ou na con-duta dos indivíduos (quer se trate de pessoas privadas ou investidas

de autoridade pública, empresas, grupos e associações de todotipo, igrejas e seitas religiosas), estamos no terreno da teorianão-ideal e da obediência parcial.19 Constitui uma questãoseparada a de saber como princípios (dispostos em uma orde-nação serial) que se justificam com base nas suposições da teoriaideal podem se aplicar a situações caracterizadas por graves injus-

tiças. Além de as duas qualificações mencionadas à prioridadedas liberdades fundamentais, resta um terceiro ponto a ser apon-

19 A teoria ideal e a teoria não-ideal são comparadas, por exemplo, emRawls 1971, p.245-7. Além do problema que estou considerando (o daprioridade das liberdades básicas em situações de injustiça), Rawls (1971)

examina inúmeros outros objetos que pertencem a uma teoria não-ideal dajustiça, tais como o problema de até que ponto as seitas e grupos into-lerantes devem ser tolerados em sociedades cujas instituições realizam ovalor da tolerância, a guerra justa, a objeção de consciência e a desobediên-cia civil, entre outros.

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tado no terreno da teoria ideal da justiça. Depois, tratarei daquestão da ótica da teoria não-ideal.

O valor eqüitativo das liberdades políticas

Consideremos a objeção de formalismo, que pode serdirigida à ordenação léxica dos dois princípios de justiça, ainda noâmbito da teoria ideal. Rawls faz uma distinção entre as liber-dades fundamentais e o que ele denomina o valor dessas li-berdades.20 Essa distinção é importante para perceber que Rawlsestá comprometido não com uma noção de liberdades formais esim com concepção (positiva) de liberdade efetiva. O que real-mente importa, da ótica da justiça social, é o que as pessoas po-dem fazer com seus direitos e liberdades. Em uma sociedade libe-ral justa, as liberdades fundamentais são iguais para todos elasdefinem uma estrutura institucional que garante os mesmos di-reitos, isenções, prerrogativas e oportunidades para todos. Mas ovalor disso não é igual para todos. A pobreza e a ignorância inca-pacitam uma pessoa de se valer desses direitos e oportunidadesque lhes são institucionalmente garantidos. E, como Rawls admi-te, mesmo em uma sociedade bem ordenada os que têm maisrenda e riqueza estarão sempre mais bem posicionados para tirarproveito desses recursos institucionais. O que se diria aos que seencontrassem na pior situação sob a estrutura básica de umasociedade liberal justa é o seguinte: o princípio de diferençamaximiza (em termos absolutos) a parcela de bens primários pro-piciada aos que se encontrarem pior situados sob essa estrutura.Podemos dizer, então, que a distribuição de bens primários deacordo com o princípio de diferença maximiza o valor das liber-dades iguais para os que estão menos capacitados a se valer delas.Que essas liberdades tenham um valor igual para todos, isso éalgo que jamais poderá ser inteiramente alcançado. Mas o princí-pio de diferença, mais do que qualquer outro princípio distributivo

20 Rawls, 1971, p.204-5 e 1993a, p.324-31 e 356-68.

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(e o correspondente arranjo institucional) seria capaz de fazer,assegura que as liberdades políticas tenham um valor eqüitativopara todos.

Essa resposta constitui uma parte importante da justificaçãodo princípio de diferença para os mais desprivilegiados, uma vezque, para Rawls, maximizar o valor das liberdades iguais para osque mais mal posicionados estão para delas se beneficiar consti-tui o próprio fim da justiça social.21 O fim da justiça social, emoutros termos, é o de maximizar a liberdade efetiva de todos.Para avaliar os méritos dessa resposta, temos de examinar a justi-ficação geral do princípio de diferença, em particular a suposiçãode que os mais desprivilegiados não poderiam almejar nada demelhor do que isso. Tratarei dessa justificação na segunda partedeste capítulo.

Resta ainda um ponto a ser discutido no presente contexto.Nos dois parágrafos anteriores, ressaltei a importância do princí-pio de diferença (ou de um princípio similar de justiça distributiva)para garantir o valor eqüitativo das liberdades políticas. Isso éimportante para perceber como, a despeito da regra de priorida-de, os componentes liberal e igualitário da teoria de Rawlsnão podem ser dissociados. Mas note-se que mesmo o princípiode diferença poderia autorizar desigualdades sociais e econômicasque teriam de ser vistas como excessivas à luz de consideraçõesque se impõem precisamente da prioridade das liberdades funda-mentais. Uma excessiva concentração da riqueza e da proprieda-de degrada o valor das liberdades políticas do governo democrá-tico para os menos privilegiados. Dois tipos de instituição sãosugeridos para lidar com esse problema. Um deles é a adoção deimpostos progressivos sobre as heranças e doações com o sentidonão tanto de extrair recursos para o Estado, e sim de corrigir,gradual e continuamente, a distribuição da riqueza e de impedirconcentrações de poder que são nocivas ao valor eqüitativo da

liberdade política e da igualdade eqüitativa de oportunidades.

22

21 Rawls, 1971, p.205.22 Ibidem, p.277.

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Rawls pensa ainda que instituições de um tipo mais espe-cífico são também necessárias. Trata-se da adoção de normas definanciamento público dos partidos políticos e da imposiçãode limites severos às contribuições financeiras que pessoas fí-sicas e empresas podem fazer para campanhas e publicidade po-líticas e aos gastos dos candidatos em suas próprias campanhas.23

Sem isso, os que dispõem de mais recursos econômicos e maiorcapacidade organizacional têm também uma maior capacidade

de influenciar os resultados políticos, o que afeta negativamenteo valor eqüitativo das liberdades políticas. Os resultados polí-ticos passam a corresponder, em particular, às preferências doschamados grandes eleitores.24 Muitas vezes se argumenta quedisposições desse tipo não conseguiriam impedir a influênciado poder econômico sobre as decisões políticas. De fato, não.

Mas o financiamento público aos partidos (junto com a propa-ganda política gratuita nos meios de comunicação de massa)garante condições minimamente eqüitativas de expressão e com-petição políticas para aqueles que não contam com o apoio dosgrandes eleitores. Ademais, é preciso considerar que esse pata-mar mínimo de eqüidade política reduziria significativamente o

retorno marginal que os financiadores privados poderiam es-perar de cada real empregado para influenciar os resultadospolíticos sem falar no custo adicional que seria imposto pelailegalidade.

Além dessa objeção pragmática (disposições legais para ga-rantir a eqüidade política são ineficazes, é sempre possível burlá-

las), há ainda uma objeção de princípio. Rawls critica duramen-te uma decisão de 1976 da Suprema Corte dos EUA, que consi-

23 Rawls, 1993a, p.356-63. Barry (1995a, p.99-111) argumenta que essas eoutras instituições (incluindo formas de controle público sobre os meiosde comunicação para garantir a diversidade política) fazem parte das

condições sob as quais a tomada de decisões políticas (sobre questões dejustiça básica) mais provavelmente corresponderia à norma scanlonianade razoabilidade.

24 No Brasil, a lista é encabeçada por grandes construtoras e empreiteiras deobras públicas e pela mídia eletrônica comercial.

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derou inconstitucionais alguns dos limites que uma lei aprovadapelo Congresso em 1974 havia estabelecido sobre as contribui-ções financeiras a candidatos e partidos políticos e sobretudo aosgastos dos candidatos em campanhas eleitorais.25 A Corte funda-mentou o emprego de seus poderes de revisão judicial, nessecaso, no argumento de que a imposição de limites aos gastos emcampanhas violava a liberdade de expressão política e, por isso,estava em desacordo com a Primeira Emenda da Constituiçãodos Estados Unidos. A alegação foi a de que a intervenção pres-crita por essas leis para garantir a eqüidade política implicaria darmais peso à expressão de alguns em detrimento da expressão deoutros. Como observa Rawls, a Corte confundiu os esforços paratornar a competição política uma disputa entre iguais com a im-posição de restrições ao conteúdo da expressão política. Nessalinha, a Corte corre o risco de endossar a visão segundo a qualuma representação eqüitativa é o mesmo que a representação deacordo com o montante de influência efetivamente exercida. Paraessa visão, a democracia é uma forma de competição regulada

25 Ver Rawls, 1993a, p.359 e nota 72. Em 1976, a Suprema Corte (na sentença

para o caso Buckley v. Valeo) declarou inconstitucionais os limites queuma lei aprovada pelo Congresso em 1974 ( o Electoral Reform Act)havia estabelecido para os gastos em campanhas eleitorais. Dworkin, 1996,analisa essa decisão em detalhe, além de oferecer uma boa descrição dopapel cada vez mais decisivo que o dinheiro desempenha na democracianorte-americana. No Brasil, uma grande oportunidade foi desperdiçada,em 1997, de realizar uma reforma institucional que traria avanços

significativos em termos de eqüidade política. A nova Lei Eleitoral, aprovadanesse ano pela Câmara Federal, acabou excluindo as normas definanciamento público das campanhas eleitorais que inicialmente estavamprevistas no projeto de lei votado. A razão disso foi o cálculo político decurto prazo dos parlamentares tanto da situação quanto da oposição, estesúltimos querendo aprovar o financiamento público já para as eleições de1998 e os primeiros desejando postergá-lo para as eleições de 2002. A lei

aprovada, além disso, adota normas extremamente permissivas para regularas contribuições financeiras a campanhas (as empresas podem contribuircom até 2% de seu faturamento bruto no ano anterior ao pleito e aspessoas físicas, com até 10% dos seus rendimentos brutos no ano) e nãoestabelece limites aos gastos em campanhas eleitorais.

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entre classes econômicas e grupos de interesse na qual julga-seser apropriado que o resultado reflita a capacidade e a disposiçãode cada um de se valer de seus recursos e capacidades finan-ceiros, notoriamente desiguais, para fazer que seus desejos preva-leçam.26 Essa visão da democracia, conclui Rawls, não está ins-crita na Primeira Emenda, assim como um capitalismo de laissez- faire, ao contrário do que supôs a Corte Suprema pré-New Deal,também não estava inscrita na Décima-Quarta Emenda.27

Uma última observação sobre esse tema. Note-se que a justi-ficativa para assegurar a eqüidade política não está em um idealético cheio de cidadania participativa, entendendo-se por issouma visão da boa vida segundo a qual a vida mais digna de servivida é a do cidadão ativo. O ideal de tolerância liberal, que serádiscutido no próximo capítulo, exclui que considerações desse tipo

concepções controversas da boa vida possam ser invocadaspara justificar as instituições de um Estado liberal. A justificativaé outra: a eqüidade política é uma das condições sem as quaismuito dificilmente a democracia produzirá resultados justos. Fariasentido questionar até que ponto as instituições mencionadas aci-ma são suficientes para garantir o valor eqüitativo das liberdades

políticas. Podemos supor, por exemplo, que normas para garantira diversidade e a eqüidade políticas nos meios de comunicação demassa também teriam de ser adotadas. Não tenho como entrarnessa discussão aqui. De toda forma, se for possível especificar ejustificar normas desse tipo (de acordo com o padrão de não-rejei-ção razoável), elas poderiam ser defendidas como uma extensão

plausível da argumentação desenvolvida anteriormente. Meu pro-pósito no momento restringe-se a mostrar como a prioridade atri-buída às liberdades fundamentais não faz o liberalismo igualitárioresvalar para uma interpretação formalista dessas liberdades. Essa

26 Rawls, 1993a, p.361.

27 Ao longo das três primeiras décadas do século, a Suprema Corte norte-americana declarou sistematicamente inconstitucionais todas as leistrabalhistas e de proteção social aprovadas pelo Congresso por considerarque infringiam a liberdade de contrato que estaria protegida pela Décima-Quarta Emenda.

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prioridade só tem lugar, no domínio da teoria ideal, uma vez queuma dada forma de conciliar as exigências da liberdade e da igual-dade, que a teoria da justiça como eqüidade considera ser a maisjustificável, pode ser implementada pelas instituições básicas dasociedade. Além disso, como já mostrei, essa própria prioridadeoferece uma importante fundamentação normativa para uma açãoestatal redistributiva de um considerável alcance.

A concepção geral de justiça

E o que dizer da prioridade atribuída ao primeiro princípiodiante de situações caracterizadas por graves injustiças? Digamosque se trate de uma situação em que os níveis de desigualdades ede pobreza sejam de tal ordem que o acesso dos mais pobres,sobretudo aos direitos civis, seja de fato muito precário. Aquiestamos no domínio da teoria não-ideal, e, nesse caso, a ques-tão que se apresenta é a de saber qual é a forma justa de respon-der à injustiça.28 O que vou afirmar a seguir é por minha contae risco não estou pretendendo que Rawls necessariamente en-dossaria essas idéias.

Uma possibilidade é dizer que a prioridade do primeiro prin-cípio diminui à medida que, em uma dada sociedade, estejamausentes as condições de civilização de que fala Rawls (em umacitação que aparece em parágrafos anteriores) e de acordo com aurgência das necessidades básicas que devem ser satisfeitas, atéum ponto em que, com certeza, a prioridade se inverteria. Aopasso que as liberdades iguais não têm nenhuma relevância práti-ca para populações famintas, o direito de ser adequadamentenutrido, nesse caso, adquire uma relevância moral avassaladora.

Mas também podemos querer dizer uma outra coisa. É plau-sível sustentar que algo da idéia dos dois princípios e da ordemléxica entre eles continua tendo aplicação, mesmo em circunstân-cias bastante desfavoráveis, mas de uma forma mais atenuada. O

28 Rawls, 1971, p.245.

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que diríamos, nesse caso, é que a não-priorização de interessesque são protegidos pelo primeiro princípio pode ser admissívelse isso tiver o propósito de produzir as condições sob as quais,em um momento ulterior, o exercício das liberdades fundamen-tais se torne possível para todos. O próprio Rawls considera osdois princípios em ordem léxica somente um caso especial daconcepção geral de justiça, segundo a qual:

Todos os valores sociais liberdade e oportunidade, renda e

riqueza e as bases sociais do auto-respeito devem ser distribuídosigualmente, a não ser que uma distribuição desigual de quaisquerdesses valores, ou de todos eles, beneficie todos.

A injustiça, então, consiste simplesmente em desigualdadesque não se estabelecem em benefício de todos.29

Mesmo em circunstâncias muito desfavoráveis, essa concep-ção geral de justiça continua, por assim dizer, operativa. Se épreciso se afastar de um esquema de liberdades iguais para todos,a única justificativa para fazê-lo é que isso objetive maximizar obenefício daqueles que têm menos liberdade ou estão menos ca-pacitados para exercer essas liberdades. Abre-se mão da priorida-

de léxica do primeiro princípio se isso for necessário para evitarque injustiças ainda maiores sejam cometidas.30 Sugiro, a seguir,uma possível aplicação desse critério a uma discussão que é maisfreqüente com respeito à interpretação dos direitos humanos,mas que pode ser estendida à forma de conceber a inter-relaçãoentre os direitos individuais de forma geral. Essa discussão ser-

29 Ibidem, p.62.30 Rawls oferece alguns exemplos de como certas liberdades podem ser

legitimamente restringidas em benefício do exercício efetivo das liberdadesfundamentais por todos. Ver, por exemplo, Rawls, 1971, p.242. Ospreceitos e garantias que fazem parte da noção de império da lei são

normalmente considerados essenciais ao exercício efetivo e seguro dasliberdades fundamentais. Mas há circunstâncias desafortunadas deproliferação de grupos paramilitares ou de iminência de uma guerra civil,por exemplo que podem justificar que se coloquem de lado alguns dessespreceitos.

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virá, espero, para esclarecer de que forma devemos entender aprioridade ao primeiro princípio em situações marcadas por gra-ves injustiças, além de esclarecer com base em que consideraçõesdevemos considerar que determinadas privações são injustiças.31

Um argumento libertariano

É comum se argumentar que os únicos direitos humanosgenuínos são os direitos civis e políticos, entendendo-se que osdireitos econômicos e sociais não seriam mais do que direitos- manifesto. A suposição por trás do uso dessa denominação pare-ce ser a de que um direito não passa de um manifesto ou deuma plataforma quando não é possível especificar claramentequem está sujeito ao correspondente dever (ou deveres) isto é,quem tem o dever de fazer que os interesses que são objeto dodireito em questão sejam efetivamente protegidos. O artigo 25 daDeclaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece odireito de todos a um padrão de vida adequado à saúde e bem-estar de si próprio e de sua família, seria um exemplo disso. Essee outros artigos da Declaração que vão no mesmo sentido pare-cem dar a entender que todas as pessoas, incluindo as que vivemem países muito pobres, têm direito a todos os serviços e benefí-cios de um generoso welfare state. Mas, prosseguiria o argumentopara desqualificar os direitos econômicos e sociais como direitosgenuínos, se os recursos de um país de renda per capita baixa sãoinsuficientes (ainda que fossem mais igualmente distribuídos do

31 Com respeito a essa discussão, Maria Hermínia Tavares de Almeidaobservou que é perigoso abrir a porta para infrações à prioridade doprimeiro princípio, ainda mais quando se considera que as restrições àsliberdades fundamentais, em situações realistas, nunca têm por objetivo asatisfação de necessidades básicas dos mais destituídos. Estou inteiramente

de acordo com ela nesse ponto. A discussão que vem a seguir, no âmbitoda teoria não-ideal, objetiva dissociar o liberalismo rawlsiano de umliberalismo que já denominei antes negativo, isto é, a visão segundo aqual uma concepção de liberdade negativa constitui o único valor políticorelevante.

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que de fato são) para prover esses serviços e benefícios, quempoderia estar sob o dever de garantir o direito do artigo 25? É umpreceito da teoria moral e da teoria do Direito o de que não sepode considerar que uma ou mais pessoas estão sujeitas a umdever se não forem capazes de cumpri-lo (ought implies can). Ese não é possível identificar o sujeito do correspondente dever, odireito em questão não existe. O artigo 25 não enuncia um direi-to é um manifesto dirigido a um destinatário indeterminado.32

E por que, de acordo com esse ponto de vista, os direitoscivis e políticos são direitos genuínos? Uma razão freqüen-temente apresentada é a de que são direitos eminentementeexigíveis dos governos, no caso dos direitos humanos, e nos tri-bunais, no caso dos direitos civis e políticos legalmente reconhe-cidos em um determinado país. São exigíveis porque seriam di-reitos negativos, isto é, direitos cujo componente central con-sistiria na proibição de certas ações e condutas (digamos, come-ter assassinatos, submeter as pessoas à tortura ou impedir umapessoa de exprimir seu pensamento). E um governo abster-se depraticar essas ações não apresenta exigências para os recursosescassos da sociedade. É isso que Paul Streeten tem em mentequando afirma que os direitos negativos não exigem recursos(abster-se de certas ações não é algo que requer recursos aindaque custos de oportunidade possam estar envolvidos), ao passoque os direitos econômicos e sociais demandam recursos subs-tanciais. Estes últimos podem ser assimilados àqueles permitin-do-se que sejam adquiridos e exercidos sem qualquer custo fi-nanceiro para o beneficiário. Podemos garantir um direito à edu-cação, à saúde, ao combate a incêndios ou ao estacionamentooferecendo esses serviços gratuitamente, da mesma forma quepodemos garantir o direito às liberdades de expressão e de reli-

32 É claro que esse argumento não se aplica, pelo menos não inteiramente,

ao Brasil, que é um país classificado como de renda média alta. Um estudorecente do Ipea demonstrou que uma redistribuição de 8% da renda dos10% mais ricos seria suficiente para erradicar (mediante um programa derenda mínima de larga escala) a pobreza no Brasil. Estudo mostra comoacabar com a miséria. Folha de S.Paulo, 13.6.1999, caderno 1, p.15.

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gião. Mas os direitos de voto e às liberdades de expressão e deassociação não são somente obtidos e exercidos sem custos fi-nanceiros, eles também não custam quantias consideráveis paraa comunidade. Não é o que se passa com os direitos econômi-cos e sociais.33

Querendo ou não, essa linha de argumentação implica priorizara proteção dos direitos de liberdade, uma vez que somente estesretêm a força do imperativo moral que pertence à natureza mes-ma da linguagem dos direitos, ficando os direitos econômicos esociais na condição de interesses cuja proteção é de naturezaopcional.34 Já argumentei antes que não é dessa forma que o libe-ralismo igualitário concebe a prioridade das liberdades fundamen-tais. Tratarei, a seguir, de dois tópicos relacionados a essa temática.

Em primeiro lugar, explico com base em que suposição osdireitos econômicos e sociais são considerados direitos genuínosem uma perspectiva liberal-igualitária. (O que vou dizer vale tan-to para a teoria ideal quanto para a não-ideal.) Os argumentos deStreeten são de um teor mais econômico, mas não nos esqueça-mos de que é possível apoiá-los em uma fundamentação moral. Éprecisamente isso o que vimos no capítulo dedicado ao liber-tarianismo.35 Os únicos direitos genuínos não são, rigorosamen-te falando, direitos e sim deveres de não violar determinadasconstrições deontológicas. Somente as violações de tais deverespelas quais se é diretamente responsável sobretudo quandopraticadas por governos são consideradas injustiças. Recordemosaqui a noção de responsabilidade negativa que lá empreguei parasustentar uma interpretação muito mais ampla do que são injus-

33 Streeten, 1989, p.369-70.34 É claro que muitas vezes esse é precisamente o ponto ao qual se quer

chegar. Streeten não tem escrúpulos em afirmar que um compromissoformal de garantir uma existência decente a todos não só seria muito

dispendioso mas também reduziria o incentivo para o trabalho e apoupança. Em sociedades pobres e em desenvolvimento, é preciso examinarainda mais cuidadosamente esses direitos (1989, p.370).

