1950 - Émile-g. léonard brasil, terra de história
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BRASIL, TERRA DE HISTRIA (1).
Disseram-me: "Que vai o historiador fazer no Brasil? Quem
tem o vzo e a necessidade das velhas cidades e dos ricos arquivos
da Frana e da Itlia l no h de encontrar nem monumentos anti-
gos (destruiram-nos sobretudo em So Paulo para ceder espao
construo de arranha-cus), nem papelrio antigo (que os bichos
comeram) . Alm disso, se h histria a ser feita por l, a hist-
ria do Brasil: de crer que os brasileiros no tenham ficado a sua
espera para tratar dela, com um preparo e um conhecimento de
seus problemas nacionais que V. no pode pretende possuir .
A existncia no Brasil, para tratar dsses problemas (e de al-
guns outros no nicamente
locais ,
de uma brilhante escola his-
trica brasileira qual o estrangeiro quase nada pode aduzir, al-
guns meses de permanncia e de leituras m'o confirmaram .
Mas, no mesmo tempo, no que concerne histria chamada
geral, tambm logo se impuseram a mim constataes que desjo
anotar aqui.
E' um excelente costume que tem a Frana pobre, a Frana
que dizem estreitamente nacionalista e fechada a tudo o que no
seu, sse de enviar seus jovens historiadores s velhas terras de
histria Atenas, Roma, Cairo, Madri , como recompensa pe-
los estudos feitos e como estmulo para o trabalho de pesquisa .
Em cidades onde tudo fala do passado, les se beneficiam do in-
centivo que para a inteligncia e para a imaginao, sse verda-
deiro retrno quase material aos sculos transatos . Uma caminha-
da do Forum ao Vaticano, pelas pequenas ruas que circundam apraa de Veneza, a via Giulia e o Transtevero, emociona, e, no
corao e no esprito do historiador, aviva tudo o que le sabe e
sente da Roma antiga, medieval e pontifcia. Depois disso, quan-
do retorna vida presente, parece-lhe volver de muito longe, de
to longe que le corre o risco de no mais se interessar su-
ficientemente pelo mundo que o cerca, e que realmente no mais
o seu. "Mon enfant", dizia-nos Monsenhor Duchesne (era sse o
tratamento que gostava de dar aos seus jovens pensionistas da Es-
cola Francesa de Roma), cuidado para no se afastar do pre-
sente, o presente que o tempo que Deus nos deu para dentro d-
le cumprirmos o nosso dever". De fato, h para o historiador que
(1). Traduo do texto francs por Eduardo d'Oliveira Frana.
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mergulha no passado
a tentao de se refugiar nele, ou, menos no-
brement, de fugir para le e a edificar o que Andr Chamson,
segundo o grande Renouvier, chamou uma
ucronia, isto , um tem-
po em que teria sido bom viver (2) .
Deixemos de lado o aspecto moral da questo . Entretanto
ela apresenta ainda um perigo para o ofcio do historiador e para
a sua concepo do passado: o de apart-lo demasiadamente dos
tempos atuais, exagerando o afastamento entre as pocas, transfor-
mando a histria em uma dimenso que se mediria por sculos,
como se medem as distncias por milhares de quilmetros . Quan-
do um pas como o Brasil tem apenas alguns sculos de histria,
no pode ser um pas de histria como a Frana que tem 20 s-
culos, ou como a Itlia que tem 25. Essa espcie
de equ o
histria igual a passado remoto ns a reencontramos a cada
passo nas concepes correntes . No tem papis de famlia, minha
senhora?" "Oh no, no somos famlia para possuir pergami-
nhos" . No entanto, ela guardava tda uma correspondncia rela-
tiva ao golpe de Estado de Napoleo III que no lhe parecia bas-
tante remota para pertencer histria. Mesmo aqui no Brasil
surpreendi bastante um dos meus interlocutores ao solicitar-lhe por-
menores circunstanciados de uma dissidncia eclesistica da qual
le havia ardorosamente participado h vinte anos: para le, a his-
tria protestante do Brasil havia de estar mais ou menos Uni-
camente em Villegagnon, Maurcio de Nassau, nos sculos XVI
e XVII (3) .
