153580702 hartog francois o espelho de herodoto
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F R A N O I S H A R T O G
E S P E L H O D E H E R D T
E N S A I O S O B R E A R E P R E S E N T A O D O O U T R O
N O V A E D I O R E V I S T A E
A U M E N T A D A
TRADUO DE
J A C Y N T H O L I N S B R A N D O
1 0 0 1 0 6 9 6 2 7
B e l o H o r i z o n t e
Edi to r a U F MG
1999
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u
M
O
LISTA DE FIGURAS 9
P R E F C I O
O V E L H O H E R D O T O 1 5
( I N T R O D U O
/ O N O M E D F. H E R D O T O 3 1
O e s p e l h o d e H e r d o t o 3 7
R T E
OS CITAS IMAGINRIOS: ESPAO,
PODER E NOMADISMO
I N T R O D U O
O s C I T A S D E H E R D O T O : O E S P E L H O C I T A 4 5
i c A P T U L O I OND E A C TI A ? 5 3
Que m so os c i tas? 59
C A P T U L O I I O C A A D OR C A A D O: PROS E A P OR I A 7 3
A s i n j u n e s n a r r a ti v a s 7 4
O c a a d o r c a a d o 7 8
Os " h o pl i ta s " pe r s a s 8 2
C o m ba te r s e m ba ta l h a 8 6
Poros e aporia : h istr ia de um desvar io 93
C A P T U L O I I I FR ONT E I R A E A L T E R I D A D E 9 7
Ancarsis e Ci les : percursos de uma
tr a n s gr e s s o 9 8
Z l m o xi s : o P i t go r as d o s ge ta s 1 1 6
Fr o n te i r a e a l te r i d a d e 1 3 9
C A P T U L O I V O C OR P O D O R E I : E S PA O E P OD E R 1 4 3
O c o r p o d o e n t e 1 4 3
O sangue do juramento 1 4 4
O corpo do rei: Hstia e nomadismo 1 4 8
Como produzir a verdade? 1 5 4
O c o r po m o r to : o s f u n e r a i s d o s r e is 1 6 0
Morte e espao cvico 16 1
Tmulo eeskbali 1 6 4
Mutilar, embalsamar, estrangular 1 6 8
Os reis espartanos 1 7 6
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C A P T U L O V
O c h e f e q u e r c a b e a s 1 8 0
A c a a s c a b e a s 1 8 1
U m a a r i t m t i c a d a aristeia: b e b e r o v i n h o ,
b e b e r o s a n g u e 1 8 5
O ESPAO E OS DEUSES: O BOI QUE
" C OZ I NHA A S I M E S M O" E A S " B E B I D A S "
D E A R E S 1 9 5
O b o i 1 9 8
A s " be b i d a s " d e A r e s 2 0 8
, C A P T U L O I
% CAP '
APITULO II
A P I T U L O I I I
C O N C L U S O
A Q U E S T O D O N O M A D I SM O 2 1 3
P o d e r e e s p a o 2 1 8
As palavras para diz- lo 2 2 3
HERDOTO, RAPSODO E AGRIMENSOR
I N T R O D U O
G E N ER A LI ZA R . 2 2 7
UMA RETRICA DA ALTERIDAD E 2 29
D i f e r e n a e i n v e r s o 2 2 9
A c o m pa r a o e a a n a l o gi a 2 4 0
A m e d i d a d o ihma 2 4 5
Traduzir , nom ear , c lassi f icar 25 1
D e s c r e v e r : v e r e f a z e r v e r . . . 2 6 1
O t e r c e i r o e x c l u d o 2 7 0
O O L H O E O O U V I D O 2 7 3
Eu vi , eu ouvi 2 7 3
Entre o escr i to e o oral 2 8 3
E u d i go , e u e s c r e v o 2 9 2
O j o g o d a e n u n c i a o 2 9 7
Mythos e prazer ou pbilomytha 3 0 2
U m a n o v a c r e n a 3 1 2
AS HISTRIAS C OM O R E P R ES E NT A O 3 1 5
U m a r e p r e s e n t a o d o p o d e r? 3 2 6
O poder desptico 3 3 2
He r d o to , r a ps o d o e a gr i m e n s o r 3 4 1
O agrimensor 3 4 2
O rapsodo 3 4 5
A ordem do discurso 3 5 0
Fazer crer para qu? o efeito do texto 3 5 9
C O N C L U S O
A H I S T R I A D E U MA P A R T IL H A , 3 6 9
4 N O T A S 3 7 9
N D I C E R E M I S S I V O 4 7 5
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L I S T A D E F I G U R A S
Fora do texto
1 - Herdoto, "h istoriador das Guerras Mdicas" , coroado
pelas Musas 11
2 - Map a: A Ctia 1 2
3 - Gue rreiro ci ta 13
4 - Carro cita 13
5 - O "nasci mento " da h istria 14
No texto
6 - Provvel representao do mundo por Herdoto
7 - Mapa: "Admit indo-se que a Ct ia um quadrado. . . "
5 6
3 4 7
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P R E F C
O
O V E L H O H E R O D O T O
Ele vai bem, o velh o Herdoto. l ido (pelo men os su pe-se) ,
editado, g losado e interpretado.
1
Estar satisfeito com isso?
Swif t lembrava como Gull iver , de passagem pela I lha dos
Feiticeiros, tinha, de incio, observado a que ponto Homero e
Aris tte les ignoravam a mult ido de seus comentadores . Em
seguida, no demorou a compreender como, na real idade,
a m b o s a b s o l u t a m e n t e n o a c o n h e c i a m . F i n a l m e n t e , u m
fantasma conf irmou- lhes que, de fato , "os comentadores no
s e ap r o x imavam j amais do s in f e r no s e m q u e e s tavam o s
autores que eles tinham glosado, por vergonha e por remorso
de te r to ho r r ive lme nte de f o r mado s e u p e ns ame nto , ao
e xp l i c - lo s g e r a e s p o s te r io r e s " .
Hoje, em todo caso, livros e artigos consagrados a Herdoto
ap ar e c e m a c ada ano , nu m r i tmo c o ns tante .
2
Por qu? Pela
boa forma de uma tradio c lss ica totalmente acabada que,
semelhante a um barco de guerra bem protegido, corre ainda
mu i to te mp o mo vida ap e nas p e lo p r p r io imp u ls o ?
3
Ou ser
e m c o ns e q nc ia da ap r i s io nado r a in r c ia de u m s i s te ma
de produo acadmico que, ano aps ano, acumula, col ige e
corr ige , mas tambm se defende e se reproduz, recrutando
no vo s t r ab a lhado r e s c o mb inando - s e as l e i s do g ne r o
c o m a s r e g r a s d o m e i o ? E v i d e n t e m e n t e , m e s m o q u a n d o
de s e nvo lv idas , e s s as r e s p o s tas a inda s e r iam mu i to s imp le s ,
redutoras . Por que es ta hort icul tura intens iva, repet i t iva,
enquanto tantos outros textos exumados , mal conhecidos e
esquecidos es to alhures espera de quem os dec i f re ,
espera de leitores?
>
Uma cultura (a nossa em todo caso) feita de tal modo
que no cessa de retornar aos " textos" que a const i tu ram, de
rumin-los , como se sua leitura fosse sempre uma releitura.
Se ja fe l ic i tando-se por isso ou lamentando-se , se ja embalsa-
mando-os ou recusando-os , e la parece tec ida por seus f ios
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e como que j "l ida" por eles . A tarefa de um historiador da
cultura pode, a partir da , consistir em dar a 1er esses textos,
reconstruindo para falar como a hermenutica a ques to
qual e les respondem, redesenhando os hor izontes de expec-
tativa em que, desde seu primeiro dia at os nossos (ainda
que no modo de ausncia) , e les vieram inscrever-se , recalcu-
lando as apostas que f izeram e s ignif icaram, apontando os
qiproqus que sucess ivamente provocaram. Essa his tor ic i -
zao no significa moderniz-los ou atualiz-los , mas sobre-
tudo fazer ver sua inatual atualidade: suas respostas a questes
que ns no mais levantamos , no sabemos mais levantar ou
simplesmente "esquecemos". Tornadas epnimas de um gnero
e de uma disciplina, as
Histrias
de H e r do to de s e mp e nhar am
seguramente esse papel de texto maior . Mesmo que no se
duvide de que se produziram e mesmo se escreveram, de outro
modo, histrias ou a histria alhures e antes: na Mesopotmia,
c o m a
Bblia,
na antiga China ou no Ja p o.
A essa dis tncia ,
O Espelho de Herdoto
s u r g e - me c o m o
uma exper inc ia de le i tura. Era o tempo em que os his tor ia-
dores (ou, pelo menos , cer tos his tor iadores ) , cansados de
contar , aprendiam a 1er ; em que a antropologia his tr ica e a
histria do imaginrio se preocupavam com as margens mais
que com o centro, mais com a alteridade que com a identidade;
e r a o mo me nto e m q u e o p r o b le ma da e nu nc ia o v inha
renovar a abordagem es trutural dos textos , tendo acabado
de ap ar e c e r
L'criture de l'Histoire,
de Michel de Certeau.
Foi-me algumas vezes cr i t icada a expresso "Os c i tas de
Herdoto", como se fosse, pura e s implesmente, uma injuno
a ser trancafiada somente no texto das
Histrias,
uma apologia
do sol ips ismo, uma defesa em favor da ignorncia e do cet i -
c ismo. Mais s implesmente , expr imia e la antes uma insat is -
fao diante da maneira como muitas vezes os his tor iadores ,
va le ndo - s e do r tu lo de "do c u me nto " , u t i l i zavam o s te x to s
(literrios , em particular) . Da a experincia: no limite, tratar
Herdoto como se fosse Homero. Avanar o mais longe possvel
num
lgos
e s c o lh ido , dando to das as c hanc e s ao te x to , ab o r -
dado em seus mlt ip los nveis , em suas diversas l inhas
meldicas, do mesmo modo que em suas rupturas, retomadas,
imp as s e s e nf im: c o mo a e xp r e s s o de u ma o u de mu i tas
es tratgias narrat ivas . A l ings t ica da en un cia o forne c ia ,
i
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de s de Be nve nis te , u m p r e c io s o b a l izame nto te r i c o , q u e
permit ia , deixando-se ao texto toda sua cons is tnc ia , v- lo ,
por ass im dizer , animar-se e pr-se em movimento.
