17. uriel
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LLLLAAAABBBBIIIIRRRRIIIINNNNTTTTOOOO
Drama Existencialista
Texto de:
JULIO CARRARA
Escrita em 2003
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara UrielUrielUrielUriel 1111
PERSONAGENS:
URIEL
DAVID VELHO
DAVID JOVEM
CENÁRIO: Uma casa de espelhos, dessas que se encontram em parques de
diversões. No interior desta casa de espelhos está o consultório de um
psiquiatra, estilizado, com um divã e uma cadeira ao lado dele.
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(Quando o público entra no espaço, deverá sentir-se preso num labirinto de uma casa
de espelhos. A direção deve criar um clima claustrofóbico através dos ruídos, da luz, de
um cheiro forte de éter, etc. Para os ruídos sonoros sugiro um som irritante de um
cardiógrafo e de uma respiração ofegante de um paciente em estado terminal. As três
personagens, David Jovem, David Velho e Uriel já estão em cena, imóveis, atrás dos
espelhos. Luz vai caindo em resistência enquanto o som do cardiógrafo aumenta até o
black-out. No escuro ouve-se uma música sinistra. O tempo do black-out deve ser
longo até a plateia sentir-se incomodada. Pequenas luzes de várias lanternas criam
uma coreografia psicodélica. Uma suave luz azul sobe em resistência. No proscênio,
sentado de costas em uma cadeira está David, que olha o seu reflexo no espelho.
Lentamente vira-se para frente, ao mesmo tempo em que um foco de luz sobe em
resistência sobre ele.)
DAVID VELHO
Meu nome é David. Na Faculdade de Medicina era mais conhecido
como Chilli, por causa da minha pele avermelhada, herança dos meus avós
irlandeses. Mas nem a Faculdade e nem meu apelido vem ao caso agora. Não
agora. (Pausa.) Há um bom tempo, eu exerci a função de psiquiatra - o
verdadeiro orgulho da família, diga-se de passagem. E, ao contrário daquilo
que algumas pessoas imaginam, não existe nada mais complexo do que o
cérebro humano. Vejo-o como um vasto labirinto escuro, uma grotesca casa de
espelhos; talvez aqueles espelhos de parques de diversões, que além de nos
confundir, nos deixam abobalhados quando imaginamos que estamos
chegando a algum lugar e percebemos que ainda mal nos deslocamos. Mesmo
assim, eu estava mergulhado naquilo que chamamos de processo. Estava em
processo de estudo e não me lembro de ter algum dia trabalhado tão a finco
em um paciente. Nem mesmo no caso do Homem-Machado, um indivíduo
que, sem motivo aparente, chacinara toda a família com um machado de cortar
lenha. E quando era interrogado, jurava que quem tinha feito o serviço era
uma criatura zumbi que vivia na floresta. Após alguns meses de tentativas
frustradas, de tentar descobrir alguma coisa, o homem havia se suicidado com
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o próprio lençol, dentro da sua cela na penitenciária de segurança máxima.
Caso interessante... Mas nem de longe, tão envolvente quanto o caso dela...
(Foco de luz refletindo a imagem de Uriel atrás de um dos espelhos.)
DAVID VELHO
Uma mulher que imaginava ser uma espécie de escolhida dos deuses.
Tentarei simplificar o possível, ao que chamo hoje de minha “viagem
alucinante”.
(David Velho gira em torno de si mesmo, como num ritual de butoh. Luz em
resistência baixa. Ouve-se no áudio uma música ritualística. Depois de um tempo
rodando, David Velho para, senta-se no divã e continua a confissão.)
DAVID VELHO
Ela não era só dona de todo o charme que alguém poderia imaginar,
não. Havia algo mais... Havia um mundo estranho oferecido atrás de seus
olhos estranhamente negros. Seu corpo voluptuoso era algo como que tirado
do Olimpo. Sua boca generosa raramente sorria; e quando sorria parecia um
convite. Adorava ver os seus cabelos espalhados em meu divã. Em uma das
nossas sessões fiz uma simples pergunta que mudaria todo o rumo da minha
vida. Perguntei-lhe o que mais lhe causava medo. E ela me respondeu que só
temia...
VOZ FEMININA EM OFF, ECOANDO
...o óbvio!!!
(Muda luz. David Velho entra num dos espelhos e observa a cena. David Jovem
sentado na cadeira e Uriel deitada no divã.)
DAVID JOVEM
O óbvio? Seja mais clara.
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URIEL
As pessoas acreditam somente no óbvio. Acreditam somente naquilo
que seus cérebros podem aceitar. Nada é óbvio. As pessoas mudam. As
circunstâncias mudam. E as pessoas são capazes de tudo, se movidas por amor
ou ódio.
DAVID JOVEM
Se você sabe tudo, a respeito de tudo, então o que faz aqui no meu
consultório?
(Black-out seco. Música. Luz sobe em resistência e desta vez é David jovem quem está
deitado no divã enquanto Uriel diz todo o texto girando em torno dele e sempre o
encarando.)
