185754869-7-0210-michel-maffesoli-elogio-da-razao-sensivel-doc.pdf

Upload: clara-simone-mendonca

Post on 08-Oct-2015

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    2

    MICHEL MAFFESOLI

    Elogio da Razo Sensvel

    Editora Vozes 1998

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    3

    MICHEL MAFFESOLI ELOGIO DA RASO SENSIVEL Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Maffesoli, Michel, 1944

    Elogio da razo sensvel / Michel Maffesoli ; traduo de Albert Christophe Migueis Stuckenbruck. Petrpolis, RJ : Vozes, 1998. Ttulo original: loge de Ia raison sensible.

    Bibliografia.

    ISBN 85-326-2078-7

    1. Cincias sociais Filosofia 2. Filosofia 3. Razo 1. Ttulo. 98-0267 CM-300.1 ndices para catlogo sistemtico:

    1. Cincias sociais : Filosofia 300.1

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    4

    1996, ditions Grasset & Fasquelle

    61 Rue des Santos-Pres

    75006 Paris, France

    Ttulo do original francs: loge de Ia Raison Sensible

    Cet ouvrage, publi dans le cadre du programme de paiticipation la publication benficie du soutien du Ministre franais des Affaires Etrangres, de lAmbassade de France au Brsil et de Ia Maison franaise de Rio de Janeiro.

    Este livro, publicado no mbito do programa de participao publicao, contou com o apoio do Ministrio francs das Relaes Exteriores, da Embaixada da Frana no Brasil e da Maison Franaise do Rio de Janeiro.

    Direitos de publicao em lngua portuguesa no Brasil:

    Editora Vozes Ltda.

    Rua Frei Lus, 100

    25689-90O Petrpolis, RJ

    Internet: http://www.vozes.com.br Brasil

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora.

    FICHA TCNICA DA VOZES

    PRESIDENTE Gilberto M.S. Piscitelli, OFM

    DIRETOR EDITORIAL Avelino Grassi

    EDITOR Lidio Peretti Edgar Orth

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    5

    DIRETOR INDUSTRIAL Jos Luiz Castro

    EDITOR DE ARTE Ornar Santos

    EDITORAO Editorao e organizao literria: Ecio Elvis Pisetra Reviso grfica: Revitec S/C Diagrarnao: Josiane Furrati Superviso grfica: Valderes Rodrigues

    ISBN 2 246-52271-4 (edio francesa)

    ISBN 85.326.2078-7 (edio brasileira)

    Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    6

    Para Dominique-Antoine Grisoni

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    7

    Sumrio I. DEONTOLOGIA............................................. 9 II. A RAZO ABSTRATA................................. 25 1. A razo separada.............................................. 27 2. Crtica da abstrao ......................................... 38 III. A RAZO INTERNA................................... 51 1. O raciovitalismo .............................................. 53 2. O pensamento orgnico ................................... 65 IV. DO FORMISMO .......................................... 79 1. Abordagem do formismo................................. 81 2. A forma, fora de atrao ................................ 89 3. A forma social ................................................. 101 V. FENOMENOLOGIA ..................................... 111 1. A descrio ...................................................... 113 2. A intuio ........................................................ 130 3. A metfora ....................................................... 147 VI. A EXPERINCIA......................................... 159 1. O senso comum ............................................... 161 2. A vivncia........................................................ 176 VII. A ILUMINAO PELOS SENTIDOS ...... 187

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    8

    I DEONTOLOGIA

    O real verdadeiro, ser j o contenta. HENRI ATLAN

    Talvez seja quando o sentimento de urgncia se

    faz mais premente que convm pr em jogo uma estratgia da lentido. Assim, confrontados que estamos, todos, ao fim das grandes certezas ideolgicas; conscientes, tambm, do cansao que invade os grandes valores culturais que moldaram a modernidade; por fim, constatando que esta ltima j no tem grande confiana em si mesma, indispensvel recuar um pouco para circunscrever, com a maior lucidez possvel, a socialidade que emerge sob nossos olhos. Esta, por mais estranha que seja, no pode deixar ningum indiferente. O observador, o decididor, o jornalista ou, simplesmente, o ator social, estamos todos implicados por tal emergncia. Mas resta ainda saber apreci-la

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    9

    em seu justo valor. E isso no poder ser feito se o que est em estado nascente for medido com base no padro daquilo que j est estabelecido. O establishment, com efeito, no uma simples casta social, , antes de mais nada, um estado de esprito que tem medo de enfrentar o estranho e o estrangeiro. O brbaro no est mais s nossas portas, ultrapassou nossos muros, est em cada um de ns. Portanto, de nada serve julg-lo, ou mesmo neg-lo. Sua fora tamanha que ele seria capaz de tudo submergir. Assim, como foi o caso em outras pocas, melhor compreend-lo, quanto mais no seja para poder integrar, ainda que homeopaticamente, o inegvel dinamismo de que portador.

    Quando j no se tem quaisquer garantias, ideolgicas, religiosas, institucionais, polticas, talvez seja preciso saber apostar na sabedoria relativista. Esta sabe, por um saber incorporado, que nada absoluto, que no h verdade geral, mas que todas as verdades parciais podem entrar em relao umas com as outras. isto, o bom uso do relativismo: quando no h uma finalidade

    11 assegurada, quando o objetivo distante esmaeceu-se, podemos conceder s situaes presentes, s oportunidades pontuais, um valor especfico. Isso

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    10

    bem difcil para os diversos moralismos que funcionam base da lgica do dever ser. O voc deve perde a fora assim que os costumes vacilam. E a atualidade no poupa exemplos que mostram a caducidade do juridismo moderno. Nesse sentido, o apelo a um Estado de direito, tanto do ponto de vista nacional quanto do internacional, por mais louvvel que seja, no passa de um flatus vocis, um encantamento que, no melhor dos casos, pueril e, no pior, simplesmente hipcrita. Em qualquer dos casos, no permite levar em conta a dura realidade daquilo que , j que, na maioria das vezes, no se envolve com quaisquer estados de esprito.

    Todavia, por mais relativista que seja, a lio das coisas no implica de modo algum uma abdicao do intelecto. Trata-se simplesmente de um desafio ao qual preciso responder. E, em seu sentido mais estrito, ela remete para uma deontologia, a saber, para uma considerao das situaes (ta deonta) naquilo que elas tm de efmero, de sombrio, de equvoco, mas tambm de grandioso. assim que moral do dever ser poderia suceder uma tica das situaes. Esta, ou melhor seria dizer, estas ltimas so atenciosas paixo, emoo, numa palavra, aos afetos de que esto impregnados os fenmenos humanos. Tudo aquilo que, retomando uma anotao

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    11

    de D.H. Lawrence, requer um esprito de simpatia, de finura e de discernimento... um esprito de respeito por essa coisa em luta e em runas que uma alma humana (O amante de Lady Chatterley). Extrapolando, poderamos dizer que o mesmo se d para a alma do mundo. O moralismo est fora de circulao; mais vale, para compreend-la, pr em ao uma sensibilidade generosa, que no se choque ou espante com nada, mas que seja capaz de compreender o crescimento especfico e a vitalidade prpria de cada coisa.

    Dizendo o mesmo em outras palavras, convm elaborar um saber dionisaco que esteja o mais prximo possvel de seu objeto. Um saber que seja capaz de integrar o caos ou que, pelo menos, conceda a este o lugar que lhe prprio. Um saber que

    12 saiba, por mais paradoxal que isso possa parecer, estabelecer a topografia da incerteza e do imprevisvel, da desordem e da efervescncia, do trgico e do no-racional. Coisas incontrolveis, imprevisveis, mas no menos humanas. Coisas que, em graus diversos, atravessam as histrias individuais e coletivas. Coisas, portanto, que constituem a via crucis do ato de conhecimento. isso, propriamente, que remete para o que acabei de chamar de saber

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    12

    dionisaco. Este, sem justificar ou legitimar o que quer que seja, pode ser capaz de perceber o fervilhar existencial cujas conseqncias ainda no foram totalmente avaliadas.

    Mas, para tanto, no se pode ter medo de tomar parte na destruio de ideais ou de teorias obsoletas, ainda que isso deva perturbar algumas sonolncias dogmticas. Com efeito, assim como notava Ren Char, vivemos em um mundo em agonia que ignora sua agonia e se mistifica, pois obstina-se em ornar seu crepsculo com as cores da aurora da idade do ouro (Em 1871). Os espritos livres devem dispor-se a lembrar essa agonia e a pr em dia as mistificaes ambientes. esta a filosofia do martelo: ser capaz de destruir para que o que deve crescer possa faz-lo em total liberdade. No coisa fcil, pois as opinies comuns, na intelligentsia, ocupam o lugar de destaque. Portanto, preciso coragem para recusar professar as supersties que freqentemente so moda ou que, alis, variam com ela, dentre as quais o que se convencionou chamar de teorias cientficas. Isso implica que se saiba lavrar os campos j to maados do pensamento moderno: por isso que sempre e a cada passo, sob qualquer ou nenhum pretexto, em toda ocasio e at fora de ocasio, convm riscar tudo o que admitido e emitir

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    13

    paradoxos. Depois a gente v no que d Saibamos pr em ao tal desenvoltura. Ela roborativa e lembra isso tambm coragem intelectual que preciso dizer aquilo que , ainda que o que se diga no deixe de incomodar. Podemos lembrar, a esse respeito, a anotao que os letrados da Idade Mdia por vezes apunham margem de um ou outro livro: Cave, hic sermo durus est. Sim, a linguagem pode ser dura, mas no temos que ser vendedores de sopa, ou receitar tranqilizantes. E, imagem do que fazia Simmel esse esprito agudo que foi

    13 qualificado de esquilo filosfico a descrio dos fenmenos sociais no h de ser unicamente um problema, mas sim uma plataforma a partir da qual vai elaborar-se um exerccio do pensamento que responda, da melhor maneira, s audaciosas contradies de um mundo em gestao.