Acabo de falar na histria protestante do Brasil. Cada his-
toriador toma contacto com os problemas de sua profisso confor-
me as ocasies e as experincias que lhe proporcionam suas pes-
quisas de especialista. Foi, para mim, uma preocupao saber
como, em conseqncia de que circunstncias, conforme que mo-
dalidades, se implantou no Brasil, h 80 ou 90 anos, um protes-
tantismo que constitui uma das conquistas mais importantes feitas
desde o fim do sculo XVI (4) .
Aproveito a ocasio para recomendar o excelente livrinho de Chamson,
cchartista desertor, romancista e ensaista L' Homme cocntre l'histoire,
em que os problemas concernentes histria, sua natureza e sua utiliza-
o partidria so propostos e tratados com sobriedade, inteligncia e
elegncia pouco comuns (Paris. Bernard Grasset, 1927. Coleo dos Ca-
hiers Verts ).
Da a obstinao da maioria dos autores de monografias locais em se
estenderem sbre as origens e os primeiros tempos de suas localidades,
sbre os quais justamente dispem de menos informaes, reduzindo cada
vez mais o estudo dos perodos mais modernos, como sendo cada vez
menos histricos.
A primeira parte do livro que planejo escrever sbre o assunto j apa-
receu sob o ttulo de Le presbytrianisme brsilien et ses expriences
ecclsiastiques (fascculo de janeiro-maro, 1949, dos Etudes Evangliques
publicados pela Faculdade de Teologia Protestante de Aix-en-Provence).
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Ora, proporo em que me apareciam estas circunstncias
circunstncias espirituais (anseios religiosos suscitados pelos en-
sinamentos da Igreja e manifestado principalmente nas devoes fa-
miliares), circunstncias eclesisticas (fraquezas do clero, muito pou-
co numeroso, superado por seu ministrio e demasiado entregue s
atividades seculares, mas tambm longanimidade de uma Igreja tar-
da em passar defensiva e falta de ligaes com o papado, centro
e cabea do catolicismo), circunstncias polticas (regalismo do go-
vmo imperial, liberalismo anticlerical dos intelectuais, sentia-
me impresisonado pelas semelhanas que apresentavam com o pa-
norama espiritual, eclesistico e poltico em que nasceu e se de-
senvolveu a Reforma no sculo XVI. E, ao mesmo tempo, eu po-
dia ver melhor o que fra sse quadro, ao qual descura-se ordin-
riamente conhecer, desde que seus diversos elementos desaparece-
ram quase que completamente da Europa.
Este protestantismo brasileiro, brotado da piedade catlica, e
no de qualquer espcie de aridez espiritual, nem de qualquer he-
resia, era a Reforma europia nascendo do despertar religioso pro-
vocado dentro do catolicismo pela
devoo nova
dos grandes ms-
ticos ortodoxos como Tauler, Suso, Eckart, Ruysbroeck, Grard de
Groos, Denys le Chartreux, enquanto que as heresias como o cata-
rismo, o valdismo, o franciscanismo espiritual, o lolardismo, o hus-
sitismo, estavam mortas, agonizantes, ou inteiramente enquistadas .
Essas rezas das fazendas, dirigidas por algum membro da famlia
ou por qualquer escravo, s vzes acompanhadas de humildes co-
mentrios, e que tendiam a se transformar em verdadeiros cultos,
como no haveriam de evocar em mim aquelas reunies domsticas
dos fins do sculo XV nas quais o preboste de Viena, Estevo de
Lanzkrena, nos mostra o pai de famlia fazendo os filhos recitarem
suas oraes e lhes explicando o contedo delas? E, desde logo,
impunha-se a mim a necesidade que h de se estudar a piedade
familial e o ministrio laico da Igreja de antes da Reforma. Assim
como no foi de pagos que a Reforma tirou os protestantes, tam-
bm no foram fiis que entregavam cegamente ao padre a cura
de suas almas que ela bruscamente transformou em adeptos e pra-
ticantes do sacerdcio universal.
