13 diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13...

13
245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras: Geane Alzamorra Geane Carvalho Alzamora é jornalista, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica (PUC SP) e pós-doutra pela Universitat Pompeu Fabra, Espanha. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG, Bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPq (Processo: 311914/2016), pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermedia/Centro de Convergência de Novas Mídias (UFMG). Agradeço ao CNPq, FAPEMIG e UFMG por auxílios recebidos E-mail: [email protected] Lorena Tárcia Professora do Centro Universitário de Belo Horizonte. Coordenadora do laboratório de Jornalismo Online e do curso de pós-graduação Jornalismo em Ambientes Digitais. Mestre em Educação (Puc Minas). Doutora e pós-doutora em Comunicação (PPGCOM/UFMG). Bolsista do projeto Minas Faz Ciência – Fapemig. E-mail: [email protected] RESUMO Este capítulo delineia-se na interlocução entre a comunicação de interesse público, na perspectiva defendida por Duarte (2007), transmidialidade como um fenômeno não ficcional (FREEMAN, 2016; JENKINS et al., 2009), transmedia literacy (SCOLARI, 2016; LUGO, 2016) e transativismo (SRIVASTAVA, 2011a), para descrever o delinea- mento conceitual de dois projetos transmídia na área de educação. Buscamos anali- sar como a noção de transmídia e a abordagem educomunicativa e cidadã permeiam campanhas de interesse do público na área de educação no Brasil e no Timor-Leste. Além de um enfoque capaz de considerar modalidades midiáticas não digitais na construção de narrativas expandidas, buscamos enfatizar a natureza da mediação no cenário analisado, sendo este um aspecto ainda pouco explorado nos estudos sobre transmídia. Procuramos compreender de que maneira as instâncias sociais, culturais, econômicas e políticas se manifestam e se interpõem na produção de uma campanha transmídia não ficcional na área de educação. E de que maneira, as histórias podem retomar origens, enfatizando culturas, tradições e pessoas no centro da comunicação e da educação.

Upload: others

Post on 17-Sep-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

245

13

Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação

autoras:Geane Alzamorra

Geane Carvalho Alzamora é jornalista, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica (PUC SP) e pós-doutra pela Universitat Pompeu Fabra, Espanha. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG, Bolsista de

Produtividade em Pesquisa/CNPq (Processo: 311914/2016), pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermedia/Centro de Convergência de Novas Mídias

(UFMG). Agradeço ao CNPq, FAPEMIG e UFMG por auxílios recebidosE-mail: [email protected]

Lorena TárciaProfessora do Centro Universitário de Belo Horizonte. Coordenadora do laboratório

de Jornalismo Online e do curso de pós-graduação Jornalismo em Ambientes Digitais. Mestre em Educação (Puc Minas). Doutora e pós-doutora em Comunicação

(PPGCOM/UFMG). Bolsista do projeto Minas Faz Ciência – Fapemig. E-mail: [email protected]

RESUMO

Este capítulo delineia-se na interlocução entre a comunicação de interesse público, na perspectiva defendida por Duarte (2007), transmidialidade como um fenômeno não ficcional (FREEMAN, 2016; JENKINS et al., 2009), transmedia literacy (SCOLARI, 2016; LUGO, 2016) e transativismo (SRIVASTAVA, 2011a), para descrever o delinea-mento conceitual de dois projetos transmídia na área de educação. Buscamos anali-sar como a noção de transmídia e a abordagem educomunicativa e cidadã permeiam campanhas de interesse do público na área de educação no Brasil e no Timor-Leste. Além de um enfoque capaz de considerar modalidades midiáticas não digitais na construção de narrativas expandidas, buscamos enfatizar a natureza da mediação no cenário analisado, sendo este um aspecto ainda pouco explorado nos estudos sobre transmídia. Procuramos compreender de que maneira as instâncias sociais, culturais, econômicas e políticas se manifestam e se interpõem na produção de uma campanha transmídia não ficcional na área de educação. E de que maneira, as histórias podem retomar origens, enfatizando culturas, tradições e pessoas no centro da comunicação e da educação.

Page 2: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

246

PALAVRAS-CHAVE: Transmídia. Comunicação de interesse público. Educomunicação.