    Emitir paradoxos. Um deles a implicao emocional, a empatia com a socialidade e o fato de pensar com desapego. Eis a uma atitude de esprito que no se aprecia celebrar. Em geral a preferncia vai para as mentes lcidas, que sabem decretar aquilo que convm pensar ou fazer, que indicam por que e como se deve faz-lo. Como j disse, a moda est, indubitavelmente, com o moralismo. Mas, afinal,

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    14

    ser mesmo necessrio ir no sentido da corrente? vida do homem sem qualidades so inteis as injunes morais. E, arriscando-me aqui a ser inatual ou, na melhor das hipteses, compreendido com atraso, ela, essencialmente, que nos interessa. A mais profunda das subverses no consiste obrigatoriamente em dizer aquilo que choca a opinio, a lei, a polcia, mas em inventar um discurso paradoxal. Essa observao de Roland Barthes, a respeito de Sade, merece reflexo. Com efeito, o paradoxo, em seu sentido mais estrito, o prprio da vida comum. Repousando na empiria, esta ltima , estruturalmente, polissmica. No possui um sentido determinado, mas sentidos que so postos prova e vividos medida que vo surgindo. propriamente isso que deveria interdizer-nos o esprito srio e sua conseqncia direta: a parania. O saber ligado razo instrumental um saber ligado ao poder. Ao homem de conhecimento s convm um tipo de inao vigilante (Raymond Abellio) que era, em seu momento fundador, o prprio da schol, a saber, o lazer estudioso. Assim fazendo, o conhecimento, deixando de lado o poder e sua libido dominandi, pode ficar atento potncia popular, ao seu lento crescimento e sua irredutvel postura.

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    15

    estando desapegado em relao aos diversos ideais impositivos e universais, estando enraizado no ordinrio, que o conhecimento responde melhor sua vocao: a libido sciendi. Por que no dizer: um saber ertico que ama o mundo que descreve. Assim, pela purgao do geral, da Verdade, daquilo que tido como correto,

    14 pode encarar-se o plausvel e os possveis das situaes humanas. Uma deontologia tal, no sentido indicado pouco acima, no se pode simplesmente afastar com as costas da mo.

    Nem tampouco se haver de esvazi-la pela habitual conspirao do silncio. certamente tentador. E freqente que acadmicos e jornalistas, cada um em seu domnio respectivo, lancem mo desse expediente. De fato, mais cmodo ceder s facilidades da mdia, adotar construes tericas cujos contornos j sejam conhecidos. Mas, como toda endogamia, esta tem seus limites, e seus perigos j comeam a poder ser apreciados. O principal deles ficar-se, cada vez mais, desconectado da realidade da qual se deseja dar conta. Est entendido: nada mais resta a esperar do saber estabelecido. Sem distinguir tendncias, ele vinculou por demais sua causa ao exerccio do poder. E mesmo criticando-o, ficou-lhe

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    16

    por demais contradependente. O interesse, agora, est noutro lugar.

    No se trata de fanfarronada mas, sim, de desejo de participar de um debate intelectual que ultrapasse as habituais categorias de um cartesianismo, que tenha engendrado a viso de um mundo contratual, regido por um voluntarismo racional. Neste sentido, talvez seja menos interessante preocupar-se com saber de onde vem a crise do burguesismo, sob suas variantes socialistas ou liberais, do que de perguntar-se para que tende a energia social. Pois, ainda que no esteja mais focalizada sobre o produtivismo, que no se projete mais para o longnquo, essa energia inegvel. Assim como indiquei em livro precedente, a contemplao do mundo uma forma de criao. Convm pens-la. No sentido etimolgico, isto requer um novo discurso do mtodo, isto , um encaminhamento. Em suma, da mesma maneira como Descartes balizou o caminho da modernidade, preciso saber balizar o da ps-modernidade.

    Em penetrante conferncia na Ecole Normale, Julien Gracq fazia uma distino entre literatura de criadores e literatura de moedeiros, esta ltima vulgarizando, para os leitores atrasados, a produo em tom de anteontem. Ao contrrio, no que toca

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    17

    primeira, ele falava de uma crtica de castelo de proa com os

    15 olhos apontados de antemo para os novos mundos. bem disso que se trata, no que diz respeito socialidade (re)nascente. O tom de anteontem o do racionalismo abstrato j no convm, num momento em que a aparncia, o senso comum ou a vivncia retomam uma importncia que a modernidade lhes havia negado. E, ainda que seja sob forma de constatao, importa assumir, intelectualmente, a afirmao da existncia, o sim vida a que tudo isso incita.

    Mas, ainda que se permita talhar a metfora do observador em seu castelo de proa, preciso admitir que a viso da costa que se delineia ao longe no tem garantia alguma. Ela comporta uma boa parcela de sonho, incerta quanto aos contornos daquilo que se configura e nada pode prever quanto durao do trajeto a realizar. Belo programa, o da incerteza! Mas preciso passar por ele. Pois, mesmo ignorando onde vamos chegar, mesmo sabendo nos tributrios da tormenta ou da calmaria, no menos certo que estamos a caminho, e que o antigo mundo est atrs de ns. Uma tal conscincia ou quase-conscincia coletiva inegvel, vivida enquanto tal. preciso,

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    18

    pois, indicar suas tendncias, e, para tanto, estar atento experincia que procede de acordo com o ritmo que o seu, o qual no podemos, em nada, acelerar ou frear. em termos de composio musical que se deve encarar a questo: nada de abertura em fanfarra, mas avanar primeiro lentamente, moderato, passando progressivamente a allegretto e assim por diante. o corpo social que compe a partitura, preciso seguir seu compasso. Nossa anlise ser da mesma ordem: fazendo, bem lentamente, a crtica da razo abstrata, ela procurar, mais vivamente, surpreender a razo interna em ao nos fenmenos sociais, em seguida propor, em crescendo, abordar a delicada questo da experincia vivida, do senso comum que a expresso desta, e da temtica do sensvel, que bem poderia ser a marca da ps-modernidade.

    Falei do establishment como estado de esprito e indiquei, igualmente, a necessria purgao qual convinha submeter tal estado de esprito. Esta no diz respeito apenas ao erudito ou ao acadmico especialista da coisa social. preciso devolver ao

    16 pensamento a amplido que a sua: ela pertence a cada qual, e cada um de ns que deve operar a converso de esprito necessria compreenso da

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    19

    sociedade nascente. Com efeito, do mesmo modo como o Senhor Jourdain fazia prosa sem perceber, naturalmente, com instrumentos mais ou menos sofisticados, que continuamos sendo impregnados pelo racionalismo prprio modernidade. de modo igualmente natural que tendemos a reportar tudo unidade do conceito, com a reduo que isso pressupe. Assim como observa Marguerite Yourcenar, os filsofos submetem a realidade de modo a poderem estud-la pura aproximadamente s mesmas transformaes a que o fogo ou o pilo submetem o corpo: nada, de um ser ou de um fato tais como os conhecemos, parece subsistir nesses cristais ou nessa cinza (Memrias de Adriano).

    bem verdade que tal depurao, por mais satisfatria que seja para a inteligncia mecnica ou instrumental, de pouco interesse quando o politesmo vital tende a afirmar-se com fora. H momentos em que no se pode mais mumificar ou isolar analiticamente o objeto ou o sujeito vivo. ento que, ultrapassando o conceito, preciso saber associar a arte e o conhecimento. Sendo um e outro entendidos, claro, em sua acepo mais ampla. Em resumo, no se pode assimilar a humanidade, tambm movida pela paixo e pela no-razo, ao objeto morto das cincias naturais. Lembremo-nos, a propsito, de

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    20

    Mr. Grangind, de Dickens, pondo em frmulas e equaes as mais complexas questes sociais. De seu observatrio ele podia dar uma espiada nas mirades fervilhantes de seres humanos, e ser capaz de decidir-lhes a sorte sobre uma ardsia, e de enxugar-lhes todas as lgrimas com um pedacinho de esponja suja. bem assim que procede essa so-called Science of Sociology. Prefigurao, se que h uma, do Admirvel mundo novo ou de 1984, tal pretenso no excepcional, sendo at com nuanas moeda corrente, de tal modo verdade que temos dificuldade para sair da malha, estreita e slida, dos conceitos estabelecidos. A nos sentimos vontade, como na doce quietude dos laboratrios, observatrios, salas de redao, comits mltiplos e diversos, conselhos de toda ordem, partidos, sindicatos, e

    17 outras reas de lazer para as crianas comportadas que so os membros da intelligentsia, includas a todas as corporaes profissionais e ideologias, sem distino.

    Quando o questionamento oriundo (por vezes sem palavras) do prprio corpo social se torna assunto permanente, quando a indiferena ou a desafeio pelas instituies se torna macia, quando a revolta to pontual quanto impensada, em suma, quando o contrato social, a cidadania, a nao, e at o ideal

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    21

    democrtico no produzem mais nenhum eco entre aqueles que so seus supostos beneficirios, ento intil pretender tapar as brechas com curativos de improviso. Sobretudo quando estes provm da clssica farmacopia constituda a partir dos sistemas modernos, cujo dogmatismo da verdade a expresso acabada. Com efeito, aqueles que sabem sempre tendem para o bem maior dos demais, claro a desejar impor suas solues. nisso, igualmente, que o conceito pega e no quer mais soltar aqueles aos quais se aplica, ainda que assim possa feri-los. Jogando com uma vizinhana de som, e permanecendo no registro do jogo de palavras, pode-se lembrar que o Begriff, conceito em alemo, nec plus ultra da filosofia moderna, no deixa de evocar o fato de arranhar* aquilo a que se aplica. bem esse o fundamento prprio da progresso conceptual: ela impe, se impe, brutaliza, em lugar de deixar ser o desenvolvimento natural das coisas.

    Se considerarmos que a maneira ocidental de fazer ou pensar no a nica vlida, podemos reconhecer, em referncia, por exemplo, ao pensamento chins, que h, como observou Franois

    * Em francs griffer, termo que comporta este significado (N. do T.).

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    22

    Julien, uma propenso das coisas. Sabedoria que deixa ao mundo a iniciativa, sabedoria que considera que convm deixar trabalhar a propenso inscrita na realidade, sabedoria que no deixa de ser eficaz e isso porque se inscreve no prolongamento do curso do Mundo (o Tao). H a um fecundo ensejo reflexo. As coisas e as pessoas so o que so; procedem e organizam-se de acordo com uma disposio que lhes prpria. Assim, em vez

    18 de desejar peg-las no conceito, talvez valha mais a pena acompanhar a energia interna que est em ao em tal propenso. De minha parte propus pr em ao um pensamento de acompanhamento, uma metania (que pensa ao lado), por oposio parania (que pensa de um modo impositivo) prprio da modernidade. Algo como uma sociologia da carcia, sem mais nada a ver com o arranho conceptual.