Leigos que a Igreja, por seus cuidados maternais e seculares,
despertou em grande nmero para a vida da alma. Mas havia
muito poucos padres para assist-los, e alm disso, fatigados por
sua imensa, por sua impossvel tarefa, e,
je tant la m anc he a prs la
cogne ,
como dizemos em Frana (5), prticamente se seculari-
zava(m para viverem uma vida cujafs aspectos escandalosos tm
sido injustamente exagerados . Era a situao eclesistica da Eu-
ropa no como do sculo XVI: os mosteiros vazios, em nume-
(5). No encontramos em portugus expresso popular correspondente. Ati-
rando o cabo emps a machadinha tem pouco sentido para ns. Usa-se
a expresso em relao aos que, na infelicidade, desamparam tudo, em
vez de procurar remedi-la. Os que dizem: Que leve a breca . (Nota
do tradutor).
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ro extremamente reduzido o baixo clero secular (mal se comeava
a cogitar de sua formao), sem prestgio e sem entusiasmo. H
cem anos eram bem raras as parquias no Brasil: comparativamente
no eram mais numerosas as da Frana no fim do sculo XV, logo
depois da Guerra dos Cem Anos. Basta lembrar o doloroso quadro
da grande desolao das igrejas da Frana nessa poca descrita pelo
Padre Denifle.
Para que a propaganda protestante na Europa do sculo
XVI como no Brasil no sculo XIX pudesse aproveitar essas
circunstncias espirituais e eclesisticas, era ainda preciso que no
provocasse imediatamente uma viva reao da Igreja tradicional.
No Brasil, essa reao levou meio sculo para se produzir (e ain-
da, ~ente agora ela cuida de se organizar) . Os chefes (penso
na Liga anti-protestante, nas provncias do norte h uns cinqenta
anos), foram especialmente padres estrangeiros, como educados no
estrangeiro haviam sido os prelados que, pouco antes, haviam par-
ticipado da maonaria. E esta lenta reao foi espordica, tempo-
rria, inbil, ineficaz apesar das sevcias locais que foram colecio-
nadas numa
Histria das perseguies religiosas no Brasil
cujo pr-
prio ttulo faz sorrir um europeu informado agora do que sejam
verdadeiras perseguies. Mas no aconteceu a mesma coisa na
Europa da Reforma? A Igreja foi vagarosa em se abalar, vagarosa
em condenar Lutero, ainda mais vagarosa na organizao de sua
defesa . Sabe-se de quando data o Conclio de Trento, e que le
em absoluto se apressou . E que a Ordem dos Jesutas, apesar de
constituir como a derradeira muralha frente brecha aberta, ocupou
todo o seu tempo. Longanimidade da Igreja no Brasil: ela no acre-
ditava no perigo, nem tinha o hbito da luta defensiva . Mas tambm
longanimidade da Igreja no como do sculo XVI: ela havia fcil-
mente superado as heresias puramente religiosas, do tipo que apre-
sentava a Reforma (as outras, em grande parte polticas, como o
alhigeismo e o hussitismo, haviam sido disciplinadas por vias pol-
ticas) . Tambm ela no estava na defesa . Depois adotou essa t-
tica (exceto em relao aos seus movimentos interiores, em face dos
quais sua divisa sempre: esperar e ver), e o conhecimento que
temos agora de uma Igreja catlica inquieta, sitiada, aparentando s
vzes febre obsidional, de uma Igreja de Contra-Reforma, ameaa
esconder ao historiador a verdadeira figura da Igreja, calma, pa-
ciente, meio caritativa, meio indiferente ante as agitaes de seus
filhos, a verdadeira figura que apresentou a Igreja enquanto no
foi coagida a uma defensiva que no tinha planejado e para a qual
no havia sido feita. Ora, essa figura a Igreja catlica brasileira
conservava ainda, h cem anos, porque, no tendo ainda se defron-
tado com sua reforma, no se havia tambm transformado em uma
Contra-Reforma .
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Mas a Igreja catlica brasileira ...? No h, em boa doutrina,
Igreja catlica brasileira, da mesma forma que no h Igreja ca-
tlica francesa ou alem . Na realidade, bem que havia uma no s-
culo passado, isto , uma Igreja vivendo margem do papado, sm-
bolo e cimento da catolicidade . Em conseqncia da imensa dis-
tncia e das comunicaes difceis entre Bahia ou Rio e Roma, em
conseqncia da intermitncia ou do pouco prestgio dos nncios,
em conseqncia de circunstncias polticas das quais vamos falar.