"Herdoto narrando como Homero inventa [ . . . ] , criando, por
uma obra-pr ima da ar te de escrever , a c inc ia dos lugares ,
dos tempos e dos fatos . " Esse ju lgamento, um dentre outros ,
me no s c o nhe c ido q u e mu i to s o u tr o s , de ve - s e a D au no u .
4
P e la du p la ap r o x ima o p r o b le mt i c a q u e f az de u ma
p ar te e nt r e H o me r o e H e r do to ( p e la me dia o do nar r ar
como),
de outra , entre a ar te de escre ver e a c inc ia d os
fatos tem o mrito de fazer ressurgir ,_em sua complexidade,
a ques to da pr imeira escr i ta da his tr ia .
A operao historiogrfica de Herdoto manifesta-se, desde
as primeiras palavras da frase de abertura das
Histrias,
c o m o
no me a o de nu m no vo lu g ar e c o mo s u c i r c u ns c r i o nas
prt icas discurs ivas e nos saberes em curso:
historie.''
No
imediatamente (pois Tucdides jamais ut i l izar esse termo) ,
mas pouco a pouco (a par t ir do sculo IV a .C. ) , a des ignao
ser retomada at acabar impondo-se: usando pof sua prpria
conta a palavra lat ina historia, C c e r o de s ig nar H e r d o to
c o mo "p a i da h i s t r ia " .
6
O q u e n s c hamamo s as
Histrias
iT ^ ap r s e nta o p b l i c a" (
his to r ies apde ix is ) ,
a "mo stra"
de s ta
historie-,
H e rd ot o d e H a l i c a rna s s o a pre s e nt a a q u i s u a
historie,
para
impedir que o que fizeram os homens, com o tempo, se apague
da memria e para que grandes e maravi lhosas obras , produ-
z i d a s t a nt o pe l os b rb a ros , q u a nt o pe l os g re g os , n o c e s s e m
de ser renomadas ; em part icu lar , aqui lo que foi a causa de
eles entrarem em guerra uns contra os outros . Entre os persas ,
os doutos (
l g i o i
) d izem que os fenc ios foram a causa do
d e s a c o r d o . . .
7
J h muito tempo foram ressal tadas as semelhanas de
es trutura, de vocabulr io e mesmo de cadncia entre essa
abertura e os prlogos da epopia. Nos dois casos trata-se da
me m r ia , do e s q u e c ime nto , da mo r te . S e o ae do de o u tr o r a
e r a u m dis p e ns ado r de
klos,
de um a glria imo rtal para os
heris que t inham acei tado morrer por e la no combate , o
histor
sent e-se requ is i tado a "produz ir" sua narrat iva para
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impedir (ou, pelo menos , re tardar) o apagamento dos traos
da a t iv idade de ho me ns q u e s o s imp le s me nte ho me ns .
Gregory Nagy voltou a examinar esse parentesco e sua
dimenso, a par t ir de um es tudo do termo
lgioi,
no qual
mostra , por uma sr ie de exemplos tomados de Pndaro,
q u e ae do s e
lgioi
so qua se interca mb iveis . Uns e outros
tm a tarefa de serem os dispensadores do
klos
, atravs de uma
mesma "apresentao pblica": os primeiros, \*erdade, cantam
e m ve r s o s , e nq u anto o s s e g u ndo s u s am a p r o s a . Tamb m
"H e r do to , o
lgios
,"
8
s e g u indo o s "do u to s " p e r s as o u r eve -
zando com eles , inscreve-se na cadeia dos
lgioi
e a prolonga,
ass im como a his tr ia continua a epopia e reveza com ela :
ins c r e ve - s e no c i c lo c o me ado s o b as mu r a lhas de Tr ia e
r e c ap i tu la - o .
Como o canto do aedo, a prosa do pr imeiro his tor iador
p r e o c u p a - s e c o m o
klos.
Um celebrava os al tos fe i tos e os
ditos famosos dos heris de outrora; o outro prende-se aos
traos da at ividade dos homens (
t g e n m e n a e x a nt hr p or i) ,
ao s "mo nu me nto s " ( no s e nt ido mais amp lo ) q u e do te s te -
munho dela a todas essas marcas , pelo menos quelas que
se reconhecem como "grandes e maravilhosas", mas perecveis ,
e fmeras , se comparadas com a imutabi l idade da natureza e
a imortal idade dos deuses . Para os gregos , a morte sempre
ganha. Se toda palavra humana tem de haver-se com a morte ,
se os homgns . narram po rqu e se sabem mortais , a epo pia e
his tr ia ins taladas ambas na f ronte ira entre vis vel e
invisvel, para evocar, para chamar antes de tudo os que no
exis tem mais ambas tm como funo espec f ica domesticar
a morte , soc ial izando-a: "A epopia no apenas um gnero
l i terr io ela , com os funerais e na mesma l inha que
eles , uma das instituies que os gregos elaboraram para dar
resposta ao problema da morte , para aculturar a morte . "
9
Atravs desse canto de rememorao, os heris transformam-se
e m ho me ns de o u tr o r a e r e p r e s e ntam o p as s ado do g r u p o .
j jVas bem c laro que o que qual i f ica o heri , o que lhe vale
uma morte par te e a g lr ia de ser narrado no , nem de
inc io , nem somente , seu es tatuto ou sua funo, mas "a sr ie
de faanhas que faz dele o que " : seu
curriculum vitae.
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{^Quando se passa da epopia para a his tr ia , o campo
alarga-se em muitas direes. No se celebra mais a lembrana
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das s imples faanhas busca-se guardar a memria do que
fizeram os homens, soletrar e fazer lembrar os traos e as marcas
da ao no mais somente de tal ou qual heri s ingular ,
mas dos gregos e dos brbaros , i s to , de todos os homens .
Co m u ma c o r r e o : no s e r o r e t idas s e no aq u e las a e s
que so "grandes e maravi lhosas" . Muda a faanha, notada-
mente guerre ira : a excelnc ia torna-se colet iva. A ordem da
falange e a le i da c idade impem-se . belo morrer no mais
na primeira f ifa, mas na sua prpria f i leira.
1 1
Todavia, da epopia histria encontra-se a mesma escolha
e opera a mesma matr iz narrat iva: a exigncia de que se
conte o que f izeram os homens , essa par te e fmera que
seu lote . Enquanto o aedo, com a segurana de um mestre
do
klos
que a Musa inspira , promete uma glr ia "qu e no
s e c o n s o m e " (
p h t i t o n
) , o h i s to r iado r , c i r c u ns c r i to nu m
te mp o q u e o do s ho me ns , Ta lando d c o i s as hu manas ,
com seu saber e seu nome, entende que apenas luta contra
o esquecimento. Atravs da exib io de sua
historie,
e le quer
que todas as marcas do fazer dos homens no se tornem
"privadas de
klof (akla
) , no "passem "
(extela)
c o m o u ma
p intu r a q u e p o u c o a p o u c o o te mp o ap ag a . N o e c o e ntr e
klos
e
akla,
bem com o na dis tncia ins taurada entre os
do is , p ar e c e q u e , de H o me r o a H e r do to , a p r o me s s a de
imortal idade no mais se pode enunciar a no ser de modo
negativo: em suma, sem i luso. Como se se soubesse que, na
troca desigual que prope a epopia (a vida pela glria), jamais
o s e g u ndo te r mo p o de r s e r ve r dade i r ame nte c o nq u is tado .
At porque, em matria humana, a instabilidade a regra: as
c idades grandes outrora tornaram-se pequenas e as pequenas ,
grandes . A resposta muito prt ica de Herdoto percorrer
igualmente umas e outras , rememorando tanto umas quantas
as outras.
Ao pr-se a tnica sobre o
klos
como matr iz dos cantos
picos e da palavra histrica, privilegia-se a homologia entre
as duas formas de discurso e a continuidade de uma outra.
Essa a posio de Nagy. Mas a prpria expresso "Herdoto,
o
lgios
no evidente por s i . Antes de tudo, porque a
palavra no se aplica, nele, seno aos brbaros (sbios persas,
sacerdotes egpc ios , o c i ta Ancars is ) ; em seguida e sobre-
tudo porque, uma vez refer idos os di tos dos
lgioi
persas
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sobre as origens do conflito, Herdoto no se inscreve em sua
c o nt inu a o , mas r o mp e a c ade ia , anu nc iando q u e f a lar
de outro lugar e de outro modo: "Mas eu prpr io (
eg d)
no vo u me p r o nu nc iar , a p r o p s i to de s te s ac o nte c ime nto s ,
se se deram ass im ou de outra forma. Indicare i aquele que,
pelo que sei pessoalmente, tomou primeiro a iniciativa de atos
o f e ns ivo s c o ntr a o s g r e g o s . "
1 2
A saber: Creso, o rei da Ldia.
Nessa pr imeira interveno direta , enunciada na pr imeira
pessoa, o que impress iona o dese jo de ruptura. Muda-se
de universo de discurso, de regime de verdade e de escala
c r o n o l g i c a . H e r d o t o
hstor
no visa nem a retomar , nem a
corr ig ir as informaes a que acaba de refer ir -se , nem mesmo
a comprometer -se com uma nova narrat iva sobre as or igens
mas visa antes , em funo do que sabe e le prpr io , a
e s tab e le c e r u m p o nto de p ar t ida , p e r mane c e ndo ne le .
A epopia porm j no fazia isso , quando escolhia cantar
um nico episdio? No toda a Guerra de Tria , mas somente
a clera de Aquiles , no momento em que surge a querela
f u ne s ta c o m A g am mno n. Entr e tanto , de c id indo me dir o
inc io de acordo com o que sabe e le prpr io , o his tor iador
mu da as r e g r as do j o g o . Tr adu o de s s a p e q u e na de c i s o
in ic ia l , a o p e r a o h i s to r io g r f i c a , me s mo q u ando p ar e c e
ou cr retomar a epopia , rompe com ela , recor tando um
no vo e s p a o de p a lavr as q u e te m p o r no me
historie.
Quanto s palavras dos "doutos" persas , e las no deixam
de intrigar. Com efeito, so persas que falam "grego".