URIEL
(Com força.) Pago para provar que você não sabe nada. Você somente
conhece aquilo que lhe convém. Só aceita aquilo que é, dentro dos padrões,
algo denominado normal, correto. Você nunca sentiu vontade de se matar?
Nunca se afastou a tempo antes de matar alguém que você amasse? Nunca
ouviu os tambores soarem dentro de si como numa festividade de morte?
Nunca se sentiu pronto para cair sobre quatro patas e uivar alucinadamente
para em seguida correr mais velozmente que o próprio som? São coisas que
vocês têm medo de aceitar. Medo de ouvir o grito que deixam estancado
dentro da garganta. Medo de acreditar naquilo que não é óbvio. Então, quem
somos nós para punir um assassino? Ele terminou aquilo que temos medo de
terminar. Ouviu o que temos medo de ouvir: O GRITO. Você nunca se
envergonhou de si mesmo? Nunca se lamentou por algo que fez que não era
dentro dos padrões, algo denominado correto?
DAVID JOVEM
(Perturbado, quase gritando.) Quem é você?
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URIEL
(Casual.) Sou o seu desejo.
(Cessa música.)
DAVID JOVEM
Escute. Suponhamos, apenas suponhamos que você esteja certa. Diga-
me então o que devo fazer para me aceitar. Você tem razão. Eu não me aceito.
Não aceito em harmonia o bem e o mal que habitam dentro de mim. Não
aceito o profundo bem e sumo mal, como você mesma já disse antes. Tento
esquecer certas coisas que já fiz antes, mas não posso. Tampouco posso aceitar
o lobo que habita dentro das minhas entranhas. Gostaria de recomeçar, viver
em harmonia comigo mesmo, fazer tudo de modo diferente. Mas não tenho
equilíbrio. Um lado sempre grita mais alto que o outro.
(Música. Perturbação de David Jovem que grita desesperado. Uriel faz um jogo com ele
através dos espelhos que distorcem seus reflexos como num retrato expressionista,
tentando fazê-lo enxergar a si mesmo. A música chega ao ápice enquanto Uriel entra
num dos espelhos e desaparece. Luz cai em resistência sobre David Jovem, que cai
estatelado no divã. Foco sobe lentamente em resistência sobre David Velho que sai do
espelho.)
DAVID VELHO
Agora eu havia me transformado em paciente, mas nada mais
importava. Não importava realmente quem era quem naquele jogo do
inferno...
(Pausa. David Velho caminha entre os espelhos.)
DAVID VELHO
(Off – Gravação.) Sentia lágrimas escorrendo em minha boca. Um gosto
salgado, quente. Lembrei-me uma vez quando engoli a água do mar, numa
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tentativa adolescente de mostrar para o meu irmão mais velho, que se ele
podia ir até a balsa localizada a alguns metros da costa, eu também podia.
Tentativa fracassada...
DAVID VELHO
ELA me colocou em seu colo, me ofereceu o seu corpo quente, sorriu e
disse:
(Foco em Uriel atrás do espelho que segura David Jovem nos braços.)
URIEL
Não posso ajudá-lo, David. Não sou a vida. E somente ela poderá fazer
alguma coisa a você. Não cabe a mim intervir.
(Uriel sai.)
DAVID JOVEM
(Olhando para David Velho, que diz a mesma frase só com o movimento dos
lábios, sem som.) E ela se foi, deixando atrás de si aquele cheiro agridoce, junto
aos meus soluços.
(Apaga o foco de David Jovem.)
DAVID VELHO
No caminho de volta pra casa, parei em um bar e consumi muito mais
que poderia suportar, como se na garrafa houvesse a solução para o meu
problema; como se dentro da mesma garrafa existisse ao menos uma resposta
para as milhares de perguntas que eu precisava fazer...
(Foco em Uriel atrás do espelho, como a Vênus, de Botticelli.)
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DAVID VELHO
Eu a desejava, eu a amava - antiético, é claro. Mas eu realmente desejava
que toda a ética e ciência do mundo fossem de mãos dadas para o inferno... Ela
era minha deusa, uma deusa pagã. Era como se ela tivesse o poder de absolver
os meus pecados ou simplesmente, aceitá-los. Eu a desejava como um
condenado deseja a guilhotina e hoje posso compreender essa sensação.
(Apaga-se o foco de Uriel.)
DAVID VELHO
Nunca mais a veria. Nunca mais ouviria a sua voz rouca me dizendo
palavras certeiras e me revirando a alma ao avesso. Isso talvez fosse bom. Eu
poderia voltar a ser o mesmo covarde de sempre ruminando minhas idéias
limitadas e considerando-me um gênio da racionalidade.
(Pausa.)
DAVID VELHO
Uma mão gelada tocou meu ombro. Virei-me bruscamente. Minha voz
morreu na garganta.
DAVID VELHO
(Off – Gravação.) Ela estava na minha frente: o olhar passivo, os lábios
entreabertos... Tudo o que consegui dizer após segundos que pareceram durar
horas foi:
(David Velho diante de Uriel que finalmente sai do espelho.)