Para citar este capítulo:

ALZAMORRA, Geane; TÁRCIA, Lorena. Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação. In: BRAIGHI, Antônio Augusto; LESSA, Cláudio; CÂMARA, Marco Túlio (orgs.). Interfaces do Midiativismo: do conceito à prática. CEFET-MG: Belo Horizonte, 2018. P. 245-257.

Page 3: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

247

Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação

Introdução

Embora Hollywood e seus estratagemas comerciais tenham sido o primeiro objeto de Marsha Kinder (1991) e de Henry Jenkins (2009; 2012) ao nomearem o fenômeno narrativo transmidiático característico do processo de convergência, é a possibilidade de colocar as telas a serviço das histórias de pessoas comuns que tem mobilizado a atenção recente do autor estadunidense e de outros teóricos dos estudos sobre transmídia..

Essa preocupação, entretanto, não impediu críticas relativas à abordagem so-bre o engajamento e a glamourização da participação do público nas obras Cultura da convergência e Cultura da conexão (JENKINS, 20012 JENKINS; GREEN; FORD, 2014). Ao destacar a centralidade dos fãs na expansão e polinização de produtos midiáticos comerciais, Jenkins, na visão de seus críticos (FUCHS, 2011; FISH, 2017), teria desconsiderado o viés parasitário da indústria sobre o poder criativo daqueles que alimentam e movimentam a produção em múltiplas plataformas.

Esse debate tomou corpo na Transmedia Earth Conference 2017, na Colômbia, onde key-note speakers, como Mathew Freeman e Dan Hassler-Forest, defenderam uma perspectiva analítica mais crítica em relação aos padrões produtivos capitalistas, a partir de uma visada política do poder participativo dos diversos públicos.

Nesse viés, interessa-nos a abordagem transativista de Srivastava (2011b). Ao repensar o ativismo no sistema midiático, a partir da cultura participativa, a autora reforça o viés social e comunitário das redes porosas reticulares e seu potencial de co-nectividade e enredamento de pessoas, histórias e culturas no entorno de ações para mutações efetivas.

O processo de configuração de um ativismo transmídia, a partir da geração de consciência, engajamento, ação e estruturação de transformações, proposto por Srivastava (2011b), tem como foco a conexão de audiências e agentes de mudança a partir de suas histórias locais, enfatizando a centralidade dos grupos sociais.

Dar voz aos atores locais, considerando as plataformas disponíveis em cada realidade, tem sido foco de nossos estudos e ações em comunidades de baixa renda, com ênfase em dinâmicas transmídia, comunicação de interesse público e premissas cidadãs relativamente incorporadas às propostas educomunicacionais e de transalfa-betização. Esse viés delineia as propostas de planejamento comunicacional em edu-cação transmídia realizadas para escolas públicas no Timor-Leste e Brasil, em 2017, conforme será apresentado adiante.

Page 4: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

INTERFACES DO MIDIATIVISMO: do conceito à prática

248

1 Comunicação de interesse público

Duarte (2007) considera a defesa do direito do cidadão de agir em seu próprio interesse e na advocacia dos interesses coletivos nas mais diversas áreas como a res-ponsabilidade maior da comunicação em ambiente de interesse público. O foco do autor está no espírito coletivo, no compromisso de colocar a sociedade antes da con-veniência de empresas, entidades, governantes ou atores políticos O objetivo central, defende, “[...] é fazer com que a sociedade ajude a melhorar a própria sociedade”. (DUARTE, 2007, p. 3).

Ao trilhar esse caminho, a comunicação não deve se limitar à publicidade, às campanhas unilaterais e à divulgação ou ações com viés focado no emissor, nem no aparato tecnológico, quantidade de fontes ou persuasão. Deve-se reconhecer a capa-cidade do cidadão como emissor, produtor de informações e agente ativo nos proces-sos de interação. (DUARTE, 2007).

Comunicar, assim, exige refinamento tanto nas estratégias, quanto na diver-sidade de instrumentos e agentes envolvidos. Não se trata apenas de propor planos de ação, mas de envolver e considerar a participação dos diversos públicos em suas heterogeneidades. Nesse sentido, a comunicação diz respeito à construção de redes, conexão entre pessoas, sem negar as controvérsias e o confronto de opiniões. Existe aí uma legítima preocupação com o exercício da cidadania e o compromisso primeiro com uma pedagogia da compreensão e aprendizagem mútua. Trata-se de reconhecer, na visada foucaultiana, os enlaces, nós, pertencimentos, presenças e ausências em complexos dispositivos de saber e poder, percebendo a mediação educomunicativa como estratégia possível para tensionar lógicas comunicacionais verticalizadas.