    No h dvida de que fcil falar, a qualquer pretexto, de revoluo copernicana. Contudo, a socialidade nascente apela para uma postura intelectual que saiba romper com a viso unvoca de um mundo que pode ser dominado com ajuda da razo. Aqui tambm, a vida social nos incita a ter mais prudncia: nossas sociedades policiadas so

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    23

    aquelas onde o irracionalismo se afirma com fora crescente. Acaso no ser por se ter pretendido coibir aquilo que, por diversos nomes, foi denominado parte maldita, instante obscuro, coisas de que a natureza humana tambm est impregnada? Como observava Carl Gustav Jung, o racionalismo mantm com a superstio uma relao de complementaridade. Que a sombra aumenta proporcionalmente com a luz uma regra psicolgica, assim, quanto mais a conscincia se mostrar racionalista, mais o universo quimrico do inconsciente ganhar em vitalidade. Pode-se interpretar de diversas maneiras tal observao, pode-se concordar quanto ao diagnstico e lamentar as situaes empricas para as quais o mesmo remete; ainda assim, a atualidade nos d inmeros exemplos nesse sentido. Portanto, em vez de continuar pensando segundo um racionalismo puro e duro, em vez de ceder s sereias do irracionalismo, talvez seja melhor pr em prtica uma deontologia que saiba reconhecer em cada situao a ambivalncia que a compe: a sombra e a luz entremeadas, assim como o corpo e o esprito, interpenetram-se numa organicidade fecunda.

    em funo de tudo isso que se pode propor a substituio da representao pela apresentao das coisas. No se trata de prestidigitao, nem de uma

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    24

    licena lingstica sem conseqncias, e sim de uma mudana de envergadura. Com efeito, a representao foi, em todos os domnios, a palavra mgica da modernidade. Assim,

    19 para indicar brevemente, ela est na base da organizao poltica, daquilo que se convencionou denominar ideal democrtico, e justifica atravs deste fato todas as delegaes de poder. Tambm a encontramos nos diversos sistemas interpretativos, procedendo por mediaes sucessivas e tendo por ambio, para alm da simples fatualidade, representar o mundo em sua verdade essencial, universal e incontornvel. Em ambos os casos, a progresso repousa sobre a depurao que aqui deve ser entendida em seu sentido estrito , sobre a reduo e sobre a busca da perfeio. Bem outra a apresentao das coisas, que se contenta em deixar ser aquilo que , e se empenha em fazer sobressair a riqueza, o dinamismo e a vitalidade deste mundo-a.

    Este , certamente, imperfeito, mas tem o mrito de ser, e de ser vivido enquanto tal. Assim, a apresentao sublinha que no se pode jamais esvaziar totalmente um fenmeno, isto , qualquer coisa de emprico, de empiricamente vivido, atravs de uma simples crtica racional. Trata-se do corao pulsante

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    25

    da reflexo desenvolvida aqui. igualmente o que est em ao, de maneira difusa, nos diversos imaginrios sociais onde parece prevalecer, cada vez mais, a aceitao ou a acomodao a um mundo tal como . o que permite falar da contemplao do mundo como figura maior da ps-modernidade. a partir da que se pode insistir na anlise das formas, no levar a srio os fenmenos ou no retorno da experincia sobre aquilo que Gilbert Durand chama de papel cognitivo da imagem. Imagem que no busca a verdade unvoca mas que se contenta em sublinhar o paradoxo, a complexidade de todas as coisas. A especificidade dessa atitude mental de no transcender o que manifesto, no aspirar a um alm, mas, isto sim, de remeter-se s aparncias, s formas que caem sob os sentidos, para fazer sobressair sua beleza intrnseca. Fazendo dizer a Sigmund Freud o que ele certamente no pretendeu dizer, h a um tipo de sabedoria que nos incita a no descobrir seno o que evidente.

    Pode-se falar de sabedoria, porquanto tal deixar-ser no implica um deixar-correr intelectual. Pelo contrrio, ela requer uma ascese, a de no se fazer o jogo do demiurgo que manipula, ao seu bel-prazer, aquilo que convida a ser visto, em favor daquilo que se desejaria que fosse.

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    26

    20 Desse ponto de vista, a apresentao mais

    escrava do que senhora da realidade social ou natural. Est a servio do dado mundano, mais do que exerce domnio sobre ele. Isso particularmente evidente atravs da noo de estilo. J mostrei como este, antes de ser o feito de um outro, era a marca de uma poca. Mas h certamente uma interao entre a criao social e a de um autor. E aquele que estiver atento beleza do mundo, s suas expresses especficas, participa do esforo criativo deste. Talvez seja isso o que permite dizer que o estilo, a escritura so sempre postos a servio da fsica, da vida. nesse sentido que o deixar-ser uma exigncia que, para dar conta da globalidade da existncia, para exprimir essa obra de arte que a vida, sabe integrar, em doses variveis, o zelo esttico no prprio seio da progresso intelectual. Precisemos, no entanto, que a busca de tal holismo, prpria aos socilogos (dentre eles Durkheim) bem como aos protagonistas contemporneos da globalidade (os do New Age, por exemplo) exigente tambm para o leitor, precisamente no sentido de que ela no repousa sobre a facilidade de uma realidade recortada em rodelas. Com efeito, ao contrrio de uma idia convencionada, a nfase posta no estilo, seja o da poca ou aquele que

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    27

    prprio do observador que dele trata, requer um esforo de reflexo, e isso porque ele no revela contedo preciso algum, mas contenta-se em descrever um continente, uma forma, onde cada qual deve dispor-se a exercer sua prpria capacidade de pensar. O racionalismo revelador de mensagens vai direto ao alvo, segue essa via recta cuja eficcia conhecida. Totalmente outro o caminhar incerto do imaginrio. Isso culmina num saber raro; um saber que, ao mesmo tempo, revela e oculta a prpria coisa descrita por ele, um saber que encerra, para os espritos finos, verdades mltiplas sob os arabescos das metforas, um saber que deixa a cada um o cuidado de desvelar, isto , de compreender por si mesmo e para si mesmo o que convm descobrir; um saber, de certa forma, inicitico.

    Nessa busca do Graal, a metfora tem um papel privilegiado, por integrar os sentidos progresso intelectual. Pode-se at dizer que ela se situa exatamente a meio caminho entre o lugar ocupado

    21 pelo sentido na vida social e sua integrao no ato de conhecimento. Desse ponto de vista, ela atualizaria a exigncia platnica que impe a elevao do sensvel ao inteligvel. Entendendo-se que tal elevao reconhece o sensvel como parte integrante da

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    28

    natureza humana e, evidentemente, os efeitos sociais que isso pressupe. Com efeito, em todos os domnios, do mais srio ao mais frvolo, dos diversos jogos de faz-de-conta ao jogo poltico, na ordem do trabalho como na dos lazeres, bem como nas diversas instituies, a paixo, o sentimento, a emoo e o afeto (re)exercem um papel privilegiado. Portanto, caso se queira saber dar conta dos mesmos, importa encontrar instrumentos adequados, dentre os quais se conta a metfora. Diamante da lngua, nos diz Matzneff. Isso quer dizer que ela faz parte desse tesouro, do qual somos os depositrios, que, nos melhores momentos da histria do pensamento, permitiu que se encontrasse um equilbrio entre o intelecto e o afeto.

    Esse equilbrio se encontra, e vivido enquanto tal, no senso comum, que foi to estigmatizado durante toda a modernidade; est igualmente presente no pensamento orgnico das sociedades tradicionais; por fim, um elemento incontornvel da socialidade ps-moderna. Em particular nas jovens geraes que, empiricamente, vivem uma inegvel sinergia entre a razo e os sentidos. Por conseguinte, aquele que deseja dar conta da sensibilidade social que emerge em nossos dias estaria bem inspirado se integrasse uma tal globalidade em sua anlise. E para ilustrar

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    29

    esta ltima, pode-se fazer uma comparao com o pintor impressionista. Ele trabalha ao ar livre, escapa ao enclausuramento das frmulas prontas e d conta das ambincias que compem aquilo que o cerca. O impressionismo intelectual est tambm ligado simplicidade da existncia cotidiana. Faz igualmente com que se sintam seus aspectos cambiantes. E, assim fazendo, sublinha o sentimento de sonho, prprio do inelutvel vir a ser das horas e dos dias de que est impregnada a vida diria.

    Os sonhos individuais e coletivos so feitos de alegrias e dores. Esses sonhos transbordam cada vez mais da vida privada e ocupam, em massa, a praa pblica. Um pensamento que sabe

    22 acompanhar-lhes os meandros , certamente, o mais capacitado a deixar entrever a emoo, o sofrimento, o cmico, que o prprio de uma vida que no se reconhece no esquema, preestabelecido, de um racionalismo de encomenda. na dor e no sangue que se nasce para a existncia. Mas no maravilhar-se que possvel, bem ou mal, ir vivendo. integrando tudo isso que se saber ser o menos infiel possvel efervescncia existencial caracterstica da socialidade contempornea. Nietzsche aconselhava a fazer do conhecimento a mais potente das paixes. Para alm

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    30

    das querelas de sbios, mas mantendo uma exigncia intelectual, justamente a da gaia cincia, talvez seja possvel que uma tal paixo culmine com um pensamento que se tenha reconciliado com a vida.

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    31

    II A Razo abstrata

    Mas ento, ousei comentar, estais ainda longe da soluo... Estou pertssimo, disse Guillaume, mas no sei de qual. - Ento no tendes uma nica resposta para vossas perguntas? - Adso, se a tivesse ensinaria teologia em Paris. - Em Paris eles tm sempre a resposta verdadeira? - Nunca, disse Guillaume, mas so muito seguros de seus erros.