35 Mais adiante examinarei um argumento moral de teor comunitarista quetambém é pertinente a essa discussão.

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tiças. Somos coletivamente responsáveis pela pobreza absoluta,pela fome endêmica, pela mortalidade produzida por doençasevitáveis e pelo bloqueio no desenvolvimento das capacidadesdos mais destituídos se há um arranjo institucional (distinto da-quele existente) sob o qual esses danos e privações seriam pelomenos muito mitigados, e se nada fazemos para colocar esse ar-ranjo alternativo em prática. Se contribuímos para preservar asinstituições que geram essas injustiças, somos coletiva e positiva-mente responsáveis por elas. Para determinar que espécie de even-tos se qualificam como injustiças, somos inevitavelmente leva-dos a nos engajar em comparações contrafatuais entre o statusquo e estruturas institucionais que são alternativas possíveis aele. Da perspectiva normativa que estou defendendo, esse tipo decomparação contrafatual é um componente crucial dos julgamen-tos de justiça.

Faço um parêntese para notar que o argumento é similaràquele que Sen emprega para explicar o recurso a contrafatuaispara estimar o nível daquilo que ele denomina a liberdade efe-tiva de uma pessoa. (É mais importante, no momento, perceberde que forma julgamentos contrafatuais entram em uma teoriada justiça do que discutir a concepção de liberdade proposta porSen.) É um equívoco conceber a liberdade de uma pessoa somen-te em termos do que ela deseja e é capaz de fazer, sem sofrerinterferências arbitrárias por parte de outros, estando ela própriano controle do processo de escolha. Há recursos e benefícios quelhe podem ser providos por outros, sem que ela própria esteja nocontrole do processo de escolha, e que também deveriam contarcomo uma ampliação de sua liberdade, porque fazer isso está deacordo com uma decisão contrafatual sua. A provisão dessesrecursos e benefícios promove a liberdade de levar a vida que apessoa escolheria viver, se tivesse essa opção disponível. O exem-plo de Sen é o de uma política pública de combate a epidemias.Mesmo a pessoa não estando ela própria no controle do proces-so de escolha e implementação de uma política desse tipo, issoamplia sua liberdade de viver a vida que ela, se pudesse, escolhe-ria viver. Inversamente, a ausência de uma tal política, ainda queinterferências arbitrárias em suas próprias escolhas não ocorram,

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deve ser considerada uma redução de sua liberdade efetiva.36

Fecho o parêntese.Não é difícil perceber que o reconhecimento da responsabili-

dade coletiva também pelo que deixa de ser feito é essencial àadmissão dos direitos econômicos e sociais como direitos humanosgenuínos.37 É com base nessa noção que podemos rejeitar a crí-tica libertariana de princípio ao artigo 25 da Declaração Univer-sal. Mas ainda resta a objeção de Streeten segundo a qual podeser tão dispendioso garantir esses direitos a ponto de não serpossível identificar quem está sujeito ao dever de garanti-los. Issonos leva a uma segunda ordem de considerações sobre o supostocaráter não-genuíno dos direitos econômicos e sociais.

Um argumento comunitarista

Imagine um hipotético país de renda per capita baixa, da ÁfricaSub-Saariana ou da Ásia, no qual o Estado é forte o suficientepara extrair uma carga tributária eqüitativa de seus cidadãos maisprivilegiados e para redistribuir titularidades, se isso for necessá-rio, e no qual o próprio governo e a burocracia pública não sãoexcessivamente predatórios. Vamos supor ainda que não existam,no país em questão, barreiras culturais ou religiosas à imple-mentação de programas de planejamento familiar.38 Mesmo as-sim, pode não ser possível obter recursos suficientes nem mesmopara colocar em prática uma política apropriada de nutrição, paranão falar em políticas de educação e saúde. Quer isso dizer quenão é possível identificar, nesse caso, sobre quem deve recair oencargo de garantir o cumprimento do artigo 25 da DeclaraçãoUniversal? Não, o que isso pode significar é que também há ou-

36 Sen, 1992, p.64-9.

37 Ver a seção Responsabilidade negativa coletiva do capítulo 2.38 Estipulo essas condições para eliminar complexidades com as quais não

teria como lidar no presente trabalho. Isso não quer dizer que, na ausênciade uma ou mais dessas condições, nada do que será dito a seguir teriavalidade.

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tros que estão sujeitos a esse dever: os cidadãos mais privilegia-dos dos países mais privilegiados. Essa é uma discussão demasia-do complexa para que eu possa desenvolvê-la de uma forma apro-priada no momento. Mas permita-me explicitar pelo menos umponto em conexão com a noção de responsabilidade negativa jáformulada.

Essa noção se aplica a todos aqueles que vivem sob uma mes-ma rede de instituições. Imagine dois povos indígenas da Amazô-nia que vivessem sem contatos entre si e isolados do mundo dosbrancos. Imagine ainda que o povo A vive na fartura ao passoque o povo B enfrenta severas privações e que os dois grupos seencontram casualmente em um determinado momento. Estamosavaliando a situação de fora, tentando discernir as obrigaçõesdos membros de A para com os membros de B. De acordo com orepertório normativo que aqui estamos examinando, poderíamosesperar que os primeiros se desincumbissem de seu dever naturalde ajuda mútua para com os segundos.39 Esse dever de prestarauxílio é exigido de uma das partes se as necessidades da outrasão urgentes e se a primeira pode desincumbir-se disso a custorelativamente pequeno, mas aí não há questões de justiça envol-vidas. Os membros de B não poderiam pleitear nenhuma redis-tribuição dos recursos de A com base na noção de responsabili-dade negativa, e isso porque não há nenhuma descrição plausívela partir da qual se possa afirmar que A e B estejam submetidos aum arranjo institucional comum.

Muitos querem fazer crer que a mesma coisa valeria para asrelações entre os cidadãos mais privilegiados dos países mais pri-vilegiados e os mais pobres dos países pobres, isto é, fazer crerque nada mais do que um dever natural de ajuda mútua se aplica-ria a essas relações.40 (Esse é o dever que cumprimos quando, por

39 Deveres naturais, para Rawls, são aqueles que se aplicam às pessoas

independentemente da existência de vínculos institucionais entre elas.(1971, p.114-7).

40 Entre os quais temos de incluir Rawls, pelo menos a julgar por sua AmnestyLecture de 1993. Em textos anteriores, Rawls afirmara que sua concep-ção de justiça como eqüidade fora concebida para se aplicar a uma socie-

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exemplo, oferecemos auxílio às vítimas de catástrofes naturaistais como terremotos ou furacões.) Mas para afirmar isso, seriapreciso mostrar que as relações entre os mais privilegiados e osmais destituídos do planeta são pelo menos suficientemente si-milares à situação que imaginamos existir entre os dois hipoté-ticos grupos indígenas. E isso não é plausível e se torna cadavez menos plausível conforme os laços de interdependência glo-bal se estreitam. No sentido que aqui importa, já vivemos sobum arranjo institucional de alcance global, graças ao qual os ci-dadãos mais privilegiados dos países ricos influenciam dramati-camente as circunstâncias dos pobres via investimentos, emprés-timos, ajuda militar, comércio, turismo sexual, exportação decultura (efeito-demonstração), e muito mais ainda. Uma simplesjogada especulativa nos mercados de commodities de Chicago podesignificar a diferença entre a vida e a morte para muitas pessoaspobres como no caso em que o emprego dessas pessoas de-pende do preço de algum produto exportado no mercado mun-dial, ou quando o poder de compra de sua renda depende dopreço de certos produtos importados no mercado mundial.41

dade bem ordenada concebida como uma comunidade nacional auto-suficiente (1971, p.457). Um tratamento adequado do problema da ex-tensão dessa teoria às relações internacionais teria de esperar. É o queRawls tentou fazer em sua Conferência para a Anistia Internacional. Nestetexto, Rawls sustenta que princípios liberal-igualitários de justiçadistributiva não podem ser incorporados ao direito das gentes porque

as sociedades por ele denominadas hierárquicas não reconhecem essesprincípios em suas instituições domésticas (1993b, p.74-6). Esse trata-mento que Rawls dá à justiça global foi fortemente criticado por Barry,1989, p.183-9 (que, obviamente, se remete às breves anotações sobre otema que aparecem em Rawls, 1971) e sobretudo por Pogge, 1994b (este,uma crítica à Amnesty Lecture de Rawls). O principal ponto de discussãodiz respeito a se a exclusão do princípio de diferença (ou um princípio

similar de justiça distributiva) do direito das gentes é um passo legítimo àluz das considerações normativas invocadas por Rawls em particular, oargumento da arbitrariedade moral para dar sustentação a sua concep-ção de justiça.

41 Pogge, 1994a, p.139.

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Muitas outras evidências empíricas poderiam ser reunidaspara demonstrar o mesmo ponto. E se esse ponto a existênciade um esquema institucional de alcance planetário pode serdemonstrado, então o alcance da responsabilidade negativa cole-tiva também não pode ser limitado às fronteiras do Estado-Naçãoe somente aos próprios concidadãos. Vimos antes que olibertarianismo rejeita a existência dos direitos econômicos e so-ciais. A argumentação que estou desenvolvendo no momento vaide encontro ao comunitarismo de Michael Walzer.42 Convémexplicitar, ainda que de forma breve, os termos da divergência. Ateoria da justiça distributiva, para Walzer, principia por (e, temosde acrescentar, termina em) uma interpretação dos direitos departicipação dos membros de uma determinada comunidade po-lítica que, da forma como as coisas se apresentam, é sempre co-extensiva ao Estado territorial. É somente na condição de mem-bros de alguma coisa, diz Walzer, que os homens e mulherespodem ter a expectativa de compartilhar de todos os outros benssociais segurança, riqueza, honra, cargos e poder que a vidacomunitária torna possível.43 É em virtude dos sentimentos queestão associados aos vínculos com uma comunidade específicaque o bem-estar dos membros tem uma prioridade moral sobre obem-estar dos não-membros. Como a comunidade em questão éo Estado territorial, o sentimento correspondente é o patriotis-mo. E é com base no sentimento de patriotismo que os detento-res do poder político de um Estado territorial têm o direito depriorizar o bem-estar de seus concidadãos:

Somente se o sentimento patriótico tem certa força moral, somen-te se a coesão comunitária contribui para gerar obrigações e significadoscompartilhados, somente se há membros assim como estranhos, asautoridades estatais têm uma razão para se preocupar especialmentecom o bem-estar de seu próprio povo (e de todos os que são partedesse povo) e com o sucesso de sua própria cultura e política.44

42 Walzer, 1983, cap.2.43 Walzer, 1983, p.63.44 Ibidem, p.37-8.

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Interpretemos o que Walzer está dizendo voltando à distinçãoentre razões morais com base na qual organizei o debate entreteorias políticas normativas.45 Walzer está concedendo prioridadea uma outra forma de relatividade ao agente, distinta daquelasque ocupam um lugar de destaque nas teorias de Nozick e Gauthier.Aqui se trata de conferir prioridade às obrigações especiais, isto é, adeveres e obrigações que temos para com as pessoas com as quaismantemos vínculos específicos e/ou estamos ligados por laçosafetivos. Temos obrigações para com os nossos filhos, pais,amigos, membros de uma mesma associação ou comunidade, cor-religionários, clientes, representados, compatriotas que não te-mos para com os estranhos. Nossos compatriotas têm um direi-to moral a exigir de nós uma consideração especial pelo seu bem-estar de uma forma que os cidadãos de outros Estados não têm.

Sob pena de me afastar muito do tema deste capítulo, tereide ser muito breve. O liberalismo igualitário, a despeito das opi-niões de Rawls sobre isso, está obrigado a tratar essas obriga-ções especiais de uma forma similar, quer no âmbito de umaunidade política concebida como uma comunidade nacional auto-suficiente quer em âmbito global.46 Tratar de uma forma simi-lar não significa dizer que as implicações serão precisamente asmesmas nos dois casos. Mas a natureza geral da argumentaçãonormativa é a mesma. Se pensamos em uma comunidade políti-ca como um sistema auto-suficiente, diremos que só é legítimocada um de nós devotar uma medida de parcialidade em relaçãoaos seus desde que as instituições sociais e políticas sob as quaisvivemos garantam a medida necessária de consideração igualpelos interesses de todos. (Os comunitaristas resistem a admitirque a justiça, seja como uma característica das instituições so-ciais seja como uma virtude da conduta individual, sempre dizrespeito às obrigações que temos para com estranhos.) Há umponto além do qual o empenho em promover o bem dos nos-sos se choca com o reconhecimento da responsabilidade nega-

45 Ver capítulo 1.46 Ver nota 39.

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tiva coletiva por nossas instituições comuns. Nossa parcialidade,nesse caso, deve contar como uma forma de injustiça.47

É preciso estender a mesma argumentação normativa para asrelações internacionais, caso se possa razoavelmente sustentar,como sugeri, que algo como uma estrutura institucional de al-cance planetário já existe e existe cada vez mais. De forma simi-lar àquilo que se passa em uma única comunidade política, sópodemos legitimamente devotar uma medida de parcialidade emrelação aos nossos compatriotas na medida em que fazê-lo nãonos compromete com a preservação de um arranjo institucionalde alcance planetário que é a fonte de muitas das privações queafligem um grande número dos cidadãos de outros Estados.48

Tais privações, nesse caso, devem ser tratadas como injustiças. Ea injustiça se torna muito mais gritante quando supondo-se quenos encontremos entre os cidadãos mais privilegiados dos paísesricos estamos em condições de auxiliar os destituídos de outrospaíses a um custo relativamente baixo para nós.

Que implicações, em termos de reforma institucional, deri-vam dessa argumentação, é uma questão que eu não saberia res-ponder no momento. Mas alguma forma de transferênciainterpessoal de alcance internacional, sem a qual é certo que osdireitos econômicos e sociais da ONU continuarão sendo letramorta para no mínimo os 1,3 bilhão de pessoas (segundo dadosrecentes da ONU) que vivem em uma condição de pobreza abso-

47 O nepotismo e o clientelismo são somente os exemplos mais óbvios disso.

48 Enfatizo de que forma deve-se entender esse legitimamente. É óbvioque se pode dizer que os cidadãos mais privilegiados dos países ricossimplesmente se valem de seu maior poderio econômico e militar paramanter um arranjo institucional que lhes permite desfrutar da maiorparte dos benefícios da cooperação internacional. De fato, é isso o queocorre. Mas não é esse o argumento de Walzer. O que ele diz é que priorizaros nacionais justifica-se por considerações  morais. Minha resposta se

mantém nesse plano, da argumentação normativa como, de resto, aolongo de todo este trabalho ainda que, como se percebe no caso emdiscussão, essa argumentação se apóie em certas suposições empíricasgerais (em particular: há ou não um esquema institucional de abrangênciaplanetária?).

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luta no mundo, encontra apoio em sólidas consideraçõesnormativas.49

A propósito de qual é a melhor estratégia para implementaresses direitos, Streeten afirma que um combate mais modesto eparcial contra o analfabetismo, a saúde precária e os padrõesinsatisfatórios de trabalho provavelmente resultará em mais sa-tisfação de necessidades do que qualquer tentativa de transferirdos países ricos para os países pobres, de uma só vez, princípiossupostamente universais.50 Podemos até concordar com ogradualismo defendido por Streeten, mas é provável que mesmoum nível modesto de satisfação das necessidades básicas dos po-bres globais exigiria que os países ricos transferissem para ospaíses pobres muito mais do que somente princípios suposta-mente universais. Ou melhor: a transferência desses princípios,se realmente os levamos a sério, implica muito mais do que fazerpregações aos países pobres sobretudo quando não estamos (onós em questão são os cidadãos dos países ricos) em condiçõesde dizer: não temos nenhuma responsabilidade pela pobrezadeles. Uma coisa é demonstrar, como resultado de uma argu-mentação sobre princípios, que determinados direitos não exis-tem porque não é possível identificar quem está sujeito aos cor-respondentes deveres; outra muito diferente é pretender que es-ses direitos não existem simplesmente porque nós, que somospelo menos em parte responsáveis por colocá-los em prática, nãonos importamos nem um pouco com isso.

Como já disse, minha intenção foi somente a de explicitar asconsiderações normativas com base nas quais os direitos econô-micos e sociais são reconhecidos como genuínos por uma teoria

49 As transferências dos países ricos para os países pobres, a título de ajudaao desenvolvimento ou no financiamento de organizações não-gover-namentais (tais como a Oxfam, a Care, a War on Want e outras do gêne-

ro) são irrisórias. As maiores transferências, de países como a Suécia e aHolanda, não passam de 0,7% do PIB, ao passo que os Estados Unidostransferem somente 0,15% do seu PIB. Esses dados são citados em Singer,1994, p.233.

50 Streeten, 1989, p.372.

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política liberal-igualitária. Há um segundo ponto nessa temáticasobre o qual penso que há algo a ser dito.

Direitos negativos e positivos

É bizarra a suposição, expressa por Streeten em uma daspassagens citada, de que a garantia dos direitos civis e políticos,em virtude da natureza negativa desses direitos, não faz grandesexigências aos recursos sociais escassos.51 Apesar de bastante uti-lizada, essa distinção entre direitos negativos e direitos posi-tivos é equívoca. A garantia efetiva de todo e qualquer direitoimpõe à autoridade política deveres de abster-se de praticar certosatos e de (positivamente) praticar determinados outros. O maiscorreto é dizer que os direitos, incluindo os de primeira geração,impõem o cumprimento de deveres negativos e positivos.

Considere, como ilustração, meu direito (civil) de andar emsegurança pelas ruas. Imagine que sou pobre, negro e moro no Jardim Ângela, um bairro da periferia de São Paulo que está entreas áreas mais violentas do planeta.52 Meu direito de andar emsegurança é só muito parcialmente respeitado se, ao exercê-lo, minhaintegridade física não é arbitrariamente agredida por aqueles queagem em nome da autoridade pública. É claro que ninguém vaimenosprezar a importância dessa dimensão negativa em um paísque tem um assustador retrospecto de violações de direitos huma-

51 Essa suposição aparece até onde não seria de se esperar que aparecesse. Norelatório anual de 1993 do Núcleo de Estudos da Violência, sobre a situa-ção dos direitos humanos no Brasil, afirma-se que um país não precisaviolar os direitos de seus cidadãos somente porque carece de recursosmateriais, principalmente em relação aos direitos humanos de 1a geração,ditos direitos negativos, que basicamente só exigem do Estado a obrigaçãode não fazer (Universidade de São Paulo, Núcleo de Estudos da Violên-

cia e Comissão Teotônio Vilela, 1993, p.7). Como mostro a seguir, essaafirmação deve ser pesadamente qualificada.52 Em 1995, a taxa de homicídios no Jardim Ângela foi de 111,52 por 100

mil habitantes, em comparação com os 2,56 homicídios por 100 milhabitantes no bairro de Perdizes. Cedec 1996, p.5.

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nos decorrentes de atos praticados por agentes do poder público.Mas a abstenção de praticar determinados atos matar, agredir outorturar suspeitos, quase sempre pessoas pobres, de pele negrae/ou moradoras de bairros periféricos não é suficiente. A garan-tia efetiva desse meu direito também depende da medida em queas ruas por onde ando estão livres da ação de criminosos. Issoimpõe à autoridade política o cumprimento de um dever positivo,a saber, o de fazer o que for necessário para garantir ao menos umnível médio de segurança quando ando pelas ruas do Jardim Ângela e não há nenhuma razão para supor que isso não custe nada oucuste pouco aos recursos escassos da sociedade.53 Basta pensar emquanto custaria manter um policiamento ostensivo e preventivode caráter permanente em áreas como o Jardim Ângela.

Mas isso não é tudo. A garantia efetiva dos direitos civis dapopulação exige do poder público muito mais do que manter umpoliciamento preventivo. A efetivação desses direitos tambémrequer a existência de um poder judiciário equipado quantitativa

53 Um nível médio porque ninguém pode exigir, como uma questão dedireito, que a autoridade pública lhe garanta um nível de segurança pes-

soal absoluta. Se estou andando pelas ruas do bairro de Perdizes em SãoPaulo e sofro algum tipo de agressão à minha integridade física, dificil-mente eu estaria em condições de atribuir esse evento à omissão do poderpúblico. Perdizes ostenta índices europeus de segurança pessoal. Masse, morando no Jardim Ângela, estou sujeito a todo tipo de violência,posso considerar uma violação a um direito humano meu (e dos demaismoradores) a omissão do poder público em fazer o que é preciso para que

eu tenha níveis de segurança pessoal mais próximos aos de Perdizes. EmCedec 1996, p.9-10, demonstra-se que os efetivos e viaturas policiais con-centram-se desproporcionalmente em áreas da cidade onde predominamos crimes contra o patrimônio (caso de Perdizes), e não nas áreas demaior ocorrência de crimes contra a pessoa (como é o caso do JardimÂngela). Seria quase desnecessário dizer, não fosse pela histeria antidireitoshumanos cultivada por uma legião de defensores da truculência policial

no Brasil, que a linguagem dos direitos humanos se presta tanto paracriticar as violências arbitrárias cometidas por agentes públicos no com-bate à criminalidade quanto para criticar a omissão do poder público emgarantir níveis médios de segurança pessoal e de ordem pública para osmoradores de favelas e bairros periféricos das grandes cidades.

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e qualitativamente para oferecer uma prestação jurisdicional ade-quada para os mais destituídos (o que inclui a existência de umapolícia com funções judiciárias capacitada a desempenhar suasfunções).54 Sem isso, o judiciário não é capaz de oferecer nemmesmo a contribuição restrita, mas importante, para a justiçasocial que está ao alcance dos tribunais: a de arbitrar de umaforma imparcial e mutuamente aceitável os conflitos que eclodementre agentes individuais, e entre estes e o poder público, sobuma dada estrutura institucional.55 Finalmente, a efetivação dosdireitos civis requer a existência de um sistema prisional que nãoseja, como é o caso no Brasil, uma instituição devotada à produ-ção sistemática de criminalidade.