No campo da comunicação da saúde pública, por exemplo, Pitta e Magajewski (2000) enfatizam as mediações políticas, culturais, econômicas e sociais diversas que compõem um universo no qual, embora muitas doenças estejam sediadas em cor-pos individuais, devem ser vistas como sintoma coletivo, intimamente relacionado à quantidade e à qualidade das informações circulantes no ambiente, seja na cidade, no bairro, ou no país. Mediações são, assim, tomadas como processos estruturantes que provêm de diversas fontes e incidem nos processos de comunicação, conformando as interações entre os atores (GÓMEZ, 2006). Entende-se, desse modo, que a cidadania, como forma mediadora que atravessa relações entre comunicação e saúde pública, caracteriza-se não apenas pela quantidade ou pela veiculação de conteúdo, mas, so-bretudo, pela qualidade da comunicação e envolvimento dos agentes de interesse. A diversidade de conteúdo e de plataformas disponíveis exige complexo (re)planeja-mento para resultados eficazes.

Nesse panorama, identificamos relevante lacuna nos estudos sobre transmídia, muitas vezes focados no produto e nas plataformas, sendo restrita a dedicação à aná-

Page 5: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

PARTE I: Do conceito...

249

lise das diversas instâncias mediadoras e das ações de “prosumidores” conscientes das possibilidades cidadãs em suas performances e práticas de socialização em uni-versos reticulares amplificados. Assim, situamos o conceito de mediação na proposta de Arce, Alzamora e Salgado (2014, p. 498), como:

[...] efeito, cadeia de transformações na qual ações de mediadores não devem ser diferenciadas a priori, pois conformam o social enquanto se tecem conjuntamente. Todos os atores da cadeia (humanos e não-humanos) agem e são levados a agir, a traduzir, a transformar, portanto, a mediar.

Esse cenário de pluralidade de vozes e ações, assentado no protagonismo da

cultura local e das tradições como instâncias comunicacionais, avista-se, na dimen-são pragmática aqui abordada, como campo fértil para compreender as múltiplas e complexas articulações que se desenham entre as diversas dimensões mediadoras, que fundamentam estratégias comunicacionais transmidiáticas.

2 Transmialidade não ficcional, cidadania e educação

Embora a noção de narrativa transmídia proposta por Jenkins (2003), recorren-temente tomada como referencial em análises transmídia, possa estar calcada naquilo que Alpert e Jacobs, citados por Freeman (2016), interpretam como um “ataque mar-queteiro” para “maximizar os lucros” nas práticas do marketing digital, outras aborda-gens se apresentam quando pensamos o adjetivo transmídia como elemento modifica-dor de substantivos vários, especificamente em uma abordagem não ficcional.

Estudos nesse sentido têm se desenvolvido no campo do jornalismo (SCOLA-RI, 2013; ALZAMORA; TÁRCIA, 2012; GAMBARATO; TÁRCIA, 2016) e da edu-cação (SCOLARI, 2016; TÁRCIA, 20181; LUGO, 2016). Ainda que também nesses universos muitas produções se caracterizem mais pelo espraiamento de informações multiplicadas em rede, em relações comerciais explícitas, consideramos possível um planejamento transmidiático com vistas a explorar as potencialidades expansivas e a diversidade de narrativas, com ênfase na participação social ativa da audiência.

Freeman (2016) destaca o uso não comercial das estratégicas transmídia por pequenos grupos, ao repensarem e aplicarem campanhas midiáticas, como alterna-tiva sociopolítica para informar e unificar comunidades em projetos não ficcionais de impacto social. “Em um sentido, examinar a transmídia por um enfoque social significa pensar nela como uma estratégia de engajamento não-fictício” (p. 2), com ramificações em termos de pessoas, lazer, ativismo, política e sociedade em si. 1 Artigo de Lorena Tárcia – Transmedia education: changing the learning landscape – a ser publicado no livro Companion to Transmedia Studies, organizado por Mathew Freeman e Renira Gambarato, em 2018. (Em fase de pré-publicação).