1 3
Circu-
lando com grande natural idade pelo repertr io dos mitos
da tribo (grega), eles renem muitas histrias famosas, todas
pondo em cena f iguras femininas , com as quais tecem uma
narrat iva contnua das or igens da hos t i l idade entre brbaros
e gregos . Par tem de Io , para terminar com Helena, passando
p o r Eu r o p a e Me d ia . Or de nam e c r iam c o nt inu idade : e m
suma, fazem seu trabalho de historiador. Mas a que preo? As
ve r s e s q u e p r e s e r vam o u p r o du ze m af as tam- s e das ve r s e s
c o r r e nte s , s e no c an nic as . I o no mais a p r inc e s a amada
por Zeus , que Hera persegue sem dar descanso a seu dio,
mas simplesmente a f i lha do rei de Argos, raptada com outras
mu lhe r e s p o r me r c ado r e s f e n c io s q u e , t e ndo ve ndido s u a
carga, partiam para o Egito, ou seja, ela era o frete de volta.
14
Do mesmo modo, Europa, tornada f i lha do re i de Tiro (e
no mais de Fnix) , fo i s implesmente raptada pelos gregos
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(cretenses , ta lvez) e no mais transportada at Creta por um
Zeus sado do mar sob a forma de touro. Vem, em seguida, o
rapto de Media , f i lha do re i da Clquida, mas em absoluto
uma fe i t ice ira , ao qual responde, "uma gerao mais tarde" ,
o rapto de Helena por Alexandre , fechando a sr ie de raptos
alternados. Deixa-se ento dessa espcie de troca para entrar-se
na v io l nc ia da g u e r r a . Os g r e g o s de s e mb ar c am e m Tr ia
para pedir reparao. Es ta a or igem da inimizade que exis te
entre persas e gregos .
N e s ta ve r s o "p e r s a" r ac io na l izante , e ve me r i s ta
avant
la lettre, seno irnica as grandes narrativas transformam-se
e m p e q u e nas h i s t r ias . Co ntadas as s im, ins c r e ve m- s e nu ma
cronologia (a sucesso dos raptos ) e numa geograf ia (a s ia
em face da Europa) , vindo a const i tu ir , para dizer tudo, uma
srie que tem valor justamente enquanto etiologia das Guerras
M dic as , as q u a i s ap ar e c e m mais c o mo u m no vo e p is dio
de u m c i c lo p r inc ip iado h mu i to te mp o , do q u e c o mo u m
de s f e c ho o u u m c o me o . Tu do s e p as s a c o mo s e o s do u to s
persas, falando "grego", se pusessem distncia dessas narra-
t ivas famosas , desmis t i f icando-as ou como se sua qual i -
dade de persas lhes permit isse saber do que se tratava, de
fato , nessas his tr ias , em conjunto medocres . Es tamos longe
d o s
lgioi
v i s to s c o m o c o nf r ade s p r x imo s do s ae do s , c o m o
me s tr e s do
klos em
p r o s a . N o mo me nto e m q u e o nar r ado r
H e r do to in te r v m p ar a c o r tar p r o ntame nte e s s e s de s do b r a-
mentos , no recusa,
1 5
no repete , nem mesmo comenta dire-
tamente a dis tnc ia ins taurada pela verso persa apenas
contenta-se em es tabelecer uma outra regra do jogo, p ropond o
um outro ponto de part ida.
Historie,
c o r r e nt e me nte t r adu zida c o m o inve s t ig a o ( no
duplo sentido de pesquisa e de inves t igao judic ir ia) , vale
c o mo t tu lo e f o c o o r g anizado r de to do o e mp r e e ndime nto .
Mu i to q u e s t io nado , o c amp o s e mnt i c o de
historie
c o ndu z
e p o p i a .
1 6
N o mo me nto de p r f im a s u a q u e r e la c o m A q u i le s ,
A g am mno n f az u m j u r ame nto s o le ne , invo c ando Z e u s e
diversas divindades : "
Isto Zeus.. .
q u e Z e u s no s o me nte
saiba, m as veja/ se ja tes tem unh a (de q ue jamais pus a mo
em Br ise ida) .
1 7
/ Co ns ide r ando e s s e ap e lo ao te s te mu nho de
Z e u s , Be nve nis te j u lg a q u e , s e g u ndo a e t imo lo g ia , s e de ve
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entender o nom e de agente
hstor
como "testemunha", enquanto
aq u e le q u e s ab e e , s o b r e tu do , e nq u anto aq u e le q u e v iu .
18
Testemunha ocular , e le sabe por ter vis to . O
hstor
seria,
antes d e tudcfc f por pr inc p io , um olho e a
historie,
p o r '
sua vez, a lguma coisa (seno uma his tr ia) re lat iva ao ol l o .
P r o p o ndo - s e e xaminar o c amp o c o b e r to p e la no o de
historie,
uma tese rece nte ques t ion a o pr ima do do olh o na
p r ime i r a de f in i o de
hstor}
9
No m om ent o da corr ida de
carros , organizada por ocas io dos funerais de Ptroc lo ,
surge uma disputa entre jax e Idomeneu: qual carro es t
na f rente? Enquanto os concorrentes es to ainda longe da
l inha de chegada e so dif ic i lmente identi f icveis , Idomeneu
cr reconhecer Diomedes; jax, que no acredita nisso, acusa-o
de ver mal . Idom eneu prope- lhe ento uma aposta , apelando,
na p e s s o a de A g am mno n, a u m
hstor.
20
A g a m m n o n , q u e
no viu nada, no pode ser evidentemente- uma tes temunha.
ento um "rbi tro" , escolhido por suas qual idades para
resolver a ques to e impor respei to s dec ises tomadas .
Co mo ? I nve s t ig ando . S e g u ndo S au g e , e l e p o de to - s o me nte
cr iar , pelo discurso, uma s i tuao de enunciao tal que faa
o s p r o tag o nis tas a te s tar e m o q u e s e p as s o u , c o ns e g u indo
fazer
^ e ^ - q u e - ac q n te c ia no mo m e nto da d i s p u ta . E le j u iz
e no tes temunha e , de modo algum, e le ju iz porque foi
te s te mu nha : s e u s ab e r no de mo do a lg u m f u ndado s o b r e
um ver.
Numa cena representada sobre o escudo de Aquiles , for jado
por Hefesto, dois homens que disputam a propsito do resgate
pago por um assass inato resolvem apelar a um
hstor,
21
A
uma tes temunha? Sem dvida no, seno o l i t g io j es tar ia
dec idido. A um " ju iz" , j que, no termo do processo, se trata
de dar uma "sentena"? Mas como se passa, com re lao ao
hstor,
do sentido inic ial de tes temun ha para o de ju iz? Do
que sabe por ter vis to ao que dec ide sem ter nada vis to?
Consc iente da dif iculdade, Benvenis te a resolvia ass im:
P a r a n s , o j u i z n o a t e s t e m u n h a . E s s a v a r i a o d e s e n t i d o
p e r t u r b a n o s s a a n l i s e d e s s a p a s s a g e m . M a s p r e c i s a m e n t e
p o r q u e hstor a t e s t e m u n h a o c u l a r , o n i c o q u e r e s o l v e o
d e b a t e , q u e s e p o d e a t r i b u i r a hstor o s e n t i d o d e " a q u e l e q u e
d e c i d e , a t r a v s d e u m j u l g a m e n t o s e m a p e l a o , s o b r e u m a
q u e s t o d e b o a f " .
2 2
22
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D if e r e nte me nte do p r ime i r o e xe mp lo , aq u i o
hstor
no ,
de inc io , nomeado ou des ignado. O que se v efet ivamente?
Os mais velhos se renem e , tomando cada um, por sua vez,
a palavra, so convidados a dar sua sentena. Por outro lado,
do is ta le nto s e nc o ntr am- s e de p o s i tado s no me io do c r c u lo ,
devendo ser atr ibudos quele que, dentre todos , "dar a
sentena mais rec ta" . Algum no , portanto,
hstor
; mas
revela-se como tal , qual i f ica-se como tal no termo de uma
srie de discursos e no contexto de uma certa s ituao de enun-
c ia o . O
hstor
s e r aq u e le q u e , f o r mu lando o j u lg ame nto
"mais reto", por fim querela som ente por sua palavra sem
q u e s e in te r p o nha o u s e s o b r e p o nha a in te r ve n o de u m
"mestre de verdade" , atravs da f igura de um re i ou , mesmo,
atravs da prevalncia do ponto de vista da maioria.
Ass im, entre o ver e o saber do
hstor,
a dis tnc ia apro-
funda-se ou a re lao mais complexa. Bas tar um lt imo
e xe mp lo , to mado de s ta ve z do p r p r io H e r do to p ar a o
qual Sauge chamou igualmente a ateno. Periandro, o tirano
de Co r into , u m dia c o nf r o ntado c o m u m "ac o nte c ime nto
extraordinr io" ( thma tngistor) .
23
Arion, um fam oso cantor,
e s c ap o u da mo r te de u m mo do b e m e s t r anho a c r e r - s e
ne le . H ave ndo e mb ar c ado nu m navio c o r n t io p ar a f aze r a
travess ia de Tarento a Cor into , teve , sob ameaa, de sal tar
no mar . Os marinheiros quer iam l ivrar -se dele para tomar
posse de suas r iquezas . Ele executou a s i mesmo, mas no
sem antes cantar , ves t ido com sua mais bela indumentr ia .
Ento , u m g o l f inho o to mo u s o b r e o do r s o e o de s e mb ar c o u
so e salvo no cabo Tnaro, de onde voltou e le a Cor into .
Periandro, a quem ele foi contar tudo, mostrou-se "incrdulo".
H e r do to , p o r s e u lado , s e m p r o nu nc iar - s e ab e r tame nte ,
prec isa que essa narrat iva c ircula no somente em Corinto ,
mas tambm em Lesbo (ptr ia de Arion) e que se pode
ver em Tnaro um ex-voto de Arion, representando um homem
e mp o le i r ado s o b r e o do r s o de u m g o l f inho . S e m c o ns t i tu i r
uma prova, esse acordo de verses e esse trao vis vel valem
c o mo ind c io s de c r e d ib i l idade .
Co nf r o ntando - s e c o m e s s e thma que , de inc io , susc ita
incredul idade, como agir Per iandro? Ele assume o papel
d e
hstor
, inves t igador . Mas e le no viu nada nem cr em
nada disso. Mantendo ento Arion sob cus tdia , vig ia os
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mar inhe i r o s . To lo g o de s e mb ar c am, manda c ham- lo s e
" informa-se sobre se ter iam notc ias de Arion" (
h i s t o r e s t h a i
ei ti lgoien peri Aronos). Historesthai
g e r a lme nte t r adu -
zido como se se tratasse de um s imples subst i tuto de inter -
rogar . Per iandro, de fato , cr ia uma s i tuao de inter locuo
em que so os mar inheiros (por def inio as nicas tes te-
munhas) que iro dec larar -se , e les prpr ios , culpados : "Eles
responderam que Arion es tava muito bem na I tl ia e que o
haviam deixado em Tarento em boa.s i tuao. " Ar ion faz ento
uma entrada teatral que, acabando de fechar a armadilha
aberta por Periandro, da em diante torna impossvel qualquer
escapatria para os marinheiros. Assumindo o papel de
hstor,
Periandro no nem testemunha, nem investigador no sentido
mo de r no ( p o i s o p r o c e dime nto mais b vio s e r ia r e v i s tar o
barco) , mas es te mestre do discurso que, contra a vontade
dos marinheiros , faz deles as tes temunhas do que realmente
aconteceu, pelo menos enquanto Arion era seu passageiro .