E ainda mais em conseqncia da ausncia de experincias comuns
entre a Igreja brasileira ou os fiis brasileiros e o papado. Mes-
mo porque, em que momento tomou-se a Frana catlica, a pri-
mognita da Igreja, de corao pontifical? Quando depois de so-
frer prises e humilhaes durante a Revoluo, viu o Papa pri-
sioneiro e humilhado sob Napoleo; depois, quando, sitiada, pelo
liberalismo anticlerical, viu o Papa sitiado tambm pelo liberalis-
mo e pelo nacionalismo italianos . Antes, no tempo da Reforma,
o sucesso das idias novas foi garantido pelo fato de estar o centro
coordenador da Igreja, a Santa S, muito longe da Alemanha, mui-
to longe da Frana, muito longe da Inglaterra, separado dsses
pases por tda a extenso de seu nacionalismo eclesistico e pelo
descrdito acarretado pelo Grande Cisma e pela Crise Conciliar.
Tambm l, um oceano imenso .
No h necessidade de insistncia sbre o regalismo do go-
vm brasileiro at a queda do Imprio: bastante conhecido. De
tradio e prtica pombalinas, D. Pedro I e D. Pedro II continua-
vam os dspotas esclarecidos do sculo XVIII. Foi preciso esperar
1889 para que o papa se tomasse verdadeiramente, no Brasil, o
chefe da Igreja. Sabe-se bem que a situao era a mesma no s.;
culo XVI em todos os Estados da Europa crist. Mas esta simi-
litude marcada por alguns episdios da histria eclesistica e po-
litica do Brasil. Crca de 1835, querendo se aproveitar do fato
de dispor do poder para instituir no Imprio uma reforma impe-
rial e catlica, mas de um catolicismo estranho Santa S, com
casamento dos padres e aplo aos Irmos Morvios para evange-
lizarem os ndios, o regente Feij no recomeava exatamente a
tentativa de Brionnet em Meaux? E, mais tarde, D. Pedro II
orientando-se ousadamente para o cisma na questo dos bispos, que
inesperada evocao, no digamos de Henrique VIII (a vida par-
ticular dos dois homens foi muito diferente), mas de Gustavo Vasa
Seremos mais breves na comparao das modalidades de ins-
talao do protestantismo na Europa e no Brasil: apenas alguns pro-
blemas que se oferecem ao historiador da Reforma e sbre os quais
proporciona o exemplo brasileiro preciosas indicaes .
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Problema dos responsveis por essas inovaes . Os propagan-
distas estrangeiros que as difundiram ou os autctones que as acei-
taram? Problema insolvel, como, na doena, o da importncia com-
parativa do bacilo e do organismo que o recebe.
Entretanto, no que diz respeito ao Brasil e no que se refere
Reforma da Europa, os historiadores insistem principalmente s-
bre os propagandistas estrangeiros, concordando ademais em que
stes encontraram considervel apio nos meios igualmente estran-
geiros do pas em que atuavam. O evangelista alemo e suio em
primeiro lugar, tanto pela importncia quanto cronolgic4nente.
Na realidade, que diz o episdio brasileiro, visto de perto? De crca
de 1860 at o fim do ltimo sculo, apenas algumas dezenas de
missionrios americanos, inglses, alemes, portuguses e dezenas
de milhares de conversos . No dentro das colnias estrangeiras .
Os anglicanos do Rio realizaram bem exatamente a profecia que o
bispo da Capital havia feito a respeito dles quando, poucos anos
antes da ascenso de Pedro I, pediram permisso para a ereo de
uma capela: "Que les a construam, e depois ningum h que ir
l". Os luteranos dos Estados do Sul que no distinguiam sua f
de sua
deutschtum no se preocuparam em difund-la entre os autc-
tones . E os sulistas de Santa Brbara d'Oeste desesperaram os mis-
sionrios por sua falta de intersse pela obra dles . No total, o
apio que as colnias estrangeiras de f protestante deram propa-
gao do seu culto foi nfimo . Com sse fato s se podem surpre-
ender aqules que no conhecem por experincia a timidez das co-
lnias estrangeiras, seu complexo de inferioridade-superioridade em
relao sociedade margem da qual les vivem e muitas vzes seu
desapgo em face dos princpios que os inspiravam na terra natal.