Page 6: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

INTERFACES DO MIDIATIVISMO: do conceito à prática

250

Explorar as estratégias comunicacionais como conjunto de mediações sociais, culturais, econômicas e empírico-conceituais, na nossa percepção, apresenta-se como uma contribuição para um olhar mais aprofundado sobre as promessas implícitas nas teorias sobre transmidialidade. Em projetos de educação transmídia, tal como delineados para escolas públicas do Timor-Leste e Brasil, a pluralidade das formas mediadoras é condição necessária à vitalidade das extensões narrativas e às possibili-dades de engajamento social.

3 Educomunicação e ativismo transmídia

Partindo de André e Abreu (2006), no entendimento de que inovação social distingue-se essencialmente de inovação tecnológica, atribuindo-lhe caráter coletivo e interação, que visa transformações nas relações sociais, abordamos a transmidialida-de e suas potencialidades no âmbito educacional como processo de engajamento em experiências socialmente inovadoras, não necessariamente digitais.

Nesse sentido, temos como propósito compreender educomunicação transmi-diática como uma formação crítica para leitura e apropriação das construções narra-tivas em perspectiva multiplataforma e multimodal, com foco nas relações dialógicas, na compreensão dos sistemas de comunicação em fluxo e no fortalecimento de ecos-sistemas comunicativos polifônicos em espaços educativos (TÁRCIA, 2016)2.

No nosso entendimento, o entrelaçamento entre lógicas horizontalizadas e ver-ticalizadas de comunicação tem permitido não apenas o afloramento de uma série de novos questionamentos, mas também, e principalmente, a (re)encenação/(re)inven-ção dos modos de transmissão do conhecimento e, ao mesmo tempo, o desenvolvi-mento de novas redes e culturas de sociabilidade.

Em sua compreensão sobre alfabetização transmídia (transmedia literacy), Sco-lari (2016) refere-se ao conjunto de competências e estratégias informais de apren-dizagem que envolve videogames, redes sociais, navegação em entornos interativos e a criação e difusão de todo tipo de conteúdo em diferentes meios e plataformas. “Muitos adolescentes são jogadores de vídeo experientes, outros participam ativa-mente em diferentes redes enquanto alguns produzem conteúdo de todos os tipos e os compartilham nessas mesmas redes.” (p. 01, tradução nossa)3.

Hovious (2013) propõe o uso de projetos transmídia para desenvolver sete al-fabetizações: (1) multimodal (na conexão e entendimento de todos os elementos de uma história); (2) crítica (por meio da desestruturação e reestruturação de múltiplos

2 TARCIA, Lorena. Apresentação oral. Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Setembro de 2016. 3 Muchos adolescentes son expertos videojugadores, otros participan de manera activa en diferentes redes mientras que algunos producen contenidos de todo tipo y los comparten en esas mismas redes.

Page 7: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

PARTE I: Do conceito...

251

modos de texto e compreensão de sua complexidade); (3) digital (navegação e com-preensão dos componentes digitais de uma história); (4) mídia (cada elemento de mí-dia deve ser avaliado e compreendido separadamente antes da criação de significado multimodal); (5) visual (construção de experiências visualmente ricas e compreensão do papel das imagens nas narrativas); (6) informação (compreender a interatividade como fator de alfabetização); e (7) jogos (uso do pensamento lógico e estratégico da gamificação).

Para Lamb (2011), ambientes transmídia ajudam estudantes a explorarem, procurarem informações e interagirem com seus pares. Santaella (2013) considera a consciência sobre a linguagem pré-requisito para pensar as questões relativas à apren-dizagem e à aquisição de conhecimento. Essa autora defende a compreensão das di-nâmicas transmídia como guias para projetos que visam adequar “[...] os processos educativos às condições cognitivas e comportamentais dos jovens na contemporanei-dade.” (SANTAELLA, 2013, p. 231).

