1999), e absoluto crônica da casa apropriada · 2.estadodeminas sexta-feira,4demarçode2016.3 em...

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( ) 2. ESTADO DE MINAS Em Guerra dos lugares, a urbanista Raquel Rolnik expõe como a moradia se tornou um produto submetido ao mercado financeiro globalizado às custas do direito a habitação adequada em todo o mundo P ABLO PIRES FERNANDES A constatação feita por Raquel Rolnik é contundente e certeira. A urbanista, uma das maiores autoridades sobre po- lítica habitacional nas cidades, defende que a moradia passa por um radical pro- cesso de mutação, no qual sua dimen- são pública ou de direito humano está sofrendo um golpe ao ser transformado em ativo financeiro submetido ao mer- cado. Em Guerra dos lugares – A coloni- zação da terra e da moradia na era das fi- nanças (Editora Boitempo), escrito a par- tir de sua tese de doutoramento, argu- menta que o projeto neoliberal tem im- posto a propriedade privada individual como modelo único para a relação das pessoas com os lugares onde vivem. Em sua perspectiva, a autora susten- ta que o Estado desempenha papel es- sencial no que chama de “financeiriza- ção da moradia”. “Esse processo é 100% conduzido pelo Estado, não existe sem essa participação. É um processo em que o mercado capturou e se mimeti- zou com o Estado. Não há mais diferen- ça entre essas duas instâncias.” A análise de Rolnik é ambiciosa, mas sua vasta experiência garante solidez à tese. Desde quando era estudante na Fa- culdade de Arquitetura e Urbanismo (Fau) da Universidade de São Paulo (USP), nos anos 1970, dedicou-se a pes- quisar o fenômeno da moradia nas cida- des, estudando a formação das periferias de São Paulo. A partir de então, aliou “um trabalho mais acadêmico sobre ar- quitetura e urbanismo com um traba- lho de assessoria na área de política ur- bana habitacional, ora assumindo um cargo no governo – em governo muni- cipal, estadual e federal – ora através de consultorias a municípios”. Em 2008, foi escolhida para ocupar o cargo de relatora especial para o Direito à Moradia Adequada do Conselho de Di- reitos Humanos (CDH) das Nações Uni- das (ONU). Na função, visitou diversos países e aprofundou a pesquisa sobre o processo global de financeirização das cidades e seu impacto na população. Antes disso, nos anos 1990, partici- pou como consultora de política urbana na gestão do petista Patrus Ananias (1993-1996) na Prefeitura de Belo Hori- zonte. E elogia a mobilização cidadã que ocorre atualmente na capital contra a ló- gica “financeirista” e privatizante que detalha no livro. “Não é por acaso e nem é específico de BH a apropriação da cida- de por parte da sociedade civil”, afirma. Rolnik explica que houve um movi- mento importante de lutas urbanas no final dos anos 1970 e 1980, mas que ele “sucumbiu à lógica histórica da captura doEstadopelosnegóciosnocampourba- no”. No entanto, aposta que “muita coisa vem por aí”, pois há um novo ciclo prota- gonizado pela juventude. “O movimen- to do direito à cidade tem como um de seus eixos importantes a ocupação do es- paço público numa espécie de constru- ção, na prática, daquilo que é público. Ou seja: o público não é propriedade privada dos partidos e dos políticos, mas proprie- dade coletiva do cidadão. E os movimen- tos de ocupação do espaço público – seja através do carnaval ou das ocupações em torno da moradia – são justamente uma afirmação disso.” A professora diz que os atuais mo- vimentos, com suas particularidades em cada lugar, têm questionamentos em comum: Para que serve a cidade? Qual é a relação dos indivíduos com o lugar onde habitam?. E, apesar do diag- nóstico sombrio, é otimista. Acredita que essa mobilização é capaz de afetar os processos decisórios das políticas públicas sobre a cidade, “que não po- dem ficar restritos à esfera do diálogo da política dos partidos com o mundo dos negócios urbanos”. Quais são as bases do processo de fi- nanceirização da habitação e as ori- gens dessa lógica? Estamos falando da emergência do neoliberalismo como teoria e como prática. É a tese de que o mercado tem que dar conta de traduzir o acesso da maior parte da população à educação, à saúde, a seus elementos básicos da re- produção da vida cotidiana. E isso de- corrente da dívida dos Estados e de uma reposta que seria da migração das dívidas dos Estados para as famílias. A dívida migra através do movimento de