Essa atitude pode ser diferente se se tratar de refugiados que tenham
deixado a ptria por motivos religiosos (e no era sse o caso dos
estrangeiros vindos ao Brasil), mas ento, a preocupao de preser-
var a pureza de sua f os induz freqentemente a se fecharem den-
tro dela. De uma forma ou de outra, o exemplo brasileiro me faz
pensar que inegvelmente se tem exagerado a importncia que os
ncleos de comerciantes e de trabalhadores protestantes residentes nos
pases catlicos puderam ter na expanso da Reforma . Que para sse
fim tenham fornecido propagandistas, sim, mas no uma atmosfera,
um asilo . Assim, de qualquer modo, somos obrigados a reconhe-
cer a principal importncia, na disseminao das idias novas, que
tm as disposies das populaes entre as quais elas se difundem.
Prova convincente o fato, muitas vzes constatado no Brasil, e
que certamente no foi estranho expanso da Reforma, de pes-
soas que, pela simples leitura da Bblia, se converteram a uma re-
ligio desprendida dos dados da tradio, organizando expontnea-
mente em trno delas verdadeiras comunidades protestantes, sem
ter jamais encontrado qualquer missionrio .
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Essas observaes permitem destrinar outro falso problema,
o do sentido da propagao da Reforma no sculo XVI. En-
sina-se s vzes, mais ou menos doutoralmente que ela se difundiu
de leste para oeste . Tautologia despida de intersse real se se trata
~ente de constatar que a Alemanha se encontra a leste da Fran-
a, da Inglaterra, dos Estados Unidos . Concepo do esprito intei-
ramente rejeitada pelos fatos quando se desce aos pormenores .
A provncia francesa de Saintonge, que confina a oeste com o
Poitou, no foi evangelizada no sculo XVI por propagandistas pro-
venientes dessa regio vizinha j parcialmente convertida ao pro-
testantismo, mas em conseqncia de um de seus principais senho-
res de Pons se ter encontrado com Calvino em Ferrara. A
linha reta leste-oeste de Poitou a Saintonge passa pois pela Itlia.
Da mesma forma, a considerao excessiva atribuda obra dos
propagandistas estrangeiros na evangelizao protestante do Brasil
tem induzido convico de que sua expanso se tenha feito re-
gularmente do litoral para o interior seguindo algumas estradas e ca-
minhos de ferro . Ora, o conhecimento bastante preciso que se tem
das datas de fundao e dos fundadores das primeiras comunida-
des protestantes no pas mostra coisa inteiramente diferente . Se as
trs primeiras comunidades, as de Petrpolis (apenas um grupo ain-
da muito reduzido) do Rio e de So Paulo correspondem con-
cepo corrente, dela nos afastamos decididamente a partir da quar-
ta que por muito tempo foi o principal centro do protestantismo
na Provncia de So Paulo, para no dizer de todo o Brasli: a Igre-
ja presbiteriana de Brotas . No nos defrontamos mais aqui com
plano preconcebido por eetrangeiros, nem com progresso regular,
mas com um fato ocasional: um antigo vigrio de Brotas, Jos Ma-
nuel da Conceio, havia adotado a f protestante e tinha ido pregar
entre seus amigos e parentes de sua antiga parquia . E se, de Bro-
tas, o protestantismo passa na mesma poca, logo perto, para Dois
Crregos, vem de muito longe, de Borda da Mata, no sul de Minas,
por que os Gouva de Brotas, convertidos nova f, eram origin-
rios de Borda da Mata e adquiriram bens em Dois Crregos . No
se trata mais pois
de
propagao linear, nem de utilizao das ro-
dovias e das estradas de ferro . Quando uma populao est prepa-
rada para o conhecimento e aceitao de uma nova ideologia, esta
se espalha como incndio em florsta, por fagulhas esparzidas ao
acaso do vento, ou do Esprito .