Vale, entretanto, ressaltar que a relação entre ativismo midiático e pedagogia midiática direcionada à ação não se dá sem tensões, como ressalta Hug (2011). No en-trelace de distintas constelações midiáticas há diferentes formas de ativismo e apren-dizagem. Essa ampla gama de possibilidades abrange ativismo de resistência, ações coletivas de contestações políticas, formação para apropriação crítica dos meios, uso dos meios digitais e redes para coberturas alternativas, entre outros. Assim, na pers-pectiva desse autor, “[…] a perspectiva de uma pedagogia de mídia orientada à ação não é limitada, desta forma, para refletir o que as mídias fazem para as pessoas, mas, em vez disso, dá prioridade ao que as pessoas fazem com os meios de comunicação.” (HUG, 2011, p. 30, tradução nossa)4. Nem sempre, ressalta o autor, os projetos estão direcionados a uma “[...] participação ativa e permanente na remodelação de uma esfera pública da vida mediada” (p. 30, tradução nossa).

No nosso modo de ver, uma relevante contribuição de uma educação em pers-pectiva transmidiática estaria no diálogo entre os atores e na construção colaborativa de alternativas comunicacionais baseadas nas diversas plataformas disponíveis e cul-turalmente relevantes, com base na ação dos sujeitos cientes e conscientes.

Assim, acionamos a rede do projeto que aqui se apresenta como proposta de conexão de saberes em nível local e global, com respaldo das tecnologias de conexão disponíveis. Nosso objetivo é desenvolver uma metodologia que nos permita ampliar esse projeto para outros países de língua portuguesa, de tal modo que a plataforma em construção possa, ela mesma, se configurar como um dispositivo mediador de extensões cidadãs que coloque os projetos de educação transmídia

4 La perspectiva de una pedagogía mediática orientada a la acción no está limitada, de tal modo, a reflejar lo que los medios de comunicación le hacen a la gente, sino que, en lugar de esto, le da prioridad a aquello que la gente hace con los medios de comunicación

Page 8: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

INTERFACES DO MIDIATIVISMO: do conceito à prática

252

em diálogo e constante expansão. Os procedimentos estão sendo refinados para promover, primordialmente, a inovação social em comunidades de baixa renda com recursos tecnológicos limitados, caracterizando-se, assim, como projeto de educação transmídia voltado para interesse público.

4 Planejamento transmídia para escolas públicas no Timor Leste e Brasil

Começamos com duas propostas complementares, entre 2016 e 2017. A primeira refere-se ao acordo de cooperação internacional entre Brasil e Timor Leste por meio de ações integradas entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH) e Universidade Nacional de Timor Lorosa’e (UNTL)5. O projeto resultou em campanha transmídia de saúde pública para escolas públicas de Timor-Leste com divulgação ampliada na Televisão Educacional de Timor-Leste. O segundo corresponde às ações criadas para uma escola municipal na cidade de Belo Horizonte, Brasil, cujo objetivo é melhorar a comunicação entre os pais dos alunos e a escola, por meio de uma campanha transmídia baseada, principalmente, em ações relacionadas a empreendedorismo cidadão na escola e na internet.

O primeiro projeto envolveu vinte estudantes de jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais no Brasil, cinco estudantes de jornalismo da Universidade Nacional do Timor-Leste e dez estudantes de jornalismo, publicidade e artes gráficas do Centro Universitário de Belo Horizonte.

A proposição foi desenvolvida em quatro etapas: diagnóstico, planejamento, desenvolvimento e aplicação. Com base em pesquisa de campo realizada em Díli, capital do Timor-Leste – sob coordenação das professoras Geane Alzamora (UFMG), Lorena Tárcia (UniBH), Dominica Dwikori (UNTL) e da estagiária docente Luciana Andrade (UFMG). Participaram da proposta cinco estudantes timorenses de Jornalismo, 20 estudantes de jornalismo da UFMG, matriculados na disciplina Laboratório Mídias e Linguagens, ofertada pela professora Geane Alzamora e pela estagiária docente Luciana Andrade, e cinco estudantes de Jornalismo do Uni-BH. O planejamento consistiu em proposição de narrativa transmídia voltada para prevenir problemas de saúde vinculados à promoção de hábitos saudáveis de higiene, considerando a realidade das escolas primárias em Timor-Leste, conforme diagnóstico previamente realizado.

Os estudantes da UFMG propuseram a criação de kits educativos consistindo em um jogo de tabuleiro, teatro, teatro de fantoches, animações de vídeo e quadri-

5 A proposta “Parceria Timor/Brasil para comunicação de interesse publico” foi contemplada pelo Programa de Apoio a Projetos de Cooperação Internacional (PAPCI/DRI/UFMG), Chamada 006/2016 – Of. DRI n. 149/2016.