Thomas Pogge nos oferece uma ilustração interessante doponto que estou querendo ressaltar.56 Nem mesmo um direitotal como o enunciado no artigo 5º da Declaração Universal, nin-guém será submetido à tortura ou a tratamento ou punição desu-mana ou degradante, pode ser considerado somente como umdireito a não sofrer interferências arbitrárias. Como argumentaPogge, evitar que os empregados domésticos sejam tratados deforma degradante por seus patrões provavelmente exige, além daabstenção da autoridade pública de praticar atos de tortura, cruel-dade e de degradação, um conjunto coordenado de ações públi-cas: o reconhecimento legal de direitos e a implementação daspolíticas que são necessárias para torná-los efetivos, tais comocampanhas de escolarização e de esclarecimento sobre a legisla-ção existente, a garantia de acesso à Justiça para os pobres e aconcessão de benefícios aos desempregados.

54 Menciono apenas um dado quantitativo: enquanto no Brasil há em média1 juiz para cada 29.542 habitantes sendo ainda muito desigual adistribuição dos juízes pelo território nacional , na Alemanha há 1 juizpara cada 3.448 habitantes e na Itália, 1 juiz para cada 7.696 habitantes(Universidade de São Paulo, Núcleo de Estudos da Violência e Comissão

Teotônio Vilela, 1995, p.13).55 Segundo dados do relatório citado na nota anterior, somente 33% daspessoas envolvidas em algum tipo de conflito no Brasil recorrem aojudiciário para solucionar seus problemas.

56 Pogge, 1995b.

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Não tenho nenhuma pretensão de analisar de uma formaapropriada os problemas substantivos que acabo de mencionar.Meu propósito foi o de ressaltar quão discutível é a suposição deque a garantia dos direitos de primeira geração, porque conte-riam primordialmente componentes de natureza negativa, nãofaria grandes exigências a recursos públicos escassos. Rejeitando-se essa suposição, também rejeitamos seu corolário inevitável: ode que garantir os direitos ditos negativos deveria necessaria-mente ter uma precedência absoluta sobre a efetivação de direitosmais onerosos.

Voltemos, agora, ao ponto do qual partimos: o de como enten-der a prioridade das liberdades fundamentais em situações desfavo-ráveis à realização da concepção de justiça social recomendada peloliberalismo igualitário. Estamos no terreno da teoria não-ideal dajustiça. Sugeri antes que, mesmo em situações tão desfavoráveiscomo as que estou considerando nesta seção, a prioridade do pri-meiro princípio de justiça continua tendo pertinência, de formamitigada, como um componente da concepção geral de justiça.Também já explicitei a única orientação para a mudançainstitucional e para a política pública que deriva dessa concepção.Se nas circunstâncias presentes não há como evitar uma distribui-ção desigual de liberdades fundamentais, essa desigualdade só serájustificada se tiver por objetivo elevar ao máximo as liberdades oua capacidade de exercê-las de uma forma efetiva dos que se encon-tram mais privados delas.57 Mas isso nada tem a ver com a suposi-ção de que certos direitos são mais genuínos do que outros.

57 É claro que, para avaliar em que medida uma distribuição é igual oudesigual, não olhamos apenas para as normas legais estabelecidas. QuandoRawls afirma que o objeto da justiça é a estrutura básica da sociedadeentendida como um sistema público de normas, ele não está pensandonas instituições em termos das normas que abstratamente as definem esim em termos da realização, no pensamento e na conduta de determinadaspessoas e em determinados tempo e lugar, das ações especificadas poressas normas (1971, p.55). A despeito do que diz o artigo 5º   daConstituição brasileira, o arranjo institucional vigente no Brasil distribuios direitos e liberdades protegidos pelo primeiro princípio, sobretudo osdireitos civis, de forma profundamente desigual.

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 Já argumentei acima que a efetivação dos direitos civis exigedo Estado muito mais do que a abstenção de determinadas açõese condutas: a garantia desses direitos requer uma complexa redede instituições cujo funcionamento efetivo deve estar em sintoniacom esse propósito. Não apresentei números, mas julgo serrazoável supor que a implementação dessa rede institucional (ouuma reforma radical daquela vigente) imponha um ônus consi-derável a recursos públicos escassos. (Podemos conjeturar queessa é uma das razões para o registro deprimente de violaçõesdos direitos civis dos pobres no Brasil.) Se as circunstânciasforem muito desfavoráveis, é possível que isso só possa ser feitodeixando-se em segundo plano outros objetivos que são desejá-veis da ótica da justiça social (digamos, eliminar a fome endêmica,ampliar os níveis de escolarização básica, dar combate às epide-mias e melhorar o atendimento à saúde). A distinção entre di-reitos genuínos e direitos-manifesto nos deixa no escuro paradecidir qual é o curso de ação que resultará em menos injustiça.Da perspectiva da concepção geral de justiça apresentada acima,devemos escolher o curso de ação que mais provavelmentemaximizará os benefícios (incluindo-se aí a capacitação para exer-cer as liberdades fundamentais) para os mais destituídos sob oestado de coisas vigente. E nem sempre a estratégia recomenda-da será a de priorizar de forma direta e imediata a garantia dosdireitos de primeira geração, caso sejam entendidos somentecomo direitos de não sofrer interferência.

Para exemplificar, pensemos em duas estratégias distintas parareduzir a criminalidade violenta e, dessa forma, proteger efetiva-mente os direitos civis da população em áreas urbanas tais comoo Jardim Ângela. Vamos supor que sejam mutuamente exclu-dentes (o que espero não ser o caso). Uma delas perseguiria esseobjetivo por meio de pesados investimentos nas instituições de-votadas à provisão de ordem pública. Supondo-se (contra todasas evidências no caso brasileiro) que esse aparato de segurançanão viesse a se converter ele próprio em fonte de violações des-ses direitos, essa talvez fosse a estratégia a ser adotada caso sepriorizasse de forma direta e imediata alguns dos direitosde primeira geração. Uma segunda estratégia consistiria em

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combater a criminalidade violenta por meios mais indiretos,por exemplo mediante políticas sociais dirigidas para ampliaras oportunidades educacionais, ocupacionais e de lazer58 dos mo-radores e o acesso a serviços de saúde, talvez complementando-se isso com um programa de renda mínima garantida. Ob-viamente, não estou me propondo a examinar seriamente essasalternativas de política pública. O que quero ressaltar é que essasegunda estratégia, apesar de se direcionar para a garantia dedireitos econômicos e sociais poderia muito bem ser a mais re-comendada pela forma mitigada de prioridade às liberdades fun-damentais contida na concepção geral de justiça. Conceber umaoposição rígida entre os objetos dos dois tipos de direitos nãoserve à tarefa de construir a prática e uma cultura de cidadaniaigual. A argumentação acima teve o propósito de evidenciar quea teoria da justiça em exame não empresta legitimidade a taloposição.

Passo, a seguir, à discussão do segundo princípio de justiçada teoria de Rawls.

 Justiça distributivaExistem três tipos de bens que são relevantes para uma

teoria da justiça distributiva: bens que são passíveis de distribui-ção, tais como a renda, a riqueza, o acesso a oportunidadeseducacionais e ocupacionais e a provisão de serviços; bens que

não podem ser distribuídos diretamente, mas que são afetadospela distribuição dos primeiros, tais como o conhecimento e oauto-respeito; e bens que não podem ser afetados pela distribui-ção de outros bens, tais como as capacidades físicas e mentais decada pessoa.59 A teoria de Rawls tem implicações claras para os

58 A falta de oportunidades educacionais e de lazer parece ser um dos fatoresque contribuem significativamente para o elevado índice de crimes contraa vida e a integridade física nos bairros periféricos de São Paulo.

59 Essa classificação é de Elster, 1992, p.186.

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dois primeiros tipos de bens.60 A realização dos dois princípiosde justiça pela estrutura básica da sociedade cria as bases so-ciais do auto-respeito, que Rawls entende ser o bem primáriomais importante. As linhas da argumentação, muito sucinta-mente, são as seguintes. A prioridade das liberdades fundamen-tais tem o sentido de exprimir, na estrutura básica da socieda-de, o respeito mútuo que os cidadãos devem ter pelas formas devida e pelas concepções do bem uns dos outros. Desde queessas formas de vida e concepções do bem não sejam incompatí-veis com os princípios de justiça,61 as instituições de uma socie-dade liberal justa não podem se fundar em julgamentos sobre ovalor das atividades e objetivos nos quais os indivíduos se empe-nhem ou das associações e comunidades das quais façam parte.Do ponto de vista da justiça básica, não há mais valor (moral)nos bens que norteiam as atividades das universidades do queaqueles promovidos, digamos, pelas escolas de samba. Essademocracia, ao julgar os objetivos de cada um, constitui o fun-damento do auto-respeito em uma sociedade bem ordenada.62

A discussão do auto-respeito da ótica das liberdades fundamen-tais tem uma conexão com o tema da tolerância liberal, que seráobjeto do próximo capítulo.

Para a questão que estamos examinando no momento, im-porta ressaltar que também a justificação do princípio de dife-

60 Não deixa de ser problemático incluir, como faz Elster, as capacidadesmentais entre os bens do terceiro tipo. A inteligência (e os talentos naturais

de modo geral) certamente tem um componente genético que é irredutívelà distribuição de outros bens. Entretanto, há hoje uma crescente percepçãoda importância de fatores ambientais, nos dois primeiros anos de vida,para o desenvolvimento físico do cérebro. Ao que parece, um ambientemais estimulante faz diferença para o desenvolvimento neurológico dobebê. Esses fatores ambientais são, é claro, passíveis de serem alteradospela distribuição de outros bens. A teoria rawlsiana da justiça distributiva

passa ao largo dessa questão e, ao que parece, há boas razões para fazê-lo.61 Como é o caso, entre muitos exemplos possíveis, de uma seita religiosacujo bem associativo só pode ser alcançado pelo suicídio coletivo de seusadeptos.

62 Rawls, 1971, p.442.

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rença apóia-se, em larga medida, na idéia de propiciar as con-dições institucionais que permitiriam a cada um desenvolver umsentido do valor dos próprios objetivos, sentimento esse que estána base da noção de auto-respeito. Uma distribuição eqüitativado primeiro tipo de bens mencionado acima tem um valor so-mente instrumental para a realização daquilo que tem um valorintrínseco o auto-respeito. Rawls diz que as pessoas mostramo respeito que têm umas pelas outras na própria constituição desua sociedade, quando fazem as desigualdades reverter para obenefício recíproco e se abstêm, dentro de um quadro de liber-dade igual, de tirar proveito de contingências naturais e sociais.63

As pessoas dessa passagem parecem ser sobretudo os maisprivilegiados. Rawls está sugerindo que é razoável que eles abrammão de parte dos benefícios que obteriam explorando as contin-gências naturais e sociais que os favorecem, porque fazendo issomostram, nos arranjos básicos da sociedade, o respeito que têmpelos que se encontram na extremidade inferior. E somente quan-do os arranjos institucionais básicos dão um suporte efetivo parao auto-respeito daqueles que têm mais a perder com esses arran-jos, podem os mais privilegiados esperar a cooperação voluntáriados menos privilegiados.

A linha argumentativa que expus nos dois últimos parágra-fos é parte da defesa da razoabilidade do princípio de diferença.64

É sobre esse ponto que incide a principal objeção de Nozick (ecoa-da por Gauthier65) à justiça distributiva rawlsiana:

63 Ibidem, p.179.64 Note-se, ademais, que a inclusão do auto-respeito no índice de bens

primários também tem o sentido de limitar as desigualdades de renda eriqueza que poderiam ser autorizadas até mesmo pelo princípio de diferença.Disparidades muito grandes de renda e riqueza, ainda que pudessem serjustas, teriam um impacto negativo sobre o auto-respeito dos maisdesprivilegiados. A reação a essa perda de auto-respeito seria a difusão de

um sentimento de inveja desculpável (Rawls, 1971, p.534 e 546) pelaposição daqueles que, sob as desigualdades permitidas pelo maximin,teriam um quinhão maior de bens primários.

65 Para Gauthier (1986, p.245-57), o princípio de diferença permite aos queestão na pior situação pegar uma carona nos esforços daqueles os mais

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Não há dúvida que o princípio de diferença oferece os termoscom base nos quais os menos dotados de recursos estariam dispostosa cooperar. (Que termos melhores do que esses poderiam eles propor

para si próprios?) Mas será isso um acordo eqüitativo com base noqual esses que têm a pior dotação poderiam esperar a cooperaçãovoluntária da parte de outros?66

Traduzindo essa questão para o critério de universalizaçãode Scanlon, teríamos: poderiam os mais privilegiados razoavel-

mente rejeitar o princípio de diferença como parte dos termoseqüitativos da cooperação social? Embora essa seja a questão queaparentemente apresenta desafios maiores, a concepção de jus-tiça distributiva de Rawls também é criticada por ser insuficien-temente igualitária. Se essa segunda crítica fosse pertinente, tam-bém os que se encontrassem na pior situação sob as instituições

de uma sociedade liberal justa teriam uma queixa razoável a fa-zer contra o princípio de diferença. (Na verdade, acredito queessa última crítica merece ser levada mais a sério do que a obje-ção de Nozick.)

Às vezes se afirma que o princípio de diferença sanciona vas-tas desigualdades socioeconômicas, uma vez que, se nele nos ba-

seássemos, teríamos que considerar justo um estado de coisas emque enormes melhorias nas expectativas dos mais privilegiadosproduzissem apenas melhorias mínimas no bem-estar dos que seencontram na pior posição. Se fosse esse o caso, quaisquer níveisde desigualdade poderiam ser justificados com base nesse princí-pio. Poder-se-ia invocá-lo, por exemplo, para justificar um capita-

lismo de laissez-faireargumentando-se que a concentração de vas-tos recursos produtivos e benefícios sociais nas mãos dos indiví-

talentosos e produtivos que contribuem mais para a geração do excedenteproduzido pela cooperação. De acordo com a reconstrução que Gauthierfaz do argumento de Rawls, os mais privilegiados podem se apropriar de

uma parcela maior dos recursos sociais escassos, não porque tenham direitoa isso, e sim porque permitir que se assenhorem de benefícios maiores éuma forma de instrumentalizá-los para o bem-estar dos menos privilegiados.No essencial, trata-se da mesma objeção de Nozick.

66 Nozick, 1974, p.192.

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duos mais empreendedores e talentosos é a longo prazo mais be-néfica para os que estão na pior posição do que uma situação emque essas vantagens são vedadas aos primeiros.67 Em um outrotrabalho, mostrei que o princípio de diferença só pode ser empre-gado como critério de justiça distributiva se o que Rawls denomi-na justiça de background encontra-se realizada pelas instituiçõesbásicas de uma sociedade.68 Quero agora complementar essa ar-gumentação mostrando que o grau de igualitarismo da concepçãode justiça de Rawls só pode ser corretamente percebido se damoso peso devido às considerações que justificam o princípio de dife-rença. E é também com base nessas considerações que podemosrejeitar a objeção de Nozick a que fiz menção antes.

Da liberdade natural à igualdade democrática

Acompanhemos passo a passo a argumentação que leva aoprincípio de diferença.69 Note-se que essa argumentação é desen-volvida sem que seja preciso recorrer ao dispositivo da posiçãooriginal.70 Rawls confronta três princípios distintos de acordocom os quais a distribuição de benefícios sociais e econômicospoderia ocorrer: a liberdade natural, a igualdade liberal de opor-tunidades e a igualdade democrática. Eles podem ser entendidoscomo princípios rivais, mas a ambição de Rawls é a de combiná-los em uma concepção única de justiça que dê o peso apropriadoa cada um desses ideais.

O sistema de liberdade natural é o que mais se aproximada visão de Nozick de uma sociedade liberal justa. De acordo

67 Com alguns ajustes (para acomodar a cláusula lockeana e princípios dejustiça na transferência de titularidades), esse é o ponto de vista de Nozick.

68 Vita, 1993a, p.77-9.69 Rawls, 1971, cap.2.

70 Essa argumentação deve ser entendida como uma interpretação da idéiade igualdade humana fundamental. Como sustentei no capítulo 5, aposição original é que deve ser concebida para levar à escolha de princípiospara uma sociedade bem ordenada, entre os quais um princípio de justiçadistributiva com as características do princípio de diferença.

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com esse princípio, considerado isoladamente, um complexoinstitucional justo será aquele que combinar uma economia com-petitiva de mercado com uma igualdade formal (ou legal) de opor-tunidades. As únicas instituições necessárias, além das de merca-do, são aquelas que objetivam garantir a todos os mesmos direi-tos legais de ter acesso às posições sociais privilegiadas. Apesarde Rawls não dizer isso, podemos supor que uma única forma dedesigualdade moralmente significativa é excluída pela igualdadeformal de oportunidades: a discriminação institucionalizada jus-tificada por diferenças adscritas (tais como as desigualdades ra-ciais, de gênero e étnicas) ou religiosas. Enfatizo a palavra ins-titucionalizada porque o alvo da igualação, nesse caso, restringe-se à eliminação de barreiras legais ao exercício dos próprios talen-tos e capacidades que têm por base diferenças desse tipo. É pos-sível que a liberdade formal de oportunidades possa ser interpre-tada de forma a excluir ainda o nepotismo em instituições pú-blicas e semipúblicas.

A objeção ao princípio de liberdade natural é a de permitirque a distribuição de riqueza, renda e de benefícios sociais de modogeral seja influenciada por uma distribuição inicial de recursosque, por sua vez, é determinada por fatores naturais e sociais queestão fora do alcance da escolha individual. Aqui em cena o argu-mento da arbitrariedade moral, ao qual já fiz menção antes:71

A distribuição existente de renda e riqueza, digamos, é o efeitocumulativo de distribuições prévias de dotes naturais isto é, detalentos e capacidades naturais tal como se desenvolveram ou

foram deixados em estado bruto, e conforme seu emprego foi favo-recido ou prejudicado, ao longo do tempo, por circunstâncias sociaise contingências fortuitas tais como o acaso e a boa sorte. Intuitiva-mente, a mais óbvia injustiça do sistema de liberdade natural estáem permitir que os quinhões distributivos sejam impropriamenteinfluenciados por fatores que são tão arbitrários de um ponto devista moral.72

71 Ver capítulo 5.72 Rawls, 1971, p.72.

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Os efeitos da combinação de contingências naturais e so-ciais, que têm livre curso sob o princípio de liberdade natural,geram um estado de coisas injusto, ainda que, note-se, produzi-lonão faça parte da intenção de nenhum dos agentes e ainda quetodas as transações, consideradas uma a uma, se conformem,digamos, aos princípios de aquisição e de transferência detitularidades propostos por Nozick.

O princípio de igualdade liberal de oportunidades vai alémdo primeiro ao estabelecer as condições para uma meritocraciaeqüitativa. Aqui já não se trata somente de uma igualdade legalde oportunidades, e sim de assegurar um ponto de partida igualpara aqueles que têm talentos e capacidades semelhantes e estãosimilarmente motivados a empregá-los. Não é pouca coisa queestá envolvida nessa segunda forma de igualação. Ela requer ins-tituições e políticas que tenham por objetivo neutralizar, tantoquanto possível, as contingências sociais e culturais quecondicionam as perspectivas que cada pessoa tem de cultivar seuspróprios talentos. Isso envolve reduzir as vantagens herdadas,tanto de riqueza quanto de meios para a obtenção das qualifi-cações mais valorizadas, e combater os efeitos da discriminaçãoracial e de gênero praticada de forma sistemática. As exigênciasmínimas, que se apresentam à estrutura institucional de umasociedade comprometida com a igualdade eqüitativa de oportu-nidades, são as de impedir uma excessiva concentração da pro-priedade e da riqueza, garantir oportunidades educacionais e deacesso a serviços básicos de saúde eqüitativas para todos.

A realização dessa segunda forma de igualdade já envolveobstáculos que não podem ser facilmente transpostos. Não é pre-ciso pensar em uma sociedade como a brasileira, na qual as con-tingências sociais têm livre curso para determinar a que espéciede escola, médico e hospital as pessoas têm acesso. (No caso doBrasil, o ideal de igualdade liberal de oportunidades tem implica-ções quase revolucionárias.) De forma simplificada, podemos con-siderar que a igualdade liberal, tal como interpretada no parágra-fo anterior, exclui como moralmente arbitrários todos os fatoresambientais que interferem nas perspectivas de vida de uma pes-soa, tais como a classe social e o background social e cultural. A

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classe social de uma pessoa não deveria determinar, em uma so-ciedade liberal justa, o quinhão que lhe cabe dos benefícios dacooperação social. Entretanto, uma vez que diferenças de classesão permitidas, é muito difícil garantir plenamente que todos te-nham um ponto de partida igual. Nem mesmo um impostoconfiscatório sobre a riqueza herdada seria capaz de impedir queas vantagens sociais e culturais decorrentes da desigualdade declasse sejam passadas de uma geração para outra e que resultemem oportunidades profundamente desiguais de obter as qualifi-cações mais valorizadas. Isso se torna mais relevante, do pontode vista da justiça social, quanto mais as diferenças de qualifi-cação se tornam importantes e talvez mais importantes do quea riqueza herdada para gerar a desigualdade social.