    Umberto Eco O Nome da Rosa

    1. A Razo separada

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    32

    sempre em seu incio que uma poca verdadeiramente pensada, isto , que se prev seu desfecho. Assim Goethe, em seu rigor clssico, ao mesmo tempo em que participa da inaugurao da modernidade, no deixa de prever-lhe o fim. Testemunha-o sua obra potica. O mesmo se d para um de seus predecessores, Johann Valentin Andreae que, em seu Fausto, conta a histria de um homem de cincia, decepcionado com esta, que encontra a salvao na contemplao. Trata-se de um tema recorrente, desde o sculo XVII, que merece ateno: no exato momento em que se funda, o racionalismo estabelece seus prprios limites. assim que, num tempo em que se inicia a ps-modernidade, no intil indagar sobre as caractersticas essenciais de tal racionalismo. Menos para critic-lo ou ultrapass-lo, do que para ver como, depois de ter sido um instrumento de escolha na anlise da vida individual e social, ele esclerosou-se e, por isso mesmo, torna-se um obstculo compreenso da vida em seu desenvolvimento.

    Precisemos, desde j, que tal desvio epistemolgico no deve ser considerado um jogo acadmico. Est carregado de conseqncias para a compreenso, em profundidade, dessa vida nova de aspectos matizados e efervescentes que vm de todo

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    33

    lado chocar-se aos nossos espritos e sentidos. preciso compreender que o racionalismo, em sua pretenso cientfica, particularmente inapto para perceber, ainda mais apreender, o aspecto denso, imagtico, simblico, da experincia vivida. A abstrao no entra em jogo quando o que prevalece o fervilhar de um novo nascimento. preciso, imediatamente, mobilizar todas as capacidades que esto em poder do intelecto humano, inclusive as da sensibilidade.

    27 H, com efeito, dois escolhos que surgem, com

    regularidade, na ordem do pensamento e da ao social: o racionalismo e o irracionalismo. Como um par perverso a interagir um sobre o outro, eles se chamam, se completam, se cortejam e em nada podem passar um sem o outro. Alis, se se observarem as histrias humanas, eles aparecem e desaparecem de modo concomitante. Por vezes este que toma a dianteira, enquanto aquele minimizado; logo depois o equilbrio inverso que se instaura. Com freqncia, em equilbrio escrupuloso, eles compartilham o terreno. Em todos os casos so complementares.

    A propsito, a modernidade um bom exemplo de uma conivncia conflituosa assim. Para primeiro

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    34

    afirmar-se, para depois confortar-se, para, por fim, reivindicar sua hegemonia, o nacionalismo produz um valorizador, um duplo obscuro o irracionalismo que, sob nomes diversos, obscurantismo, reao, tradio, pensamento orgnico, permitir que o primeiro aparea como sendo o discurso de referncia em torno do qual vai organizar-se a vida em sociedade. Todos os grandes sistemas de pensamento, das Luzes ao funcionalismo, passando pelo marxismo, esto de fato impregnados da mesma matria e apresentam-se, todos eles, como variaes musicais de um mesmo tema.

    Mas, ao exacerbar-se, ao tornar-se hegemnico, ao instaurar nos fatos o seu totalitarismo mais ou menos suave, ao ter a pretenso de tudo gerir, tudo prever, tudo organizar, e isto a priori ou de um modo conceptual, tal racionalismo, terico e prtico, necessita, pontualmente, do sobressalto do irracional. Sem pretender dar mostras de provocao gratuita, cabe dizer que aquele foi o precursor deste. Preparou-lhe as instalaes de inverno e permitiu que, tanto no nvel poltico quanto no cotidiano, ocorressem exploses, totalmente fora de controle, que se apresentavam como reaes, retornos do material reprimido, quando a pregnncia da predizibilidade ou do utilitarismo se tornava forte demais. A histria do

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    35

    sculo que acaba de escoar esclarecedora a esse respeito, ela que viu, em um mundo que se pretende civilizado, exploses bem mais brbaras do que as das pocas reputadas como tais. Com efeito, barbrie artesanal dos sculos anteriores

    28 sucede a sofisticao dos meios propiciados pelo avano tecnolgico e pelo desenvolvimento cientfico.

    Assim, ser preciso ver, nos diversos campos de concentrao, a expresso de um irracionalismo anacrnico, ou a de um racionalismo que leva aos limites extremos suas faculdades organizadoras? Para alm de nossas certezas habituais, e de um moralismo de bom tom, a pergunta merece ser feita. O mesmo para as guerras, carnificinas, genocdios, racismos ou os diversos processos de excluso que pontuam a vida diria. E o que dizer, num modo menor, dessas experincias contemporneas de temores e pavores ancestrais, de comunho com a natureza, de religiosidades renascentes, de fascnio astrolgico, no esquecendo os cultos de possesso ou diversas prticas mgicas que contaminam todas as camadas da sociedade? Que dizer, igualmente, dessas situaes corriqueiras que, do esporte msica, passando pela moda, pem em jogo as pulses gregrias e desenfreadas, totalmente inassimilveis pelo

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    36

    racionalismo ambiente? E seria fcil prosseguir, em litania, no mesmo sentido. So coisas cada vez mais aceitas. Mas, com muita freqncia, esses fenmenos so classificados sob a rubrica infame de um retorno barbrie, esquecendo-se que esta no seno uma expresso da violncia da natureza humana. Ao se pretender por demais contradiz-la, fazer com que d o melhor de si, decretar, a priori, aquilo que ela deve ser, esquece-se de que tambm ela est impregnada de lama. O humano tambm humus. E o bom senso de Pascal no se enganou quanto a isso: quem tenta passar por anjo traz tona o animal.

    Paul Valry que fala, em Mon Faust, da fora bruta do conceito. Designa assim a atitude intelectual que depura, reduz, analisa, e seria possvel encontrar infindveis expresses para designar um pensamento procsteo que, imagem do clebre leito, corta, fraciona, segundo um modelo estabelecido a priori. Trata-se a da conseqncia do processo racionalista que, segundo o adgio bem conhecido, pretende passar do concreto ao abstrato, do singular ao geral, sem que seja levada em conta a vida em sua complexidade, a vida polissmica e plural, que no se acomoda, ou bem pouco, s idias gerais e outras abstraes de contornos assaz mal definidos.

    29

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    37

    A atitude puramente intelectualista contenta-se com discriminar. Em seu sentido mais simples, ela separa o que suposto ser o bem ou o mal, o verdadeiro do falso e, por isso mesmo, esquece que a existncia uma constante participao mstica, uma correspondncia sem fim, na qual o interior e o exterior, o visvel e o invisvel, o material e o imaterial entram numa sinfonia seja ela dodecafnica das mais harmoniosas.

    O nacionalismo esquece que, se existe uma lei, a da coincidentia oppositorum, que faz com que coisas, seres, fenmenos, totalmente opostos, se combinem. Ao negligenciar isto, o nacionalismo, especialmente sob a forma moderna, empenha-se em sufocar, excluir pores inteiras da vida, at que estas por sua vez se vinguem, exacerbando-se e subindo aos extremos, donde as exploses perversas a que me referi mais acima.

    Pode-se pensar que, em certas pocas, essa discriminao benfica, que ela permite justamente pr ordem onde reina uma massa totalmente confusa. Mas, conduzida sem distino, ao tornar-se hegemnica ela chega ao ponto de negar, de denegar as correspondncias secretas de que se tratou acima. Nesse sentido, as exploses no-racionais, de que a atualidade prdiga, podem ser compreendidas como

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    38

    outros tantos sintomas, indcios da unio dos contrrios, isto , do fato de que cada elemento da vida social afeta o seu contrrio. Enquanto que para o nacionalismo o terceiro excludo, o conhecimento tradicional, a sabedoria popular, ou simplesmente a experincia emprica nos ensinam que o terceiro sempre dado (tertium datum), que impossvel fazer repousar todas as coisas sobre uma discriminao estrita, e que, em seus diversos aspectos, a vida um movimento perptuo onde se exprime a unio dos contrrios.

    Certos autores, como Gilbert Durand ou Stephan Lupasco, j insistiram sobre essa lgica contraditorial, isto , uma lgica que mantm juntos todos os elementos heterogneos da existncia. Resta explicar em que uma lgica tal a mais oportuna (talvez fosse preciso dizer: a mais til) para perceber os meandros da complexidade vital. Pois, afinal de contas, bem isto que nos importa aqui: possvel compreender a vida social, e, se for, de que modo?

    30 Com efeito, a caracterstica essencial do

    nacionalismo bem essa maneira classificatria, que quer que tudo entre em uma categoria explicativa e totalizante. Assim negada a exaltao do sentimento de vida que, em qualquer tempo e lugar, a principal

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    39

    manifestao do ser. J em Plato encontramos tal quimera. Testemunha dessa cena digna de um teatro de bulevar, em que o filsofo vai definir o homem como um bpede implume. Digenes, galhofeiro, preferindo quase sempre o ato palavra, depena um galo e o atira assemblia. Plato, sem se fazer de rogado, d uma outra definio: um bpede, implume, provido de unhas largas e chatas. O jogo teria podido continuar, e as definies se sucederem. O que mostra este curto aplogo essa estranha quimera que quer que tudo entre num molde preestabelecido, desbastando ou acrescentando, conforme as necessidades da causa, sem verdadeira preocupao com o homem vivo, que sofre, que feliz, que tem emoes e sentimentos, e do qual, em suma, nada se aprende etiquetando-o de um modo ou de outro. Eu disse mania, quimera, coisas que, curiosamente, so totalmente opostas s prprias pretenses da razo s.

    H, com efeito, algo de doentio nessa pulso que pretende coibir o real. Referindo-se esquizofrenia, certos psiquiatras falavam at de nacionalismo mrbido. Talvez no seja intil fazer referncia a uma situao paroxsmica, perfeitamente patolgica no caso em pauta, para fazer sobressair bem o perigo de uma atitude de esprito que corta, separa, funciona a esmo, sem referncia ao real

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    40

    naquilo que este tem de tangvel, de palpvel, de inteiro. A esquize do nacionalismo no fornece seno uma pura do homem e do mundo. Produz um esquema que apresenta caractersticas importantes, mas ao qual falta o essencial: a vida. H a algo de desencarnado. No que falte eficcia os desempenhos da modernidade esto a para prov-lo mas deixa de ser satisfatrio a partir do momento em que se assiste, de diversas maneiras, ao lan vital renascente.