2 4
E a
historie
no , de in c io o u s o m e nte , u ma o p e r a o q u e ,
do
ver,
e x t r a i o s ab e r , mas p r inc ip a lme nte u m p r o c e dime nto
l ings t ico que, em cer tos casos , consegue fazer ver .O
hstor
no , em princpio ou exclusivamente, um
voyeur
o b s e d a d o
pelos campos de batalha, pelas praas pbl icas e sobretudo
pelos palc ios . De Homero a Herdoto, o
hstor
, antes de
tudo, um mestre da palavra, com es ta pequena diferena que
mudar tudo: enquanto Agammnon
hstor
porque rei ,
Per iandro pode s- lo enquanto t i rano de Cor into , e os mais
velhos podem revelar-se como tais porque so os mais velhos,
Her doto no po de fazer -se crer . seno po r s i me smo . Do
mesmo modo, re tomando a al t iva ass inatura inaugural que
Hecateu havia inscr i to , havia pouco, na aber tura de suas
Genealogias
("Hecateu de Mileto conta que. . . ") ,
2 5
abre seu livro
com o famosss imo "Herdoto de Hal icarnasso" , Herdoto
c idado da c idade de Hal icarnasso. Com esse nome, o seu ,
que e le deve "habitar" .
A no me a o de s te lu g ar no vo c o me a p e la p r o f e r i o de
u m no me p r p r io ,
2 6
o qual ocasiona o uso da terceira pessoa:
a distncia de um
ele,
ou mais a inda, segundo a c lass i f icao
de Benvenis te , o regis tro da no-pessoa.
2 7
N o me ando - s e , o
his tor iador inscreve-se , a par t ir desse mesmo movimento,
como o "ausente" da histria. Mas logo em seguida, como que
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se recobrando, o narrador apela para o pronome demonstrativo
de primeira pessoa (
h d e
) : "Esta a apresentao da
historie.
Marcas de um
eu
que vem fazer, aqui e agora, no presente da
enunciao, sua narrativa: sob a forma de uma conferncia em
Atenas , por exemplo.
2 8
O
ele
no explicitamente substitudo
pelo
eu ,
mas acompanha-o ou reveza com ele. Sob o efe avana
o
eu ,
ins taurando um vaivm entre ausncia e presena.
No prlogo pico, se retornarmos a e le , o regime das
pessoas verbais dis tr ibui-se sobretudo entre a pr imeira e a
segunda: "Dize-me, Musa, o homem de muitos ardis . . . "
2 9
As
Musas falam como aquelas que sabem o que , ser e foi .
Nesse dilogo des igual , o
eu
aparece no dativo: es t l para
recolher e transmit ir o canto divino. Toda sua autor idade
r e s ide no c o nta to p r iv i l e g iado c o m o mu ndo do s de u s e s ,
atravs da intermediao das Musas, apresentadas como "mora-
doras do Olimpo", " f i lhas de Zeus" , " f i lhas da Memria" .
3 0
S imp le s m diu m, e s te
eu
vazio , pois cada aedo, durante o
te mp o e m q u e c anta , o c u p a- o s u c e s s ivame nte . u m e u s e m
nome prpr io e sem autor idade prpr ia . Para o poeta pico,
a ins p i r a o f u nc io na c o mo r e me mo r a o . Tr ans p o r tado a
um tempo que no conheceu e a lugares que ignora, e le
v,
muitas vezes ao preo de sua prpr ia vis ta , o que no viu
nem viveu. Ass im, Demdoco, o aedo cego dos fec ios , canta ,
por solicitao e em presena de Ulisses , o episdio do cavalo
de Tria :
D e m d o c o , e n t r e t o d o s o s m o r t a i s e u t e s a d o
A Mus a , f i lha de Zeus , ins t ru iu- t e , ou Ap olo :
t u c a nt a s c om mui t a a r t e a s or t e dos gregos ,
t u d o q u e f o i f e i t o , s u p o r t a d o o u s o f r i d o p e l o s a r g i v o s ,
c o m o a l g u m q u e t i v e s s e e s t a d o p r e s e n t e ( p a r e n ) ou , p elo
m e n o s , t i v e s s e o u v i d o ( a k o s a s ) de a lgum out ro
M a s , m u d a n d o d e a s s u n t o , c a n t a a h i s t r i a d o c a v a l o . . .
3 1
Hesodo retoma, mas modif ica essa es trutura de inaugu-
rao do discurso. As Musas es to bem presentes , sempre
como detentoras do saber e da inspirao, mas sua invocao
ou evo ca o di ferentemen te m ais com plexa. A es trutura dual
pr imeira/segunda pessoa (Musa/aedo) es t i lhaa-se para
dar lugar terceira pessoa. "Cantemos as Musas" assim se
abre o prlogo da
Teogonia
: "Elas . . . " (segu e uma ev oca o de
seus coros e de seus cantos sobre a montanha do Hl icon) ,
2 5
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foram elas que a Hesodo, um dia, ensinaram um belo canto [. . . ] .
E is as pr imeiras palavras que me enderearam as deusas ,
Musas do Ol impo, f i lhas de Zeus que detm a gide .
5 2
A primeira pessoa inicial ("Cantemos") faz surgir as Musas na
distncia de uma encenao na terceira pessoa. De imediato,
parecendo instalar-se este regime da terceira pessoa, o prprio
p o e ta no p o de ap ar e c e r o u r e ap ar e c e r s e no na te r c e i r a
pessoa ( fato cons idervel) , sob a forma de um nome prpr io
("Elas ensinaram a Hesodo. . . ") . Em seguida, sem interrupo,
volta s marcas da primeira pessoa ("Eis [ . . . ] as primeiras
palavras que me enderearam.. . ") as Musas vindo a ocupar,
no discurso direto , o lugar da pr imeira pessoa ( "Ns sabe-
mos . . . " ) . Desse prlogo (de interpretao dif c i l ) , re teremos
o apelo terceira pessoa, que pe tanto as Musas a distncia
(elas
e no mais
v s
) quanto igualmente o poeta (
e l e
e
no mais
e),
levando a que es te se ja chamado por seu nome
prprio o que o coloca, portanto, nesse lugar ainda no
claramente del ineado ou ocupado: o lugar do autor . Mais
exatamente , entre as Musas e Hes odo parece ins taurar-se
uma re lao de mestre e disc pulo
(edidaxatt):
e las no so
apenas aquelas que dizem, mas as que ensinam, transmitindo
algo como um saber (admirvel e re i tervel? ) . I s so embora
H e s o do , ve r dade , r e to r ne q u as e q u e ime dia tame nte
f igura habitual das Musas inspiradoras : e las me inspiraram
(enpneusan
) es te canto divino.
3 3
Da poes ia pica ao prlogo das
Histrias,
a ruptura mais
visvel o total desaparecimento das Musas (tanto na primeira,
quanto na terce ira pessoa) . Es tabelece-se ento uma nova
economia do discurso e um novo regime de autor idade: quem
fala, respaldado por quem? No mais as Musas, mas o
hstor
ou melhor , a
historie,
que passa a ocu par o lugar que a
es trutura pica reservava quelas . "A tudo presentes , vs
s ab e i s (
i s t e
) tudo, ns no ouvimos seno um rudo e nada
s ab e mo s " p r o c lamava a
Ilada.
iA
Sen do deusa s, as Musas
vem ou sabem tudo; os mortais ouvem um rumor , mas no
vem. O historiador, pelo contrrio, deve construir seu lugar
de saber graas
historie,
que talvez, de incio, um substi-
tuto da viso divina, ausente por def inio. Como ver o que
no se viu? Como fazer
como se
se houvesse visto? Como fazer
ver o que no se viu?
26
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Ao renunciar-se antiga diviso que regulava a atribuio
da palavra aos interlocutores, no resta seno a terceira pessoa:
el e
e no mais
eu ,
mas sob a forma de um nome prpr io .
Herdoto: pr imeira palavra da pr imeira f rase , lanada no
g e ni t ivo ( d i f e r e nte me nte do
eu
p ico, disposto no dativo) ,
como maneira de se lar o que lhe cabe de dire i to , de ass inar ,
como o ar t is ta , sua obra, seno de demarcar seu terr i tr io .
Em r e s u mo : de p r o du zi r - s e ( ap r e s e ntar - s e ) c o mo au to r .
Entretanto, como se o registro (ou a voz) da terceira pessoa
fosse muito difcil de manter-se, quase imediatamente ressurgem
traos da pr imeira pessoa, os quais tendem a reconst i tu ir as
balizas familiares do
hic et nunc
da enunciao.
3 5
Isso antes
que, um pouco adiante , no mesmo prlogo, o narrador inter -
ve nha f o r te me nte na p r ime i r a p e s s o a (
eg d) ,
para retomar
a palavra por um tempo delegada aos "doutos" persas e estabe-
lecer as novas regras de formulao de enunciados aceitveis .
a pr imeira de uma sr ie de tomadas de pos io que, na
s e q nc ia do s l ivr o s , e s c ande m as
Histrias,
no me io das
quais o
eu
do narrador-autor pe em perspect iva, d a
ver,
avalia e julga as narrativas que decidiu fazer.