Algumas evidências empíricas serão úteis para esclarecer oque está em questão. Em um livro do início desta década, TheEnd of Equality, Mickey Kaus mostra que, apesar de a desigual-dade de renda estar crescendo nos Estados Unidos, esse fato, porsi só, não é capaz de explicar um aumento, que deveríamos consi-derar muito mais significativo, da desigualdade social.73 Não setrata de um problema doméstico norte-americano. Mais do queolhar para as curvas de distribuição de renda, Kaus sugere queimporta saber por que alguns estão se tornando mais afluentes aopasso que outros muito mais numerosos estão sofrendo per-das em seu padrão de vida, engrossando o contingente de pobres(cerca de 31 milhões de pessoas, segundo Kaus) e mesmo o dachamada underclass.74 A razão para isso é a meritocracia, isto é,

73 Kaus, 1992.74 Este termo é empregado, nos EUA, para descrever a situação das pessoas

que estão submetidas a várias formas de destituição simultaneamente: sãomembros de famílias uniparentais, têm um vínculo débil com a escola ecom a força de trabalho, e dependem, para sobreviver, de programas deassistência social. Quando essas pessoas se concentram em áreas segregadas

geograficamente os guetos , os fatores de exclusão se reforçammutuamente de uma tal forma que nem mesmo períodos de crescimentoeconômico intenso podem tirá-las da pobreza. Em termos sociológicos,parece claro que, no caso da sociedade norte-americana, a underclasscorresponde à posição social mais desfavorável.

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a tendência a aumentar, não somente a renda mas o quinhão debenefícios sociais daqueles que têm os talentos e as qualificaçõesprofissionais mais valorizados no mercado. Kaus os denomina (adenominação, na verdade, é do economista Robert Reich) ana-listas simbólicos.75 De outra parte, os trabalhadores não-qualifi-cados ou semiqualificados do setor produtivo os blue collars  enfrentam a competição dos trabalhadores não-qualificados detodo o planeta. Com a redução de postos de trabalho blue collars,os trabalhadores produtivos são empurrados para as ocupaçõesdos serviços pessoais o que contribui para reduzir os saláriosnesse setor. Mas dizer que os empregos do setor de serviços pes-soais são de má qualidade eles são muitas vezes insuficientespara elevar o padrão de vida do trabalhador para cima da linhada pobreza porque a qualificação exigida é baixa, não é umaexplicação suficiente. Embora também exigissem pouca ou ne-nhuma qualificação, os empregos blue collars possibilitavam aostrabalhadores ter uma vida decente e desenvolver um sentido deauto-respeito. O que está ocorrendo é uma dramática elevação nadesigualdade de distribuição de benefícios sociais entre aquelesque têm as qualificações profissionais mais valorizadas os ana-listas simbólicos e os trabalhadores não-qualificados. É esse osentido que o termo meritocracia transmite.

Do ponto de vista do liberalismo igualitário, não há nada afestejar nessas tendências. Para os que têm sentimentos igualitá-rios, a desigualdade social fundada em diferenças de talento equalificação é ainda mais odiosa do que as desigualdades de ren-da e de riqueza consideradas em si mesmas.76 O talento e a qua-lificação, diversamente da propriedade dos meios de produção

75 A lista inclui, como diz Kaus, os suspeitos de sempre: advogados,consultores de bancos comerciais e de investimento, consultores gerenciais,programadores de computador, pesquisadores científicos, acadêmicos,

executivos de relações públicas, editores e escritores, músicos, produtoresde cinema e televisão. (1992, p.38).76 O que está ocorrendo, evidentemente, é que as diferenças de talento e

qualificação estão se convertendo na fonte das desigualdades de renda eriqueza.

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ou de bens imobiliários, são recursos que cada um carrega den-tro de si mesmo em seu cérebro. Por isso, torna-se mais fácil enatural aos mais qualificados sustentar que, se eles se apoderamde quinhões distributivos maiores, isso se deve a atributos quesão irredutivelmente individuais e, possivelmente, até mesmoinatos. Daí a distância é pequena para se considerar, do lado dosganhadores, que essas vantagens são merecidas e refletem umvalor individual maior, e, do lado dos perdedores, que o insucessoé reflexo de um valor intrínseco mais baixo. Como diz Kaus,

Uma coisa é existir uma distribuição desigual de renda. Umaoutra muito diferente é ter a mesma distribuição de renda rigorosa-mente determinada pela escolarização e pelas qualificações. Nessaúltima situação, aqueles que têm mais dinheiro estarão em condi-ções de sustentar que têm, não somente mais dinheiro, mas algo

mais, o conhecimento, que os torna mais valiosos. A tendência aopagamento-por-qualificações confere a todas as diferenças de ren-da, grandes ou pequenas, um cunho meritocrático detestável.77

A meritocracia descrita por Kaus está muito distante da igual-dade liberal de oportunidades tal como concebida por Rawls.Uma meritocracia eqüitativa exigiria a neutralização de todosos fatores ambientais que condicionam as oportunidades que cadaum tem de adquirir as qualificações mais valorizadas. Já disseantes que é muito difícil realizá-la plenamente. Detenhamo-nosum pouco mais nesse ponto. Consideremos, por exemplo, a ga-rantia de oportunidades educacionais iguais. Não seria impossí-vel por mais extraordinário que isso possa parecer para nós,brasileiros, na situação vigente78 reduzir sensivelmente os des-níveis na qualidade da escolarização oferecida pelas escolas denível básico e secundário. Isso, entretanto, não seria suficientepara nivelar as oportunidades educacionais. O problema não é

77 Kaus, 1992, p.37.78 Um número expressivo de crianças brasileiras entre 7 e 14 anos, 2,7

milhões (9,02% das crianças nessa faixa etária) segundo dados do IBGE,estão fora da escola boa ou ruim. 17 cidades têm mais de 50% fora daescola. Folha de S. Paulo, 17.1.1998.

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só o de que a condição social e cultural da família influenciadecisivamente o desempenho escolar das crianças. Brian Barryaponta um outro fator que potencializa os efeitos desse primeiro:a um custo de alguns milhões de dólares, os sociólogos desco-briram o fato um tanto óbvio de que uma grande parte do ambi-ente educacional de uma criança é constituído pelas demais crian-ças da escola. Dada a tendência, em qualquer cidade, de as pes-soas de uma mesma vizinhança terem uma formação educacionale cultural semelhante, a implicação disso é a de que (pelo menosnas áreas urbanas) os efeitos que os pais exercem sobre seus fi-lhos serão multiplicados pela probabilidade de que as outras crian-ças tenham pais nas mesmas condições. Nada menos do que es-palhar as crianças aleatoriamente por toda a área metropolitanapoderia evitar isso.79

A possibilidade mencionada por Barry nesta última frasedificilmente pode ser considerada uma alternativa viável. Paraque uma política desse tipo pudesse ser efetiva, seria preciso,além de distribuir as vagas nas escolas por sorteio, proibir a exis-tência de escolas particulares. Uma meritocracia verdadeira defato exigiria políticas desse teor. Mas, sem falar na resistênciapolítica que teria de ser vencida, o custo disso para outros valoresque também prezamos poderia ser muito elevado. A partir de umdeterminado ponto, o esforço de neutralizar os fatores ambientaisesbarra na preocupação que os pais têm de fazer o melhor possí-vel para os seus próprios filhos. E é essa preocupação que faz osfatores ambientais, aqui considerados, produzirem seus efeitossociais mais importantes. Já nesse ponto da argumentação, o li-beralismo igualitário e qualquer variante de igualitarismo quemereça ser levada a sério se vê diante da dificuldade de conciliaras duas motivações para agir que foram discutidas no capítulo 1.As instituições e políticas que têm por objetivo igualizar os pon-tos de partida são exigidas pela consideração igual e imparcialque devemos ter pela vida de cada pessoa. Mas ainda que osbeneficiários das vantagens de classe e de background cultural se

79 Barry, 1989, p.220-1.

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disponham a apoiar instituições dessa natureza a provisão deserviços públicos de educação e saúde de boa qualidade, por exem-plo , eles também se empenharão em beneficiar seus filhos deuma forma diferenciada. Só seria possível garantir uma genuínameritocracia se fosse possível impedir as pessoas de agir com baseem razões e interesses pessoais.80

Uma outra terapêutica muitas vezes recomendada como an-tídoto para os efeitos socialmente regressivos da meritocracia é otreinamento profissional. Já que a capacidade simbólica é cadavez mais aquilo que determina o quinhão distributivo de cadaum, por que não oferecer a todos um treinamento profissionaldirigido para desenvolver as aptidões relevantes? Por que não ofe-recer oportunidades iguais para que todos se tornem analistassimbólicos? Novamente, recorro a Kaus para evidenciar por queessa estratégia, ainda que fosse praticável, está condenada ao fra-casso como estratégia de promoção da igualdade social. (Pode serrecomendável fazê-lo, em uma escala mais limitada, por razões deeficiência econômica.) O argumento de Kaus é simples e, pelomenos até onde consigo enxergar, difícil de ser contestado: con-forme as capacidades se tornam mais importantes e são recom-pensadas financeiramente, as diferenças de desempenho entre osindivíduos que formalmente têm as mesmas capacidades ou o

80 Nagel, 1991, p.109-12. A experiência norte-americana recente mostra comorazões para agir relativas ao agente podem frustrar os propósitos deinstituições igualitárias. Nos anos 70, a Suprema Corte, como parte doesforço para colocar efetivamente em prática a célebre decisão de 1954

(para o caso Brown vs. Board of Education) que pôs fim à segregação racialnas escolas norte-americanas, determinou a instituição de uma política detransporte escolar (busing) para levar as crianças negras às escolasfreqüentadas por brancos e vice-versa. O resultado prático do busing,segundo Kaus (1992, p.54), foi acelerar a fuga dos mais afluentes para ossubúrbios, onde podem estar seguros de que seus filhos que,obviamente, são mais espertos e inteligentes do que os filhos de

trabalhadores de baixa qualificação profissional não serão misturados acrianças de famílias da underclass. Ainda de acordo com Kaus, a tendênciaparece ser a da segregação geográfica (por local de moradia) e escolarocorrer muito mais por categorias de renda acompanhando a tendênciameritocrática antes mencionada do que por discriminação racial.

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mesmo treinamento também se tornam mais importantes e sãorecompensadas financeiramente. Quanto mais importante se torneo treinamento, maior será a desigualdade de renda entre aquelesque têm o mesmo treinamento.81 Kaus denomina isso efeitoHollywood. Se todos são treinados para ser analistas simbóli-cos, as diferenças de ganho logo serão imensas entre os que têmas capacidades simbólicas valorizadas isto é, as aptidões inte-lectuais relevantes e aqueles que, quer por circunstâncias so-ciais quer por fortuna genética, são destituídos delas. Nem to-dos, afinal de contas, podem ser treinados para ser competentescriadores de software. Quanto mais uma política social de treina-mento profissional extensivo e generalizado for implementadacom êxito, mais o efeito Hollywood se fará sentir. No limite,um abismo social se abriria entre uma elite de alta qualificaçãoprofissional e um proletariado de analistas simbólicos de segun-da classe. Do ponto de vista da justiça social, não se trata de criaras condições para que todos possam se tornar profissionais alta-mente qualificados; o problema mais difícil e urgente é o dedissociar a distribuição das vantagens sociais da posse de capaci-dade e talento superiores.

Meu propósito, ao evidenciar as dificuldades envolvidas narealização de uma meritocracia eqüitativa, não é argumentar quenenhum progresso substancial possa ocorrer nessa direção. Comosempre é o caso na discussão de concepções normativas, a impos-sibilidade de realização plena de um ideal não significa que apro-ximações maiores ou menores a ele não sejam possíveis. Mas per-

ceber essas dificuldades ajuda a entender por que Rawls acreditaque é preciso dar um passo além da igualdade liberal de oportuni-dades, em direção ao que ele denomina igualdade (ou concepção)democrática. Depois de dizer que essa concepção liberal, mesmofuncionando à perfeição para eliminar a influência de contingên-cias sociais, ainda permite que a distribuição da riqueza e da renda

seja determinada pela distribuição natural de talentos, Rawlsapresenta o argumento que julgo ser mais importante:

81 Kaus, 1992, p.64 (a primeira frase dessa citação está em itálico no original).

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o princípio de igualdade eqüitativa de oportunidades só pode serrealizado de forma imperfeita, pelo menos enquanto a instituiçãoda família existir. O grau em que as capacidades naturais se

desenvolvem e encontram fruição é afetado por todos os tipos decondições sociais e de atitudes de classe. Mesmo a própria disposiçãode realizar um esforço, de se empenhar, e por isso ter mérito nosentido ordinário do termo, depende de circunstâncias sociais efamiliares afortunadas. Como é impossível, na prática, asseguraroportunidades iguais de realização e cultura para aqueles que têm

aptidões semelhantes, podemos querer adotar um princípio quereconheça esse fato e mitigue também os efeitos arbitrários daprópria loteria natural.82

Esse é o passo mais controverso da argumentação de Rawls,que vai de encontro a percepções muito arraigadas nas sociedadesliberais sobre como levar em conta o mérito individual. Minhainterpretação desse último passo é a seguinte. Se uma igualdadeeqüitativa de oportunidades fosse plenamente realizável, seriapossível atribuir as desigualdades remanescentes às decisões eescolhas individuais ao mérito e ao esforço de cada um o que,pelo critério da arbitrariedade moral, as tornaria não-objetáveisdo ponto de vista da justiça social. Uma igualdade desse cunhointeiramente à prova de objeções morais, no entanto, é inatingí-vel porque, como vimos na discussão anterior, não há como neu-tralizar os efeitos das contingências sociais sobre as condições emque os talentos são exercidos. Mesmo a seleção de que aptidõesserão recompensadas, e em que medida, deve ser consideradauma contingência social. Ninguém escolhe nascer com um fatorgenético  x, seja lá qual for, que predispõe a pessoa a ter maisfacilidade para cultivar as qualificações profissionais premiadaspelos arranjos socioeconômicos vigentes. Não há mérito indivi-dual ou contribuição individual que possa ser estimadofazendo-se abstração de contingências sociais e arranjos institu-cionais já dados; por isso, pretender justificar estes tomando aquelepor fundamento constitui uma inversão que uma teoria aceitável

82 Rawls, 1971, p.74.

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da justiça não pode admitir. Essas considerações nos levam aocomponente crucial da concepção democrática, isto é, a idéiade que também a distribuição de talentos naturais deve ser vistacomo arbitrária de um ponto de vista moral e, por essa razão,não oferece um fundamento aceitável para a distribuição de qui-nhões distributivos.

É comum o adepto de posições políticas de esquerda dar umaênfase maior aos fatores ambientais que condicionam o desempe-nho de cada cidadão na vida política, econômica e social, ao pas-so que o direitista típico gosta de enfatizar a capacidade genéticaherdada. Esta é a cidadela última para onde os políticos e econo-mistas conservadores recuam quando querem justificar as desi-gualdades sociais existentes. Rawls sugere uma outra estratégiaargumentativa para criticar essas desigualdades: importa poucodeterminar qual desses dois fatores pesa mais para gerá-las; naprática, é impossível dissociar um do outro e ambos são igual-mente arbitrários de um ponto de vista moral. Note-se que nãosão as diferenças naturais de talento que geram desigualdades, nosentido em que isso importa para uma teoria da justiça social.Desigualdades são sempre geradas por instituições sociais. O queestá em questão aqui são arranjos institucionais que valorizamdeterminados talentos e premiam seus portadores desigualmen-te na distribuição de bens primários.

A igualdade democrática enfrenta a arbitrariedade moralde uma forma inteiramente distinta da igualdade eqüitativa deoportunidades. O que está em questão já não é mais (ou não é só)igualizar as condições sociais e culturais para cada um cultivar eexercer seus talentos, e sim alterar o fundamento moral a partirdo qual é legítimo reivindicar os benefícios produzidos pelo exer-cício dos talentos. Como afirmei, criar as condições para que to-dos possam competir, em termos eqüitativos, pelas posições maisvalorizadas não é a mesma coisa que promover a justiça social. Aconcepção democrática supõe que os mais afortunados, pela gené-tica ou pelas circunstâncias sociais, são capazes de reconhecer queo talento superior, ainda que seja sempre merecedor de admira-ção, não constitui um fundamento moral legítimo a partir do qualexigir uma parcela maior dos benefícios da cooperação social. O

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momento é oportuno para enfatizar um ponto ao qual já fiz men-ção no capítulo anterior. Não há, nessa afirmação, nenhuma tesesobre o que é essencial e o que é contingente na identidade pes-soal.83 O argumento não é o de que, sendo os talentos naturaismeros atributos contingentes de uma pessoa, nada de essencialseria afetado na identidade pessoal de seus portadores se os colo-cássemos a serviço do bem-estar de outros. Suponhamos que euseja um criador brilhante de novos softwares. O exercício dessemeu talento pode ser tão importante para mim a ponto de eu nãoser capaz de conceber quem eu sou à parte desse meu atributo.Constitui uma questão inteiramente distinta, no entanto, quebene- fíciosposso legitimamente esperar do exercício desse talento. Pos-suir um talento incomum, e também a sorte de ser um talentoespecialmente valorizado pelos arranjos econômicos vigentes, nãoconstitui meu direito a exigir uma renda, digamos, cem vezes maiordo aquela obtida por um trabalhador de baixa qualificação, ou acolocar meus filhos em escolas nas quais só conviverão com crian-ças tão abastadas e espertas quanto eles próprios. Posso me dispora compartilhar com outros os benefícios e os azares da distribui-ção de talentos. Não há nenhuma razão para ser otimista, nascircunstâncias atuais, com respeito a uma disposição dessa natu-reza vir a se tornar amplamente difundida. Mas tenhamos claroque, no argumento em favor da concepção democrática, há umatese sobre a motivação  moral e não uma tese sobre a identidadepessoal. Por trás da rejeição ao argumento de Rawls sobre a ar-bitrariedade moral não está a reação a uma teoria filosófica dajustiça e à concepção metafísica de pessoa que nela estaria im-plícita e sim uma atitude, bastante difundida em todas as de-mocracias liberais, de considerar legítimas as vantagens obtidasdo exercício de talentos e capacidades mais valorizados.

83 Estou me referindo a uma crítica de Sandel (1989) à justiça igualitária à

qual já fiz referência no capítulo anterior. Sandel, na verdade, ecoa umacrítica similar feita por Nozick (1974, p.213-28). Este afirma, por exemplo,que é duvidoso que qualquer concepção coerente de pessoa reste quandoa distinção [entre um homem e seus talentos, capacidades e traços especiais]é levada tão longe (p.228).

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O princípio de igualdade democrática requer que os maisprivilegiados abram mão de tirar proveito das circunstâncias so-ciais e naturais que os beneficiam, a não ser quando fazê-lo bene-ficia também os que têm o menor quinhão de bens primários. Oremédio que Rawls propõe para enfrentar a arbitrariedade moralda ótica da concepção democrática na verdade, trata-se mais deuma idéia de fraternidade do que de igualdade84 é o princípiode diferença. É hora de enfrentar as objeções ao princípio dediferença que foram mencionadas no início desta segunda partedo capítulo.

O princípio de diferença

Recordemos que, de acordo com o princípio de diferença, sósão moralmente legítimas as desigualdades sociais e econômicasestabelecidas para melhorar a sorte daqueles que se encontramna posição inferior da escala de quinhões distributivos.85 Teriamestes últimos uma objeção razoável a fazer a um arranjo institu-cional que objetivasse colocá-lo em prática? Como afirmei, noinício desta discussão, a objeção de que o princípio de diferençaautoriza desigualdades excessivas, desde que pequenas melhoriasocorram nas expectativas dos que se encontram na posição maisdesfavorável, não tem nenhum fundamento. Esse equívoco, mui-

84 Rawls, 1971, p.105.

85 Respeito à prioridade aos que estão na pior situação, há um esclarecimentoa ser feito. O que para Rawls (1971, p.64) deve ser priorizado são asperspectivas de vida na posição mínima, e não as expectativas dos que seencontram na posição mínima. Considere duas estruturas institucionais:

 A, o status quo, e B, uma alternativa ao status quo na qual as expectativasdos que se encontram na pior situação em  A seriam significativamenteelevadas. Se a posição mínima em B (que passaria a ser ocupada por outros)

for pior do que a posição mínima em A, passar de A para B representa umaumento de injustiça. Os que estão na posição mais desfavorável sob umdeterminado arranjo institucional podem razoavelmente rejeitá-lo caso sejapossível colocar em prática um arranjo alternativo sob o qual as expectativasna posição mínima seriam mais elevadas.

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to ao gosto dos economistas, decorre de considerar a justiçamaximin à parte da concepção da qual ela não é senão um deseus componentes.

Vimos, na primeira parte deste capítulo, que a prioridadedas liberdades fundamentais já oferece a justificação para umasignificativa redistribuição da riqueza e da propriedade de recur-sos produtivos. Quando, ademais disso, levamos em conta o per-curso que vai da liberdade natural à concepção democrática um percurso que consiste em retirar a legitimidade moral de maise mais formas de desigualdade , percebemos que o maximin éa última coisa que pode ser proposta antes de se defender al-guma versão de estrita igualdade de resultados. Resumindo adiscussão da seção anterior, podemos dizer que todos os fatoresque em geral respondem por uma capacidade produtiva maiorsão arbitrários de um ponto de vista moral. A implicação dissoé que, no nível mais fundamental da argumentação normativa,nada que não seja uma distribuição igual dos bens primários sejustifica. Esse é o ponto crucial na justificação do princípio dediferença.