    Passando da filosofia arte, pode-se aproximar a mania classificatria daquilo que Paul Klee diz do formalismo: a forma sem funo. A forma agora est tomada de inrcia, nada mais

    31 tem de dinmica. Ser preciso voltar fora da forma, aquilo em que ela poder ser abertura para o mundo; basta indicar aqui que, ao rigidificar-se em formalismo, ela perde seu projeto existencial. E isso se aparenta a um racionalismo que encontra sua justificao em um princpio de corte (Roger Bastide). O formalismo para a forma o que o racionalismo para a nacionalidade: um processo morto e mortfero que assinala muitas potencialidades, possibilidades, mas totalmente estranho s realizaes das mesmas. No tenho competncia particular para

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    41

    analisar com preciso as conseqncias de tal esquizofrenizao do pensamento. At emprego este termo em seu sentido comum, a saber, aquilo que impede a comunicao, aquilo que mantm separadas as pessoas e as coisas.

    Se se adota essa analogia, porque o que est, essencialmente, em questo no nacionalismo bem isto: um extraordinrio fechamento sobre si mesmo, uma energia que dispensada e empregada de maneira unicamente interna. O resultado no carece de grandeza, e isso em todos os domnios: filosfico, poltico, gestionrio, institucional; em tudo isso a racionalizao culminou com a implementao de um sistema auto-suficiente. Mas desse sistema esto totalmente cortadas as foras vivas da sociedade, da inventividade intelectual, da originalidade existencial, em suma, da criao sob todos os seus aspectos. H, no sistema que funciona para si prprio, alguma coisa que da ordem da grandeza e do declnio. Pode-se aproximar isso de todas as civilizaes que se desenvolveram a partir de um princpio fundador e, em seguida, morreram por uma rigidificao extrema, por um apego exclusivo a esse mesmo princpio. Ao perder contato com o que havia servido de suporte, o nacionalismo trancou-se em uma fortaleza vazia.

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    42

    Por conseguinte, no h razo para espanto se a energia criadora busca em outro lugar suas expresses e manifestaes. A vida social est repleta dessas situaes anmicas que se empenham, em primeiro lugar, por romper as algemas de uma organizao pensada a priori. A circulao dos bens no mais se reconhece na economia oficial, os novos valores esto nos antpodas das modas estabelecidas, os pensamentos originais encon-

    32 tram a salvao na progresso paradoxal, enfim, a vida social no se curva mais aos ucasses do simples utilitarismo programado. freqente, da parte dos observadores sociais, interpretar as mudanas de valores que se manifestam neste fim de sculo como a mais ntida expresso de um retorno do irracionalismo. Pode-se dizer, de preferncia, que se trata, simplesmente, da mais adequada expresso de um racionalismo levado aos mais extremos limites. No mais reconhecendo-se na lgica racional do dever-ser, a realidade social se vinga e toma, em tudo e por tudo, a contramo daquilo que, desde a filosofia das luzes, se tinha constitudo com tanta dificuldade. H a algo de trgico, mas de um trgico que de modo algum deve ser imputado permanncia, ou ao retorno do obscurantismo mas, pelo contrrio,

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    43

    exacerbao daquilo que havia sido o motor central da modernidade. Exatamente como no romance de Orwell, 1984, tudo funciona segundo um sistema de antfrases. E o ministro do Amor quem deve supostamente gerir e gerar a guerra, assim como o termo liberdade designa a servido absoluta. Stricto sensu, o nacionalismo se debate, perde p porque no foi sensvel fora de seu contrrio, porque no soube integr-lo, para temperar sua pulso hegemnica. No esqueamos, com muita freqncia a onipotncia sintoma de impotncia.

    Cabe lembrar: a circunspeco absoluta (Fichte) em relao ao real que inaugura uma boa parte da grande filosofia do sculo XIX. Desconfiana face quilo que ; medo de seu aspecto incontrolvel. O filsofo deve estar disposto a desapegar-se de tudo o que constitui o ambiente social e natural. Posteriormente, tal atitude foi largamente difundida e contaminou toda a progresso intelectual. Mas ao mesmo tempo em que mantinha distncia em relao ao dado mundano, o pensamento comprazia-se em si prprio. Sua auto-suficincia culminou numa espcie de narcisismo. No possvel, alis, compreender Schopenhauer ou Nietzsche e, mais tarde, a obra de Simmel ou de Bergson, se no se tiver em mente a crtica que estes fazem da auto-seduo da filosofia.

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    44

    Falei, mais acima, de esquizofrenia; seria igualmente possvel falar de autismo. A perfeio da progresso, a beleza das construes lgicas, a

    33 necessidade de seus encadeamentos, esto na base de tal enclausuramento. O que se diz aqui sobre filosofia conceptual no seno uma modulao da crtica que se poderia fazer do nacionalismo. O mundo no admissvel seno quando pensado; , na melhor das hipteses, uma imagem refletida do crebro humano.

    No se trata, claro, de negar a importncia das representaes na construo da realidade; preciso, ainda, que tal construo reconhea aquilo que lhe serve de suporte e com isso quero dizer nasa com o mundo que ela supostamente apreende, compreende, seno, explica. ficando enclausurada na conscincia pura que, pouco a pouco, a razo se distancia do mundo circundante, torna-se assunto de especialistas ou, ainda, serve de garantia a todos os processos de organizao e de gesto que caracterizam a tecnoestrutura contempornea. nesse sentido que, stricto senso, os conceitos perdem p: no tm mais cho onde apoiar-se. Esta certamente a fonte do drama do homem moderno. H, nesse delrio de abstrao, uma escalada de potncia, uma fuga para frente, que se encontra tanto nas produes

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    45

    acadmicas quanto nos mais sofisticados arcabouos de uma intelligentsia sem amarras, no esquecendo a algaravia tecnocrtica, ou o discurso vazio dos polticos. Em cada um desses casos, s conta o sujeito pensante, s importa o pensamento, coisas que inauguram uma viso dogmtica e normativa do homem em sociedade.

    Ao modo polmico que lhe conhecemos, Charles Pguy chega a falar do partido intelectual, que vai fazer do saber racional o atributo essencial do poder. Sociologia, psicologia, filosofia sero, portanto, como tantas outras armas a servio de uma viso utilitria e normativa da sociedade. isso, propriamente, o que vai traar a fronteira entre aquilo que cientfico, portanto admissvel, e aquilo que pertence ao comum, isto , ao vulgar, que devemos, que preciso corrigir. Essa distino a prpria conseqncia de uma petrificao da razo, e certamente uma das mais evidentes manifestaes daquilo que podemos chamar de burguesismo. No rastro da Revoluo Francesa, em seguida ao longo de todo o sculo XIX, essa petrificao encerra uma forte carga de religiosidade. Cada poca necessita de um mito em torno do

    34

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    46

    qual agregar-se. O mito fundador do burguesismo bem o da razo, com todas as suas conseqncias: f no progresso, tenso frente ao futuro, exacerbao da cincia. Mas cada um desses elementos , por um lado, da ordem da projeo, e, por outro, baseia-se no corte entre um antes, imperfeito, ainda no verdadeiramente acabado, e um depois suposto ser a consumao, a perfeio realizada. Como j assinalei, impressiona ver o papel exercido pela dimenso religiosa na deificao da razo. O paroxismo robespierreano no seno a exagerao de uma sensibilidade latente que vamos reencontrar at este final de modernidade. H tabus que no convm transgredir. Aquele que diz respeito ao racionalismo um destes e nunca deve ser questionado. Ora, o prprio do sagrado, de um tabu, que ele implica a ruptura: aquilo que separa do deus, da coisa a adorar, da sociedade perfeita. O corte epistemolgico da mesma natureza, tem seu deus, seus dogmas, seu clero. Portanto, sociologicamente compreensvel que ele seja vigorosamente defendido, qual uma fortaleza, com meios que, muitas vezes, pertencem mais ordem de uma lgica militar do que do verdadeiro debate de idias. Aps ter sido um instrumento eficaz contra os diversos fidesmos religiosos, o nacionalismo se tornou, por sua vez,

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    47

    objeto de um ato de f, com todas as estreitezas de esprito inerentes crena. exatamente isso que preciso perceber bem, a partir do momento em que parece importante por em ao uma verdadeira razo aberta.

    Talvez seja assim que se deve compreender a clebre frmula hegeliana sobre a astcia da razo. Esta consiste em dar forma a todos os projetos ocultos ou grandiosos que animam o indivduo ou a sociedade em um momento dado. Pode, igualmente, servir para combinar as aes e representaes contraditrias, seno, aparentemente insensatas, da vida social, e isso com a finalidade de orient-las para uma aspirao mais alta. Mas tal astcia dinmica e no saberia deter-se em seu desenvolvimento. Com isso quero dizer que o que pode ter sido racional ao longo de toda a modernidade torna-se um freio quando uma outra poca se inicia. A propsito, no se deve esquecer tudo o que a filosofia

    35 hegeliana devia s suas origens romnticas e msticas. O que, no caso especfico, significa que a razo e essa sua astcia essencialmente dinmica, vitalidade, e que at mesmo capaz de integrar aquilo que parece ser o seu contrrio.

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    48

    Pode-se ainda citar aqui o comentrio de Hegel sobre a filosofia, no qual ele diz que esta chega sempre tarde demais. Enquanto pensamento do mundo, ela aparece somente quando a realidade consumou e terminou seu processo de formao (...). Quando a filosofia pinta sua grisalha em meio monotonia, uma manifestao da vida termina de envelhecer. No se pode rejuvenesc-la com cinza sobre cinza, apenas conhec-la. No seno no incio do crepsculo que a coruja de Minerva ala vo. Esta clebre passagem, que ainda hoje merece reflexo, parece indicar que o trabalho da razo um perptuo recomeo, que em nada se pode enclausurar a realidade, esta que sempre est em vantagem sobre o pensamento que dela se pode ter, e que uma obra cientfica digna desse nome deve saber questionar sempre todas as suas certezas, at mesmo as mais estabelecidas e, sobretudo, as mais seguras de si. Ao tornar-se um sistema fechado sobre si prprio, o racionalismo traiu a ambio, sempre renovada, da racionalidade. Ele se torna uma dogmtica morta, seca e esclerosada, um corpo de doutrinas frgidas incapazes de perceber aquilo que faz a vida em seu desenvolvimento.