3 6
No lugar das Musas, a
historie
de Herd oto, com es ta hes i -
tao ou es te equi l br io inic ial entre a pr imeira e a terce ira
pessoa. Mas no tudo. Em lugar e em subst i tu io do saber
das Musas , profer ido na segunda pessoa, rumore jam todas
as opinies sus tentadas por uns e por outros , desde os
lgioi
p e r s as ao an nimo
lgetai
(diz-s e) , em que a terceira pesso a
reina absoluta : eles, e les dizem que. Porventura, no nessa
passagem do v s das Musas ao eles (discurso assumido, seno
au te nt i c ado p o r u m s u j e i to c o le t ivo ) q u e s e de ixa p e r c e b e r
um trao significativo da constituio da histria? Com justia,
Claude Calame chamou a ateno para essa subst i tu io^
7
Tamb m p e la p o l i s s e mia q u e lhe c o nf e r e o p e r te nc ime nto
ao c amp o s e mnt i c o de
oda,
a
historie
pod e def inir -se com o
p r o c e dime nto de c o ns t i tu i o , b e m c o mo de ava l ia o o u
de au te nt i f i c a o do
eles,
i s to , c o mo p r o c e s s o de c o nf r o n-
ta o e ntr e o
eles
(e les dizem que) e o
ele/eu
do narrad or,
q u e r e ne o u s u b s u me a au to r idade ( q u e nada e s tab e le c e ,
seno a obra por vir ) de um nome prpr io : por exemplo,
H e r do to de H al i c ar nas s o .
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Tucdides apagar mais ainda, na seqncia de sua narrativa,
as marcas da primeira pessoa, na medida em que far da vista
(psis
) o cr i tr io essenc ial capaz de torna r poss vel uma
histria verdadeira.
3 8
Da autpsia tucidideana ao ideal de uma
histria positivista, em que o historiador no seria mais que
um olho ( le i tor , verdade, mais que espectador) , no l imite , o
olho de ningum, indica-se uma via (aport ica) pela qual a
his tor iograf ia no cessou de caminhar : o his tor iador como
voyeur
39
Or a , no mo m e nto e m q u e , e p i s te mo lo g ic am e nte ,
com Tucdides, a vista passa para o primeiro lugar, que o
historiador, para nomear sua atividade, recusa a
historie
de
seu predecessor Herdoto (em que, todavia , a e t imologia
me s c lava ve r e s ab e r ) , e m b e ne f c io do ve r b o
syngrphein.
A
historie
, termo muito marcado , muito usado, d lugar (mo me n-
taneamente) a um termo m ais diretamente pol t ico . A obra no
mais manifes tao de uma
historie;
mas uma " inscr io" ,
u ma r e da o , u ma c o mp o s i o .
4 0
O aedo de outrora, por
seu canto retomado sem cessar , oferec ia aos heris mortos
um
klos
imortal . Herdoto ps mos obra para impedir
que todas as marcas da at ividade dos homens se apagassem
( to r nando - s e
akl),
deixa ndo muito rapidam ente de serem
contadas . Tucdides , por seu lado, escolhendo "escrever" uma
guerra que ele sabia dever ser "a maior" de todas, apresenta
sua narrat iva como
ktma
para semp re" , i sto , patr imnio
para sempre . Do
klos ao ktma, o
des locamento sens vel .
O tempo da epopia es t decer to terminado (provavelmente ,
ser preciso aguardar Michelet para reencontrar uma concepo
pica da histria, mas com um historiador que pretende ser,
ao me s mo te mp o , "v ide nte " e
voyeur
) . Da em diante, no se
trata mais de preservar do esquecimento as aes valorosas ,
mas de transmitir s geraes futuras um instrumento de inteli-
gibilidade de seu prprio presente.
A Guerra do Peloponeso
portadora de imortalidade em si mesma, por s i mesma, para
si mesma. E, j que se abre com estas palavras:
Thoukydides
Athenaos xyngrapse
(Tucdides ateniense escreveu) oferece-se
tambm para a leitura, como inscrio funerria e memorial de
um ausente inaugural : Tucdides de Atenas .
Recorrendo a uma terceira pessoa desdobrada (sem primeiro
lo c u to r e s e m me s t r e de e nu nc ia o ) , as
Histrias
ins tauram
a estrutura profunda da narrativa histrica, uma das "formas"
2 8
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tambm, se no principalmente, um pretexto para polemizar
com os
filomissas (os
papistas) . Permanece, do mesmo modo, a
questo de saber-se como e por que Herdoto foi, durante to
longo tempo, considerado mentiroso, ainda que sendo reconhe-
cido como pai da histria.
Outras obras :
LACHENAUD, G.
Mythologies, religion et philosophie de l'histoire
dans Hrodote.
Lille, 1978. (Tese)
HUNTER, V. Past and Process in Herodotus and Thucydides.
Princeton, 1982.
CORCELLA, A.
Erodoto e l'analogia.
Palermo, 1984.
BELTRAMETTI, A.
Erodoto: una storia governata dal discorso. Il
l'acconto morale come forma delia memoria.
Firenze: La Nuova
Italia, 1986.
DARBO-PESCHANSKI, C.
Le discours du particulier.
Essai sur
l'enqute hrodotenne. Paris, 1987.
Atualizar as referncias bibliogrficas em seu conjunto seria
impossvel. Em alguns casos, isso foi feito. Muitos dos artigos
citados na primeira edio tornaram-se livros (o que confirma,
p e lo me no s , o mo vime nto da c i nc ia ) .
N O T A D O E D I T O R :
Na edio bras i le ira , a atual izao b ib l io-
grf ica foi inc luda nas respect ivas notas .
30
-
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as
Histrias de
Herdoto desconsiderando-se a histria de suas
interpretaes . Entretanto, essa his tr ia conduz na direo
de uma histria da histria antiga, seno simplesmente da
his tr ia se verdade que o nome de Herdoto lhe des igna
o pai.
3
O que se sabe dele? Muito pouca coisa , no diretamente
transmit ida pelo mesmo, mas atravs de algumas informaes
tardias e , des te pouco, a lguns se es foraram ainda em
demonstrar o carter fictcio.
4
"Herdoto de Halicarnasso. . . " , do
os manuscr i tos ; "Herdoto de Tr ios" , responde a tradio
indireta . De inc io de Hal icarnasso, onde nasceu por volta
de 480 a .C. , e le pode dizer -se em seguida de Tr ios , no sul
da I tl ia , desde quando se tornou c idado daquela c idade.
5
Conheceu ele o exlio em Samos, durante algum tempo; viajou
atravs do Oriente Mdio e pr inc ipalmente pelo Egito ; em
torno do Mar Negro, em direo ao norte; na Itlia do Sul, na
di r e o do o e s te ; na G r c ia c o nt ine nta l tamb m.
6
E s t a b e -
leceu-se algum tempo em Atenas, partiu para Trios. Morreu
na dcada de 420 a .C. , em Trios , onde uma tradio lhe
atr ibui um tmulo na gora ou em Atenas , segundo uma
outra tradio, ou ainda em Pla , na Macednia.
7
Sua vida
inscreve-se entre dois grandes conf l i tos : as Guerras Mdicas ,
que ele no viveu, por assim dizer; e a Guerra do Peloponeso,
de q u e c o nhe c e u p e lo me no s o s p r inc p io s .
H e r d o t o . . . e x p e a q u i s u a s p e s q u i s a s (historie), p a r a i m p e d i r
q u e o q u e f i z e r a m o s h o m e n s , c o m o t e m p o , s e a p a g u e d a
m e m r i a e q u e g r a n d e s e m a r a v i l h o s a s f a a n h a s ( r g a ) rea l i -
z a d a s t a n t o p e l o s b r b a r o s , q u a n t o p e l o s g r e g o s n o c e s s e m
d e s e r c o n t a d a s ; e m p a r t i c u l a r , o q u e f o i c a u s a d e q u e g r e g o s
e b r b a r o s e n t r a s s e m e m g u e r r a u n s c o n t r a o s o u t r o s .
A s s i m c o m e a a o b r a q u e c h a m a m o s
Histrias,
ma s que ,
co nfo rm e o costume do tempo , no tinha um ttulo. Essas poucas
linhas chamaram particularmente a ateno dos comentadores,
p ar a o s q u a i s e s tab e le c e r e xa tame nte o s ig ni f i c ado de c ada
palavra e, antes de tudo, da mais famosa dentre elas ,
historie,
dever ia permit ir que se compreendesse o sentido do empreen-
d ime nto he r o do t iano .
8
As
Histrias
so divididas em nov e livros que trazem o
nome de cada uma das nove Musas . Mas nem a diviso, nem
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o patroc nio se devem ao prpr io Herdoto. Ates tados por
Luciano (sc. II d.C.) , seguramente no so anteriores poca
helens t ica ; const i tuem entretanto indc io tanto de um cer to
es tatuto da obra, quanto da forma como, nes te momento, a
mesma era recebida pelo pblico: ela est do lado das Musas,
da poesia, do prazer, da f ico. O autor Herdoto no fala
seno de seu
lgos,
ou de seus
lgoi,
suas narrativas. Nos
nove livros sucedem-se, encaixam-se, algumas vezes cruzam-se
diferentes
lgoie
m torno de um projeto central evitar que
o que f izeram os homens se apague e cesse de ser contado.
Os quatro pr imeiros l ivros so extensamente ocupados pelas
narrat ivas consagradas aos outros , aos no-gregos ( l dios ,
p e r s as , b ab i l nio s , mas s ag e tas , e g p c io s , c i tas , l b io s . . . ) ,
enquanto os c inco l t imos so, em grande parte , reservados
narrativa das prprias Guerras Mdicas.
Qual foi o efeito das
Histrias?
Com o foram recebidas? So
p e r g u ntas p ar a as q u a i s no p o de mo s dar u ma r e s p o s ta
precisa, j que no temos meios para reconstituir o "horizyite.
_de expectat iva" do qual par t ic ipavam,
9
ne m te mo s ve r dade i -
r ame nte o s me io s p ar a t r a ar , ao lo ng o do te mp o , u ma
histria de seus efeitos . Parece, entretanto, que as Histrias
se tornaram conhecidas muito rapidamente , pelo menos em
Atenas , bem como se f izeram reconhecidas e afamadas de
mo do du r ado u r o p o r to da a A nt ig idade .
1 0
Todavia , foram
tamb m, no me no s r p ida e du r ado u r ame nte , c r i t i c adas e
atacadas: Herdoto um ladro e, mais ainda, um mentiroso.
A Antig idade fabr ica ass im um Her doto
bifrons
e faz de
s e u no me , q u e to do mu ndo c o nhe c e , u m no me du p lo , de s ig -
nando, a um s tempo, o pai da his tr ia e um mentiroso,
s e no p r o p r iame nte o p a i da me nt i r a .
11
Em 1768, Voltaire apresentava ainda nes tes termos as
Histrias
: "Rec i ta ndo para os grego s os nov e l ivros de sua
his t r ia , e l e o s e nc antava p e la no vidade de s e u e mp r e e n-
dimento, pelo encanto de sua dico e sobretudo pelas fbulas."
