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63 Princípios de reconhecimento de duas técnicas de debitagem: percussão direta dura e percussão direta macia (tendre). Experimentação com material do norte de Minas Gerais Maria Jacqueline Rodet 1 ; Márcio Alonso 2 Resumo Este artigo tem como objetivo apresen- tar os resultados dos trabalhos experi- mentais em busca dos principais critéri- os de reconhecimento de duas técnicas de debitagem: a percussão direta com percutor duro (pedra) e a percussão di- reta com percutor macio (madeira). A pesquisa apóia-se em trabalhos de ex- perimentação realizados com materiais líticos e orgânicos provenientes do nor- te de Minas Gerais (bacia do rio Perua- çu) e na leitura tecnológica de peças ar- queológicas desta mesma região. Palavras-chave: Percussão direta dura, Percussão direta macia, Arqueologia Ex- perimental. Abstract This paper exposes results of experimen- tal works to define the main identificati- on criteria of two kinds of stone dressing: first the direct percussion with hard ham- 1 Doutora em arqueologia pré-histórica, Université de Paris X, Nanterre, França, bolsista CNPq – [email protected]). Museu História Natural UFMG-UFMG - Rua Gustavo da Silveira, l.035 – B. Santa Inês. Cx.P. 1275. Belo Horizonte/MG. CEP: 31080-010 2 Mestrando em arqueologia, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – [email protected]. Museu História Natural UFMG-UFMG Rua Gustavo da Silveira, l.035 – B. Santa Inês. Cx.P. 1275. Belo Horizonte/MG. CEP: 31080-010 Revista de Arqueologia, 17: 63-74, 2004 Artigo

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Princípios de reconhecimento de duastécnicas de debitagem: percussão diretadura e percussão direta macia (tendre).Experimentação com material do norte deMinas Gerais

Maria Jacqueline Rodet1; Márcio Alonso2 ResumoEste artigo tem como objetivo apresen-tar os resultados dos trabalhos experi-mentais em busca dos principais critéri-os de reconhecimento de duas técnicasde debitagem: a percussão direta compercutor duro (pedra) e a percussão di-reta com percutor macio (madeira). Apesquisa apóia-se em trabalhos de ex-perimentação realizados com materiaislíticos e orgânicos provenientes do nor-te de Minas Gerais (bacia do rio Perua-çu) e na leitura tecnológica de peças ar-queológicas desta mesma região.

Palavras-chave: Percussão direta dura,Percussão direta macia, Arqueologia Ex-perimental.

AbstractThis paper exposes results of experimen-tal works to define the main identificati-on criteria of two kinds of stone dressing:first the direct percussion with hard ham-

1Doutora em arqueologia pré-histórica, Université de Paris X, Nanterre, França, bolsista CNPq –[email protected]). Museu História Natural UFMG-UFMG - Rua Gustavo da Silveira, l.035 – B.Santa Inês. Cx.P. 1275. Belo Horizonte/MG. CEP: 31080-0102 Mestrando em arqueologia, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – [email protected]. Museu História Natural UFMG-UFMGRua Gustavo da Silveira, l.035 – B. Santa Inês. Cx.P. 1275. Belo Horizonte/MG. CEP: 31080-010

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mer (stone), second the direct percussi-on with soft hammer (wood). Our rese-arch was supplied by experimental seri-es with lithical and organic materials fromNorthern Minas Gerais (Peruaçu Basin),and by technical lecture of archeologicalelements from this same area.

Keywords: Hard percussion, soft percus-sion, experimentation archaeology.

IntroduçãoAtualmente temos um bom conheci-

mento das diversas técnicas de debita-gem utilizadas no norte de Minas Ge-rais, particularmente ao longo da baciado rio Peruaçu, afluente da margem es-querda do São Francisco. Um número im-portante de coleções líticas foi analisa-do, aproximadamente 60 séries(M.J.Rodet, 1999, 2006), o que permi-tiu reconhecer para a região no mínimoquatro técnicas de percussão distintas eutilizadas durante as fases de debitagem,de façonagem e/ou de retoque: a per-cussão direta dura, a percussão diretamacia, a fraturação intencional e a pres-são.