O que se diria para os que se encontrassem na posição maisdesfavorável, em uma sociedade cujas instituições básicas colo-cassem em prática a justiça maximin, é algo do seguinte teor. Épreferível um arranjo institucional que garanta um quinhão maiorem termos absolutos, ainda que não igual, de bens primários paratodos, a um outro no qual uma igualdade de resultados é assegu-rada à custa de reduzir as expectativas de todos. É essa conside-ração que nos permite passar da defesa de uma igualdade estritana distribuição de bens primários para a defesa do princípio dediferença. Os que estão na posição mais desfavorável não têmnenhuma queixa razoável a fazer a desigualdades que elevam seuquinhão distributivo. A preocupação fundamental, quando o queestá em questão são as bases institucionais para uma convivênciaem termos mutuamente aceitáveis, não é quanto cada um possui de renda, riqueza e bens materiais. O que importa é avaliar se oquinhão de recursos que cabe a cada um é suficiente para quecada pessoa possa se empenhar na realização de seu próprio pla-no de vida e concepção do bem e, dessa forma, desenvolver um

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sentido de auto-respeito.86 Desde que as diferenças relativas derenda e riqueza não sejam excessivas, não constitui uma objeçãorazoável ao princípio de diferença dizer que ele não satisfaz asexpectativas que são geradas por sentimentos de rancor e de inve-ja pela parcela distributiva mais favorável que coube a outros.87

Esses são os sentimentos assim como os que lhes são correlatosna psicologia moral dos mais privilegiados: a avareza e o desprezopelos que têm menos que não devem desempenhar nenhumpapel na justificação de uma forma de convivência coletiva fun-dada no status da cidadania igual. O princípio de diferença (ouuma concepção similar de justiça distributiva) oferece a únicainterpretação possível para um igualitarismo não-invejoso.

Há ainda uma outra forma, que já mencionei antes, pelaqual o reconhecimento público do maximin traz um reforço aoauto-respeito dos que estão na posição mínima. Estes sabem queos mais privilegiados, aceitando os termos de uma estruturainstitucional criada para satisfazer a justiça maximin, estão abrin-do mão de tirar todo o proveito das circunstâncias naturais esociais que, sob um outro arranjo institucional, lhes permitiriamelevar muito mais ainda seu (dos mais privilegiados) quinhãodistributivo. Ao abrir mão disso, os mais privilegiados mostramrespeito pelos que têm menos fortuna e, dessa forma, contri-buem para que estes últimos desenvolvam um sentido de seupróprio valor.88 Em uma sociedade justa, os que têm menos sortesabem que os mais afortunados renunciam a uma parte de tudo

86 Como vimos no capítulo 4, a suposição é a de que cada pessoa é capaz deajustar seus próprios objetivos à parcela de oportunidades e recursos queela pode legitimamente esperar das instituições de sua sociedade. Quandoo que se procura assegurar são as bases sociais do auto-respeito, não sesupõe que o auto-respeito de uma pessoa dependa da satisfação de gostosexcêntricos ou dispendiosos.

87 Rawls admite que disparidades relativas muito grandes, mesmo quando

parecem satisfazer o princípio de diferença, podem gerar um sentimentode inveja desculpável (1971, p.536). Ele acredita, e também é isso queestou tentando evidenciar, é que uma estrutura básica que satisfaça osdois princípios de justiça não dará lugar a disparidades excessivas.

88 Cohen, 1989, p.739.

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aquilo que poderiam almejar, não porque tenham pena daqueles,mas sim porque se dispõem a viver com eles com base em princí-pios de justiça política.

Qual é o alcance da redistribuição exigida pelo princípio dediferença? Isso é difícil de responder. Disse antes que a priori-dade das liberdades fundamentais pressupõe um princípio de sa-tisfação de necessidades vitais. A primeira coisa a notar, no con-texto da presente discussão, é que a exigência de dar prioridadeaos que se encontram na posição mais desfavorável não é satis-feita somente pela garantia de um mínimo social decente paratodos. Uma consideração igual e imparcial pelo bem-estar de to-dos requer mais do que garantir que o padrão de vida de nin-guém cairá abaixo de um determinado nível mínimo. As desi-gualdades acima do mínimo ainda seriam demasiado significa-tivas para serem ignoradas por uma concepção de justiça quepretende fornecer os termos de um acordo unânime. Os menosprivilegiados de recursos poderiam razoavelmente rejeitar umaestrutura institucional que lhes impusesse sacrificar suas pers-pectivas de vida para garantir benefícios muito acima do mínimopara os mais privilegiados.89

Recordemos um ponto que já foi mencionado. Na teoria deRawls, o referencial para avaliar os sacrifícios que a implementaçãode uma estrutura institucional justa impõe a cada um é uma dis-tribuição igual de todos os bens primários. Qualquer afastamentoem relação a essa distribuição igual deve poder ser justificadoàqueles que ficarão com o quinhão menor de bens primários nanova situação. Os que sustentam que a prioridade aos que estãona posição mais indesejável é satisfeita garantindo-se um mínimosocial a todos estão arbitrariamente tomando esse mínimo, e nãoum hipotético estado inicial de igualdade, como o referencial paraavaliar os sacrifícios e as expectativas legítimas de cada cidadão.Para exprimir a idéia de que não há um patamar máximo àredistribuição exigida por razões de justiça isto é, um patamaracima do qual é legítimo, moralmente falando, ignorar as exigên-

89 Nagel, 1991, p.81.

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cias derivadas da imparcialidade igualitária , podemos recorrer auma formulação um pouco modificada que Rawls propõe para omaximin. O princípio léxico de diferença (denominado, às ve-zes, leximin) é formulado da seguinte forma: em uma estrutu-ra básica na qual há n representantes a serem considerados, ma-ximize primeiro o bem-estar do homem representativo que seencontra na pior posição; a seguir, para um mesmo nível de bem-estar deste último, maximize o bem-estar do homem representa-tivo na segunda pior situação, e assim por diante até o último casoque consiste em maximizar, mantendo-se o mesmo nível de bem-estar para todos os representantes n-1, o bem-estar do homemrepresentativo que se encontra na posição mais favorável.90

A democracia de cidadãos-proprietários

O princípio de diferença, portanto, opera sobre as desigual-dades sociais e econômicas que permaneceriam mesmo se as ne-cessidades básicas de todos fossem atendidas. É importante res-saltar esse ponto porque a teoria de Rawls é muitas vezes inter-pretada como uma justificativa moral para o tipo de redistribuiçãopraticada pelos welfare states que, essencialmente, consiste emum sistema de taxação da renda dos mais abastados para subsi-diar direta ou indiretamente a renda dos mais pobres.91 Não éisso que Rawls tem em mente como o modelo institucional maisapropriado para colocar em prática sua concepção de justiça. Emum texto de 1990 (não publicado em livro, que eu saiba), Rawlsdedica uma certa atenção à comparação de diferentes regimessocioeconômicos, sobretudo nos casos em que a propriedadeprivada de meios de produção é admitida.92 O capitalismo de

90 Rawls, 1971, p.83.

91 Na discussão a seguir, vou considerar o welfare state somente desse pontode vista muito geral, ignorando as importantes diferenças institucionaisexistentes entre os três tipos de welfare state analisados por Esping-Andersen(1991 e 1995).

92 Rawls, 1990.

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welfare state, diz ele, rejeita o valor eqüitativo das liberdadespolíticas, e, apesar de nele haver uma certa preocupação com aigualdade de oportunidade, as políticas necessárias para garanti-la não são implementadas. Esse regime permite desigualdadesmuito grandes de propriedade de bens não-pessoais (meios deprodução e recursos naturais), de modo que o controle da eco-nomia e, em grande medida, também da vida política, permane-ce em poucas mãos. E, embora os benefícios de bem-estar, con-forme se sugere na denominação capitalismo de welfare state,possam ser bastante generosos e garantir um mínimo social de-cente cobrindo as necessidades básicas, um princípio de recipro-cidade que regule as desigualdades econômicas e sociais não éreconhecido.93

Para Rawls, o arranjo institucional que mais se aproximariada realização de sua concepção de justiça como eqüidade é a de-mocracia de cidadãos-proprietários ( property-owning democracy),um modelo de arranjo de mercado proposto pelo economistabritânico James Meade como uma alternativa ao capitalismo.94

Acredito que vale a pena se deter um pouco no exame dessemodelo, já que isso ajuda a perceber quão equivocado é conside-rar que o princípio de diferença poderia ser invocado para justifi-car as desigualdades produzidas pelo capitalismo. O ponto essen-cial do modelo é o de que, mais do que a igualização da renda, asinstituições e políticas igualitárias deveriam ter por objetivo umadistribuição eqüitativa da propriedade entre todos os cidadãos.

O que há de errado nas políticas dos welfare states dirigidaspara a igualização da renda real dos cidadãos? Meade mencionadois tipos de problemas.95 Um deles é o de que, dadas as tendên-cias de mudança tecnológica (a automação) e de emergência dameritocracia esta última, comentada anteriormente , aigualização da renda real exigirá níveis excepcionalmente eleva-

93 Ibidem, p.114.94 Meade (1993) apresenta uma formulação atualizada, e consideravelmente

modificada, do modelo institucional que antes propusera em um livropublicado em 1964.

95 Meade, 1993, p.41.

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dos de taxação da renda dos mais abastados. E uma taxação for-temente progressiva afetará negativamente os incentivos para tra-balhar, poupar, inovar e assumir riscos. Kaus calcula que, parafazer a participação dos 1% mais ricos na renda nacional dosEstados Unidos voltar aos níveis de 1977, seria preciso elevar ataxa efetiva de tributação sobre sua renda de 27% (em 1990) para57%.96 A desigualdade de renda, no caso dos EUA, não aumen-tou somente por conta da política fiscal regressiva dos governosReagan. A distribuição da renda pré-tributação está se tornandomais desigual, em benefício dos que se encontram entre os 10%a 30% mais ricos na escala da renda.97 O segundo tipo de pro-blema que Meade vê nas políticas de igualização da renda decor-re de uma preocupação similar àquela que Rawls tem com o va-lor eqüitativo das liberdades políticas: um homem que possuimuita propriedade tem um grande poder de barganha e um fortesentido de segurança, independência e liberdade; e ele usufruidesses benefícios não somente vis-à-vis seus concidadãos desti-tuídos de propriedade mas também vis-à-vis as autoridades pú-blicas ... Uma distribuição desigual de propriedade, ainda que sepossa impedi-la de gerar uma distribuição demasiado desigual darenda, significa uma distribuição desigual de poder e de status.98

As instituições e políticas igualitárias de uma democraciade cidadãos-proprietários objetivariam distribuir amplamente apropriedade de capital com o mínimo de interferência possívelsobre os incentivos econômicos e sobre a iniciativa privada. Ain-da que me falte competência técnica para discutir esse modelo deuma forma mais apropriada, parece-me indispensável mencionarsuas características gerais. O ideal, para Meade, seria atingir um

96 Kaus, 1992, p.60. Como esclarece Kaus, uma taxa marginal de tributaçãoelevada (isto é, a taxa de tributação que incide sobre o último dólar queuma pessoa ganha no ano) não é a mesma coisa que a taxa efetiva detributação (isto é, a porcentagem sobre todos os dólares ganhos ao longo

de um ano que uma pessoa paga em impostos).97 Ibidem, p.61. A tendência à desigualdade de renda, portanto, não seriadetida somente por meio de uma taxa sueca de tributação sobre os 1%mais ricos.

98 Meade, 1993, p.41.

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estado no qual todos os cidadãos, além da renda que obtêm nomercado, tivessem algum tipo de renda derivada de participaçãoem lucros, juros, aluguel ou dividendos.99 Para isso seria necessá-rio, em primeiro lugar, redirecionar o foco principal do sistematributário da taxação da renda para a taxação da riqueza excessivae da propriedade privada de capital. Para isso, Meade (e tambémRawls100) pensa em dois tipos de instituição de natureza fiscal:um imposto progressivo moderado que incidiria anualmentesobre a propriedade total adquirida pelo contribuinte ou sobre ototal de bens e serviços consumidos acima de um determinadolimite; e uma pesada taxação sobre as transferências de riqueza,também acima de um certo limite, por herança ou por doaçãointer vivos.101 A progressividade desse segundo imposto seria apli-cada do lado do recebedor, isto é, com base em quanta riqueza epropriedade tem o beneficiário da doação ou da herança e con-forme o conjunto de doações e heranças recebidas ao longo desua vida inteira. A taxação progressiva da renda só seria emprega-da de forma marginal, para evitar a concentração da riqueza.Para Meade, essas formas de tributação têm menos efeitos adver-sos sobre os incentivos para trabalhar, poupar e assumir riscosdo que as formas usuais de tributação da renda empregadas peloswelfare states.

Rawls acredita que um arranjo institucional tal como antesdescrito seria suficiente para dispersar a propriedade sobre osmeios de produção e recursos naturais e para garantir um míni-mo social adequado para todos os cidadãos.102 Podemos duvidarque esse arranjo seja praticável ou que as medidas mencionadasno parágrafo anterior sejam suficientes para implementá-lo. Detoda forma, acredito que vale a pena acentuar uma vez mais porque Rawls considera a democracia de cidadãos-proprietários um

99 Na Agathotopia de Meade, ainda faria parte do quinhão distributivo de

cada um uma renda básica paga incondicionalmente, e de forma nãorelacionada à capacidade produtiva, a todos.100 Rawls, 1990, p.130-1.101 Meade, 1993, p.92-4.102 Rawls, 1990, p.131.

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arranjo institucional mais apropriado à concretização dos doisprincípios de justiça de sua teoria do que um capitalismo dewelfarestate. Ao passo que este último permite a uma pequena classepraticamente monopolizar os meios de produção, a democraciade cidadãos-proprietários evita isso, não pela redistribuição darenda àqueles que têm menos ao fim de cada período, por assimdizer, mas sim garantindo a difusão da propriedade de recursosprodutivos e de capital humano (isto é, educação e treinamentode capacidades) no início de cada período, tudo isso contra opano de fundo de uma igualdade eqüitativa de oportunidades. Aidéia não é simplesmente a de dar assistência àqueles que levam apior em razão do acaso ou da má sorte (ainda que isso tenha deser feito), e sim a de fazer que todos os cidadãos sejam capazes deconduzir seus próprios assuntos em um pé de igualdade social eeconômica apropriada.103

O mais sério defeito do welfare state está em que seu sistemade tributação e de transferências é organizado para corrigir ex- post ao fim de cada período, como diz Rawls as desigual-dades geradas por uma economia capitalista de mercado.104 Em-bora isso não esteja dito explicitamente na passagem anterior, owelfare state vai de encontro à idéia de que deveríamos conceberuma estrutura básica justa como uma modalidade de justiçaprocedimental pura.105 As compensações ex-post exigem preci-samente aquilo que deveria estar ausente de um arranjoinstitucional justo, isto é, levar em conta a infindável variedadede circunstâncias e as posições relativas de pessoas específicas.106

Ao fim de cada período é preciso apurar a renda de cada um eas circunstâncias da vida de cada um dos candidatos aos bene-fícios condicionais do welfare state. É preciso haver um grandeaparato burocrático para averiguar se os beneficiários estão real-mente desempregados (e empenhados em encontrar trabalhoou pelo menos em se qualificar profissionalmente) ou incapa-

103 Ibidem, p.143.104 Van Parijs, 1997, p.74.105 Ver capítulo 1 para a noção de justiça procedimental pura.106 Rawls, 1971, p.87.

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citados para o trabalho, ou ainda se não dispõem de qualqueroutra fonte de renda. Como observa Van Parijs, as formas derenda mínima garantida que vários países europeus introdu-ziram em seus welfare states após a Segunda Guerra Mundial sãofortemente condicionais e, quanto mais condicional o benefício,maior a necessidade de investigar a vida privada dos benefi-ciários.107 A concessão do benefício é condicional a um testede trabalho (o beneficiário deve se mostrar disposto a aceitarum trabalho ou um treinamento profissional, caso uma dasduas coisas lhe sejam oferecidas), a um teste de meios (o be-neficiário tem de demonstrar que não tem outras fontes derenda além do benefício pleiteado) e até a uma averiguação darenda da pessoa o cônjuge ou das pessoas com quem obeneficiário viva.108

Embora seja preferível a um capitalismo de laissez-faire, oarranjo institucional do welfare state está muito distante da for-

107 Van Parijs, P. Basic Income Capitalism. Ethics, v.102, p.465-84. abr. 1992.Estou me valendo da edição brasileira deste texto. Ver Van Parijs (1994). Arenda mínima garantida, diversamente dos direitos previdenciários, é umbenefício em dinheiro que não depende de contribuição anterior para ser

obtido.108 Van Parijs, 1994, p.76-7. Os benefícios condicionais têm um outro grave

inconveniente, apontado tanto por Van Parijs quanto por Meade: elestendem a criar uma armadilha da pobreza. Uma vez que os benefíciosem dinheiro de caráter condicional são retirados conforme a pessoa obtémqualquer outra forma de renda, os beneficiários não têm um incentivopara aceitar um trabalho com o qual ganharão (após as deduções) igual

ou menos do que ganham vivendo dos benefícios pagos pelo Estado. Esseproblema talvez ainda não esteja tão visível nos incipientes programas derenda mínima garantida adotados por alguns municípios e por um governoestadual (o do Distrito Federal) no Brasil, mas com certeza se tornarámais importante caso programas desse tipo venham de fato a se tornarum instrumento importante de política social. Note-se que o imposto derenda negativo proposto pelo senador Eduardo Suplicy, no projeto de lei

que hoje tramita no Congresso Nacional com possibilidades muito remotasde vir a ser aprovado, foi concebido de forma a evitar a criação de umaarmadilha da pobreza. Pelo projeto de Suplicy, aqueles que trabalhassem,mesmo por salários baixos, sempre obteriam uma renda significativamentesuperior à daqueles que vivessem somente do benefício.

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ma de justiça procedimental pura que o ideal de democracia decidadãos-proprietários procura captar.109 Esse ideal supõe queseja possível organizar as instituições de propriedade e tribu-tação de tal forma a que constituam, junto com as instituiçõesnecessárias para garantir o maior grau possível de igualdade deoportunidades, uma estrutura básica que é ex-ante justa. Se umaestrutura básica com essas características pudesse ser colocadaem prática, estaríamos em condições de ignorar, para efeitos dejustiça social, as circunstâncias de vida e as posições relativas depessoas específicas. Argumentei, nos dois primeiros capítulos,que o liberalismo igualitário é uma modalidade de reflexãonormativa conseqüencialista; agora estamos percebendo os li-mites desse conseqüencialismo: se o arranjo institucional básicosatisfaz as exigências da justiça, quaisquer titularidades, estadosde coisas e perfis distributivos que sob ele se produzam deverãotambém ser considerados justos. Esse é o ponto central da idéiade justiça procedimental pura aplicada à estrutura básica dasociedade. Ainda que não seja esse o foco da discussão no mo-mento, vale a pena ressaltar que essa visão da justiça distributivacomo uma forma de justiça procedimental permite rebater umadas objeções centrais de Nozick ao princípio de diferença. Comouma variante daquilo que ele denomina princípios estruturaisou padronizados de justiça, o princípio de diferença implicariainterferências contínuas em transações específicas.110 Vemos, ago-ra, que a idéia é outra. Uma vez que a justiça de background égarantida, não há mais nenhuma razão, da ótica da teoria, parainterferir em transações específicas ou para redistribuir titulari-dades legitimamente adquiridas.

O problema é que Rawls parece relutante em admitir asimplicações radicais da concepção de igualdade distributiva que

109 Dizer isso de modo algum significa menosprezar o fato (ressaltado por

Maria Hermínia Tavares de Almeida ao comentar essa afirmação e outrasno mesmo sentido) de que o welfare state (em sua versão escandinava) é oarranjo socioeconômico que mais se aproximou de colocar em práticauma concepção de justiça social similar à justiça como eqüidade.

110 Nozick, 1971, p.160-4.

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está embutida no modelo da democracia de cidadãos-proprietá-rios. As mudanças institucionais defendidas por Meade para aseconomias industriais avançadas vão muito além daquelas queforam mencionadas acima e que Rawls explicitamente endossa.O arranjo institucional socioeconômico de sua Agathotopiaconsiste em um tripé formado pelas instituições tributárias parapromover a dispersão da propriedade e da riqueza produtiva;pela introdução de incentivos fiscais que encorajem a substitui-ção, em uma parte considerável do setor privado, da empresacapitalista existente nos moldes atuais que funciona mediantea contratação de trabalhadores em troca de um salário fixo por uma forma institucional que ele denomina parceria docapital com o trabalho; e pela gradual introdução de uma ren-da básica incondicional em substituição aos benefícios condicio-nais do welfare state. Com respeito ao segundo elemento dotripé, Meade imagina, em sua forma pura, uma estrutura com-posta por parceiros que arriscam seu capital (um ou mais capita-listas) e por parceiros (os trabalhadores) que arriscam investirseu trabalho em um empreendimento comum.111 A remunera-ção do capital e do trabalho é constituída pelos dividendos

obtidos, respectivamente, com certificados de participação nocapital e no trabalho distribuídos a todos àqueles que têm al-gum direito na receita líquida da empresa que é passível dedistribuição. A preocupação maior de Meade é a de conceberdisposições institucionais que eliminem uma debilidade que aempresa autogerida pelos trabalhadores tem diante da empresa

capitalista convencional: ao passo que os proprietários destaúltima sempre têm um incentivo para contratar novos trabalha-dores desde que fazê-lo aumente o lucro total da empresa, oincentivo para admitir novos sócios, em uma cooperativa detrabalhadores, desaparece quando isso faz decair o lucro  percapita do empreendimento.112 Em uma economia de mercado de

empresas autogeridas, em suma, o desemprego poderia ser até

111 Meade, 1993, p.107-8.112 Ibidem, p.89.

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maior do que é hoje, sob o império da empresa capitalista desalários fixos. Esse problema só pode ser contornado, acreditaMeade, abandonando-se o princípio da remuneração igual paratrabalho igual para os trabalhadores novos e antigos de ummesmo empreendimento. O último elemento do tripé a intro-dução de uma renda básica garantida a todos com base em nadamais do que o status igual da cidadania , além de simplificar owelfare state, também teria o propósito de facilitar a aceitação deformas mais flexíveis de remuneração do trabalho.113

Qual seria a concretização institucional mais apropriada parao princípio de diferença é, evidentemente, objeto de contro-vérsia.114 Também é da própria natureza de qualquer princípio dejustiça deixar uma considerável latitude para o julgamento sobresuas implicações específicas. Mas a referência que Rawls faz àdemocracia de cidadãos-proprietários não pode ser gratuita. Aestrutura institucional que satisfaria, ainda que de forma aproxi-mada, o critério de justiça procedimental pura não correspondea nada que conheçamos até o momento.