    Havendo acordo quanto a uma hiptese tal, no haver dificuldade em compreender facilmente que

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    49

    convm superar, sem nostalgia alguma, todas as ideologias que se arvoram em premissas racionalistas. Noto, entretanto, que, se a coisa fcil de dizer, bem mais difcil de aplicar. Com efeito, ao menos na tradio ocidental, o conjunto das representaes e aes sociais que est contaminado por tal postura intelectual. Esta constitui, de certo modo, uma ambincia, uma sensibilidade. Para retomar um termo tomista bem conhecido, um habitus, algo que nos impregnou, e constitui a quintessncia de nosso ser individual e social. Donde a necessidade, por um lado, de suplantar continuamente essa sensibilidade e, por outro, a constante ambio de perceber aquilo que pode ser alternativo.

    36 Esse duplo cuidado exige muito mais rigor,

    agora que a falncia racionalista coisa reconhecida no mundo contemporneo. E no ser possvel compreender os mltiplos fatos sociais que nos espantam, nos chocam, nos parecem insensatos, se no tivermos em mente essa falncia. Ademais, a hegemonia da cultura ocidental moderna j teve, tambm ela, o seu tempo. A poca de pluriculturalismo, e todas as filosofias, religies, maneiras de ser e modos de pensamento que consideramos arcaicos, retrgrados, ou simplesmente

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    50

    anacrnicos, esto agora solidamente estabelecidos no prprio seio de nossas sociedades. Sendo assim, o momento no mais de desprezo, ou de lamentao desolada, mas sim de abertura de esprito. somente sob esta condio que, bem longe das frivolidades que nos so com exagerada freqncia habituais, saberemos responder aos desafios que nos lana a ps-modernidade.

    A prudncia est fora de circulao, o que sustento. preciso saber desenvolver um pensamento audacioso que seja capaz de ultrapassar os limites do racionalismo moderno e, ao mesmo tempo, de compreender os processos de interao, de mestiagem, de interdependncia que esto em ao nas sociedades complexas. Trabalhos como os de Edgar Morin so exemplares, a este respeito, h longos anos mostrando todo o interesse de tal ecologia do esprito. Segundo o termo longamente analisado por esse autor, eles nos indicam o Mtodo. preciso compreender este termo em seu sentido mais estrito: o de um encaminhamento. No que esses trabalhos indiquem com segurana uma via j traada, mas melhor ainda indicam uma orientao, fornecem elementos cartogrficos e, principalmente, oferecem orientaes para empreender-se o percurso. E estas no so apenas vs metforas, toda a vida de

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    51

    nossas sociedades, que nos impele para um pensamento de alto-mar, cuja palavra mgica , certamente, a compreenso da organicidade social.

    37

    2. Crtica da abstrao

    O interesse claro: preciso saber reconhecer o

    que est morto naquilo que parece vivo e, ao mesmo tempo, poder detectar os germes de renascimento. No caso especfico, isso pode permitir fazer a triagem entre os pensamentos de tipo escolstico, totalmente estticos, e outros que ho de ser mais humanos, mais encarnados. Talvez seja preciso voltar a reflexes pr-modernas, que se interdiziam de postular o indivduo como nico sujeito do conhecimento capaz de discriminar, distinguir, dominar o mundo natural e social. Seria, para dizer o mnimo, interessante ver como a sociedade contempornea, pelo prprio fato de estar apegada ao cotidiano, proxemia, no consegue mais acomodar-se a uma diviso estrita entre aquilo que seria da ordem da razo, e aquilo que pertenceria da paixo, aquilo que privilegiaria a ao em detrimento das atitudes individuais e sociais

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    52

    mais passivas, ou, para retomar uma dicotomia bem conhecida, aquilo que valorizaria as luzes, vetor do progresso, por oposio ao obscurantismo da tradio.

    Para ilustrar o propsito, e como base para a anlise, proporei, de uma nova maneira, o exemplo do barroco. Um grande especialista desse estilo, Wlfflin, no hesita em dizer que uma de suas caractersticas a progressividade da luz. Isso quer dizer que h no barroco um jogo sutil entre o claro e o escuro. sua prpria inseparabilidade que faz sua claridade especfica. Qual ela? Antes de mais nada, um apagamento dos contornos. Tudo isso, precisa ele, est em oposio a Descartes, que inaugura a modernidade, e isso do duplo ponto de vista de uma fsica da luz e de uma lgica da idia.

    No se poderia melhor ilustrar a crtica de um racionalismo totalmente incapaz de compreender o claro-escuro de todos os fenmenos sociais. J indiquei todo o interesse do barroco para a

    38 compreenso da situao ps-moderna e, mesmo se isso assume o porte de um leitmotiv, preciso recordar que este ltimo enfatiza, antes de mais nada, a ambincia, a impresso de transformao, a dinmica contnua de sua labilidade. O conjunto

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    53

    resulta em obras vaporosas, de aspectos fugidios, de leitura complexa e enriquecedora; coisas que caracterizam uma heterogeneidade feita de interdependncia de sombra e luz. Ora, nolens, volens, so estes mesmos elementos que reencontramos quase termo a termo na vida social: nada est em linhas duras ou distintas, tudo funciona com base na ambigidade e, tanto no que diz respeito s ideologias, vida sexual, quanto relao no trabalho ou na poltica, estamos confrontados a uma fantstica lei de esmaecimento, que procede mais por esbatimento do que pela firmeza do desenho (ou desgnio).

    Nada mais distante de uma estrutura linear e contnua, caracterstica das instituies racionais da modernidade. O mesmo para os modos de vida e as maneiras de ser sobre os quais fundou-se, juridicamente, a organizao de nossas sociedades at este fim de sculo. tudo isso que convm levar em conta, uma vez que estamos confrontados simultaneamente s mudanas de valor e ao questionamento epistemolgico que corolrio das mesmas. A distino, sob todas as suas formas, filosfica, sociolgica, poltica, a diviso em entidades tipificadas: identidades, classes, categorias socioprofissionais, filiaes partidrias, ideolgicas

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    54

    ou religiosas, tudo isso tende, progressivamente, a dar lugar a um vasto sincretismo de contornos pouco delimitados, onde cada qual chamado a desempenhar papis diversos, no jogo sem fim das aparncias. um estado de mundo assim que vamos encontrar, de modos diversos, pelos quatro cantos do mundo, que deve incitar-nos a uma reavaliao radical de nossos esquemas de pensamento. Principalmente reinsero em debate do corte entre domnios que seriam perfeitamente estanques, e sem comunicao entre si. A estrutura distinta da ordem do mecanicismo, o esmaecimento a que me referi remete, ao contrrio, para o orgnico.

    A esse respeito, pode-se tomar o exemplo da distino entre o sagrado e o profano, que se imps particularmente na tradio crist

    39 e que, em seguida, serviu de suporte ao corte existente entre o saber e a vida ordinria. Os historiadores e etnlogos mostraram bem que uma distino tal est longe de ser universal. Assim, quando da conquista do Mxico pelos Espanhis, os religiosos que os acompanham, que tm por funo subjugar as almas, no tiveram pouca dificuldade para separar os dolos dentre objetos de culto e adornos profanos. Essa distino, para os autctones, desprovida de sentido.

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    55

    O mesmo se d para a cultura popular no Ocidente cristo. E crescente o conhecimento de que os diversos cultos mariais ou, ainda, os cultos aos santos, embora recuperados pela teologia oficial, no conhecem essa separao e foram e ainda esto encarnados na vida cotidiana, participam das gestas do dia-a-dia e possuem a mesma operacionalidade que estes.

    Seria possvel encontrar numerosos exemplos no mesmo sentido, que no cabe analisar aqui, todos mostrando que existe, em lugares e tempos diversos, uma maneira mais ecolgica, mais global de encarar o dado mundano. Por outro lado, podemos insistir sobre o fato de que foi no rastro da dicotomia evocada mais acima que se constituiu o racionalismo cientfico; e isso, tanto no que diz respeito realidade individual quanto realidade social. Como bom representante de tal tendncia, Freud nota que a oposio eu/no-eu, sujeito/objeto, e poderamos prosseguir com cultura/natureza, corpo/esprito, funda-se sobre o esprito de dominao. Para ele, o poder separador que constitui a arma essencial do pesquisador, esse cavaleiro do dio. imagem de Deus, seu trabalho terico um bom exemplo a anlise consiste em recortar, distinguir, recompor. O avatar intelectual da deidade! contra isso que

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    56

    algum como Lou Andreas Salom, no tipo de abordagem ecolgica de que falei, prope uma progresso intelectual menos agressiva, mais respeitosa da globalidade humana e natural. Isso pe em ao um conhecimento intuitivo. Em referncia etimologia: um nascimento com (cum nascere), a partir de uma viso do interior (intuire).

    Tem-se a os dois plos da inteligncia humana. O primeiro, abstrato, que deriva infalivelmente para o dogmatismo, a intolerncia, a escolstica; o segundo, mais encarnado, atento ao sensvel,

    40 criao natural, e que se empenha o mais possvel em evitar a separao. Ao privilegiar-se este segundo plo, no se est de modo algum preconizando qualquer abdicao do intelecto, mas, sim, prevenindo contra um estreitamento da faculdade de compreender, evitando tal pecado da inteligncia: aquele que mais separa (R. Abellio). Assim, reencontra-se o sentido da correspondncia, aquele que os alquimistas bem tinham visto, j em seu tempo; aquele, ainda, posto em ao pelos filsofos do Renascimento, que no negligenciava nenhum domnio do saber humano, por menos acadmico que nos possa parecer; por fim aquele, mais prximo a ns, posto em ao pelo romantismo alemo ou pela

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    57

    poesia baudelairiana. Em cada um desses casos, a arte de pensar efetivamente uma arte e integra uma dimenso esttica que, posteriormente, foi confinada esfera das belas-artes. Isto , num lugar destinado utilizao pelo lazer que caracteriza o aspecto no-srio da existncia, por oposio ao senso de utilidade, de poder, em suma, de uma concepo econmica do mundo. uma concepo como esta que , fundamentalmente, incapaz de compreender o aspecto criativo da vida fora da dimenso do fazer, da ao, seno, do ativismo. Numerosos so os indcios que atualmente chamam a ateno dos observadores para a saturao de uma tal concepo do mundo e que nos obrigam a voltar o olhar para o aqum da separao, do corte, aos quais se fez referncia. Talvez seja nesse sentido que se pode falar de nascimento da ps-modernidade. Esta nada mais do que a ecloso dos germes pr-modernos que, aps o longo sono da modernidade, ganham novo vigor.