Neste artigo, abordaremos somenteduas destas técnicas: a percussão dire-ta dura e a percussão direta macia (ten-dre), com percutor em madeira. Estaúltima, pouco ou mal conhecida no Bra-sil e ainda não descrita na bibliografia,mas presente nas séries arqueológicasestudadas em Goiás e Minas Gerais. Estaescolha justifica-se pelo fato de que nonorte de Minas Gerais, certos estigmasobservados sobre as peças líticas suge-rem a utilização de percutores macios;mas somente a experimentação permi-te a identificação real das técnicas utili-zadas para lascamento. Neste sentido,para identificar com segurança qual otipo de percutor é utilizado nas coleçõespré-históricas, fizemos uma série de ex-perimentações utilizando várias técnicasdiferentes e com matérias-primas pro-venientes do setor estudado.

É graças a L. Coutier, 1929; que autilização do percutor orgânico foi reco-nhecida na Europa, mas foram as expe-rimentações realizadas principalmentepor F. Bordes,1947; M.H. Newcomer,1975; J. Tixier, 1982; e mais recente-mente por J. Pelegrin, 1997; que real-mente permitiram o reconhecimentodesta técnica. Ela aparece a partir doAcheulense médio e superior, sendo uti-lizada para debitagem de lâminas, so-bre rocha homogênea com grãos finos.Foi igualmente utilizada durante o Pale-olítico médio para o retoque e a façona-gem de peças bifaciais e no Paleolíticosuperior para a façonagem de instrumen-tos do tipo “folhas de louro”, por exem-plo. Durante o Neolítico a técnica é ob-servada para façonagem de lâminas bi-convexas de machado.

No nosso caso, num primeiro momen-to, o procedimento foi o de comparar osestigmas observados sobre material ar-queológico brasileiro com o que havia sidoreconhecido na Europa (Tixier, 1967; Ini-zan et al., 1995; Pelegrin, 1997 etc.). Adiferença é que na Europa esta técnica érealizada com percutores orgânicos ani-mais (grandes e pesados chifres de renaou de cervo) para a produção de lâminase não de lascas. Em Minas Gerais, mes-mo que os chifres tenham sido utiliza-dos, os nossos cervídeos têm, na maio-ria dos casos, pequenos chifres com pesoque, em geral, pode ser insuficiente paraser usado como percutor. A exceção é oveado galheiro (Odocoileus virginianus),que apresenta grandes chifres.

Deste modo, para confirmar que setratava realmente da utilização de umpercutor macio, decidimos realizar umquadro experimental a partir de materialbrasileiro, utilizando a madeira no lugardo chifre, pois esta é onipresente no se-tor estudado, durante as fases de faço-nagem e retoque de objetos unifaciais ebifaciais. Não descartamos a possibilida-de da utilização do chifre na pré-históriabrasileira, mas nesta primeira fase deci-dimos utilizar somente a madeira, dei-xando o chifre para uma fase posterior.

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Enfim, nossa intenção é explicitar aquios resultados desta experiência, ou seja,apresentar os critérios distintos que per-mitem o reconhecimento destas duastécnicas sobre material arqueológico.

Assim, este artigo apresenta os prin-cípios metodológicos e as duas técnicasde percussão trabalhadas pelo experi-mentador, acompanhados de algumasreflexões sobre as vantagens de suas uti-lizações e, enfim, um comentário sinté-tico sobre o papel da experimentação noreconhecimento de peças arqueológicas.

Conceitos: método e técnicaAntes de apresentarmos os resulta-

dos da experimentação, é importante de-ter-nos sobre dois conceitos fundamen-tais: método e técnica.