12
A novidade do empreendimento: is so que expl ica Eucl ides
ao jovem Ancars is , mostrando- lhe a prate le ira his tr ica de
sua b ib l ioteca: "Ele abr iu aos olhos dos gregos os anais do
u nive r s o c o nhe c ido e lhe s o f e r e c e u , s o b u m me s mo p o nto de
vis ta , tudo o que se havia passado de memorvel no espao
de cerca de duzentos e quarenta anos . "
1 3
O e nc anto de s u a
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dico tudo o que se escreveu, do sculo IV poca imperial,
s o b r e H e r do to , o me s t r e do j n ic o . A s f b u las , e nf im,
e s tas r e me te m a H e r do to c o ntado r de
mythoi,
mi t lo g o e
encantador , o qual Tucdides foi o pr imeiro a denunciar ,
mas q u e p r e c i s o a inda de nu nc iar o u , s o b r e tu do , s ab e r
r e c o nhe c e r , p o i s u m au to r to "e s t imve l " q u anto R o l l in
de ixa - s e c o nq u is tar e "no s ac a le nta c o m to do s o s c o nto s
de H e r do to " .
1 4
Essa f rase no faz mais que resumir , jus tapondo-os , os
pontos de vis ta tradic ionais sobre o autor das
Histrias
: ele
o primeiro historiador; ele um grande artista; ele um
mentiroso. Mas como introduzir um pouco de ordem nessas
declaraes e, antes de tudo e sobretudo, como distinguir o que
verdade, portanto histria, do que mentira, portanto fbula?
Voltaire , no cap tulo int i tu lado "Da His tr ia de Herdoto" ,
p r o p e u ma s o lu o : "Qu as e tu do q u e e le c o nto u dando f
aos es trangeiros fabuloso; mas tudo que e le viu verda-
deiro." Escolhe ele assim o olho contra a orelha, a autpsia em
de tr ime nto da au di o (
a k o
) , i s to , tambm os
genmena,
os fatos , contra os
legmena, os
d i s c u r s o s . B a s e a n d o - s e
ne s s e m to do de r e c o nhe c ime nto da ve r dade , Vo l ta i r e , na
real idade, no faz mais que retomar o programa tuc idideano:
a autpsia antes de todas as coisas e fora da autpsia no h
definitivamente histria. Mas Tucdides tirava as conseqncias
de s s a p o s i o me to do l g ic a : c o nde nava s e u s ante c e s s o r e s ,
que acreditaram poder fazer his tr ia do passado, mesmo
prximo, que acreditaram (ou f izeram acreditar) que escreviam
uma his tr ia verdadeira , por exemplo, das Guerras Mdicas :
ante s de to do s o s o u tr o s , e l e c o nde nava H e r do to .
Entretanto, Voltaire, se retomava bem o critrio de verdade
tu c id ide ano , p ar e c ia "e s q u e c e r - s e " de t i r ar as imp l i c a e s
disso: Herdoto no viu diretamente as Guerras Mdicas ,
sua narrat iva repousa sobre os
legmena
13
logo , ele
indigno de conf iana. Muito pelo contrr io , depois de ter
e l iminado o H e r do to do s c o nto s , e l e r e t m o H e r do to da
autpsia que, num passe de mgica, se acredita ser o Herdoto
historiador das Guerras Mdicas, is to : o "modelo dos histo-
r iadores" . Mais a inda, no somente uma his tr ia das Guerras
Mdicas poss vel , mas mesmo com a his tr ia das Guerras
M dic as q u e c o me a ve r dade i r ame nte a h i s t r ia :
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est o Egito, f igurado pelo prprio Nilo e pelas pirmide
c o mo tamb m p o r to do u m c o n j u nto de o b j e to s " t p i c o
alm do escr iba ag ach ad o e de hierogl i fos . A se l e o dess
dois motivos pelo gravador no evidentemente fe i ta p
acaso. O interessante , contudo, que o Herdoto via jar
aparece como um cenr io e somente como um cenr io , con
cujo fundo se pode desenrolar o grande memorial devi
ao historiador. Essa gravura, em suma, banal, , pois , cor
truda em funo da part i lha, que e la se contenta em tom
visvel: h bem dois Herdotos o historiador das Guerr
M dic as
2 0
e um outro Herdoto, antes de tudo aquele d
o u tr o s , do s no - g r e g o s .
A part i lha revigorada, de modo magis tral , no prpi
domnio dos es tudos c lss icos . O longo ar t igo, redigido t
1913 pelo maior conhecedor dos his tor iadores gregos , apai
e ido nes te aus tero ins trumento de referncia que a Rt
Encyclopadie der classischen Altertumswissenschaft,
te
du r ante mu i to te mp o e te m a inda ho j e au to r idade .
2 1
Ani
de ser his tor iador , Herdoto foi gegrafo e e tngrafo. I -
pois , o v ia jante e o h is tor iador das Gu erras M dicas . 1
via jante , e le tornou-se his tor iador , e sua obra tes temun
essas duas e tapas , como tambm a passagem de uma out
Combina-se , ass im, par t i lha e evoluo.
Desde ento sem pr em questo esse esquema n
restou aos intrpretes outra escolha seno variar a l inha
demarcao entre o his tor iador e o outro, se ja avanando
se ja recuando-a, de acordo com a extenso que se atr ibu
prpria palavra
historie.
Com e xc e o de um l ivro muito isolado, pu bl icad o e
1937 ,
2 2
ser prec iso esperar os anos c inqenta
2 3
e , sobretuc
o f im dos anos sessenta , em que aparece um conjunto
trabalhos, para que essa abordagem se modifique. Com efei
vrios especialistas se esforaro em apagar a linha de partill
mo s t r ando q u e e la no s e e nc o ntr a e f e t ivame nte ins c r i ta
prprio texto: tentaro provar que os dois nomes de Herdc
no formam, na real idade, seno um. Esses es tudos , p
mais di ferentes que possam ser , tm um ponto em comum
de s c o nf ian a d iante do s p r e s s u p o s to s ( u ma de f in i o m;
ou menos expl c i ta do que a his tr ia , por exemplo) e ,
contrrio, a vontade de interrogar o prprio texto, tratande
3 6
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c o mo u m to do . o q u e p r o p e My r e s , q u ando e mp r e e nde
e s c l a r e c e r a c o m p o s i o d o s
lgoi
atravs de uma aproxi-
ma o c o m a e s c u l tu r a : p ar a de s c r e ve r u ma c e na , H e r do to
procede como o ar t is ta que, esculpindo o f ronto de um
te mp lo , t e m g r ande p r e o c u p a o c o m a s ime tr ia , o u q u e ,
para desenvolver um fr iso , obedece a um cer to r i tmo. Mais
de l ib e r adame nte a inda , I mme r wahr , p o r e xe mp lo , p r e te nde
tratar a obra como "uma unidade orgnica que tem sua prpria
in te l ig ib i l idade " .
2 4
A part i lha da qual do tes temunho, a seu modo, o
frontispcio, o texto de Voltaire e o artigo de Jacoby permitia
que se contivesse a lancinante questo da verdade e da mentira,
b e m c o mo q u e s e imp u s e s s e a lg u ma o r de m na q u e s to da
p ate r n idade . Mas de s de o mo me nto e m q u e a an l i s e do
texto concluiu em favor da unidade da obra, desde quando
deixou de haver dois nomes , res tando um s, desde ento a
q u e s to da h i s t r ia , de s c ar tada mo me ntane ame nte , r e ap a-
rece , agora no inter ior do prpr io texto , onde ec lode no
prpr io inter ior do nome de Herdoto: o que so enf im as
Histrias
? O qu e a
historiei
O que um
histor
? Ou ainda: o
pai da histria um historiador?
2 5
Qu e s t e s ine v i tve i s no
c aminho do in t r p r e te .
O E S P E L H O D E H E R D O T OSplk-
i
^
O ponto de part ida des te l ivro indicado no subt tu lo :
"Ensaio sobre a Representao do Outro". Trata-se, com efeito,
de ver como os gregos~da poca c lss ica representaram para
si os outros, os no-gregos, de fazer aparecer a maneira ou as
maneiras pelas quais eles praticavam a etnologia, em resumo,
de esboar uma his tr ia da al ter idade, com seu r i tmo, seus
tempos for tes e suas rupturas , se for poss vel cerc- los de
algum modo. Para uma pesquisa como es ta , Herdoto ser ia
e v ide nte me nte inc o nto r nve l , p ar e c e ndo - me mu i to c e do q u e
era inextrincvel; entretanto, pareceu-me sobretudo que valia a
pena permanecer nele, pois seu texto era o lugar privilegiado
em que se amarrava e se jogava todo um conjunto de ques-
tes , e las prpr ias re i teradas , denegadas , transformadas ou
susc i tadas pela interpretao, as quais conduzem, no f inal
das contas , s ques tes da prt ica da his tr ia . Eis porque o
l ivro, f inalmente , fo i chamado de
O Espelho de Herdoto.
37
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As
Histrias so
decerto este espelho no qual o historiador
no cessou jamais de olhar, de interrogar-se sobre sua prpria
identidade: e le esse que olha e olhado, ques t ionador-
q u e s t io nado e nf im, s e mp r e c o ndu zido a de c l inar s e u s
ttulos e suas qualidades. O que ele: historiador ou menti-
roso? Donde a importncia , na his tr ia das interpretaes
de Herdoto, de marcar bem a cesura entre o his tor iador
das Guerras Mdicas e o Herdoto dos outros , geralmente
tratado como um outro Herdoto. Onde es t e le : a servio
de um pr nc ipe ou de uma c idade,
exercendo o papel
de olho
e de memria escrita? Donde a importncia dos debates sobre
as relaes entre Herdoto, Pricles e Atenas. Para quem fala
ele e por qu? Donde as questes sobre o pblico de Herdoto,
s o b r e H e r do to c o nf e r e nc i s ta , r e mu ne r ado o u no .
Mas o espelho entende-se tambm em dois outros sentidos.
Se , em alguma p arte , um espelho" em neg ativo, o espe lho
de H e r do to o no s
lgoi
c o ns ag r ado s ao s no - g r e g o s o
e s p e lho q u e e le l e vanta p ar a o s g r e g o s . Entr e s u as nar r a -
t ivas , escolhi o
lgos
c i ta , pois o c i ta no deixa de espantar
os gregos : e le que pe em fuga o exrc i to de Dar io , o re i
dos persas , e , sobretudo, e le es te nmade que no tem
ne m c as a , ne m c idade , ne m c amp o lavr ado .