Page 9: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

PARTE I: Do conceito...

253

nhos6. Esse projeto foi encaminhado aos alunos do Centro Universitário de Belo Ho-rizonte, sob supervisão da professora Lorena Tárcia, para o desenvolvimento de kits a serem enviados e usados por professores de língua portuguesa no Timor-Leste. Ao longo dessa etapa, um estudante timorense foi enviado ao Brasil para completar seus estudos, sendo uma de suas tarefas no Brasil o desenvolvimento de três programas de saúde para a Televisão Educacional de Timor-Leste, na perspectiva de formação de agente multiplicador.

O segundo projeto foi criado para uma escola municipal na cidade de Belo Ho-rizonte, Brasil. A escola tem 470 alunos e está situada em uma área carente da capital mineira. Com base na experiência anterior em Timor-Leste, o planejamento dessa campanha transmídia foi realizado por dez alunos da Universidade Federal de Minas Gerais matriculados na disciplina Laboratório Mídias e Linguagens, ofertada pela professora Geane Alzamora e pela estagiária docente Luciana Andrade.

O diagnóstico que fundamentou a proposta transmídia se baseou em entrevista com a diretora da escola, Ignez Nassif, e grupo focal com quinze estudantes da escola municipal, em idade entre 12 e 14 anos. Foi realizada, então, uma oficina de Design thinking para escolher o tema da narrativa principal. Seu procedimento é baseado na criação de um mapa mental, mostrando o pensamento desenvolvido coletivamente para a solução de problemas (PLATTNER; MEINEL; LEIFER, 2012). Através do brainstorming, chegamos à conclusão de que o tema empreendedorismo seria ideal para promover uma aproximação entre a escola e os pais dos alunos. Assim, dife-rente do diagnóstico em Díli/Timor Leste, que constatou a necessidade de realizar a campanha transmídia focada em higiene, em Belo Horizonte/Brasil, o diagnóstico apontou que o tema da campanha transmídia deveria ser empreendedorismo na arti-culação entre pais, estudantes e escola.

A proposta da campanha transmídia articula-se em torno da hashtag #Euque-FaçoBH, em alusão ao tema do empreendedorismo e ao nome da escola – Escola Municipal Belo Horizonte. As ações planejadas incluem oficinas sobre empreende-dorismo para pais e alunos, a serem ofertadas por profissionais da área na escola, combinadas a ações no Facebook, YouTube, Whatsapp e blog7. O planejamento transmídia será desenvolvido por estudantes do UniBH, sob supervisão da professora Lorena Tárcia e, posteriormente, a campanha será implementada na referida escola.

A expansão da narrativa transmídia proposta envolve planejamento multipla-taforma e participação cidadã. De acordo com Jenkins (2012), estes são aspectos centrais na configuração de uma narrativa transmídia, a qual se desdobra na interse-

6 O planejamento estratégico da dinâmica transmídia está disponível em: http://labcon.fafich.ufmg.br/campanha-transmidia-para-o-timor-leste-revista-em-quadrinhos/. 7 O planejamento estratégico da dinâmica transmídia está disponível em: http://labcon.fafich.ufmg.br/proposta-transmidia-escola-municipal-de-belo-horizonte/

Page 10: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

INTERFACES DO MIDIATIVISMO: do conceito à prática

254

ção de ambientes midiáticos variados, cada um contribuindo de modo distinto para o todo. A perspectiva midiática que adotamos se alinha parcialmente às modalida-des de transmídia ativismo (SRIVASTAVA, 2011b) e transmedia literacy (SCOLARI, 2016), sem se filiar rigorosamente a nenhuma dessas abordagens. Trata-se, na verda-de, de uma perspectiva transmídia bastante singular, pois se configura em conformi-dade com as especificidades midiáticas e tecnológicas de cada contexto sociocultural investigado, assim como coloca ênfase na variedade de mediações que atravessa os hábitos de consumo midiático em cada localidade.

Os dois planejamentos transmídia para escolas públicas do Timor-Leste e Bra-sil articulam processos de educação para a compreensão crítica das mídias como componente sociotécnico, político e econômico. Compreende-se os participantes como sujeitos cientes de seu papel social, agenciadores de redes cidadãs, voltadas às necessidades de comunidades específicas. Assim, articulam plataformas comunica-cionais analógicas, digitais, on e offline para objetivos específicos de comunicação de interesse público, por meio da formação de redes específicas de interesse.