As disposies psieolgicas e sociais desta populao podem fa-
vorecer grandemente sua difuso, independente de sua preparao
prpriamente espiritual. O nomadismo do lavrador do serto pau-
lista tem sido muitas vzes assinalado, particularmente por Deffon-
taines Lsse nomadismo se amplia entre os protestantes
pelo esp-
rito de iniciativa, pelo gsto da aventura e por uma relativa instru-
o que lhes proporcionam, mais ainda que a sets compatriotas, uma
mentalidade de pioneiro sempre disposto a se deslocar. Uma di-
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vertida anedota conta de um dles que as prprias galinhas esta-
vam to acostumadas a essas mudanas que, logo que ouviam ar-
rastar os mveis, deitavam-se no cho erguendo os ps para serem
amarradas e levadas, dependuradas num cacte, para seu novo des-
tino . Em todo o caso, o fato que sses lavradores protestantes
do interior foram particularmente impetuosos na busca de novas
terras, e, em nmero proporcionalmente considervel, esgueiraram-
se de seus velhos centros Campinas, Rio Claro, Brotas, Ja
em direo das regies do rio Feio e do rio Pardo, e, de l, para
o Mato Grosso e Paran . sse movimento, se enfraquece suas co-
munidades nas regies desamparadas, semeia outras nas terras pio-
neiras com o sucesso que atestam os ltimos recenseamentos .
Ora, sse nomadismo foi, como demonstrou Lucien Febvre
(6) um dos traos caractersticos do homem do sculo XVI: o epi-
sdio brasileiro contemporneo nos persuade de lhe atribuir uma
considervel importncia na evangelizao protestante dos campos
naquele sculo . Ela muito mal conhecida e geralmente explicada
pela ao dos pregadores egressos das cidades e pela converso
dos senhores . Certo, necessrio levar em grande considerao
as mudanas de residncia dsses chamados camponeses, assim co-
mo, no h muito tempo, no sul da Frana, a vinda de montanheses
catlicos para os burgos da plancie abandonados pelos protestantes
enriquecidos tendia a restituir essas aldeias f rejeitada desde a
Reforma.
Falamos dos senhores locais bandeados para a nova f nos
tempos da Reforma . As razes de sua converso ordinriamente
so buscadas em seu esprito de independncia e em suas predis-
posies feudais, graas ao resduo daquela explicao puramente
poltica dada expanso da Reforma, explicao que Febvre refu-
tou em um artigo clssico (7) . Hoje em dia bem difcil "tirar a
limpo" .como se diz (8) . Contudo podem-se conhecer os senti-
mentos que impeliram, nos fins do ltimo ou no incio do presente
sculo, aristocratas e magnatas brasileiros os Barros de So Pau-
lo, os Maciel de Minas, os Paranagu no sul
do Piau, para citar
apenas alguns a adotarem o protestantismo . Preocupao pol-
tica.. . no como? No . Anceios da alma, porque essas conver-
ses a uma religio .. . desconhecida e impopular s podiam arredar
dles uma poro de apaniguados e fortalecer seus adversrios . Po-
rm, em seguida, naturalmente, jogavam seu crdito social e poltico
em benefcio de sua nova f. E' perfeitamente normal que tenha
sido tambm assina no sculo XVI. Mesma as guerras civis dos
tempos da Reforma podem esclarecer certos episdios recentes da
A propsito vide a conferncia de Lucien Febvre, O homem do sculo
XVI, publicada no n.o 1 desta Revista, Janeiro-maro de 1950,
pgs.
3 e
segs.
(Nota do tradutor).
Trata-se do artigo Les origines de la Rforme Franaise, publicado In
Revue Historique , T. CLXI, 1929. (Nota do tradutor).
No texto francs 111er y voir , expresso para a qual no encontramos
perfeito correspondente em portugus. A que usamos pareceu-nos a mais
prxima do sentido dado pelo autor. i(Nota do tradutor).