Devemos a J. Tixier, 1967; e maistarde à J. Pelegrin, 1991, 1997, 2001,2005; a distinção clara e a utilização sis-temática destes dois conceitos funda-mentais. Segundo estes autores, méto-do corresponde às seqüências mais oumenos sistemáticas e racionais, segui-das por quem lasca, para atingir seusobjetivos (um tipo de instrumento ou tipode núcleo, por exemplo). Este processorefere-se à organização, no tempo e noespaço, das retiradas de lascamento. Porexemplo, o método Levallois, através doqual podemos reconhecer várias etapaspara se chegar ao objetivo desejado, ouseja, uma lasca com características es-pecíficas e que será transformada eminstrumento.

A leitura tecnológica de cada peça deuma série arqueológica é um procedi-mento que permite “remontar mental-mente”, Tixier, 1978; Cahen et al. 1980;entre outros, as seqüências e assim, re-conhecer e reconstruir o método de las-camento então utilizado. Esta leituramental pode ser traduzida em forma de“esquema diacrítico” (Inizan et al.,1995),observada sobre as faces superiores daslascas e sobre as superfícies de debita-gem dos núcleos.

Quanto às técnicas, estas correspon-dem às modalidades de execução doslascamentos. Estas, são em número li-mitado e definidas por alguns critérios.De acordo com J. Pelegrin, 1997, trêsgrandes parâmetros são observados:

- o modo de aplicação da força: per-cussão direta, percussão indireta, pres-são...

- a natureza e a morfologia dos ins-trumentos de percussão: pedra, bastãoem madeira, chifre de cervídeo...

- o gesto e a posição do corpo, o modode manter a peça a ser trabalhada etc.

Se por um lado os métodos podem serreconhecidos diretamente a partir da lei-tura tecnológica do material arqueológico,o reconhecimento das técnicas exige a ela-boração de referenciais experimentais.

O princípio da percussão diretaO princípio da percussão direta funda-

menta-se na fratura concoidal, baseada nofenômeno do cone de Hertz. No momentodo impacto, forma-se um cone com ângu-los constantes, devido à difusão preferen-cial da onda de choque. Neste caso, o bul-bo representa uma porção do cone de Hertz(Fig.01). Assim, a fratura concoidal provo-ca um talão e um bulbo; ela parte de umponto bem delimitado e evolui em onda.

Fig.01 – Fratura concoidal: refere-se ao desenvol-vimento de um cone com ângulos constantes

A percussão direta duraA percussão direta dura (pedra) é a

técnica mais utilizada na pré-história,seja no período mais antigo ou no maisrecente, sendo a melhor descrita na bi-bliografia.

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Nossa experimentação (Fig.02) con-firma o que pode ser observado no ma-terial arqueológico proveniente da baciado Peruaçu, ou seja, ponto de impactoconcentrado e presença freqüente debulbo bem marcado.

Os mecanismos da fratura concoidalcom percutor duro

O choque é “concentrado” em fun-ção da dureza dos dois materiais - dopercutor e do bloco que recebe o im-pacto, provocando neste, uma fissura-ção circular iniciada por um cone(Fig.02). A fratura inicia-se no local doimpacto e a onda de choque evolui. Aparte móvel destaca-se (lasca ou lâmi-na). Uma má aplicação do gesto ou daforça pode provocar um “acidente” dotipo fratura em Siret ou o refletido. Umpercutor em “mau estado” – por exem-plo, com superfície ativa, contendo sa-liências após uso intenso, irregularida-des, pequenas depressões, quebras,etc, pode também ser responsável poracidentes do tipo refletido, ou pela pre-sença de dois ou três pontos de conta-to. A homogeneidade da matéria-primainflui também no processo. Quanto maishomogênea é a rocha, mais facilmente

a onda flui. Se, ao contrário, existemzonas de impurezas ou heterogêneas,estes setores facilmente vão absorvera onda de choque, o que resultará numainterrupção abrupta do desenvolvimentoda lasca. Vale ressaltar que existe umacorrespondência global entre a dimen-são do percutor e a dos produtos reti-rados.