    A denegao da correspondncia entre os diversos domnios da vida, denegao que serve de fundamento ao corte saber-vida, um fenmeno recorrente que ressurge, regularmente, nas histrias humanas. Trata-se de um fenmeno de antiga tradio. Talvez seja at necessrio, aqui, fazer

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    58

    referncia ao mito bblico no qual o homem come os frutos da rvore do conhecimento e, por causa disso, rompe com a vida paradisaca, isto , com uma vida de pura fruio, na qual o sensvel, o afeto, a comunho com a natureza constituem o essencial de sua existncia. O mito revelador,

    41 uma constante antropolgica que conhecer modulaes especficas de acordo com as diversas pocas. Exercer, por vezes, um papel importante, outras vezes, ao contrrio, ser totalmente minorado, mas seu enraizamento no imaginrio coletivo profundo. Assim, podemos aproxim-lo daquilo que os cabalistas denominam o isolamento da Shekhina, isto , o apartar da sabedoria. O filsofo Giorgio Agamben estabelece uma relao entre esse isolamento e o pecado de Ado: a cincia se separa da vida. O saber segue, ento, seu prprio destino. No est mais ligado globalidade humana e natural, a fruio e a contemplao do lugar ao, ao sobre si, ao sobre o mundo. Ao, certo, por meio de um saber, de uma cincia. Ao isolar uma das caractersticas do todo, ao fragmentar este ltimo, o homem justifica assim sua vertigem, sua embriaguez, culminando com sua prpria amputao.

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    59

    Porque bem disso que se trata. Ao enfatizar, unilateralmente, um aspecto da realidade social, o homem amputa uma parte, essencial, de si mesmo, a da criao, a da dimenso imagtica. Ou, mais exatamente, ele faz compartimentos que no se comunicam entre si. Assim, at mesmo um esprito to universal quanto o famoso Pico della Mirandola considera coisas srias que exigem um certo estado de esprito, e outras que exigem outros: Quando estiveres com os flautistas e citaredos, s todo ouvidos, mas quando fores ter com os filsofos, retira-te dos sentidos, entra em ti mesmo, nas profundezas da alma e nos recnditos do esprito, de modo a escutares a msica do Apolo celeste. Tal nota perfeitamente paradigmtica da dicotomia que se instala no interior do prprio homem e, por via de conseqncia, no seio da sociedade.

    Assim, no h mais especificidade para aquilo que, na Antigidade, ou nas sociedades tradicionais, tinha um lugar de destaque: a fruio intelectual. Tal expresso chega a parecer monstruosa, por reunir realidades que seriam de domnios diferentes, se no totalmente opostos. em tal linhagem que se situa quase todo o pensamento moderno. Vejam-se as anlises de um Theodor Adorno, para o qual a

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    60

    separao entre a cincia e a arte coisa irreversvel. A objetivao e a desmitologizao do mundo

    42 acarretaram essa separao, e no seria possvel, por um toque de varinha mgica, voltar para trs e fazer reaparecer a unicidade do conceito, da imagem e da intuio. Esse gnero de anlise passou para a opinio comum intelectual, a estigmatizao do ensaio, como gnero bastardo, que se empenha justamente em aliar cincia e arte, esclarecedora a este respeito.

    E, no entanto, bem parece que, para alm dessas crticas, tal unio de contrrios esteja em via de realizao. Isso se deve, evidentemente, ao fato de que, na prpria realidade, a imagem, a intuio e o conceito esto, justamente, fortemente unidos; e os vituprios racionalistas no conseguiro grande coisa contra tal tendncia. certo que a objetivao e a desmitologizao exerceram um papel importante durante toda a modernidade. Foi este o prprio terrio de toda vida social. Por conseguinte, era certamente necessrio fazer da arte e da cincia objetos bem separados: aquela para os sentimentos, esta para a razo, e isso em todos os domnios. As cincias duras haviam mostrado o caminho, as cincias humanas deviam segui-lo. Raros foram aqueles que tentaram transgredir tal fronteira; quando o faziam, os

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    61

    riscos e perigos corriam por sua prpria conta. A esse respeito, pode citar-se a reao de Durkheim ao livro de Simmel, La Philosophie de largent, do qual ele critica o gnero de especulao bastarda em que o real expresso em termos necessariamente subjetivos, como na arte, mas abstratos como na cincia. Com efeito, prossegue, ele no saberia dar-nos, das coisas, nem as sensaes vivas e frescas que o artista desperta, nem as noes distintas que o cientista busc.

    No se poderia melhor exprimir a dicotomia tpica da modernidade: cada coisa em seu lugar e a sociedade estar em ordem! De Pico della Mirandola a Adorno, passando por Durkheim, uma mesma sensibilidade se exprime: a da separao, a de uma razo abstrata que no consegue, no sabe, perceber as afinidades profundas, as sutis e complexas correspondncias que constituem a existncia natural e social. Da vem, certamente, a alergia do cientista s formas, s aparncias, a todas essas coisas sensveis que ele tende a desprezar, pelo motivo de que elas no podem reduzir-se intelectualidade pura. Seu medo , essencialmente, o

    43 do retorno ao caos primordial que s a razo pode e sabe pr em ordem. Tudo o que tende a relativizar

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    62

    essa ordem , potencialmente, suspeito. No entanto, a prpria vida que, aos olhos do intelectual, suspeita, pois nunca se dobra a uma ordem abstrata. Donde o giro que, sub-repticiamente, vai operar-se do saber para o poder.

    Com efeito, o saber passa a ser o poder. As armas da crtica vo confortar a crtica das armas. assim que chega ao fim a tradio filosfica que era, antes de mais nada, amor da verdade, verdade do amor. Se este termo for compreendido em seu sentido pleno, at o sculo XVIII existia uma teoria ertica. No mundo antigo, Plato constitui um magistral exemplo. Em seguida, o estoicismo repousa sobre o uso racionalizado do sentimento. A Idade Mdia igualmente, com Toms de Aquino, no elude a questo. At Descartes ou Spinoza empenham-se numa teoria das paixes. Contrariamente, ao fazer do saber uma coisa simplesmente eficaz, a filosofia das Luzes e, em seguida, os grandes sistemas do sculo XIX acarretaram uma politizao do pensamento, que passa a ser apenas um elemento do jogo do poder.

    Uma genealogia do poltico mostra amplamente que, pouco a pouco, o pensamento ps-se a servio de uma causa, de um ideal, de uma sociedade vindoura. J mostrei, com aquilo que denominei A transfigurao do poltico (1992), que uma atitude tal

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    63

    tinha razes antigas e que, por vezes, o filsofo arma o brao secular mas, com a modernidade, esse processo toma uma amplido insuspeitada. Das teorias sociais do sculo XIX s racionalizaes da tecnoestrutura, passando pela da luta de classes, tanto no que diz respeito ao conservantismo, ao revolucionarismo, quanto ao reformismo, todas esto pretensamente fundamentadas na razo, agindo para o bem maior da razo. Saber poder. Fora disso no h salvao.

    Ao mesmo tempo, esse esquecimento progressivo do pensamento ertico, isto , de um pensamento amoroso da vida em sua integralidade, tende a favorecer uma atitude normativa e justificativa. Ao discriminar, ao indicar o que deve ser a vida individual ou coletiva, ao no reter da totalidade seno tal coisa

    44 ou outra, o racionalismo procede amputao a que me referi. A realidade cessa de ser uma globalidade a ser tomada enquanto tal, tal como vivida ou se deixa ver, para tornar-se uma entidade abstrata a ser consumada em funo de um objetivo distante. Essa progresso judicativa ignora, ou lamenta, ou execra as aes humanas. Jamais tenta compreend-las, no sentido mais simples deste termo, torn-las juntas

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    64

    (cum-prehendere): ver como se sustentam de maneira orgnica juntas.

    Na base disso, e o prprio do intelectualismo, h o no. Pode-se fazer referncia a esta observao do mstico Mestre Eckhart: Interrogam-me quanto quilo que queima no inferno. Os doutores respondem: a vontade prpria. Quanto a mim, respondo: o que queima no inferno o no. Tal aforismo indica bem os limites do racionalismo negador; este incapaz de perceber o aspecto efervescente, por vezes desenfreado, do vitalismo. A negao ou, o que vem a ser o mesmo, a injuno daquilo que deve ser, em nada criadora e, por conseguinte, no compreende o que criativo.

    essencialmente isto que pode ser criticado no racionalismo abstrato, em seu poder de discriminao: sua incapacidade de reconhecer o potente vitalismo que move, em profundidade, toda vida social. certamente por isso, igualmente, que um fosso cada vez mais intransponvel se abriu entre a intelligentsia, sob seus diversos aspectos (universitrios, polticos, administrativos, decididores de todas as tendncias) e a base social que no mais se reconhece neles. Em si mesmo, isto no deveria prestar-se a conseqncias. Mas tambm no se pode negar que uma sociedade, para que possa ser o que , necessita de letrados que

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    65

    estejam capacitados a dizer, justamente, o que ela , e no o que deveria ser. Cada sociedade precisa de intelectuais orgnicos e no unicamente de intelectuais crticos, ou partidrios do statu quo. quando esse plo orgnico vem a faltar que se entra num processo de decadncia, isto , de incapacidade, para um dado corpo, de ajustar sua maneira de ser e seu modo de pensar; portanto, de realizar, com conhecimento de causa, sua criatividade prpria. Como se v, o perigo no dos menores. E, se h crise, bem uma crise da interpre-

    45 tao, bem uma crise do mito fundador que no pode, sem grave prejuzo, faltar a um dado conjunto.

    Era Jung que dizia que negar a funo estruturante do mito tem to pouco fundamento quanto contestar ao pssaro tecelo o seu ninho e ao rouxinol o seu canto. Ao mesmo tempo, preciso reconhecer que o mito, justamente por ser expresso da vida, escapa injuno de normalidade, ordem do poder. No podemos, no que lhe diz respeito, falar em termos de devemos, deveramos, coisas que, sendo indicativas, mascaram de fato uma real impotncia. Se se deseja evitar o perigo do qual acabei de falar, preciso tomar a vida pelo que ela . preciso aceitar os mitos de que ela se orna. No

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    66

    coisa fcil. Com efeito, por mais curioso que isto seja, o que denominarei vitalismo, e o mito que sua expresso so diretamente oriundos de uma viso emprica do mundo. Ora, sabe-se que a empiria o que o racionalismo moderno empenhou-se, constantemente, em criticar, em nome, justamente, do dever ser.