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histria brasileira, como as perturbaes do Piau, h vinte e cinco
anos, que pareceram por um momento verdadeira guerra religiosa
dirigida contra os chefes liberais que haviam aderido ao protestan-
tismo.
Enfim, impressionante a semelhana entre os desgnios e os
meios da
Ao Catlica e
os dos grandes restauradores do catoli-
cismo francs, So Francisco de Sales, So Vicente de Paulo, So
Joo Eudes, o Cardeal de Bville, o pessoal da Companhia do Santo
Sacramento nessa primeira metade do sculo XVII que foi verda-
deiramente o
Sculo dos Santos
por ter restitudo Igreja esgota-
da padres e leigos.
As pginas precedentes visam muito menos a exposio dos
primeiros resultados de pesquisas em andamento, que a apresenta-
o de um exemplo desta histria comparada, atravs dos pases e
dos sculos a que ela me arrastaram. Cem outras comparaes se-
melhantes se oferecem pesquisa. Que intersse no apresentaria
para o historiador dedicado s origens das Universidades europias
ver nascer e desenvolverem-se as universidades brasileiras num "cli-
ma" verdadeiramente bem medieval de liberdade e concordncia:
umas, criaes dos Estados (como o foi a Universidade de Npo-
les fundada por medida soberana do imperador Frederico II em
1224), outras, criaes de grupos de professres ou de Ordens re-
ligiosas. moda da maior parte dos
studia generalia
de outrora. Con-
tudo, sse ngulo de apreciao permitiria compreender que as uni-
versidades de fundao recente seguem normal e legitimamente uma
evoluo, em que a formao de uma clientela de estudantes e a sa-
tisfao de suas aspiraes profissionais constituem a primeira etapa.
Uma das fraquezas da histria comparada como se tem feito
comumente tem sido considerar, em um dado momento, pases que
atingiram estdios de evoluo muito diferentes . Se se parte da no-
o, grosseiramente verdadeira, de que os diversos pases so mais
ou menos velhos, pode-se admitir, como primeira hiptese de tra-
balho, que os mais jovens refazem as experincias j realiiadas h
muito tempo pelos mais velhos . Isso naturalmente, levando-se em
considerao as circunstncias diferentes, mas essas circunstn-
cias no so sempre to diferentes quanto possa parecer ao primeiro
contacto . Quem, por exemplo, insistisse sbre o povoamento redu-
zido do Brasil, como uma condio inteiramente nova de sua hist-
ria, teria esquecido que a Europa no como do sculo XVI em ab-
soluto era o formigueiro que se tornou, e que o homem dispunha ain-
da de muito espao diante dle.
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A admisso repetimos, como primeira hiptese de trabalho
e sob tdas as reservas necessrias da possibilidade de se com-pararem as experincias atuais ou recentes dos povos novos e as ex-
perinciai antigas dos velhos pases, faz da histria dsses povos no-
vos uma espcie de lupa (ou de tubo de ensaio, importa pouco a
imagem) para a compreenso de outras histrias que escapam pes-
quisa pelo seu distanciamento . E' necessrio que, em seguida, o his-
toriador se aplique s diferenas, das quais as primeiras resultam do
fato de no ser o homem eternamente o mesmo .
Reconhecendo perfeitamente os riscos do que eu no quereria
chamar um mtodo, mas smente uma diligncia do esprito e da
pesquisa, parece pelo menos que essa diligncia que mais no
que solicitar ao conhecimento que se tem do presente de um po-
vo que ajude inteligncia do passado de outro com a vanta-
gem de reconduzir o historiador ao estudo e, desde logo, ao amor
por sse presente do qual tende a se afastar .
Eis o grande servio que me presta o Brasil, a mim que mais
no sou que um trabalhador no campo do passado europeu. E
porque o Brasil refaz, numa certa medida, e sob ritmo singularmente
rpido, as experincias da Europa, e por isso permite compreend-
las melhor que, mesmo para quem no se ocupe especialmente de
seu passado j glorioso, sado nele uma grande Terra de Histria.
MILE-G. LONARD
Professor na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras
da Universidade de So Paulo, diretor de estudos na
Escola Prtica de Altos Estudos-Cincias Religiosas
(Paris).