O e s p e lho de H e r do to a inda o o lho do
hstor
que ,
p e r c o r r e ndo e c o ntando o mu ndo , o p e e m o r de m nu m
e s p a o g r e g o do s ab e r e , e m id nt i c o mo vime nto , c o ns t r i
para os gregos uma representao de seu passado prximo, ou
seja: o
hstor
faz-se rapsodo e agr imensor . Contudo, u l trapas-
sando a s i mesmo, e le tambm es te espelho atravs do qual
outros , na seqncia , tenderam a ver o mundo. Levanta-se
assim a questo do efeito ou dos efeitos do texto e, portanto,
a ques to do efe i to do texto de his tr ia .
Os diferentes sentidos assumidos pela metfora do espelho
indicam, de fato , um encadeamento de ques tes que conduz
c o nt inu ame nte do s c i tas de H e r do to ao c as o de H e r do to ,
da leitura de um
lgos
^a uma interrogao sobre a maneira
de escrever a histria. No percurso de alguns dos
lgoi
c o ns a-
grados aos outros , o texto de Herdoto tratado como uma
narrat iva de viagem, is to , como uma narrat iva que tem a
preocupao de traduzir o outro em termos do saber compar-
t i lhado pelos gregos e que, para fazer crer no outro que
3 8
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constri, elabora toda uma retrica da alteridade. Este estudo
, pois , a escolha de um nvel de anl ise que no se pretende
e xc lu s ivo e m r e la o a o u tr as ab o r dag e ns , ne m mais imp o r -
tante q u e o u tr o s n ve i s : p r e nde ndo - s e ao
contrato
que liga
o narrador ao des t inatr io , entende t i rar mais do texto , no
e m c o ns e q nc ia de a lg u ma e s p c ie de c u l to do me s mo , mas
s implesmente visando a esboar algumas propostas para uma
semntica his tr ica .
Es ta viagem em Herdoto, semelhana de seu ob jeto
pr imeiro, o nmade, no nem fechada sobre s i mesma, nem
acabada. Ao contrr io , trata-se de um convite a levar-se mais
longe a inves t igao, recolocando-se a ques to do efe i to do
texto de his tr ia , o que s ignif ica recolocar tambm a ques to
do-gnero his tr ico e retomar a pergunta sobre o lugar e a
funo do his tor iador na soc iedade. Um es tudo sobre o olhar
do historiador e o olho da histria ofereceria talvez uma via
"d abordagem? Tenta-se pois fazer uma arqueologia do olhar
do his tor iador ou, pelo menos , tenta-se escrever sobre isso
alguns f ragmentos .
To davia , no c as o de H e r do to , a q u e s to da f u n o do
hstor
no pode ser separada de uma histria de suas interpre-
taes . Por sua vez, essa his tr ia , se no pretende perma-
necer apenas no nvel da histria das idias , deve incluir uma
ref lexo sobre a ins t i tu io da his tr ia e sobre a prof isso
do his tor iador . Em resumo: das le i turas de Herdoto a uma
his tr ia geral da his tr ia , enfocada, segundo a frmula de
M. I . F inley , como um "pract ical sub jec t" .
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O S C I A S I M A G I N R I O S : E S P A O
P O D E R E N O M A D I S M O
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. . . s tu , Nmade, que nos conduzirs esta noi te s
margens do Real?
Saint-John Perse
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U
o
D E H E R O D O T O : O
E S P E L H O C I A
N as
Histrias,
os citas so um outro privilegiado: eles so,
depois dos egpc ios , o povo ao qual Herdoto consagra a
expos io mais longa de seu l ivro
1
e , entretanto, contra-
r iame nte ao Eg i to , s e u p a s no ap r e s e nta ab s o lu tame nte
maravi lhas ou cur ios idades que meream ser contadas .
2
Em
vista disso, por que os citas fizeram Herdoto falar ou escrever?
Ser em conseqncia das viagens do segundo pelo Ponto
ou porque Dario fez guerra contra os primeiros?
Assim, o
lgos
cita: como l-lo ou quais perguntas fazer-lhe?
Antes de tudo, quem so os citas de Herdoto? Para responder
a essa ques to, pode-se tentar uma confrontao entre
o que
diz
o texto e
o que descobre
a arqu eolo gia, entre os citas de
Herdoto e os c i tas da arqueologia , entre o lgos cita e os
citas "reais". Com efeito, teremos, de um lado, um discurso e
uma representao dos citas ; de outro, o que eles efetivamente
so. A partir disso, indo do texto aos restos e dos restos ao
texto , ser ia poss vel levantar as convergncias e , sobretudo,
questionar as divergncias para, em seguida, concluir , avaliar
a e xa t ido do te s te mu nho de H e r do to : e l e de s c r e ve u - o s
bem ou mal . Os erros sero provavelmente debitados m
informao, espr i to cr t ico insuf ic iente ou ingenuidade. Os
"encontros" sero, ao contrrio, creditados a suas qualidades
de observador , a sua ausncia de preconcei tos . . . Se o dbito
ultrapassar o crdito , diremos que e le descreveu mal ; se ,
inversamente , e le for credor , es t imaremos que uma tes te-
munha ver dica .
Contudo, a troca entre texto e res to no pode ser abor-
dada de uma forma to s implesmente pos i t ivis ta , como se
supusssemos resolvida de antemo a ques to das escavaes
N T R O D
O S C I A S
-
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como referncia. Darei um nico exemplo. Herdoto consagrou
muitos captulos aos estranhos funerais celebrados pelos citas
em honra de seus re is . Ora, admite-se geralmente que e le faz
uma boa descr io dos crgs pr inc ipescos e das terr veis
c e r im nias q u e e nto ac o nte c iam: "N o s s o c o nhe c ime nto "
escrevia Rostovtzef f "das cer imnias funerr ias c i tas no
sexto e no quinto sculo a .C. , der ivado das escavaes no
vale de Kuban, corresponde bem de perto ao relato de Herdoto
sobre as exquias dos re is e pr nc ipes c i tas " .
3
Um encontro,
portanto, entre texto e escavao.
A superpos io dos dois faz , porm, que no se ve ja ou
que se negl igencie um detalhe do texto em nada desprezvel :
para Herdoto, com efe i to , os re is e sempre apenas e les
so enterrados no mesmo lugar, no pas dos gerros, is to ,
no limite norte da Ctia, em terra de
eskhati,
de conf ins .
4
Ora, a arqueologia mostra, ao contrario, que os crgs se
encontram disseminados pelos vales de todo o pas . ' Se , pois ,
se superpe texto e escavao, no se percebe , l i teralmente ,
es te l ige iro descompasso e , se aval iamos o texto a par t ir
d a e s c a v a o , o d e s c o m p a s s o e n t o e l i m i n a d o , s e n d o
a r r o l a d o , p o r e x e m p l o , c o m o r e s u l t a d o d e " i n f o r m a o
i n s u f i c i e n t e " d o v i a j a n t e .
Todavia, antes de etiquetar um dado desta natureza como
resto sem utilidade, por que no considerar que pode ter sentido
no inter ior do prpr io texto , que se trata de um detalhe
narrativo que conta e do qual d conta a lgica da narrativa,
em suma: que ele produzido por uma certa representao
dos citas que o
lgos e
st precisamente construindo^De modo
mais amplo, por es ta confrontao direta entre texto e res to ,
c o r r e - s e o r i s c o de ne g l ig e nc iar o te x to e nq u anto nar r a t iva
com sua prpr ia organizao (o
lgos
c ita no uma ficha
monogrfica sobre os citas mas inscreve-se, num d ado mom ento,
num conjunto mais amplo que se chama
Histrias
etc . ) . No
adotare i , portanto, esse procedimento de mtua val idao
o texto val idando a escavao, da qual ser ia como que um
suplemento anmico; a escavao val idando o texto , ao qual
ajuntaria, seno o real, pelo menos um suplemento de realidade.
Ento, como ler o /gosc i ta? Pode-se pensar num segundo
tipo de confrontao, no mais entre texto e res to , mas entre
os cap tulos de Herdoto e a epopia osseta . Sabe-se , com
4 6
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efeito, aps um sculo e meio, que os ossetas , povo instalado
no corao do Cucaso, so, atravs dos alanos, os ltimos
descendentes dos c i tas uns e outros per tencendo ao vas to
grupo dos "irarianos do norte". Ora, os ossetas realizaram
u m a d u p l a p r o e z a : o c o n t e d o d e s u a c u l t u r a , u m c o n t e d o
que nos conduz aos l t imos estgios da c iv i l izao c i ta , fo i
p r e s e r v a d o , a o m e s m o t e m p o q u e a l i n g u a g e m q u e o c o n t m
e i s s o a t n o s s o s t e m p o s . E , s o b r e t u d o , u m t e s o u r o d e
n a r r a t i v a s p i c a s s u b s i s t e , c h e i o d e a r c a s m o s , e m t o r n o d e
h e r i s c u j a o r i g i n a l i d a d e , a p e s a r d a p e n e t r a o d e t e m a s
fo lc lr icos mais ou menos universais , se mantm cheia de fora
e frescor . Mais : so os povos v iz inhos que, em graus diversos ,
adotaram essa l i teratura , a l terando nela s o que era muito
e s p e c i f i c a m e n t e o s s e t a , c i t a .
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Reconhecida essa continuidade, torna-se legtimo relacionar a
narrat iva de Herdoto e as
Lendas sobre os Nartas
( e p o p ia
osseta) . Para Dumzi l , no h dvida de que "a tradio
f ie lmente guardada pelos ossetas esc larece um grande nmero
de dados c i tas de Herdoto (e de Luciano)" .
7
A partir da, se
n o s c o n c e n t r a r m o s m a i s e m H e r d o t o q u e n a " h e r a n a
indo-europia" dos citas , poderemos desenvolver uma reflexo
s o b r e a mane i r a c o mo e le t r a ta e s te mate r ia l c i ta - o s s e ta :
a s t r a n s f o r m a e s o u a s d e f o r m a e s a q u e o s u b m e t e ,
c o mo e p o r q u ?
Co ntu do , inde p e nde nte me nte de minha inc o mp e t nc ia ,
independentemente mesmo do fato de Dumzi l ter aber to e
percorr ido es te caminho, no seguire i por e le . Por qu?
que essas duas leituras, tanto a que se baseia na confrontao
com os dados arqueolgicos, quanto a que apela para os textos
ossetas , se encontram voltadas, se posso assim dizer, para o
exterior-,
uma e outra procura "sair" do texto das
Histrias,
a
f im de aval i- lo , pendendo "para o lado" dos prpr ios c i tas .