Apoiamo-nos de maneira mais ampla na noção focaultiana de dispositivo para desvelar agentes tensionadores, compreender os emaranhados nos quais os atores se encontram enredados, as linhas de força, os silêncios, discursos de saber-poder. Por meio dessa perspectiva conceitual, buscamos brechas para a mobilização e constru-ção de campanhas de comunicação transmídia de interesse de públicos específicos, a partir das histórias, temáticas e elementos comunicacionais portadores de valores para os agentes envolvidos. Com base nos diagnósticos realizados, concebemos os planejamentos transmídia com o intuito de incentivar a reconfiguração das linhas de força por meio de táticas de ação cidadãs relacionadas à expansão colaborativa da narrativa transmídia.

Na etapa atual, experimentamos métodos e ferramentas com foco na conexão de pessoas para resolução de problemas. Este tem se constituído em um processo de reconstrução e compreensão das etapas necessárias para a inserção em territórios distintos, como agentes externos.

Entre os problemas e barreiras que temos encontrado nesse processo, estão as urgências dos tempos das escolas, as dificuldades para estabelecer diálogos entre ato-res distintos, a percepção de que as vontades e necessidades dos vários eixos precisam estar articulados para o objetivo comum de ações para a mudança e compreensão dos meios enquanto possibilidades de articulação coletiva para a transformação. Tais desafios empíricos são compatíveis com perspectiva conceitual e metodológica que delineia os projetos, fundada na ênfase à diversidade de mediações que atravessam planejamentos transmídia de interesse público.

Page 11: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

PARTE I: Do conceito...

255

Considerações finais

Tomamos a comunicação de interesse público como parâmetro norteador do planejamento transmídia que adotamos para escolas públicas no Timor-Leste e Bra-sil. Trata-se de considerar, em primeiro plano, conforme Duarte (2007), a defesa do direito do cidadão de agir em seu próprio interesse e na advocacia dos interesses co-letivos nas mais diversas áreas como a responsabilidade maior da comunicação em ambiente de interesse público.

Com base nessa perspectiva, concebemos a transmidialidade como processo mediador múltiplo e variado, o qual envolve as especificidades sociais, culturais, eco-nômicas e políticas que se manifestam em singulares hábitos de consumo midiático das localidades investigadas. A ênfase na variedade mediadora delineia nossa con-cepção de planejamento transmídia, o qual dialoga com as abordagens de transmídia ativismo (SRIVASTINA, 2009) e transmedia literacy (SCOLARI, 2016), sem se filiar rigorosamente a nenhuma dessas abordagens.

Os planejamentos de transmídia educação realizados para escolas públicas do Timor- -Leste e do Brasil levam em conta modalidades midiáticas variadas, inclusive não digitais, na construção de narrativas expandidas que demarcam experiências, desejos, culturas e tradições. O engajamento social é condição necessária para a consolidação de um planejamento transmídia e, desse modo, é incentivado nas etapas do diagnóstico, planejamento, desenvolvimento e implementação da dinâmica transmídia proposta. Assim, compreende-se os participantes como sujeitos cientes de seu papel social, agenciadores de redes cidadãs, voltadas às necessidades de comunidades específicas.

Referências

ALZAMORA, Geane; TÁRCIA, Lorena. Convergence and transmedia: semantics galaxies and emerging narratives in journalism. Brazilian Journalism Research, Brasília, v. 8, n. 1, p. 23-34, 2012.

ANDRÉ, Isabel; ABREU, Alexandre. Dimensões e espaços da inovação social. Finisterra: Revista Portuguesa de Geografia, v. 41, n. 81, p. 121-141, 2006.

ARCE, Tacyana; ALZAMORA, Geane; SALGADO, Tiago. Mediar, verbo defectivo: contribui-ções da teoria ator-rede para a conjugação da mediação jornalística. Contemporânea, Salvador, v. 12, n. 3, p. 495-511, set./dez. 2014.

DUARTE, Jorge. Comunicação pública. 2007. Disponível em: <http://www.jforni.jor.br/ forni/files/ComP%C3%BAblicaJDuartevf.pdf>. Acesso em: 26 de fev. 2017.