113 A garantia de uma renda básica adequada, paga incondicionalmente a

todos, exigiria medidas fiscais heróicas. Meade pensa em coisas taiscomo a tributação de atividades poluidoras e da publicidade comercial,além de um imposto sobre a primeira fatia da renda que cada pessoaobtivesse de outras fontes que não a própria renda básica (o que equivalea tornar o benefício parcialmente condicional: uma parte da renda básicaseria subtraída conforme a pessoa obtivesse outras fontes de renda). Umarenda básica num nível realmente adequado, acredita Meade, só se tornaria

viável quando fosse possível dar o último e mais radical passo nas reformasinstitucionais por ele propostas: a socialização de perto de 50% de toda ariqueza produtiva do país. Meade imagina uma nacionalização pela qual oEstado adquiriria uma crescente participação acionária nas empresasprivadas deixando, porém, o controle gerencial dessas empresas nas mãosda iniciativa privada. O objetivo seria o Estado obter uma participaçãonos lucros, mas não no gerenciamento, de empreendimentos produtivos

privados (Meade, 1993, p.94-6).114 Infelizmente, no momento não tenho como examinar com o cuidado que

seria necessário o capitalismo de renda básica que Van Parjis (1995a)apresenta de forma mais completa. Limitei-me à democracia de proprietários-cidadãos por ser a alternativa explicitamente mencionada por Rawls.

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O eu dividido

Creio ser possível dar uma resposta incisiva, que já está implí-cita na discussão desenvolvida nas duas últimas seções à objeçãode Nozick ao princípio de diferença. Teriam os mais privilegiadosuma objeção razoável a fazer a um arranjo que colocasse a justiçadistributiva maximin em prática? A resposta a essa pergunta,como já foi dito, depende de qual é o referencial que se considera

apropriado para julgar o que são benefícios e sacrifícios razoá-veis. Caso se considere que o referencial apropriado é a distri-buição de encargos e benefícios que se verifica nas sociedadesinjustas nas quais vivemos, ou a distribuição de recursos e dota-ções de um hipotético estado de natureza lockeano, a respostaserá sim. Tanto um quanto o outro, no entanto, são rejeitados

pela teoria de Rawls. O único referencial apropriado para estimara aceitabilidade das posições e dos quinhões distributivos geradospor um determinado complexo de instituições básicas, como vi-mos ao seguir o percurso argumentativo que conduz à concepçãodemocrática, é uma distribuição igual de bens primários. Comono nível mais fundamental da argumentação, nada, exceto a igual-

dade se justifica, a suposição de Rawls é a de que basta se concen-trar na aceitabilidade da posição mínima que resultaria da aplica-ção do princípio de diferença. Aqueles que se encontrassem naposição mais desfavorável, digamos que sob uma democracia decidadãos-proprietários, seriam também os que mais razões te-riam para apresentar uma queixa razoável ao arranjo implementado

afinal, são eles que ganhariam menos, em termos relativos, emcomparação à situação inicial de igualdade. Se, no entanto, pode-mos supor que os menos beneficiados por esse arranjo nada te-riam do que se queixar, muito menos motivos ainda teriam os quese encontrassem nas posições acima da mínima para se conside-rarem alvo de alguma injustiça. Se a posição mínima é satisfatória,

então a fortiori as posições que estão acima dela também o são.115

115 Cohen (1989, p.226-34) e Barry (1989, p.393-400) desenvolvem argu-mentos similares a esse em favor do maximin.

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O objetivo do acordo razoável sobre princípios de justiça não é ode assegurar que todos satisfaçam suas expectativas na medidaem que o desejariam; trata-se, isso sim, de encontrar termos eqüi-tativos para a cooperação social entre pessoas que se concebemcomo livres e iguais.

Todo o peso recai, portanto, no referencial a partir do qualavalia-se o que são termos eqüitativos de cooperação que pode-riam receber o assentimento voluntário de todos. Se partimos deum estado de natureza não-igualitário, tenderemos, como

Gauthier, a ver no maximin um princípio que permite aos menostalentosos e capacitados pegar uma carona nos esforços daquelesque têm uma capacidade produtiva maior e que contribuem maispara a geração do excedente produzido pela cooperação.116 Separtimos, como Rawls, de um status quo inicial de igualdade,nosso entendimento será o de que uma estrutura básica que

implemente o princípio de diferença autoriza os que têm umacapacidade produtiva maior a obter, embora não tenham nenhumtítulo moral a isso, um quinhão dos benefícios da cooperaçãosocial que ainda é maior do que aquele que está ao alcance dosque estão na posição mínima. O arranjo como um todo seguesendo, de todo modo, mais vantajoso para os que possuem os

talentos e capacidades mais valorizados. Eles não têm, em conclu-são, uma objeção razoável a fazer ao princípio de diferença. Asrazões de eficiência não desempenham, ao contrário do que mui-tas vezes se supõe, o papel mais importante na justificação domaximin. Rawls considera a distribuição que resultaria da aplica-ção desse princípio como justa e não como uma forma de com-

promisso necessária para comprar o apoio dos mais privilegiadosa instituições que lhes seriam desfavoráveis.117 Mas é claro que

116 Beira à esperteza a forma como Gauthier (1986, p.10-1) manipula em seufavor a frase de Rawls de que a sociedade, em uma visão contratualista, éum empreendimento cooperativo para o benefício mútuo entre pessoas

que se concebem como mutuamente desinteressadas. Ver capítulo 3,nota 2. A caracterização do status quo inicial é decisiva para avaliar quetermos de cooperação são mutuamente benéficos.

117 O princípio de diferença não é concebido como um compromissoprudencial entre razões de justiça e incentivos econômicos. Isso ele é

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também há a expectativa de preservar uma medida suficiente dosincentivos econômicos usuais para os que têm os talentos e capa-cidades superiores.

Aceitaremos o argumento em favor do princípio de diferençase aceitarmos a presunção em favor da igualdade. Aceitando-seessa presunção, o problema de uma teoria da justiça distributivapassa a ser o de justificar as desigualdades. O critério adotadopor uma teoria contratualista como a de Rawls é o de que sãoaceitáveis as formas de desigualdade que se estabelecem para obenefício de todos. Essa exigência é, a seguir, simplificada de umaforma que nos leva até a formulação do maximin: só são justificadasas desigualdades socioeconômicas que beneficiam os que têmmenos a ganhar com elas.

Haveria algum argumento teórico decisivo em favor da pre-

sunção à igualdade? Com certeza, não. Essa não é o tipo dequestão que possamos esperar resolver mediante argumentaçãoteórica. O contratualismo rawlsiano, como argumentei no capí-tulo 6, não faz muito sentido se recusamos de pronto suaspremissas morais substantivas. Mas o fato de esbarrarmos emcompromissos morais últimos não significa que não possamos

considerar, levando-se tudo em consideração, que uma dada teo-ria normativa é mais defensável do que outras. Tenha em menteque o maximin é somente um dos componentes de uma concep-ção de justiça política que, em seu conjunto, tem o propósito deacomodar nossos julgamentos ponderados de justiça e estendê-los de uma forma aceitável.118 A presunção à igualdade, que

desempenha um papel tão importante na justificação do maximin,também se encontra por trás de convicções tais como as de quea intolerância religiosa e a discriminação racial são injustas ou ade que toda pessoa adulta tem exceto em circunstâncias excep-cionais um direito de participar da tomada das decisões de

também. As desigualdades admitidas pelo maximin são  moralmentejustificadas porque são estabelecidas em benefício dos que estão na posi-ção mínima.

118 Rawls, 1971, p.19.

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cumprimento obrigatório que afetarão sua vida.119 A justiçadistributiva não é um departamento à parte de outras convic-ções que são fundamentais em nossa autopercepção como cida-dãos livres e iguais. Esse tipo de consistência global razoável oemprego deste adjetivo é mais pertinente do que nunca estáinteiramente ausente do tratamento que Gauthier e Nozick dis-pensam à justiça distributiva. A estratégia de Rawls de procu-rar as bases possíveis de acordo onde nenhuma base para isso

parece existir,

120

como observa Joshua Cohen, difere daquelaque é adotada por Nozick e Gauthier, por exemplo, que nãoexplicam como suas concepções de direitos e de barganha racio-nal podem acomodar convicções sobre a liberdade de expressãoe as liberdades políticas, ou sobre os direitos à igual proteçãodas leis; e difere da estratégia adotada em inúmeros outros

enfoques sobre questões de distribuição que não incorporamexplicitamente esse problema na estrutura mais ampla de umargumento institucional e normativo que também acomode con-vicções fundamentais.121

Para finalizar essa discussão, retomo o tema da partição demotivações que, seguindo Nagel, estou considerando o mais di-

fícil problema a ser enfrentado por toda e qualquer variante não-autoritária de pensamento político igualitário. Em mais de ummomento, ao longo deste capítulo, ressaltei as dificuldades quehá em conciliar as exigências da imparcialidade igualitária paraas quais, pelo menos é isso que estou defendendo, é mais apro-priado dar um reconhecimento de natureza institucional e as

razões que cada agente tem, de seu ponto de vista, para agir. Se asinstituições e políticas igualitárias não forem capazes de tornarcompatíveis esses dois pontos de vista, elas também não serão

119 Como observa Dahl (1989, p.83-8), a idéia do valor intrínseco igual dos

seres humanos, que não é senão outra forma de denominar a presunçãode igualdade, constitui a consideração normativa que fundamenta o direitode se autogovernar por meio do processo democrático.

120 Rawls, 1971, p.582.121 Cohen, 1989, p.731.

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capazes de gerar as atitudes que lhes podem conferir estabili-dade. Aquilo que já discutimos, note-se, é a estabilidade de umasociedade justa. É com esse problema que estamos lidando quan-do perguntamos se um determinado princípio de justiça passapelo teste da não-rejeição razoável. Perguntar pelo que pessoas decarne e osso, conhecedoras de suas posições, vantagens e prefe-rências, não poderiam razoavelmente rejeitar, não nos levaria aparte alguma. O que estamos fazendo é um exercício do seguinte

tipo: vamos supor que, fazendo uso de uma varinha mágica, pu-déssemos nos transportar para uma sociedade cujas instituiçõesbásicas implementam o princípio que está em discussão. Teriaalgum dos homens representativos dessa sociedade uma obje-ção razoável a fazer a sua posição sob o arranjo institucional colo-cado em prática? Essa pergunta não diz respeito a como chegar

lá a uma sociedade justa; o que está em questão é: se a elachegássemos, lá permaneceríamos? As instituições que colocariamo princípio proposto em prática seriam capazes de gerar as ati-tudes e motivações necessárias para lhes dar apoio?

Para as mentes mais pragmáticas, parecerá perda de tempotentar responder a perguntas desse tipo. Não é o que penso. Os

socialistas clássicos empenharam-se muito em responder à ques-tão como chegar lá? e muito pouco em oferecer uma descriçãoadequada das instituições da sociedade socialista e de como elaspoderiam operar sem que exigências motivacionais heróicas fos-sem feitas às pessoas que nelas viessem a assumir papéis instru-mentais. Para os que compartilham de convicções igualitárias, o

caminho a ser trilhado é hoje o inverso. Somente se formoscapazes de conceber um arranjo institucional (alternativo à eco-nomia de mercado de tipo capitalista) que satisfaça a um critérioexigente de justiça e que, ademais, seja compatível com as moti-vações que se pode razoavelmente esperar agora sim depessoas de carne e osso, podemos ter alguma esperança de que

a agência necessária para nos fazer ir daqui até lá venha a seconstituir.

Uma sociedade democrática regulada pelos dois princípiosde justiça propostos por Rawls poderia ser estável do ponto de

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A JUSTIÇA IGUALITÁRIA E SEUS CRÍTICOS 273

vista motivacional? Reapresentemos os termos do problema. Ocomponente mais controverso dessa concepção, quando não éinterpretado de uma forma trivial, é o princípio de diferença.122

É indiscutível que o maximin impõe, sobretudo aos que são maisafortunados pelas circunstâncias sociais e pela natureza, um ônusmotivacional considerável. Supõe-se que eles seriam capazes, emuma sociedade liberal justa, de fazer o máximo que podem (nomercado) com seus talentos e capacidades ao mesmo tempo em

que, do ponto de vista público, considerariam moralmenteobjetável reter todos os benefícios que poderiam obter exercen-do-os. A concepção liberal do eu não é, como Sandel supõe, a deum eu desencarnado uma concepção de pessoa moral esva-ziada dos atributos que são essenciais à personalidade individual e sim a de um eu dividido. O que se supõe é que as pessoas

sejam capazes de agir de forma auto-interessada no mercado, e apartir de razões relativas ao agente em suas vidas privadas,123 aomesmo tempo em que, na condição de cidadãs, dão apoio a insti-tuições sociais que objetivam realizar uma visão do bem comum.

É difícil imaginar que isso seja possível quando pensamosnas motivações e aspirações individuais que os arranjos socio-

econômicos vigentes promovem. É fora de dúvida que uma es-trutura institucional que implemente um princípio de justiçadistributiva semelhante ao maximin só será estável supondo-seque a imparcialidade igualitária penetre muito mais no caráterindividual do que hoje é o caso em quaisquer das democraciasliberais existentes. Essa é uma afirmação propícia para desper-

tar suspeitas. Estou tratando de uma concepção de justiçadistributiva que sustentei ser parte de uma visão política liberal

122 Essa opinião, devo admitir, não é a mais popular hoje entre os scholarsrawlsianos. A grande maioria, com as notáveis exceções mencionadas ao

longo deste capítulo, prefere se concentrar na agenda de problemassuscitada pelo que Rawls, em seus textos mais recente, vem denominandoliberalismo político.

123 Excetuando, evidentemente, as constrições deontológicas que normalmentejá se encontram reconhecidas no direito positivo.

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e, de repente, pareço estar recorrendo a um argumento que lem-bra a desacreditada idéia socialista da criação do HomemNovo.124 As expectativas de progresso moral que estou expri-mindo não têm nenhuma afinidade com tal idéia. Admitindoque os fundamentos dessas expectativas são frágeis, ocorre-mefazer duas rápidas considerações.

Retomemos, por um instante, o argumento da arbitrariedademoral examinado. Esse argumento emprega um critério normativopreciso (ainda que suas aplicações nem sempre possam ser tãoprecisas) para distinguir formas de desigualdade que deveríamosver como injustiças de formas de desigualdade não-objetáveis doponto de vista moral. Injustiças, como vimos, são as desigual-dades que resultam de fatores que estão fora do alcance das esco-lhas individuais. Não se trata de uma idéia arbitrária. Esse crité-rio normativo é precisamente o mesmo que, ao longo dos úl-timos cem anos, esteve por trás da deslegitimação das desigualda-des que resultam dos fatores com respeito aos quais a arbitrarie-dade moral é mais facilmente reconhecível aquelas que derivamde diferenças de raça, de gênero e, de uma forma mais parcial eambígua, de classe.125 A estabilidade motivacional de um arranjosocioeconômico com as características da democracia dos cidadãos-proprietários depende, como foi visto, desse processo de desle-gitimação de desigualdades arbitrárias ser levado adiante. Aquisó posso temperar o pessimismo especulando que possivelmenteum mecanismo de psicologia moral funcione de molde a quedeterminadas formas de desigualdade só venham a ser percebi-das como injustiças quando se tornar patente, para um grandenúmero de pessoas, que aquilo que as torna objetáveis é precisa-mente o mesmo critério normativo que desempenhou um papelcrucial na deslegitimação das desigualdades que já são rejeitadascom muito mais indignação. Se isso é assim, as inovações

124 Maria Hermínia Tavares de Almeida apresentou essa objeção.125 Não vou retomar argumentos discutidos antes, mas vale enfatizar que se

o fator classe não fosse considerado moralmente arbitrário os esforçospara garantir uma igualdade liberal de oportunidades não teriam nenhumsentido.

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institucionais propostas, que objetivam aprofundar o processode igualação esboçado anteriormente, jamais poderão escapar dogradualismo. Pode-se acusar essa visão de ser reformista, mas nãode flertar com alguma variante de stakhanovismo ou de ser partede uma teoria condenada a permanecer no plano ideal.126

A segunda consideração tem a ver, novamente, com a natu-reza institucional da perspectiva normativa em exame. Ao falarem ampliação do componente de imparcialidade igualitária nocaráter individual, não estou pensando em conversão pessoal.Assim como as instituições sociais hoje funcionam para enfra-quecer esse componente, parece razoável supor que elas tambémpoderiam funcionar no sentido inverso. Essa é a expectativa queestá por trás dos esforços de James Meade ao conceber o desenhoinstitucional de sua Agathotopia:

Os agathotopianos inventaram instituições que em largamedida se apóiam na conduta empreendedora egoísta em ummercado competitivo livre, mas que, ao mesmo tempo, colocamuma grande ênfase na cooperação entre os indivíduos para produziro melhor resultado possível e em uma atitude compassiva paracom aqueles que de outro modo levariam a pior. O agathotopiano

126 A objeção que aparece na frase entre aspas me foi feita por Leda Paulani.Em vez disso, penso que a concepção rawlsiana de justiça distributiva e ocritério normativo que emprega para identificar injustiças retiram suaplausibilidade dos valores, das práticas e até mesmo das instituições dasdemocracias liberais ocidentais. Não falta contextualização histórica e nem

a teoria é desesperadamente idealista simplesmente porque a sociedadebem ordenada concebida não se encontra em radical descontinuidade comos arranjos institucionais existentes nas democracias liberais. Esses arranjossão criticados por realizarem de forma insuficiente um critério normativoque não pode ser descartado quando se trata de justificá-los moralmente.Quanto à visão de indivíduo liberal que acabo de apresentar, note-se que apartição de motivações já se verifica sob os arranjos socioeconômicos

produzidos pelos welfare states, que têm sido atacados muito mais por razõesideológicas do que por exibirem uma instabilidade crônica do ponto devista motivacional. Mesmo sendo um ideal, essa visão do eu é bem maisrealista do que uma utopia igualitarista para a qual essa tensão entremotivações distintas teria de desaparecer.

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típico tem uma atitude mais cooperativa e compassiva em seucomportamento social do que hoje é o caso na Grã-Bretanha, onde,infelizmente, estivemos por tantos anos submetidos a um regime

de a-melhor-parte-vai-para-o-demônio e de aposse-se-de-tanto-dinheiro-que-for-possível-o-quanto-antes. Isso sugere a existênciade um feedback positivo entre as instituições sociais e as atitudessociais.127

Pode-se duvidar que tal integração de motivações distintas

seja possível. Não tenho como levar a discussão além desse pon-to no momento. É preciso ficar claro, de todo modo, que não sóo liberalismo rawlsiano, mas qualquer concepção igualitária queconsidere inadmissível a conscrição ao trabalho e a abolição domercado de trabalho, enfrentará uma dificuldade similar de con-ciliar as duas motivações para agir. Levar a sério esse problema

representa o primeiro passo para o pensamento social de esquer-da recuperar sua capacidade de propor mudanças institucionais.

127 Meade, 1993, p.106.

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CAPÍTULO 7

A TOLERÂNCIA LIBERAL

O ideal de legitimidade política que estou considerando cen-tral ao contratualismo rawlsiano exige imparcialidade demais daconduta dos indivíduos? Essa foi uma das questões que examina-mos, no capítulo anterior, da ótica da justiça distributiva. Va-

mos agora examiná-la da ótica da tolerância. Isso diz respeito àforma como a versão de liberalismo que estou considerando lidacom o problema da existência de visões incomensuráveis do queé valioso na vida humana. Trata-se do pluralismo moral, a quejá fiz menção ao introduzir a discussão do enfoque rawlsiano. Asgrandes religiões mundiais são, obviamente, as principais

candidatas a visões dessa natureza, mas de modo algum são asúnicas. Também há visões morais e políticas incluindo versõesclássicas de liberalismo, tais como a concepção, a que farei umarápida referência adiante, segundo a qual a vida digna de servivida é uma vida de autonomia individual1 que se qualificamcomo concepções controversas do bem.

1 Entre as quais Rawls inclui a concepção do bem como autonomia individualque é energicamente defendida por Stuart Mill em Sobre a liberdade. Ver,por exemplo, Rawls, 1993a, p.37-8 (n.39).

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A questão da tolerância liberal pode ser formulada da seguin-te forma. Uma vez que as instituições básicas de uma sociedadeliberal justa devem poder ser justificadas, a cada um de seus cida-dãos, por razões que ninguém poderia razoavelmente rejeitar,essa justificação não pode se fundamentar em convicções e valo-res que são aceitos somente por uma parte dos cidadãos. Se essetipo de parcialidade ocorre, os cidadãos que têm os seus valoresignorados podem argumentar que o poder político a coerçãocoletiva está sendo empregado contra aquilo que eles julgam sermais verdadeiro. É utópico imaginar que é possível garantir quetodas as concepções permissíveis do bem encontrarão condiçõesfavoráveis para florescer e ganhar adeptos em uma sociedade li-beral justa. Rawls gosta de dizer (atribuindo a idéia a Isaiah Berlin)que não há mundo social sem perda.2 Mas os méritos relativosdo liberalismo sempre na versão que estamos estudando pe-rante outras teorias políticas devem ser avaliados tendo em vistasua pretensão a ser a doutrina que, se consistentemente aplicada,garantiria o maior espaço possível para o florescimento de dife-rentes visões sobre o que torna a vida digna de ser vivida.