De fato, o
lgos
c ita l ido "do lado" dos citas , no que diz
respei to a um referente c i ta . H o que di to por Herdoto e
o que se sabe por outras formas. O que se sabe serve para
cr i t icar o que se diz , e o que se diz (uma vez cr i t icado)
aumenta o que se sabe . O texto totalmente aval iado do
ponto de vis ta da quantidade e da qual idade de informaes
que contm. Herdoto uma fonte conf ivel e abundante
sobre os citas?
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Entretanto, a pr imeira ques to que levanto no sobre os
citas , mas s implesmente sobre os citas de Herdoto. Objeo:
s e vo c c o me a r e c u s ando to da c o nf r o nta o do te x to c o m o
que no diretamente texto , corre o r isco de fechar-se nele e
de desenvolver , mais ou menos habi lmente , uma mquina de
produo de perfrases e tautologias ; no f im das contas, de
instaurar um culto ao texto, que no ousa sequer confessar-se
como tal . Em resumo: de valor izar o texto pelo texto e os
citas pelos citas ou de fazer, como se dizia antigamente,
arte pela arte.
Os citas de Herdoto? Se no se trata de confront-los com
um
referente
(ou com o que se constitui com o tal : os citas
"reais ") , no se trata tambm de recusar toda confrontao e ,
antes de tudo, no prprio interior das
Histrias,
em que o
lgos
c i ta ocupa, num momento da narrat iva, um dado lugar .
Es tamos , pois , autor izados a re lac ionar um enunciado des te
lgos
com outros enunciados per tencentes ao mesmo contexto .
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Por exemplo: Herdoto narra longamente a guerra que fez
Dario contra os citas.
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Essa expedio atormentou comentadores
e historiadores: ela verdica ou o que h de verdico nela,
admitindo-se que impossvel que seja totamente verdica? Ora,
se no interior das
Histrias
aproximarm os os segme ntos dessa
narrat iva de cer tos e lementos da expedio de Xerxes contra
os gregos, surgiro convergncias e retomadas. Dito de outro
modo, mesmo se a guerra de Dario no se reduz a isso, as
G u e r r as M dic as de H e r do to ( p o s te r io r e s na nar r a t iva )
desempenham, com relao a ela, um papel de matriz narrativa
e de mo de lo de in te l ig ib i l idade p ar a o de s t ina tr io . D e
imediato , a ques to do carter mais ou menos f ic t c io do
empreendimento de Dario na Ctia f ica, pelo menos, deslocada.
O fato de que cer tos enunciados remetem a outros enuncia-
dos do mesmo contexto um indcio do que se poderia chamar
de
injunes narrativas.
Injun es no exteriores e impostas,
mas interiores e produzidas pela prpria narrativa no processo
de sua elaborao. Segue-se que o
lgos
c ita no informao
imediata sobre os citas, a qual se oferece de chofre a qualquer
leitor desse nico
lgos,
nem um documento, se posso assim
dizer , em es tado bruto e imediatamente confrontvel com o
que no e le mesmo. Inevitavelmente , impe-se ento um
problema de recorte .
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Uma segunda confrontao conduz no "para o lado" dos
citas "reais", mas "para o lado" dos gregos. Trata-se de confrontar
os enunciados das
Histrias
com o saber compartilhado pelos
gregos no sculo V. A possibilidade dessa confrontao repousa
sobre a idia de que um texto no uma coisa inerte, mas
inscreve-se entre um narrador e um des t inatr io . Entre o
narrador e o destinatrio existe, como condio para tornar
poss vel a comunicao, um conjunto de saberes semntico,
enc ic lopdico e s imbl ico que lhes comum.
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justamente a
partir desse conjunto que tanto pode desenvolver-se o texto,
quanto o destinatrio pode decodificar os diversos enunciados
que lhe so dirigidos:
A i n t e r p r e t a o d e u n i e n u n c i a d o p e l o d e s t i n a t r i o e x i g e d e s t e
m e n o s u m t r a b a l h o d e d e c o d i f i c a o q u e a c a p a c i d a d e d e
f a z e r u m "c l c u l o " , o q u a l r e c o n s t r i a . r e l a o t e c i d a p e l o
e n u n c i a d o c o m u m c e r t o n m e r o d e m a r c a s s e l e c i o n a d a s n a s
representaes , as quais o in ter locutor div ide ou cr div idir
com o locutor .
1 1
Assim, a descrio da Ctia ocupa uma certa posio na economia
geral das
Histrias,
mas essa prpria posi o define-se tambm
com respeito a um espao grego do saber , que obedece sobre-
tudo ao princpio de s imetria: o norte e o sul da
oikoumne
ocupam posies s imtricas , de uma e de outra parte de um
"equador" que corre atravs do Mediterrneo.
S Com o confron tar enu nciad o e saber compart i lhado? De
inc io , essa operao no leva a que se "saia" do texto . O
dest inatr io es t , com efe i to , a lo jado no inter ior do prpr io
texto, como uma sorte de "leitor vazio", ou simulacro de leitor,
a quem se dir ige essencialmente o narradof e sobre o qual
exerce seu poder de persuaso. A dif iculdade no provm
tanto da exterioridade desse saber, mas de seu carter implcito
ou largamente implcito, j que se trata daquilo em funo de
que o des t inatr io "calcula" o sentido de um enunciado, o
mesmo critrio a partir do qual o narrador formula, justa-
mente para que se faa es te clculo . Pode-se , desde ento, a
t tu lo de hipt ese , p roc ede r ass im: tratar o Inome p rpr io
citas
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com o um simples significante, traando o percurso de sse
s ignif icante no inter ior do espao da narrat iva, e lencando
todos os predicados
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que a e le se agregam e que constroem
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afinal a f igura dos citas . A soma desses predicados constituiria
os c i tas de Herdoto.
Q u a n t o a o s p r p r i o s p r e d i c a d o s , p o d e - s e a n a l i s - l o s
segundo uma hiptese complementar da precedente : o desvio
s is temtico. Isso s ignif ica ler cons iderando que uma prt ica
c i ta interpretada com re lao a seu homlogo no mundo
grego. Quando Herdoto fala do sacr i f c io c i ta , enfoca impli -
citamente o sacrif cio grego, que o que lhe permite reunir
uma disperso de atos e ges tos e v- los como e lementos de
uma prt ica nica que os gregos chamam
thysa-,
de incio,
e le identi f ica como
sacrifcio
uma prt ica que cons is te em
estrangular, por trs , um animal entravado; em seguida, a
descr io que faz dos momentos sucess ivos da cer imnia no
ganha sentido seno pela re lao que se es tabelece com a
s u c e s s o d a s s e q n c i a s n o r i t u a l g r e g o . ' V a g i n d o c o m o
"modelo ausente" , o sacr i f c io gregoxiferece , a um s tempo,
a possibilidade de apreender a prtica cita e de traduzir sua
al ter idade: fazendo o "clculo" correto , o des t inatr io ter ,
se quiser, a possibilidade de explicitar os desvios. Vai-se,
pois , do nome aos predicados que o constituem e, em seguida,
dos predicados aos cdigos que os sus tm, de modo que a
palavra
cita
tratada como um nome "codif icado" ./
Confrontando-se assim os enunciados do texto com o saber
compart i lhado, a ques to no se reduz a aval iar a descr io
ou medir a informao, mas trata-se sobretudo de sondar a
maneira como se faz a descrio, considerando-se o tratamento
dado informao. EssTqusf do
como
(como se relacionam
os enuncia dos com o saber compart ilhado?) levanta f inalmente
a ques to das condies que poss ib i l i tam a construo da
narrativa ou, pelo menos, de uma dentre elas . Falando do
outro com referncia ao saber compartilhado e nos termos dele,
o texto funciona g lobalmente como traduo. Trata-se , ento,
de e lencar seus procedimentos e modal idades par t iculares .
lt ima ques to: como reconhecer e del imitar um saber
compart i lhado que, por def inio, eu no compart i lho? Como
( posso dar conta dele , se seu mod o de ser largamente um
modo de ser implc i to? Como inventar i- lo , se verdade que
no tenho, como o etnlogo, a poss ib i l idade de interrogar
pelo menos um informante , na imposs ib i l idade de encontrar
diretamente aqueles que o compart i lham? Com efe i to , para
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tomar uma imagem s impli f icada da comunicao, o tnlogcp
aps haver aprendido o cdigo ou os cdigos de um grupo,
ter a poss ib i l idade de dec i f rar as mensagens emit idas pelos
locutores. Mas para o historiador, quanto mais diminui a base
documental , mais a separao entre cdigo e mensagem se
adelgaa, at atingir-se a s ituao limite em que se dever,
prat icamente com o mesmo movimento, dec i f rar -se cdigo e
me ns ag e m, c o mu nic ar o q u e c dig o e o q u e me ns ag e m.
Os poemas homricos servem perfeitamente como ilustrao
dessa pos io l imtrofe : texto fechado sobre s i mesmo, pelo
menos para ns .
Co mo p r o c e de r no c as o das
Histrias
? Se o texto decer to
inscreve-se entre um narrador e um destinatrio e se verdade
que, de um cer to modo, o des t inatr io se encontra alo jado
no prpr io texto , reconhecer o mapa do saber compart i lhado
o implica "sair" do texto. Mais ainda: se esse saber permanece
amplamente implcito, isso no impede que possam apont-lo,
de modo indireto, as marcas que, por seu lado, surgem de
modo expl c i to . Penso em todas as intervenes do prpr io
narrador, bem como nas intervenes de narradores secundrios
ou delegados, nas quais eles se espantam com uma^estranheza,
sublinham uma diferena, explicam uma ausncia
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Num plano
mais geral , a s imples at ividade de nomeao que o narrador
realiza um modo de referir-se ao saber compartilhado: ele
^rec orta ^ real do outr o seg un do lis categ orias grgs^
Reconhecer a ao de es trangular um animal por trs como
Y thysa
todavia suf ic iente para jus t if icar uma co nfron tao
precisa com um modelo sacrif icai construdo pelos helenistas ,
a partir de uma documentao que apela tanto para os textos,
quanto para as representaes f iguradas?
16
T o m e m o s c o m o
hiptese que essa operao metodolgica seja l cit\ A partir
de e