GÓMEZ, Guillermo Orozco. Comunicação social e mudança tecnológica: um cenário de múl-tiplos desordenamentos. In: MORAES, Dênis de (Org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. p. 81-98

Page 12: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

INTERFACES DO MIDIATIVISMO: do conceito à prática

256

FISH, Adams. Technoliberalism and the end of participatory culture in the United States. USA: Palgrave, 2017.

FUCHS, Christian. Against Henry Jenkins. Remarks on Henry Jenkins’ ICA Talk “Spreadable Media”. Information – Society – Technology & Media, 30 maio 2011. Disponível em: <http://fuchs.uti.at/570/>. Acesso em: 13 maio 2017.

FREEMAN, Matthew. Small change – big difference: tracking the transmediality of red nose day. Vieuu, Journal of European Television History & Culture, v. 5, online, out. 2016. Disponível em: <http://viewjournal.eu/non-fiction-transmedia/small-change-big-difference-tracking-the-trans-mediality-of-red-nose-day/>. Acesso em: 20 jul. 2017.

GAMBARATO, Renira R.; TÁRCIA, Lorena. Transmedia strategies in journalism: an analytical model for the coverage of planned events. Journalism Studies, p. 1.381-1.399, 28 jan. 2016.

JENKINS, Henry. The revenge of the origami unicorn: seven principles of transme-dia storytelling. Futures of Entertainment, 21 dez. 2009. Disponível em: <http://www. convergenceculture.org/weblog/2009/12/the_revenge_of_the_origami_uni.php>. Acesso em: 17 set. 2017.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2012.

JENKINS, Henry; GREEN, Joshua; FORD, Sam. Cultura da Conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. São Paulo: Editora ALEPH, 2014

JENKINS, Henry et al. Confronting the challenges of participatory culture: media education for the21st century. Chicago (EUA): The MacArthur Foundation, 2009.

HOVIOUS, Amanda. The 7 literacies of transmedia storytelling. Designer Librarian, 21 nov. 2013. Disponível em: <https://designerlibrarian.wordpress.com/2013/11/21/the-7-literacies-of-transme-dia-storytelling/>. Acesso em: 22 set. 2017.

HUG, Theo. Sondeos en los campos de tensión entre el activismo mediático y la pedagogia orien-tada a la acción. Revista Alaic, São Paulo, v. 11, n. 21, p. 24-33, 2011.

KINDER, Marsha. Playing with power in movies television, and video games: from Muppet Ba-bies to Teenage Mutant Ninja Turtles. Berkeley: University Of California Press, 1991.

LAMB, Annette. Reading redefined for a transmedia universe. Learning & Leading with Techno-logy, Eugene (EUA), v. 39, n. 3, p. 12-17, 2011.

LUGO, Nohemi. Diseño de narrativas transmedia para la transalfabetización. Barcelona (Espa-nha): Pompeu Fabra Universitat, 2016.

PLATTNER, Hasso; MEINEL, Christoph; LEIFER, Larry. Design thinking research. Londres (Reino Unido): Springer, 2012.a

PITTA, Áurea Maria da Rocha; MAGAJEWSKI, Flávio Ricardo Liberali. National communica-tion policies during times of technological convergence: examining the case of Healthcare. Inter-face – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu (SP), v. 4, n. 7, p. 61-70, 2000.

Page 13: 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse … · 2018. 6. 6. · 245 13 Diálogos entre transativismo, comunicação de interesse público e educomunicação autoras:

PARTE I: Do conceito...

257

SANTAELLA, Lúcia. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013.

SCOLARI, Carlos. Narrativas transmedia: cuando todos los medios cuentan. Barcelona: Centro Libros, 2013.

SCOLARI, Carlos Alberto. Alfabetismo transmedia. Estrategias de aprendizaje informal y com-petencias mediáticas en la nueva ecología de la comunicación, Telos, Madri (Espanha), n. 103, p. 13-23, – fev./maio 2016.

SRIVASTAVA, Lina. Narrative Design for Social Impact: the project model canvas. Transmedia activism, 2011a. Disponível em: <http://transmedia-activism.com>. Acesso em: 27 fev. 2017.

SRIVASTAVA, Lina. Transactivism: Lina Srivastava at TEDxTransmedia2011. YouTube, 19 out. 2011b. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6GO_bXpckDM>. Acesso em: 25 maio 2017.