    Assim, a tarefa que nos cabe bem a de voltar a essa vida vivida ou mais prxima, a essa empiria; para retomar uma expresso da fenomenologia, prpria coisa. isso que pode fazer com que apreciemos o hedonismo cotidiano. isso que pode nos permitir superar aquela filosofia apriorista que, a partir de uma distino radical estabelecida entre as idias e a vida, vai considerar que esta ltima naturalmente conforme as tendncias tericas seja alienada, seja banal ou sem interesse. Seus rituais encerram riquezas cuja importncia ainda no foi toda explorada. Atualmente, etnlogos esto fazendo descobertas para as sociedades rurais ou aldes. Timidamente, a sociologia como um todo no est mais to hermeticamente fechada a tal perspectiva, mas a suspeio continua globalmente atuando.

    Se a expresso ruptura epistemolgica possui um sentido, bem esse. Com efeito, preciso saber romper com uma postura intelectual, em ltima

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    67

    anlise bem conformista, que busca sempre uma razo (uma Razo) impositiva para alm daquilo que convida a ser visto e a ser vivido. preciso retornar, com humildade,

    46 matria humana, vida de todos os dias, sem procurar que causa (Causa) a engendra, ou a fez como . Sei o que isto pode conter de escandaloso primeira vista, mas trabalhos como os de Edgar Morin na Frana, ou Howard S. Becker nos Estados Unidos, Franco Ferraroti na Itlia, mostram amplamente o aspecto prospectivo de uma progresso tal. Mais do que uma razo a priori, convm pr em ao uma compreenso a posteriori, que se apie sobre uma descrio rigorosa feita de conivncia e de empatia (Einfhlung). Esta ltima, em particular, de capital importncia, nos faz entrar no prprio corao de nosso objeto de estudo, vibrar com suas emoes, participar de seus afetos, compreender o complexo arabesco dos sentimentos e das interaes de que ele est impregnado. Por isso mesmo, o observador social no tem pretenses objetividade absoluta, no tem uma posio impositiva, no o simples adjuvante de um poder qualquer que seja; ele , simplesmente, parte integrante do objeto estudado, desenvolve um

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    68

    saber puro, um conhecimento ertico. Coisas que induzem a uma sociologia acariciante.

    Com excessiva freqncia, o socilogo racionalista procede ao que Peter Berger denominava assassination through definition. Tal assassinato em nome de uma definio moeda corrente. Ao nomear, com excessiva preciso, aquilo que se apreende, mata-se aquilo que nomeado. Os poetas nos tornaram atentos a tal processo. preciso, agora, que os protagonistas das cincias sociais estejam igualmente conscientes desse perigo. Do momento em que h vida, h labilidade, dinamismo. A vida no se deixa enclausurar. Quando muito possvel captar-lhe os contornos, descrever-lhe a forma, levantar suas caractersticas essenciais. Assim procedendo opera-se conhecimento sem, por isso, praticar uma taxidermia que alfineta, cataloga e pe em ordem um corpus de objetos mortos. Paradoxalmente, tal respeito vida movente propriamente aquilo que, se for bem gerido, pode culminar num conhecimento mais completo daquilo que entende apreender. De certa forma o acionamento de uma razo aberta.

    Com efeito, ainda que isso seja esquecido com demasiada freqncia, a cincia no seno a cristalizao de um saber

    47

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    69

    disperso na vida, atravs do mundo cotidiano. Esta frmula de Simmel indica bem, ao mesmo tempo, a ambio e a modstia de toda progresso de conhecimento. Ele deve ficar, antes de mais nada, encarnado na realidade emprica. E quando autonomiza-se em relao cotidianidade que a razo assume essa soberanidade um pouco distante que lhe conhecemos, que lhe d o porte imperioso, seno, desdenhoso, de que ela se reveste com tanta freqncia. Quando o conhecimento se torna um fim em si, abstratiza-se, passando a no ser gerido seno por suas prprias leis. Nesse momento, s importa o jogo das idias, jogo que, claro, vale tanto quanto qualquer outro, mas cuja seriedade ou, para dizer o mnimo, cuja pertinncia pode levantar dvidas. isso que faz com que, freqentemente, as produes sociolgicas ou filosficas valham pelo seu encadeamento rigoroso, pelo modo de ajustamento de seus conceitos, pela coerncia interna que as anima mas, ao mesmo tempo, deixam uma impresso de aridez e, para dizer tudo, de vacuidade, seno, de inanidade.

    H algo de estranho nesse pensamento dominado unicamente pela tcnica. Max Weber perguntava-se at que monstros engendramos quando copiamos, pura e simplesmente, as cincias

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    70

    exatas. E certo que a imparcialidade, a objetividade muitas vezes culminam, quando no em mentiras, no mnimo em uma morna incompetncia. Nas cincias da natureza, o racionalismo puro e duro est em perfeita congruncia com seu objeto. Este est imvel, estvel, h pouca ou nenhuma interferncia entre ele e o observador que supostamente o analisa. Por conseguinte pode-se aplicar-lhe, do exterior, uma srie de leis que so, tambm elas, impassveis.

    Inteiramente outro o vasto domnio vivo da socialidade. Esta, por um lado, est impregnada de comunicao verbal, a partir da qual possvel elaborar algumas leis gerais, mas, por outro lado, comporta tambm aquilo que chamamos de comunicao no verbal, coisa bem delicada de apreender com preciso. o domnio do sensvel, que ainda avaliamos bastante mal, e do qual difcil apreciar os efeitos. No entanto, trata-se de algo que deve incitar-nos prudncia. Talvez seja preciso, a esse respeito, praticar aquela douta ignorncia que certa filosofia da Idade Mdia ps em ao e que,

    48 sem deixar de prestar-se ao conhecimento, no se furta a admitir seus prprios limites. Isso quer dizer que ela pode propor tendncias, elaborar formas que,

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    71

    sem deixarem de ser criaes intelectuais, deixam inteira a liberdade da vida e a fora de seu dinamismo.

    Tal douta ignorncia se faz tanto mais necessria quanto, como se pode observar na literatura (que, nisto, um excelente espelho da existncia), a vida social repousa sobre a dissimulao. A multiplicidade de mscaras que, alternadamente, cada protagonista reveste pode ser interpretada como uma tcnica que serve para escapar quilo que, em outro trabalho (No fundo das aparncias, 1996), chamei de determinao de residncia.* Essa duplicidade antropolgica certamente um mecanismo de defesa contra aqueles que querem etiquetar, imobilizar sob um conceito. Esta nota, que o socilogo Roger Bastide aplica a Andr Gide, pode, evidentemente, ser extrapolvel sociedade em seu conjunto. Estamos confrontados a um tipo de Proteu social de mil faces, uma mais dspar que a outra, que vo pretender enclausurar numa definio nica. O vitalismo transpira por todos os poros da pele social, no podemos reduzi-lo unidade da Razo.

    * Em francs assignation rsidence: ato jurdico atravs do qual se obriga algum a residir em um local determinado (N. do T.).

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    72

    49

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    73

    III A razo interna

    Explicar a natureza por sua natureza prpria e exp-la como ela .

    Herclito 1. O raciovistalismo

    A desconfiana em relao teoria impositiva

    no significa de modo algum a impossibilidade de qualquer conhecimento. Muito pelo contrrio, isso pode incitar a uma atitude intelectual feita de modstia, e at de respeito por aquilo que abordado. como uma via indireta, que pode ser aproximada da teologia negativa cuja contribuio, na Idade Mdia, esteve longe de ser negligencivel. Se nos servimos dessa metfora, lembremo-nos de que a teologia positiva atribui a Deus nomes, qualidades que o definem com preciso. Por outro lado, a teologia negativa no fala de Deus seno por evitao; diz

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    74

    aquilo que no , exprimindo assim a infinita distncia divina em relao criao; recusa qualquer tipo de semelhana. essa sensibilidade que pode permitir compreender o que vem a ser uma racionalidade aberta. Ao contrrio do racionalismo estreito e algo esttico, ela apela para uma espcie de entusiasmo, no sentido mais forte do termo, que pe em ao uma fora instintiva da qual se pode ressaltar o carter demonaco.

    Assim se exprime a sinergia da razo e do sensvel. O afeto, o emocional, o afetual, coisas que so da ordem da paixo, no esto mais separados em um domnio parte, bem confinados na esfera da vida privada, no so mais unicamente explicveis a partir de categorias psicolgicas, mas vo tornar-se alavancas metodolgicas que podem servir reflexo epistemolgica, e so plenamente operatrias para explicar os mltiplos fenmenos sociais, que, sem isso, permaneceriam totalmente incompreensveis. Em outras palavras, preciso fazer de uma fraqueza uma fora inegvel, e perceber que, ao negar certos aspectos do dado mundano, corre-se o risco de culminar com seu retorno em massa

    53 de maneira perversa. Numa palavra, compreender que a nacionalidade aberta integra como parte o seu

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    75

    contrrio, e que dessa conjuno que nasce toda percepo global.

    A psicologia do profundo enxergou bem o problema, como se v por Jung, que remete para um alargamento da conscincia, graas integrao de componentes da personalidade at ento inconscientes. Mas a simples razo, ao menos tal como foi posta em ao durante a modernidade, no suficiente para uma tal integrao. preciso pr em jogo aquilo que, pouco acima, chamei de afetos. Estes testemunham a perdurao daquela sombra, daquele instante obscuro, e outra parte maldita, que era atribuda ao primitivo e que o homem civilizado teria conseguido exorcizar. Na verdade isso no ocorreu. Ainda hoje a sombra est presente, e isso tanto no plano individual quanto no plano coletivo. Convm dar-lhe, portanto, o lugar que lhe cabe. Pode-se extrapolar a proposta do psiclogo e fazer desse alargamento da conscincia um processo epistemolgico capaz de perceber a globalidade social em todos os seus elementos.

    O projeto ambicioso, mas realizvel. Contudo, requer que se saiba superar as categorias de anlise que foram elaboradas ao longo da modernidade. No que se deva neg-las, mas, em vez disso, alarg-las, conferir-lhes um campo de ao mais vasto, dar-lhes

  • __________________________________________ Michel Maffesoli - Elogio da Razo Sensvel

    76

    os meios de acesso a domnios que lhes eram at ento vetados: por exemplo,