Acordo unânime e discussão pública

Uma vez que o pluralismo de valores é quase intratável, doponto de vista político, só podemos ter alguma esperança dechegar a uma forma não-arbitrária de lidar com o pluralismomoral reduzindo drasticamente o âmbito de questões com res-peito às quais podemos esperar que um acordo razoável possaser alcançado. Essa é a estratégia que perseguirei a seguir. Elaimplica qualificar de várias maneiras o padrão scanloniano denão-rejeição razoável.

A primeira qualificação a fazer volta a um ponto que já foiobjeto de discussão antes, mas que convém retomar.3 O con-tratualismo rawlsiano preocupa-se com os princípios que devem

2 Ibidem, p.197.3 Ver o capítulo 4.

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A JUSTIÇA IGUALITÁRIA E SEUS CRÍTICOS 279

reger a estrutura básica da sociedade e não com os princípiosque podem ser invocados para justificar as escolhas em um âm-bito da conduta individual que deveríamos ver como puramenteprivado. Por estrutura básica da sociedade, devemos entendero seguinte: as normas que distribuem os direitos legais funda-mentais, as que determinam as formas de acesso às posições depoder e autoridade; as normas e instituições, incluindo as edu-cacionais, que determinam o acesso a profissões e a posiçõesocupacionais em organizações econômicas; e o complexo de ins-tituições, incluindo as normas que regulam a propriedade, o di-reito de herança e o sistema tributário e de transferências, quedeterminam a distribuição da renda e da riqueza na sociedade.Esse conjunto de normas e instituições constitui o objeto de umateoria da justiça social.

Os julgamentos de valor sobre os objetivos, escolhas e ati-vidades que os indivíduos empenham-se em realizar em suasvidas estão fora do escopo de uma teoria desse tipo. O liberalis-mo igualitário nada tem a dizer sobre como os indivíduos de-vem viver suas vidas e não fornece preceitos para a conduta in-dividual, a não ser no que se refere à injunções que decorremdaquilo que Rawls denominou dever natural de justiça.4 Pode-mos interpretar isso como a exigência de que cada um faça oque se espera de si em instituições cujos princípios e normasconstitutivos poderiam receber o assentimento de todas as pes-soas que se dispusessem a chegar a um acordo em termos razoá-veis. As exigências da imparcialidade, portanto, recaem direta-mente sobre a justificação de princípios para a estrutura básicada sociedade e só de uma forma indireta sobre a conduta indivi-dual, na medida em que a existência de instituições envolve cer-tos padrões de conduta individual em conformidade com nor-mas publicamente reconhecidas.5 À parte isso, cada um deveter autonomia para viver sua própria vida de acordo com suaprópria concepção do bem.

4 Rawls, op. cit., p.333-7.5 Ibidem, p.335.

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Ter autonomia ou liberdade para praticar sua concep-ção do bem não deve ser confundido com praticar uma con-cepção do bem como autonomia individual. Uma concepção dobem como autonomia individual, para caracterizá-la em termosmuito breves, coloca uma forte ênfase na capacidade da pessoaescolher seus próprios fins. Trata-se, como diz Brian Barry, deuma concepção do bem de segunda ordem, já que não são osfins do agente que são considerados valiosos; o que se valoriza éa capacidade do agente de escolhê-los quaisquer que sejam (den-tro de certos limites que possibilitam a cada qual exercer suaautonomia).6 Por mais atraente que tal visão possa nos parecer,ela é demasiado controversa para servir de fundamento para asinstituições de um Estado liberal. Se fosse empregada como fun-damento das instituições sociais ou da política pública, essa con-cepção poderia ser discriminatória em relação a pessoas que sesentem perfeitamente à vontade vivendo de acordo com os pre-ceitos da verdade revelada ou de formas tradicionais de autori-dade. Os direitos liberais estão sempre lá, por assim dizer, comorecursos institucionais dos quais a pessoa pode se valer caso elaqueira revisar seus compromissos valorativos ou sua identidadecomo membro desta ou daquela comunidade. Mas não podemosjustificar esses direitos com base em uma noção controversa deindivíduo liberal. Se não fosse por nenhuma outra razão, somenteesse entendimento dos fundamentos normativos do liberalismopermite evitar que os membros de minorias culturais ou religio-sas se vejam pressionados a optar entre o compromisso que têmcom uma concepção tradicional do bem e a lealdade ao Estadoliberal-democrático. Para ilustrar com um caso que já provocoudebates acrimoniosos na França, o ideal de tolerância liberal deforma alguma requer que se exija das garotas muçulmanas quetirem o véu para freqüentar a escola pública.

Uma segunda qualificação importante a ser feita é a seguinte.Há inúmeros conflitos de valor com respeito aos quais uma deli-beração coletiva terá de ser tomada sem que seja preciso justificar

6 Barry, 1995a, p.128-33.

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as decisões tomadas pelo critério de Scanlon de não-rejeição ra-zoável. A imparcialidade moral, tal como a estou entendendo, sóentra em cena quando é preciso solucionar os conflitos que di-zem respeito àquilo que Rawls, em seus textos mais recentes,denomina fundamentos constitucionais e questões de justiçabásica.7 Essa formulação envolve reinterpretar ou mesmo aban-donar algumas posições defendidas em Uma teoria da justiça,como se verá adiante, já que nem todas (e nem sequer a maiorparte) das decisões políticas dizem respeito a essas questões dejustiça básica. Em conexão com esse ponto, menciono nãofarei muito mais do que isso uma mudança bastante significati-va na forma como Rawls entende sua própria teoria. Em Umateoria da justiça, se neste texto Rawls tivesse feito a distinção aque estou me referindo, tudo aquilo que dissesse respeito à distri-buição de bens primários de acordo com os dois princípios dejustiça deveria fazer parte das questões de justiça básica. Em Oliberalismo político, entretanto, Rawls exclui, ao que parece, o prin-cípio de diferença das questões sobre as quais o problema dechegar a justificações mutuamente aceitáveis para as normas einstituições comuns se apresenta. Em outros termos, Rawls pare-ce ter desistido de justificar o princípio de diferença apelando àidéia de acordo razoável. Acredito que faz sentido avaliar da se-guinte forma essas mudanças na forma como Rawls interpretasua própria teoria: podemos aceitar que é importante circunscre-ver as questões com respeito às quais devemos perseguir umaunanimidade razoável, sem por isso aceitar a exclusão da justiçadistributiva do âmbito das questões de justiça básica.8 A inter-

7 Entre as questões desse tipo, Rawls menciona as seguintes: quem tem odireito de voto, ou que religiões devem ser toleradas, ou a quem se devegarantir a igualdade eqüitativa de oportunidade ou o direito de possuirpropriedade (1993a, p.214).

8 Rawls (1993a) é ambíguo sobre esse ponto. Explicitamente, o que ele diz(ver, por exemplo, p.228-9) é que o princípio de diferença não pode figurarem um consenso constitucional. Sobre isso, creio que ele tem razão.Constitucionalizar o princípio de diferença seria inócuo. A realização deuma concepção de justiça distributiva que, como vimos no capítulo 6, é

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pretação que estou propondo do contratualismo rawlsiano aceitaa primeira mudança e rejeita a segunda.

Voltemos à especificação dos conflitos de valor em relaçãoaos quais o liberalismo igualitário nada propõe, exceto que se-jam solucionados por uma estrutura legal que, esta sim, possaser justificada por razões que ninguém poderia razoavelmenterejeitar.9 Para se valer de uma distinção proposta por Dworkin,há inúmeras decisões coletivas que não envolvem questões deprincípio e sim somente de política (entendida como policy).10

Não necessitamos de uma concepção de justiça social guiada peloideal de unanimidade razoável para avaliar os resultados de pro-cessos decisórios (de legistativos ou governos) que tratam dequestões de policy. Com respeito a estas questões, a justiça nadatem a dizer sobre os resultados das decisões tomadas, exceto queos resultados alcançados tenham sido produzidos por procedi-mentos decisórios eqüitativos. É uma questão de policy, por exem-plo, determinar que setores da economia deverão se beneficiarde renúncias fiscais; e é uma questão de princípio negar às esco-las públicas ou privadas, e às associações privadas de forma ge-ral, o direito de selecionar seus membros de acordo com crité-rios de segregação racial, étnica ou por região de origem.

Por decisões de policy, que devem ser tomadas por procedi-mentos democráticos eqüitativos, Dworkin tem em mente sobre-tudo aquelas que objetivam elevar a utilidade geral. Mas podemos

bastante exigente, é uma questão para a política, não para os tribunais.

Mas o problema é que o princípio de diferença tem um lugar incertotambém no overlapping consensus entre concepções razoáveis do bem doqual, pelo que Rawls hoje pensa, dependeria a estabilidade de sua concepçãode justiça. Ao explicitar o alcance do overlapping consensus em comparaçãoao consenso constitucional, que é de natureza mais superficial, Rawls dizque os princípios do primeiro vão além dos procedimentos democráticose também estabelecem certos direitos substantivos tais como as liberdades

de consciência e de pensamento, assim como a igualdade eqüitativa deoportunidade e princípios que protegem certas necessidades básicas(p.164). Nenhuma referência é feita, como se vê, ao princípio de diferença.

9 Um argumento semelhante a este é desenvolvido em De Marneffe, 1990.10 Dworkin, 1986, p.221-4.

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ampliar de forma considerável o argumento e incluir nisso todasas decisões políticas que só podem ser justificadas da ótica de de-terminadas concepções do bem. O argumento contratualista quedesenvolvi até aqui só é pertinente, para repetir algo que já foidito acima, ao arranjo institucional básico. É somente com res-peito a esse âmbito circunscrito de questões que somos impelidosa procurar um terreno neutro de justificações mutuamente aceitá-veis para as decisões políticas pertinentes. O ideal de unanimi-dade razoável nos conduz a uma norma de neutralidade de justifi-cação de princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade.Esperamos ser capazes de justificar esses princípios e suas confi-gurações institucionais de uma forma que não pressuponha o valorintrínseco superior de nenhuma concepção específica do bem. Masnão há porque supor que essa norma de neutralidade deva incidirsobre um sem-número de decisões que não colocam em questão adistribuição básica de direitos e deveres da sociedade.

Podemos incluir entre as decisões que caem fora do escopoda justiça e, portanto, da norma de justificação neutra, as quetêm por objeto além daquelas que se justificam pela utilidadegeral medidas tais como as de proteção ao meio ambiente e aopatrimônio histórico ou a subvenção pública às artes. Faz senti-do se considerar justo ou injusto o emprego de recursos ob-tidos por meio de taxação compulsória para subvencionar, diga-mos, pesquisas sobre filosofia medieval um bem que um nú-mero reduzido de pessoas reconheceria como tal e do qual umnúmero ainda mais reduzido é capaz de usufruir? Estou sugerin-do que a resposta é não.11 Neste ponto estou discordando da

11 É curiosa a forma como determinadas questões entram subitamente naagenda política brasileira. Enquanto eu trabalhava neste texto, no mês dejaneiro de 1998, tornou-se público que o legislativo estadual havia aprovado,em fins de 1997, uma contribuição obrigatória, a ser paga por todos que

têm um consumo de energia elétrica acima de 100 kw por mês, parafinanciar as atividades da TV Cultura de São Paulo. Pode-se reclamar dafalta de debate político sobre a conveniência de se criar mais um imposto,como, de resto, é a regra com respeito a quase todas as leis importantesaprovadas no Brasil, mas não há questões de justiça envolvidas na decisão.

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forma como Rawls tratou da questão (do fomento público às ar-tes e à ciência) em Uma teoria da justiça. Neste texto, Rawls ar-gumentou que a taxação compulsória para subvencionar essasatividades só seria justificada se fosse possível demonstrar queisso era o melhor a ser feito do ponto de vista dos interesses delongo prazo dos mais desafortunados.12 Caso contrário, a ques-tão teria que ser tratada no âmbito da liberdade de associação:As pessoas se associam para fomentar seus interesses culturaise artísticos da mesma forma como constituem comunidades reli-giosas. Elas não se valem do aparato coercitivo do Estado paraconquistar para si próprias uma liberdade maior, ou quinhõesdistributivos maiores, sob a alegação de que suas atividades têmum valor intrínseco superior.13 Esse tratamento dado à questãofoi pertinentemente criticado por inúmeros scholars.14

A consideração de ordem mais geral a ser feita aqui é a se-guinte: a norma de neutralidade que deriva do ideal de unani-midade razoável não exclui que um grande número de decisõespolíticas sejam tomadas com base em razões que só são razõesda ótica de concepções específicas e mais cheias da boa vida.Uma sociedade pode decidir, por meio de seus procedimentosde deliberação coletiva, que formas de excelência artística, cultu-ral ou científica ela quer e está a seu alcance promover. Vale apena enfatizar este ponto por duas razões.

Em primeiro lugar, as decisões políticas de qualquer tipo, enão somente aquelas que contribuem para a configuraçãoinstitucional básica da sociedade, inevitavelmente impõem res-trições à conduta e à autonomia individuais. Vamos supor quepor uma decisão majoritária se decida que o Estado subvencio-nará determinadas companhias de dança. E digamos também quese eu tivesse de decidir sozinho, e sem sofrer nenhuma interfe-rência política, em que atividade investir meus recursos, eu esco-

12 Rawls, 1971, p.332.13 Ibidem, p.328-9.14 Ver, por exemplo, Nagel, 1991, p.133-8; Gutmann, 1995, p.32-3; Barry,

1989, p.355-7; e Da Silveira 1995, p.159-79.

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lheria contribuir supondo-se que eu estivesse disposto a con-tribuir para algum empreendimento que julgo ser valioso paraa criação de escolas de futebol (não vejo nenhum valor em com-panhias de dança). Nesse sentido pode-se dizer que a decisãocoletiva, na medida em que me obriga a fazer algo que volunta-riamente eu não faria (contribuir para a subvenção a companhiasde dança), restringe minha autonomia individual. Mas de acor-do com a interpretação que estou propondo, nada tenho a obje-tar a isso desde que a decisão política que limita minha autono-mia tenha sido tomada por procedimentos decisórios que todospodem aceitar. Em decisões desse tipo, não posso apelar direta-mente ao ideal de unanimidade razoável ou à norma de neu-tralidade liberal como poderia no caso de uma decisão cole-tiva que, digamos, restringisse arbitrariamente minha liberdadede consciência. Diversamente de um liberalismo que AmyGutmann denomina negativo, o contratualismo rawlsiano se a interpretação que estou propondo é correta não é obceca-do pelo valor da não-interferência na autonomia individual e,com respeito à maior parte das questões que normalmente cons-tituem o estofo do processo democrático de tomada de decisões,não vê com desconfiança as deliberações coletivas.15

Em segundo, se minha argumentação faz sentido, a concep-ção de razão pública empregada pelo contratualismo rawlsiano émuito menos restritiva do que às vezes se afirma.16 O fato de queas questões pertinentes à estrutura básica da sociedade devam sersolucionadas com base em um padrão estrito de razão pública isto é, com base em razões que todos podem, em princípio, com-partilhar não significa que tudo o mais seja subtraído da discus-são pública. Há um sem-número de questões políticas importan-tes, tais como as que mencionei antes, com respeito às quais osargumentos que se farão representar, na discussão pública, neces-sariamente se fundamentarão em concepções específicas sobre o

15 Gutmann, 1995, p.5-37.16 Essa objeção à concepção de Rawls (1993a, p.212-54) de razão pública é

feita, por exemplo, por Da Silveira, 1997.

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que é valioso na vida humana. E certamente necessitaremos aper-feiçoar o processo democrático para que nos tornemos capazes dedecidir essas questões pesando os méritos relativos de razões quesão articuladas a partir de concepções controversas do bem. Paraexemplificar, queremos ouvir as razões e, quando for o momen-to, deliberar de modo informado as questões que se apresentarem dos que defendem um estilo de vida baseado no consumo e noconforto material e as razões daqueles que defendem um estilode vida mais austero e em conformidade com a sustentabilidadeecológica. Essas são questões que envolvem conflitos de valorpara os quais não há nenhum terreno neutro possível além da-queles que é propiciado pelos procedimentos de deliberaçãodemocrática. Mas dizer isso é muito diferente de dizer que aconcepção de razão pública de Rawls empurra questões dessanatureza as que não dizem diretamente respeito à justificaçãodas instituições básicas para a cultura de fundo.17

Consenso moral e acordo razoável

Vamos invocar, uma vez mais, as duas premissas morais subs-tantivas que estou considerando inseparáveis de um empreendi-mento contratualista como o de Rawls para perceber como elas seconectam no tratamento da tolerância. Não é razoável eu preten-

17 Para Rawls, a cultura de fundo é a cultura do social, não do político. Éa cultura da vida cotidiana, das muitas associações da sociedade civil:igrejas e universidades, sociedades científicas e literárias, dos clubes eassociacões esportivas, para mencionar algumas poucas (1993a, p.14).Estou discordando de Da Silveira quando diz que a cultura de fundo é oâmbito onde os indivíduos apresentam e confrontam suas convicçõesreligiosas, filosóficas e morais (Da Silveira, 1997, p.7). É portanto o

lugar de onde podemos aspirar modificar as concepções abrangentes dosdemais membros da sociedade. Mas para Rawls é vital que essaargumentação não-pública se mantenha diferenciada da discussão apropósito dos fundamentos constitucionais e das questões básicas dejustiça (Rawls, 1993a, p.214-5 e 251).

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der que você aceite, para regular a distribuição básica de direitos ede deveres sob a qual ambos teremos de viver, princípios queconferem uma posição privilegiada ao meu poder superior de bar-ganha ou, alternativamente, à minha visão abrangente do bem(que é distinta da sua). Você poderia razoavelmente rejeitar umacordo nesses termos sob a alegação de estar recebendo um trata-mento desigual. Você corretamente argumentaria que eu e vocêsó podemos esperar alcançar um acordo se os termos propostosgarantirem um tratamento igual a ambos, isto é, se não exprimi-

rem desigualdades que são arbitrárias de um ponto de vista mo-ral. Para o acordo ser alcançado, há uma condição prévia, portan-to, a ser satisfeita: a de que ambos concordemos em deixar de ladoas pretensões que têm por base desigualdades arbitrárias. Massomente pessoas para quem a motivação moral for suficientemen-te forte aceitarão deixar de lado, ao argumentar com outros sobre

questões fundamentais de justiça, os fatores que normalmenteconsiderariam importantes de seu ponto de vista individual. Emsuma, a motivação moral é aquilo que faz que um acordo sobreprincípios comuns de justiça possa ser alcançado. É com base nasuposição de que essa motivação encontra-se presente em um grausuficiente na conduta humana que podemos afirmar que as partes

contratantes aceitarão as restrições impostas por esses princípios àsformas pelas quais cada um poderá empenhar-se em realizar seusfins, quer se trate do interesse próprio de indivíduos ou de grupos,quer se trate de uma determinada visão abrangente do bem.

Consideremos um assunto freqüentemente examinado nes-se contexto. Trata-se de uma questão que, pelo menos superfi-

cialmente, hoje poucos nos Estados liberal-democráticos, é cla-ro considerariam controversa. Vamos supor que temos de justi-ficar um princípio de tolerância religiosa,18 e as correspondentesinstituições e normas que tipicamente lhe dão substância em umEstado liberal-democrático (tais como as garantias legais às liberda-des de consciência e de culto, a norma de igual proteção das leis a

18 Trata-se de um princípio de justiça que, na teoria de Rawls, entra comoum componente importante do primeiro princípio de justiça.

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todos e a separação Estado-Igreja), aos partidários de diferentesdoutrinas religiosas. Se minha interpretação de um contratualismocomo o de Rawls é correta, o que não deveríamos dizer a cada umdeles é o seguinte: você deveria aceitar um princípio de tolerân-cia religiosa (e todas as suas implicações institucionais) porqueisso é consistente com uma interpretação razoável de sua própriavisão da verdade religiosa.19 Essa congruência entre a justiça e obem algo que o contratualismo hobbesiano, à sua maneira,tenta reter, com a ressalva de que o bem, no caso, é concebido emtermos do interesse próprio , entretanto, pode não se verificar.O problema não diz respeito somente às visões abrangentes dobem que, tais como os fundamentalismos religiosos de váriosmatizes, rejeitam frontalmente a tolerância religiosa. Como afir-ma Brian Barry, as concepções inerentemente injustas do bemsão importantes mas muito menos freqüentes do que as concep-ções do bem que, ao se tentar realizá-las além de um determinadoponto, tornam-se contingentemente injustas.20

19 Não tenho como examinar melhor a questão no momento, mas essa é aforma como o próprio Rawls concebe a congruência entre a justiça e o bem

em seus textos mais recentes. Cedendo demasiadamente à crítica co-munitarista dos anos 80, em Political Liberalism, Rawls sustenta que a justi-ficação e a estabilidade de sua concepção de justiça como eqüidade ficamna dependência da possibilidade dessa concepção (sem o princípio de dife-rença) constituir o objeto de um overlapping consensus entre as concepçõesabrangentes do bem razoáveis existentes em uma democracia constitu-cional. Não está claro qual é a contribuição que a noção de overlapping 

consensus traz para a teoria de Rawls além da obviedade de que é mais fácildefender princípios liberais de justiça quando a cultura política e a culturade fundo já são liberais. Sobre isso, creio que é pertinente a crítica deHabermas à ausência de uma distinção clara, na estratégia argumentativadooverlapping consensus, entre aceitabilidade razoável (uma idéia normativa)e aceitação (uma suposição de natureza empírica, que pode ou não se con-firmar) (Habermas, 1995, p.119-26). Essa abstinência epistêmica do úl-

timo Rawls, isto é, sua hesitação em defender de uma forma mais mili-tante, por assim dizer, as pretensões de validade de seus princípios de justiça,já fora criticada antes por Raz (1990).