Na série experimental, objeto destetrabalho, foi observado o acidente refle-tido sobre uma grande parte das lascas,principalmente tratando-se do silexito.As lascas em quartzito são muito menosacometidas. O silexito do Peruaçu é, emgeral, muito heterogêneo e se apresen-ta, freqüentemente, em faixas de gra-nulometria diferentes (como faixas se-dimentares). Geodos, impurezas, incrus-tações ou ainda zonas mais granulosassão também uma constante nesta rocha.Todos estes elementos são, em parte,responsáveis pelos acidentes, pois elesabsorvem a onda de choque. Os outroselementos responsáveis são, provavel-mente, a força mal empregada, a locali-zação do golpe inicial, que às vezes nãotem o recuo necessário (não ultrapas-sando assim um obstáculo), ou ainda afalta de abrasão persistente na borda donúcleo.

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Fig.02 – Percussão direta dura: para iniciar o núcleo e realizar suportes robustos empregamospercutores médios em forma de seixos de silexito. O núcleo é apoiado no chão e o movimentoque o lascador realiza com o seixo é ligeiramente parabólico

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Os percutores utilizados na pré-his-tória

Na pré-história do norte de Minas Ge-rais são utilizados seixos ovóides, em ge-ral com pelo menos um dos pólos conve-xos; blocos mais ou menos corticais ou nú-cleos em fim de utilização. A preferênciasão os seixos em sílex ou silexito (o neo-cortex, pouco espesso, fará o amortece-dor do impacto), as rochas metamórficas(quartzito, arenito silicificado, rocha que ab-sorve bem o impacto), ou mais raramen-te, as marcassitas (muito resistentes).

No caso de nossa experimentação ospercutores utilizados foram pequenos oumédios seixos (em torno de 7cm) circula-res/ovóides provenientes do rio Peruaçu.Após utilização, os estigmas observadosestão localizados nas zonas periféricas dosseixos. Trata-se de pequenas áreas rugo-sas, sensíveis ao toque, com pequenas de-pressões de poucos milímetros, resultantesdos impactos sobre a matéria-prima.

Os estigmas mais recorrentes (Pe-legrin, 1997) observados sobre aslascas de nossa série experimental

Os estigmas que foram observados são:- talão espesso (pelo menos de al-

guns milímetros), liso, cortical ou face-tado, às vezes com cone incipiente. Deacordo com J. Pelegrin (1997, 2001,2005) a espessura do talão tem relaçãocom o golpe, o qual deve ser dado nointerior do plano de percussão. Sendo opercutor de material duro, um golpe pró-ximo à borda (mais frágil) poderia es-magá-la (talão esmagado), salvo exce-ção. Talões menos espessos podem es-tar ligados a uma abrasão da cornija;

- o ponto de impacto é bem concentra-do e delimitado pela linha posterior do ta-lão (Fig.01). A formação do ponto de im-pacto relaciona-se com o volume do per-cutor e em conseqüência com o diâmetroda superfície de contato. Um percutor duro,contrariamente ao percutor macio, nãopermite uma expansão do ponto de conta-to que guardará uma concentração sobreuma superfície limitada. Em conseqüência,é freqüente observar uma fissuração em

torno do ponto de impacto - sillons laterais(fissurações), testemunhos da dureza (eda violência) do choque (Fig.03);

- presença freqüente de linhas circula-res - finas e muito próximas umas das ou-tras - nos primeiros milímetros próximosao ponto de impacto (como a propagaçãode pequenas ondas de choque – Fig.01).Estas linhas correspondem ao micro-esma-gamento causado pelo percutor de pedra,no momento da abertura da fratura inicial(encontro de duas massas duras). Em con-seqüência, elas são um bom indicador docontato com um percutor duro;

- presença freqüente de esquilha bul-bar. Esta se inicia no contato do talão ese desenvolve em direção ao bulbo: otalão fende-se sob o impacto (Fig.03).Este acidente é um outro bom indicadorda utilização de um percutor duro.