DAVID VELHO
Você voltou?
(Música melancólica.)
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URIEL
Voltei para lhe dizer que você deve aproveitar o tempo que lhe resta.
Voltei, porque você me deseja. Alguns me desejam, outros me temem. Alguns
me veem assim como você me vê: bela, desejável... Outros me veem como uma
velha amaldiçoada... Tenho vários nomes, desde a indesejável até a inevitável. A
vida lhe oferece chances. A vida é curta. Passageira. A morte, não. Você deve
viver a vida de forma mais suave, sem cobranças, sem perguntas, sem medos e
sem violações. Se você não parar imediatamente de se punir, sua estadia será
amarga. Não julgue. Não se machuque. Saiba que até mesmo o artista, o
pintor, o músico, o poeta, tem suas almas dilaceradas. Talvez para eles, a vida
até seja mais cheia de perguntas que a sua própria vida de Homem da Ciência.
Eles amam e esta é a condenação. Se as pessoas pararem de amar serão
condenadas da mesma forma, mas será infinitamente pior. Sem amor, não há
inspiração. Sem amor, não há vida. Quando todos pararem para aceitar o
inaceitável de forma mais suave e redescobrirem que tudo na vida é
passageiro, exceto o amor, talvez eu deixe de existir. Quando as pessoas
desarmarem seus arsenais eu me despedirei dos meus irmãos: a fome, a dor, a
ambição, o medo e a doença. Restarão apenas a vida e a luz...
(Pausa. Uriel acaricia os cabelos de David Velho.)
URIEL
Alguns imaginam que a morte acontece quando o corpo para e o cérebro
apaga, mas quantos mortos ainda caminham sobre a Terra? A morte nada
mais é que a falta de esperança, a falta de vontade de viver. Eis aí mais uma
das intermináveis faces encobertas da morte. A mudança deve começar dentro
de cada um. De você agora... Como disse antes, infelizmente não sou a vida.
Mas você ainda vive - portanto, mexa-se, tente, tente quantas vezes for
necessário tentar. Nunca desista de você. Aceite-se, ame-se, respeite-se da
forma que você foi feito. Aprimore o seu lado bom e respeite seu lado
denominado ruim. Lembre-se: é perigoso denominar o que é bom ou ruim,
pois o que é bom para você, pode ser ruim para o outro e vice-versa... No
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momento certo eu voltarei. E quando voltar espero não parecer tão desejável.
Apenas aceitável...
(Uriel entra num dos espelhos e desaparece. Fim da música melancólica.)
DAVID VELHO
Suas últimas palavras soaram muito distantes. Eu estava caindo
literalmente no sono. Era como se meu cérebro recusasse aceitar tudo aquilo
como realidade. As limitações do cérebro, claro.
(Alternar os focos em David Velho e David Jovem atrás do espelho.)
DAVID JOVEM
Acredito que ela desapareceu. Provavelmente por causa da existência de
algumas coisas que nosso cérebro simplesmente rejeita.
DAVID VELHO
Prefiro acreditar que foi um sonho; que eu a queria tanto, que acabei
sonhando com algo que se assemelhasse com a realidade.
DAVID JOVEM
Poderia ter sido imaginação minha... apenas um desejo...
DAVID VELHO
O que me choca até hoje, não é me sentir diferente...
DAVID JOVEM
Quando digo diferente, refiro-me a um desejo inabalável de fazer o
melhor por mim mesmo.
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DAVID VELHO
Voltei a tocar violino. Há anos ele estava esquecido dentro do armário.
Há anos, eu havia me esquecido do prazer que ele me oferecia.
(David Velho toca o violino.)
DAVID JOVEM
Nem tampouco me choquei, ao sentir a necessidade de adotar uma
criança, que hoje está entre as coisas que mais amo no mundo. Meu pequeno
Eddie...
DAVID VELHO
Na verdade o que me choca... é me olhar no espelho e ver meus cabelos
brancos. E sem conseguir esquecer àquela noite em que sonhei com Uriel.
(David Velho lentamente deita-se no divã e fecha os olhos. O som do cardiógrafo vai
cessando aos poucos até indicar a sua morte. Uma suave luz azulada, de corredor, sobe
em resistência revelando a entrada de Uriel. Ela aproxima-se de David Velho, estende
as mãos e pega na mão do psiquiatra. Ele abre os olhos e sorri ao vê-la. Fecha os olhos
novamente e esboça um sorriso. Uriel estende novamente as mãos e tira David Jovem
de trás do espelho trazendo-o para junto de si. O rapaz, enfeitiçado, sorri para ela. Em
seguida olha para o cadáver de David Velho, ou seja, para si mesmo. Volta-se para
Uriel e beija-lhe apaixonadamente. Ela fica acariciando o rosto do rapaz por um bom
tempo. Logo em seguida, ambos entram lentamente no espelho e desaparecem. Foco
sobre David Velho que jaz no divã. Depois de um tempo, foco desce em resistência até o
black-out final.)
FIM
Dezembro/2003