20 Barry, 1995b. Há inúmeros exemplos disso na agenda política brasileirade hoje. Um deles, que discutirei adiante, diz respeito à resistência à lega-

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O que teríamos de dizer é algo do gênero: considerando-seque não há e nem pode haver uma única doutrina da verdadereligiosa que seja consensualmente considerada correta, a aceita-ção mútua de um princípio de tolerância religiosa (e seus desdo-bramentos institucionais) é a única forma de assegurar que aestrutura básica da sociedade dispensará um tratamento igualaos adeptos de diferentes visões religiosas (e aos agnósticos).Qualquer coisa diferente disso poderá ser razoavelmente rejeita-da por uma parte das pessoas que terá de viver sob essa estru-tura institucional. A validade desse argumento não se apóia nofato contingente de já existirem, no que Rawls denomina cultu-ra de fundo de uma sociedade, doutrinas abrangentes do bemrazoáveis, a saber, que já são marcadas por uma cultura polí-tica de tolerância. Mas é claro que esse argumento, como afir-mei anteriormente, só terá apelo àqueles que julgam que chegara um acordo sobre princípios de justiça constitui uma razão sufi-ciente para aceitar restrições às formas pelas quais cada um em-penha-se em realizar sua própria visão do bem.

Menciono um outro exemplo, este tirado da experiência bra-sileira recente, do qual me ocuparei no restante desta seção. Umargumento do tipo que rejeitei anteriormente foi utilizado pelo

lização da união entre homossexuais por parte daqueles que consideramessa forma de união incompatível com o ideal de família cristã que julgamser correto. Um outro exemplo é um projeto de emenda à Constituição(apoiado por católicos de esquerda tais como o deputado federal HélioBicudo) que tem o propósito de estabelecer que o direito à vida é garanti-

do desde o momento da concepção. Se aprovada, a emenda excluiria asúnicas possibilidades em que o aborto pode ser hoje legalmente praticadono Brasil: no caso de a gravidez resultar de estupro e no caso de haverrisco de vida para a mãe. Semelhante proposta de emenda constitucionalbaseia-se na crença eminentemente controversa, e portanto passível derejeição razoável por parte daqueles que dela não compartilham, de que oóvulo fecundado já está investido do status moral que atribuímos a um ser

humano. Em meu entender, a questão do aborto não deve ser tratadaconstitucionalmente. Trata-se de um problema para ser resolvido mediantedeliberação e decisão majoritárias, da mesma forma que as demais ques-tões com respeito às quais, como já argumentei, o padrão de aceitabilidadeuniversal não se aplica.

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presidente da Anistia Internacional do Brasil, Ricardo Bressola,para justificar a legalização da união entre homossexuais, em umdepoimento à comissão especial da Câmara Federal que exami-na um projeto de lei que trata da questão. O projeto concede aoshomossexuais o direito de receber a herança do(a) companheiro(a)e lhes dá acesso aos benefícios previdenciários aos quais umapessoa é elegível na condição de cônjuge. Bressola sustentou,suponho que por razões de eficácia retórica mais do que por qual-quer outro motivo, que a proposta da união entre homossexuaisé coerente com a Dele [Jesus Cristo] pois é includente, não ex-clui pessoas ou categorias. E foi imediatamente contestado porum deputado evangélico que, aos gritos, dizia que essa interpre-tação (de Bressola) não encontrava apoio na Bíblia.21

O que pode ser dito sobre isso da ótica do contratualismoque estou discutindo?22 O exame de uma questão substantivacomo essa é proveitoso para esclarecer melhor e submeter àprova a perspectiva contratualista que estou defendendo. É esseo sentido do exercício que faço a seguir. Em primeiro lugar,parece-me claro que o problema deve ser localizado entre asquestões de justiça básica com respeito às quais o ideal de unani-midade razoável se aplica. Com certeza trata-se de uma questãode princípio para novamente fazer referência à distinção deDworkin e não de uma questão de  policy. Os homossexuaispodem razoavelmente rejeitar uma distribuição de direitos edeveres que os trata desigualmente por conta da concepção quetêm de seu próprio bem sexual e matrimonial. Parece-me claroque a estrutura institucional da sociedade brasileira se tornariaum pouco menos injusta se essa forma de tratamento desigualfosse eliminada.

Note-se que não estou dizendo que ninguém pode razoavel-mente rejeitar a legalização da união civil entre homossexuais

21 Folha de S.Paulo, 9.10.1996.22 Poucos discordariam de que a sociedade brasileira está entre as mais injustas

do planeta. Isso não nos impede, entretanto, de empregar o dispositivode construção que estamos examinando para avaliar normativamenteinstituições específicas, existentes ou propostas, dessa sociedade.

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porque o direito de herança, por exemplo, é tão importante queninguém deveria ser excluído dele. A idéia de acordo razoáveldesempenha o seu papel na justificação de princípios primeirosde justiça; por essa razão, ela não pode retirar sua plausibilidadede direitos que terão de ser derivados dos princípios que se mos-trarem ser mais justificados precisamente por serem aqueles quesão capazes de fornecer os termos de um acordo razoável.Substanciar a idéia de acordo razoável apelando diretamente adeterminados direitos tornaria o argumento circular. Mas as par-tes contratantes poderiam acordar de antemão que, qualquer queseja a estrutura institucional específica que se julgue mais ade-quada à implementação dos princípios escolhidos, ninguém deveser excluído dos seus benefícios e encargos por razões moralmentearbitrárias. Não vejo circularidade alguma nessa argumentação.Um critério de não-exclusão arbitrária do acesso a quaisquer re-cursos e direitos que sejam considerados importantes pode serobjeto de um acordo unânime antes que se examinem direitosespecíficos.

Passemos, pois, para uma outra linha de objeção. Pode-sesustentar que a delimitação entre o que é e o que não é razoávelrejeitar, no caso em exame (e em muitos outros similares), estálonge de ser nítida. Uma maioria dos cidadãos, prosseguiria aobjeção, pode razoavelmente rejeitar a união homossexual, nãosob o argumento de que a heterossexualidade é uma forma in-trinsecamente superior de prática sexual, e sim sob o argumen-to de que, se essa forma de união for admitida, criar-se-á umambiente menos hospitaleiro aos valores familiares que essamaioria julga verdadeiros.23 Pode-se sustentar, nessa linha, que alegalização de uniões homossexuais teria efeitos sobre a posi-ção da família e sobre o ambiente social em que as crianças sãoeducadas que não estão circunscritos somente à vida das pes-soas envolvidas nesses relacionamentos. Não estou pretendendoque a aplicação do critério de não-rejeição razoável nos leve sem-pre a uma única solução correta para os conflitos de valor

23 Van Parijs apresentou essa objeção a uma versão preliminar deste texto.

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essa é a razão pela qual é importante restringir sua aplicação àsquestões de justiça básica. Mas acredito que a pertinência docritério para o caso que estamos considerando pode ser defen-dida com base em várias considerações.

Um primeiro ponto: nenhuma das partes dessa controvér-sia tem o direito de defender sua posição alegando estar simples-mente traduzindo com fidelidade um consenso moral vigente nasociedade consenso esse que as instituições políticas não deve-riam afrontar. São pertinentes, nesse contexto, as críticas queRonald Dworkin dirigiu à posição de Lord Devlin sobre o Rela-tório Wolfenden, publicado na Inglaterra em 1957.24 O Relató-rio propôs a descriminalização dos atos homossexuais entre adul-tos consencientes com base em argumentos fundamentados noharm principle de John Stuart Mill. Uma das objeções de LordDevlin ao Relatório consistiu precisamente na linha de objeçãoà legalização da união entre homossexuais que sumariei no pará-grafo anterior. Lord Devlin foi levado a crer que o compromissocom princípios democráticos exigia dos legisladores o respeitopelo consenso moral vigente na sociedade, mesmo naqueles ca-sos em que esse consenso viesse de encontro ao princípio deliberdade de Mill. Conclusão (de Devlin): se uma grande maio-ria dos cidadãos comuns acha que a homossexualidade é moral-mente abominável, então nada há de errado em vê-la como umaprática imoral da ótica da lei e para aquilo que diz respeito à lei.Essa maioria tem o direito, em uma democracia, de preservar oambiente moral e social que prefere.

Muitos democratas recuariam diante dessa conclusão. O quehá de errado com ela? Um dos problemas consiste em exagerar ograu de homogeneidade que é legítimo enxergar no consenso moralpassível de traduzir-se em decisões políticas. A forma de levar emconta um consenso de fato pode entrar em choque com outrasconvicções às quais poucos democratas negariam um lugar cen-tral em uma moralidade política liberal-democrática. A existênciade uma atitude majoritária, e mesmo amplamente majoritária,

24 Dworkin, 1977, p.240-58.

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favorável à criminalização da homossexualidade ou, no caso queestamos considerando, contrária à extensão de determinados di-reitos aos homossexuais, pode não ter quaisquer outras justifica-tivas que não o preconceito, a aversão pessoal ou uma crençareligiosa (a homossexualidade é pecado). Se isso é assim, dizDworkin, os princípios democráticos que seguimos não exigemque esse consenso seja legalmente imposto, pois a crença de queos preconceitos, as aversões pessoais e as racionalizações não ser-vem de justificativa para restringir a liberdade de outro ocupa elaprópria uma posição decisiva e fundamental em nossa moralidadepública... O que é chocante e errado não é a suposição de LordDevlin de que a moralidade da comunidade conta, e sim sua idéiasobre o que se deve contar como a moralidade da comunidade.25

O segundo ponto: manter os homossexuais excluídos de di-reitos que são garantidos aos cônjuges em casamentos heterosse-xuais implica impor um ônus pessoal aos primeiros que a alterna-tiva contrária a legalização da união civil entre homossexuais não impõe aos partidários dos valores familiares dominantes. Estesúltimos não terão de se sujeitar a nenhum ônus extra em decor-rência de se garantir o direito de herança aos parceiros de uniõeshomossexuais. Apesar de Dworkin ter posteriormente abandona-do a idéia, creio que aqui temos um exemplo nítido do que eletentou captar com a noção de preferências externas.26 Essas sãoas preferências de uma pessoa que têm por objeto, não os recur-sos e oportunidades que serão propiciados a sua própria vida(que Dworkin denominou preferências pessoais), e sim à vidade outros. Dworkin argumentou que a igualdade de respeito e deconsideração pelo bem-estar de todos a idéia normativa centraldo liberalismo igualitário seria corrompida caso se permitisseque as decisões majoritárias sempre contassem da mesma formaos dois tipos de preferências. A distinção é problemática, uma vezque a própria preferência pela justiça social pode ser consideradaexterna. Mas a noção de Dworkin mantém sua pertinência para

25 Ibidem, p.254.26 Ibidem, p.234-8.

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pelo menos uma categoria de preferências: aquelas que envolvemum sentimento de desprezo ou de aversão por um determinadogrupo de pessoas ou por seu modo de vida.27 As instituições quecriamos para viver juntos não serão igualitárias caso permitamque os sentimentos e atitudes dessa natureza de uma maioriatenham livre curso para determinar que direitos, recursos eoportunidades serão garantidos à vida das pessoas que perten-cem à minoria (ou minorias) desprezada(s). No que diz respeito àquestão substantiva que estamos discutindo, não consigo perce-ber a que convicções morais justificadas se poderia recorrer paranos persuadir que aquilo que os partidários da não-legalização daunião homossexual estão fazendo é alguma outra coisa que nãofazer prevalecer suas preferências externas em relação aos adep-tos de um modo de vida que consideram inferior.

Duas concepções de neutralidade

Há ainda uma terceira consideração a ser feita, também indis-pensável à compreensão das posições liberal-igualitárias. A neu-

tralidade que deriva do ideal de unanimidade razoável é a neutra-lidade de justificação e não a neutralidade de resultados.28 Essadistinção já está implícita na discussão desenvolvida na seção an-terior sobre o escopo limitado do ideal de acordo razoável. Éhora de explicitá-la. Se a concepção de neutralidade de resulta-dos é adotada, só seriam justificadas, da ótica de uma concepção

de justiça imparcial, as políticas de um Estado liberal das quaisse pudesse afirmar que não privilegiam nenhuma concepção

27 Trata-se das preferências ofensivas, às quais fiz referência na seção Amaleabilidade das preferências do capítulo 4.

28 Essa distinção corresponde, no essencial, à distinção que Rawls (1993a,

p.193-4) faz entre neutralidade de propósito e neutralidade de efeito(ou de influência). Ver também Raz, 1986 cap. 5 e 6. Da Silveira (1994)faz um cuidadoso estudo das diferentes concepções de neutralidade liberal.Mas ele tira, como já afirmei (ver nota 17), implicações excessivamenterestritivas das posições de Rawls sobre a questão.

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do bem em particular. Nessa linha, quaisquer limitações à liber-dade individual impostas por decisões políticas que se justificamem nome de uma concepção específica da boa vida deveriamser consideradas ilegítimas (pois os adeptos dessa concepçãoteriam um tratamento privilegiado em relação àqueles que acre-ditam em valores e ideais distintos). Um Estado liberal só pode-ria ser neutro nesse sentido se excluísse do alcance das decisõescoletivas boa parte das questões controversas que dão sentido àexistência de procedimentos eqüitativos de tomada de decisõespolíticas.

Não é essa, entretanto, a forma de neutralidade que decorredo ideal liberal de legitimidade política. A norma de neutrali-dade liberal é de segunda ordem, isto é, ela não se aplica direta-mente à escolha de políticas e aos resultados do processo polí-tico e sim somente às justificações que são invocadas para osfundamentos constitucionais.29 O que se espera é que as diver-gências com respeito aos fundamentos constitucionais e às ques-tões de justiça básica possam ser resolvidos com base em valoresque pessoas razoáveis, independentemente da concepção do bemque cada uma julgue ser verdadeira, reconheceriam como o fun-damento de pretensões morais.30 As liberdades de consciência ede expressão, por exemplo, são candidatas fortes a valores neu-tros nesse sentido. Elas não são valores neutros se por isso seentender que todas as pessoas, de todas as culturas e tradiçõesmorais, as reconhecerão como tais. Mas elas são neutras no úni-co sentido que importa ao ideal liberal de legitimidade política:se divergimos sobre qual é a religião verdadeira, e sobre os ideaismorais e políticos que julgamos importante exprimir a outros,essas duas formas de liberdade (entre outros valores que tam-

29 É claro que há decisões majoritárias que podem ser injustas da ótica danorma de neutralidade de justificação que estou propondo. Mas mesmo

nesse caso, não seria necessário se afastar da concepção de neutralidade desegunda ordem: bastaria dizer que essas decisões entram em choque comos fundamentos constitucionais e instituições justificados por referência avalores neutros.

30 De Marneffe, 1990.

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bém se qualificam como neutros) se constituem na única basepossível para um acordo razoável sobre os princípios que devemreger nossa vida em conjunto.

As críticas ao liberalismo político rawlsiano muitas vezes con-fundem essas duas formas de neutralidade. Não constitui umaobjeção à justiça igualitária afirmar que as instituições e políticasadotadas por um Estado liberal têm efeitos sobre as diferentesconcepções do bem que não são e não podem ser neutros. Nãose está dizendo que a liberdade de consciência se qualifica comoum valor neutro porque os efeitos de uma política de tolerân-cia religiosa são neutros entre as diferentes concepções da ver-dade religiosa. Esses efeitos não são neutros. Para os que achamque sua visão religiosa só pode ser adequadamente promovidase os mecanismos de coerção coletiva estiverem sob seu contro-le, os resultados de uma política de tolerância não são neutros.Mas assim é como deve ser. Tudo o que a norma de neutrali-dade liberal requer é que seja possível justificar a validade doprincípio em questão, no caso o de tolerância religiosa, de umaforma que não pressuponha a superioridade intrínseca de ne-nhuma concepção religiosa específica.31

E por que essa distinção entre os dois tipos de neutralidadeé relevante para a questão substantiva que estávamos examinan-do na seção anterior? É que estou imaginando um argumentoem favor da rejeição razoável da legalização da união homosse-xual com base na norma de neutralidade. Um partidário da não-legalização poderia argumentar na seguinte linha: se as uniõeshomossexuais ganham um status legal, o modelo de vida fami-liar que julgamos ser mais correto encontrará condições insti-tucionais e logo também sociais menos favoráveis para prospe-

31 Reencontramos aqui as conclusões a que chegamos: se a neutralidade dejustificação é respeitada no que se refere ao arranjo institucional básico e

aos fundamentos constitucionais, somente recorrendo à deliberaçãodemocrática podemos esperar que as demais questões controversas possamser solucionadas. E nesse estágio (no estágio legislativo), não há nenhumarazão, da ótica do liberalismo igualitário, para excluir as concepçõesabrangentes do bem da discussão pública.

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rar e prevalecer. A política pública adotada seria enviesada con-tra nossa concepção da boa vida familiar. Uma vez que isso ferea norma de neutralidade liberal, nossa posição contrária a essapolítica pode justificadamente apelar ao padrão de rejeição ra-zoável que figura como o componente central do contratualismoque está sendo proposto.

O problema dessa argumentação está em supor, de formaequivocada, que do ideal de acordo razoável deveríamos derivaruma norma de neutralidade de resultados. Como já foi dito, ofato de que uma decisão política vá de encontro a determinadosvalores ou ideais morais não representa, por si mesmo, uma vio-lação à neutralidade de justificação. Para saber se a norma deneutralidade liberal é violada por uma decisão política, é precisodeslocar a discussão dos efeitos possíveis dessa decisão para adiscussão dos fundamentos constitucionais. E foi nesse plano dajustificação dos fundamentos constitucionais que sustentei que alegalização da união homossexual passa pelo teste de não-rejeiçãorazoável. Não argumentei que as decisões políticas devem serneutras com respeito a valores homo e heterossexuais e que, porisso, se deveria garantir um espaço eqüitativo para a concepçãohomossexual do bem familiar se realizar e encontrar adeptos. Oque argumentei é que, do ponto de vista de uma posição originalrawlsiana-scanloniana, é arbitrário excluir determinadas pessoas,em razão da concepção que tenham de seu próprio bem, de quais-quer direitos distribuídos pela estrutura básica da sociedade.

Validade universal

Encerro o exame do ideal de tolerância liberal com um co-mentário sobre um tema que exigiria muito mais discussão. Osprincípios liberal-igualitários de justiça não têm um alcance uni-

versal porque todos, em todas as partes, os vejam como verda-des evidentes por si mesmas, algo assim como as leis morais queDeus inscreveu no coração dos homens. A argumentação que de-senvolvi interpreta a validade universal desses princípios em ter-

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mos da noção de acordo razoável. Essa argumentação é compatí-vel com qualquer dose de realismo e de ceticismo que se julgueapropriada para avaliar até que ponto estão dadas as condições,como uma questão de contingência histórica e cultural, para quequalquer acordo possa ser alcançado.

Pensemos um instante no que se passa em país como a Ar-gélia, que há cinco anos vem sendo palco de uma guerra civil deuma indescritível violência. Evidentemente, nesse país é nulo oreconhecimento de princípios liberal-igualitários de justiça. Masesse fato terrível não nos diz nada sobre a possibilidade de seoferecer uma justificação universal a esses princípios, assim comonão nos diz nada sobre a possibilidade de oferecer uma justifica-ção de alcance universal para a superioridade do processo demo-crático sobre formas autocráticas de exercício do poder político.O que ele nos diz, isso sim, é que as condições desse país são tãodesfavoráveis a ponto de nenhum acordo que se funde em ter-mos mutuamente aceitáveis de convivência comum ser possível.Vamos supor que, em algum momento, a exaustão das partesenvolvidas no conflito e o horror disseminado pelas milhares devidas inocentes ceifadas façam que a disposição de chegar a umacordo finalmente prevaleça sobre a disposição de cada uma daspartes de fazer valer sua própria concepção abrangente do bema qualquer custo. Talvez um modus vivendi que garanta um trata-mento eqüitativo às partes envolvidas no conflito possa, então,ser alcançado. Algum tipo de acordo constitucional torna-se pra-ticável, mas seus termos não são aceitos inicialmente por razõesmorais e sim por considerações que derivam de uma avaliaçãoda correlação de forças vigente. Cada uma das partes aceita ostermos eqüitativos do acordo como uma opção second best. Pode-mos especular que se um acordo desse tipo perdura por um temposuficiente, é possível que as pessoas se acostumem a tratar umasàs outras como iguais. As idéias de valor intrínseco igual dosseres humanos e de motivação moral, tal como as caracterizeiem outras partes deste texto, começam então a desempenhar oseu papel. E se realmente se dispuserem a chegar a um acordocujos termos sejam mutuamente aceitáveis, as partes envolvidasterão de se voltar para princípios liberal-igualitários tais como as

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liberdades de consciência, de associação, de expressão e o direi-to de não sofrer punição sem um julgamento justo e sem culpaformada. Esses princípios têm um alcance universal tendo emvista que são os únicos que podem fornecer os termos de umacordo que ninguém pode razoavelmente rejeitar. Isso explicapor que esses princípios são, como diz Brian Barry, idéias con-tagiosas e por que sempre há, em todas as sociedades, pessoasque com elas se identificam.32 Não há nada, nessa argumentação,que faça a defesa de princípios liberal-igualitários de justiça, taiscomo os direitos humanos, depender da interpretação das idéiase valores compartilhados em uma dada sociedade ou em umadada cultura política. Penso que dei uma ênfase suficiente, nestee nos dois capítulos anteriores, às exigências motivacionais quea realização de princípios liberal-igualitários de justiça apresentaà conduta dos indivíduos. Mas não leva à parte alguma fazer adefesa das pretensões de validade desses princípios depender deconsensos morais de facto dessa ou daquela sociedade.

32 Barry, 1995a, p.6.

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