O produto resultante desta técnicapode ter uma dimensão variada (peque-no à grande), dependendo principalmen-te do volume do percutor e do bloco. Noentanto, estes produtos terão uma ten-dência a serem mais espessos.

Fig.03 – Estigmas da percussão direta dura: bul-bo bem marcado, ponto de impacto bem delimita-do, início da fratura visível, sillon lateral (fotos doalto e da esquerda), esquilla bulbar (foto direita),sinais de uma percussão violenta

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Contexto arqueológico

A percussão direta dura permite aobtenção de suportes simples, que po-dem ser grandes e com gumes cortan-tes, ou espessos com gumes abruptos.Esta técnica relaciona-se às primeirasfases do lascamento: retirada do cór-tex, limpeza de núcleos, obtenção delascas suportes (grandes ou pequenas),as quais serão utilizadas brutas outransformadas em instrumentos. A per-cussão dura é também utilizada nas fa-ses finais de façonagem e/ou retoquede utensílios.

A percussão direta macia

Em relação à tecnologia lítica, exis-te no Brasil um problema de nomencla-tura. Pelo menos três termos são utili-zados para designar percutores orgâni-cos: macio, mole ou leve. Optamos pelotermo “percutor macio”, que foi esco-lhido por oposição ao termo “percutorduro”.

O princípio de fraturação é o mesmoda percussão dura, ou seja, a fratura con-coidal. A diferença está no gesto e namaciez do percutor, o que resultará emuma série de estigmas característicos.Contrariamente à matéria dura, onde ochoque produz imediatamente a fratu-ra, a matéria macia (percutor orgânico)não resiste ao impacto, em conseqüên-cia não há uma reação de oposição en-tre duas matérias, mas sim de absor-ção. Assim, a fratura concoidal se faz umpouco mais distante, abaixo do talão.Como a energia é absorvida pelo percu-tor, os estigmas deixados sobre as pe-ças evidenciam sinais de uma percus-são menos “violenta”, sem micro-esma-gamentos ou muitas fissurações.

Os mecanismos da fratura concoidalcom percutor macio

O princípio global consiste em atin-gir tangencialmente a borda do plano

de percussão com a superfície larga epouco convexa do percutor. A super-fície de contato é difusa. Contraria-mente ao golpe dado com o percutorduro, que penetra na massa, o per-cutor macio vai primeiro absorver aenergia, em seguida, com o gesto,“arrancar” uma porção do volume. Aborda do plano de percussão deveestar limpa de todas as micro-asperi-dades, pois caso contrário, haverá ris-co de o percutor “agarrar-se” nas re-entrâncias e penetrar na massa, esti-lhaçando o talão, sem produzir o las-camento desejável.

O percutor macio não é suficiente-mente rijo para iniciar, ele mesmo, afratura. Esta é provocada pelo gesto de“arrancamento” e começa um poucoabaixo da zona de contato. Este fenô-meno é representado pela presença deum lábio, mais ou menos evidente, quecorresponde à ruptura entre o pontode contato e a massa. Quanto mais omaterial é flexível, mais este lábio énotável. O início da fratura abaixo dazona de contato explica o limite poste-rior do talão: quase sempre regular,principalmente se o talão for liso. Se otalão for diedro (ou facetado), a linhaposterior vai seguir as nervuras do ta-lão, mas sempre sem ponto de contatovisível. Contrariamente à percussãodura, não há aqui fissuras próximas dotalão, a não ser algumas vezes umapequena fissura lateral nesta região(Pelegrin, 1997, 2005), que correspon-de a um início de bulbo que não sedesenvolve. Enfim, a ausência do pon-to de contato demonstra que quando opercutor é macio não há um encontroentre duas massas resistentes, diferen-temente do que ocorre na percussãodura. O percutor de madeira é maleá-vel e vai se moldar à superfície da ro-cha. No entanto, algumas vezes é pos-sível discernir o local onde a fratura co-meçou, como um pseudo-ponto de con-tato.

