1235577803 a costureirinha
TRANSCRIPT
-
7/28/2019 1235577803 a Costureirinha
1/2
A Costureirinha
Foi em 1933 que Clotilde chegou a Lisboa, para servir numa casa de famlia.
Ponderou-se o que havia de fazer, mas no havia muita esperana, a comear
seria, como de tradio, pelo primeiro degrau da escada. Nova, saudvel,ignorante das ruas e comrcios de Lisboa, falando, quando falava, com sotaque
beiro intransponvel1,
logo convenceu os senhores condes do Outeirinho
que no servia seno para as grossas tarefas
domsticas.
Clotilde no tinha sonhos e no tinha ambies.
Se no levava pancada, j andava contente. E se,para cmulo, lhe davam de almoar em dias
certos, no pedia mais nada porca da vida.
Deve-se comear a suspeitar da existncia de
um filho nesta famlia. H-o, de facto. H mesmo
dois filhos. O varo, recentemente casado com os
bens de uma herdeira impertinente2, vivia esplndido na Lapa e pouco aparecia
na casa paterna. Dir-se-ia que o xito da famlia que comeara h pouco emOctvio Outeirinho, primeiro a usar o ttulo de conde, se encarnava3 por inteiro
nesse macho de sucesso. Mas no tivera oportunidade de vislumbrar4 a Clotilde
a lavar as escadas ou em interessantes equilbrios sobre escadotes. Meramente
por isso lhe escapara por ele j no estar presente.
O filho segundo, Orlando, coleccionava fracassos, bebia, jogava e perdia.
Andava metido com rufias e mulheres da vida. Dizia que tinha o sangue quente,
no pensava antes de agir. Tambm no pensaria depois de agir. Privado daafeio de seu pai ao fim de um certo tempo, vivia de querelas e de rixas.
Possua um vocabulrio de quatro palavras e trs delas no se podiam
reproduzir em pblico. Em resumo, era o deserdado, a ovelha ranhosa da
famlia.
Mas tinha um fraco pela Clotilde, que no se civilizara realmente nesses
anos lisboetas, e ainda que esse fraco no bastasse para o redimir
completamente, suavizou-lhe o carcter e fez dele um homem ligeiramente1Intransponvel insupervel; inultrapassvel.2Impertinente insolente; atrevida.3Encarnava entranhava-se; vestia a pele de.4Vislumbrar entrever; lobrigar.
-
7/28/2019 1235577803 a Costureirinha
2/2
melhor. Alcanou extrair-se da casa da famlia e alugou um segundo andar com
dois quartitos onde passaram a viver. Embora temporariamente animado de
princpios altrustas5, entre eles a generosidade, Orlando no possua nada de
seu e, logo, num assomo de clarividncia6, se deu conta do srdido da situao
a que era difcil escapar. Decidiu tomar medidas. Emigrou para Angola, a fazer
fortuna.
Clotilde chorava muito. Chorava sobre os trabalhos de costura que fazia para
se sustentar, sobre a mquina de costura, presente do Orlando e ainda sobre
o bero de Vasco, segundo presente do pai remoto7. Chorava dias inteiros
espera de notcias, de cartas. Assim contraiu uma tuberculose, do gneromortal, acrescentando agora ao choro e ao rudo do pedal da Singeruma tosse
que ia mudando de tonalidade aproximao da morte. J quase no fim,
Clotilde recebeu a visita de um emigrante que regressava de Angola com
notcias de Orlando.
Dizia que o ausente ainda no tinha feito fortuna, mas se empregara na
Companhia das guas como escrevente e ao fim de dois anos, se tudo corresse
bem, abria-se a possibilidade de uma promoo. O emigrante relatou sem secomprometer que Orlando estava muito bem de sade, mas que mandava dizer
que antes de sete anos no lhe punham na metrpole a vista em cima. J
passavam trs anos sobre a despedida dos amantes e Clotilde disse adeus ao
emigrante, mandou o menino para a casa da vizinha, rompeu a soluar e cuspiu
a ltima gota de sangue.
Hoje ainda, em Lisboa, diz-se, quando se ouve o roncar das canalizaes,
que a costureirinha, o fantasma de Clotilde, que procura, pelo vazio dos canoso seu Orlando, empregado na Companhia das guas.
Lusa Costa Gomes, Contos Outra Vez, Cotovia
5Altrustas desinteressados; caridosos.6Clarividncia clareza; prudncia.7Remoto longnquo; distante.