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Os percutores utilizados na pré-his-tória do norte de Minas GeraisNão existe nenhum registro arqueológi-co no norte de Minas Gerais sobre a pre-sença direta de percutores macios. Nosítio Russinho, Itacarambi, margem doSão Francisco, foi encontrado um frag-mento de galhada de cervídeo (Koole eProus, 2000); é possível que este tenhasido utilizado como percutor ou, então,que o fragmento tenha sido trazido ouabandonado no sítio por outros motivos.Para o sul do Brasil P.I. Schmitz et al.,(1990) sugerem a utilização de percu-tores macios de madeira em percussãoindireta (percutor de madeira, punch emseixo e núcleo).

São os vestígios indiretos, ou seja,os estigmas deixados sobre as lascasque demonstram sua utilização. Nossadúvida restringe-se ao tipo de percutormacio utilizado na pré-história brasilei-ra: madeira, osso ou chifre ? Nossa hi-pótese é que todos estes três elemen-tos podem ter sido usados. A varieda-de, a abundância e, conseqüentemen-te, a facilidade de se obter percutoresde madeira nos leva a pensar que osgrupos privilegiaram estes últimos. Tan-to os chifres de cervídeos (Tixier, 1978;Pelegrin, 1997), quanto a madeira sãoextremamente eficazes. A diferença é

que para obtenção de percutores dechifre é preciso: caçar o animal ou re-cuperar seu chifre, na muda ou sobreum animal morto. De acordo com osestudos de A. Prous (Prous et al., 1984;Prous, 1991 a, b, 1997) e, mais recen-temente, (R. Kipnis, 2002), os cervíde-os foram animais constantemente ca-çados no vale do rio Peruaçu (norte deMinas Gerais) durante os últimos 12000anos (BP). De fato, os ossos destes ani-mais foram utilizados na pré-história daregião para a confecção de “espátulas”.Estas informações sugerem que os gru-pos pré-históricos estudados lidavamcom as três matérias-primas: chifres,ossos e madeiras, conseqüentemente,poderiam utilizá-los também como per-cutores.

Objetivando aproximar o máximopossível dos estigmas presentes naspeças arqueológicas, nossa experimen-tação foi realizada com rochas proveni-entes do norte de Minas Gerais, quartzi-to e silexito (Araújo, 1991). Os percuto-res duros são seixos circulares/ovóides,medindo aproximadamente 7,5 x 3,5cmde espessura, pesando 393,5g e 387,7g.Os percutores macios são bastões demadeiras, secos, de densidades variá-veis, provenientes daquela mesma re-gião (Quadro 01):

Quadro 01 – Percutores de madeira provenientes da área de estudo

Os estigmas para reconhecimentodas técnicas utilizadas

Num primeiro momento apresenta-mos o conjunto das observações reali-zadas sobre material experimental,confeccionado a partir de experimen-tações realizadas na Europa, com chi-fre de cervo ou de rena, para extraçãode lâminas. Em seguida, apresentare-

mos os resultados de nossa experimen-tação de lascamento realizada commadeira para produção de lasca e nãode lâminas, como na bibliografia cita-da. As lascas produzidas, curtas oualongadas (aproximadamente 7cm),são de façonagem (aproximadamente3cm) e de retoque (aproximadamente1 ou 2cm).

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Os estigmas observados a partir deexperimentações européias com per-cutores de chifre sobre sílex (Bordes,1947, 1967; Pelegrin, 1997)

Podem ser resumidos em:

- bulbos difusos ou ausentes, talõesnão muito espessos, mas notáveis (emtorno de 3 mm), pois o percutor precisaexpandir-se sobre a massa;

- lábios regulares e bem marcadosna parte posterior do talão;

- ângulo global entre talão e eixo dedebitagem, em geral inferior a 80°;

- produtos pouco espessos, com aparte distal geralmente fina, sem ondu-lações marcadas na face inferior;

- possível presença de uma fissuralateral no setor proximal da lasca.

Os estigmas observados nas expe-rimentações com percutores em ma-deiras sobre silexito e quartzito donorte de Minas Gerais

Podem ser resumidos da forma a se-guir:

- em geral, bulbos inexistentes;quando presentes são difusos;

- talões têm uma espessura de 2 à5mm;

- lábios regulares, muito visíveis ebem marcados na parte posterior do ta-lão (Fig.04);

- ângulo entre o talão de eixo de de-bitagem em torno de 80°;

- eventualmente presença de fissuralateral próxima ao talão;

- produtos pouco espessos. Em geralsem ondulações na face inferior; quan-do existem são discretas e se situam naporção final da lasca. Alguns produtossão quase retilíneos e longos. Algumaslascas atingiram a dimensão de 7,7 cm(Fig.04);

- parte distal fina.

Fig.04 – Estigmas da percussão direta macia: àesquerda lasca em silexito; à direita lasca emquartzito. Nos dois casos nota-se o bulbo difusoou inexistente, o lábio regular é bem marcado naparte posterior do talão.

Em geral, sobre o quartzito, o planode percussão não foi abrasado.

No material experimental realizadocom percutor macio, a fratura mais co-mum localiza-se na porção proximal eapresenta a forma de pequena língua –lingüeta (languette). Segundo J. Pelegrin(2005) esta fratura ocorre no momentodo lascamento. Neste momento, a mas-sa sofre uma compressão axial excessi-va em sua parte proximal e a reação é afratura em lingüeta (Fig.05). O fato doproduto ser fino é um elemento a maisque favorece a quebra.

Em relação à fissura lateral no setorproximal da lasca, esta corresponde aoinício da formação de um bulbo. Este nãoconsegue se realizar, em função dosmotivos já enumerados anteriormente,e aparece em forma de uma pequenafissura partindo do setor bulbar em di-reção a uma das laterais da peça.

Fig.05 – Languette: “fratura involuntária... duran-te a debitagem. A onda de fraturação parece en-trar na face superior da lâmina, penetrar brusca-mente e sair em oblíquo”... (Inizan et al., 1995)

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O acidente refletido, tão comum napercussão dura, é quase ausente na nos-sa série experimental, utilizando a per-cussão macia.

Algumas vezes o percutor macio nãoconseguiu produzir o lascamento deseja-do, principalmente em fases iniciais defaçonagem do suporte, quando procurá-vamos obter lascas ligeiramente mais es-pessas. É possível que a onda de choquetenha sido absorvida por fissuras e impu-rezas da matéria-prima, não ficando con-centrada o suficiente para produzir umafratura. Ou ainda, que o golpe tenha sidodado muito próximo à borda. Outro fatorremete ao percutor, que quando muitomacio, absorve o choque sem iniciar a fra-tura. Este pode não ser o caso dos percu-tores de madeiras mais duras ou maisdensas. Entretanto, quando os blocos eramde matéria-prima homogênea (seja sílex,silexito ou quartzito de excelente qualida-de para o lascamento) não houve esse tipode problema, tanto durante a façonagem,quanto na fase de retoque: o percutor fun-cionou muito bem, mas sempre produzin-do lascas pouco espessas.

Os percutores que melhor responde-ram à nossa experimentação foram con-feccionados em madeira de pau-ferro (Ma-chaerium scleroxylon), seguido da madeirade pau-pereira (Geissospermum laevis -

Quadro 01 e Fig.06). Os outros (mais oumenos densos ou muito macios) não res-ponderam bem ao choque e nem semprerealizaram a retirada da lasca.

Fig.06 – Exemplo de percutor macio: pau pereira(Geissospermum laevis), 41cm, 242g, antes dautilização

Contexto arqueológicoNa bacia do rio Peruaçu esta técnica

foi reconhecida em momentos bem es-pecíficos das cadeias operatórias, ou seja,nas fases de façonagem e de retoque deinstrumentos unifaciais e bifaciais. Aspoucas pontas de flecha analisadas têmuma fase de “façonagem” por percussãomacia e uma fase final por pressão.

Esta técnica foi reconhecida tanto napassagem Pleistoceno/Holoceno quantono início do Holoceno, sendo registradasobretudo nos abrigos, como nas Lapasdo Boquete e dos Bichos. No Holocenomédio a técnica é menos visível, reapa-recendo nas indústrias das últimas po-pulações que ocuparam o vale do Peru-açu, os horticultores ceramistas.

Nossas experimentações podem serresumidas em (Quadro 02):

Quadro 2 – Características da percussão dura e da percussão macia na série experimental

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As vantagens da utilização destasduas técnicas

A percussão macia permite a pro-dução de lascas pouco espessas, even-tualmente largas e invasoras, daí o in-teresse de utilizá-la durante a façona-gem do volume (Pelegrin, 1997). Quan-to mais nos aproximamos do objetivofinal do lascamento, ou seja, do ins-trumento, menos massa deve ser reti-rada do volume. Assim, este tipo depercussão corresponde bem aos mo-mentos finais, onde a precisão na reti-rada da lasca é muito importante, poisuma lasca muito espessa pode destruira peça.

Por outro lado, a percussão dura,mais versátil, é em geral utilizada emtodas as fases das cadeias operatórias.Entre outras características ela permitea obtenção de grandes suportes robus-tos, que poderão ser transformados em(grandes ou médios) utensílios ou nú-cleos.

Enfim, a utilização intercalada des-tas duas técnicas no seio de uma ca-deia operatória demonstra uma certa“elaboração” da indústria lítica, pois otrabalho inicia-se com uma percussãodura e nas fases finais, momento demaior precisão, afina-se o trabalho uti-lizando um outro tipo de percussão maisadequada.

Observações finais

A experimentação arqueológica, uminstrumento a ser utilizado somente pararesponder problemas específicos, aten-deu plenamente aos objetivos propos-tos. Nossa série experimental permitiudistinguir estigmas específicos da per-cussão macia, assim como confirmar osda percussão direta dura. A experimen-tação mostrou que sobre a rocha utili-zada, a madeira produz resultados se-melhantes ao do chifre (utilizado na Eu-ropa).

Depois de muitos anos estudandoindústrias líticas, principalmente dovale do rio Peruaçu, norte de MinasGerais, deparamo-nos com restos delascamento pouco comuns para a re-gião. Estes restos atípicos eram emmenor quantidade, sobretudo se com-parados àqueles provenientes da per-cussão dura.

Uma comparação com material es-tudado por europeus permitiu uma ca-racterização inicial destes restos atípi-cos como resultantes do lascamento compercutor macio. Ao nosso ver a efetivacorrelação com o material brasileiro so-mente poderia ser realizada a partir deum programa experimental, o qual noscolocaria em contato direto com este tipode técnica.

A realização do programa experi-mental permitiu-nos, então, observaros produtos do lascamento com ma-deiras diversas, rochas de boa e máqualidades para o lascamento, aciden-tes e, conseqüentemente, caracterís-ticas tecno-morfológicas das lascas,base para comparação com materialarqueológico.

A continuidade da pesquisa experi-mental permitiria identificar e compre-ender elementos de uma indústria líti-ca produzidos por percutores macios:ampliar o conhecimento sobre a apti-dão de uma maior gama de madeirasutilizáveis, ou ainda quais rochas me-lhor se adequam ao lascamento commadeira, que tipo de madeira seriamais apropriada para retocar, para fa-çonagem, além da utilização de chifresde cervídeos.

Agradecimentos

Agradeço pela revisão do texto esugestões a André Prous, Martha M.de Castro e Silva e Rosangela de Pau-la.

Revista de Arqueologia, 17: 63-74, 2004

Rodet, M. J.; Alonso, M.

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