mercantilização dos serviços e bens pú- blicos até então providos pelo Estado, como educação, saúde, moradia etc. E, para entender esse modelo da finan- ceirização como fenômeno global, a origem é a questão do endividamento dos Estados. Mas há também a existên- cia de uma grande quantidade de capi- tal excedente global procurando novos campos de investimento para saciar sua necessidade de rentabilidade. Esta- mos falando da necessidade de expan- são do próprio capital financeiro, en- contrando novas formas e espaços on- de ele pode ser investido gerando valo- rização e remuneração. A terra, o imo- biliário e o espaço construído passam a ser elemento fundamental desse cir- cuito de valorização do capital. Como a política de habitação social eu- ropeia, constituída dentro da perspecti- va do Estado de bem-estar social (wel- fare state), se distingue da política nor- te-americana em relação à moradia? Primeiro, é importante entender que os EUA, desde o New Deal (1933-1937), ti- nham uma política importante de apoio à habitação social – de construção de conjuntos habitacionais públicos, alugados de forma subsidiada por tra- balhadores – que foi capaz de construir um estoque muito significativo de ha- bitação pública de aluguel. Essa política começa a ser desmontada na Era Rea- gan (1981-1989), juntamente com o des- mantelamento das políticas de welfare em quase todos os países da Europa. O exemplo da Margaret Thatcher (primei- ra-ministra britânica entre 1979 e 1990) é muito radical, porque, no final dos anos 1960, quase 40% do total do esto- que de moradias no Reino Unido era público-social, baseado em aluguel. E is- so é totalmente privatizado. Depois, com a queda do comunismo real, essa prática começa a ser disseminada por todos os países ex-comunistas. Poste- riormente, esse modelo é replicado na experiência chilena, mexicana, brasilei- ra, sul-africana e em vários países emer- gentes e não desenvolvidos. Essa mer- cantilização vai dar na crise de 2007. O produto dessa crise mostra os limites e os fracassos desse modelo, que procu- rou substituir o modelo do welfare – da provisão pública de moradia, com to- dos os seus problemas, diga-se –, pela ideia de que basta todo mundo ter um crédito acessível que todos terão acesso à moradia. Não é bem assim. Depois da crise, como o sistema finan- ceiro agiu em relação à moradia? É impressionante o que está ocorren- do hoje com parte do estoque, porque houve uma superprodução de produ- tos imobiliários nos EUA, uma série de execuções de dívidas hipotecárias não pagas, de pessoas sem casa e casas va- zias. O estoque residencial ganhou va- lor muito alto nos anos de bolha imo- biliária e hoje se desvalorizou. Agora, os mesmos personagens que geraram o estouro da bolha – Wall Street, o mercado financeiro, etc. – estão consti- tuindo fundos de investimento que compram esse estoque desvalorizado para especular com ele no futuro. O capitalismo faz isso. Ele destrói, desva- loriza e isso abre uma nova fronteira para um capital que não tem nenhum compromisso com a vida, nem com a produção, nem com a necessidade das pessoas. Ele só tem compromisso com a sua própria remuneração. Essa é a grande questão. Como foi o trabalho de relatora das Na- ções Unidas e como isso afetou sua pesquisa? Ao longo da relatoria fui percebendo o processo da financeirização e passei a me dedicar bastante ao tema. Foi mui- to marcante a missão nos EUA, uma das primeiras que fiz como relatora. Não apenas porque foi quando tive contato com essa questão da financei- rização da moradia e seus efeitos, mas também porque a sociedade civil nor- te-americana é extremamente organi- zada. A missão nos EUA teve participa- ção intensa da sociedade civil e vejo que aquilo que a gente começou a fa- zer no momento da missão reverbera até hoje. Foi muito importante conhe- cer situações que eu não fazia ideia, co- mo a Indonésia ou o Cazaquistão. Acho que levar ao Conselho de Direitos Hu- manos (da ONU) a questão do direito à moradia nos países centrais foi uma contribuição singular da relatoria. Porque foi exatamente onde essa lógi- ca foi criada e se espalhou... Exatamente. E é muito hegemônica. Não se trata apenas de uma política im- perialista, de disseminação elaborada no Norte, mas, é que existe uma economia política de cada país, com interesses lo- cais muito fortes, que se beneficiam des- sas opções. Foi importante também a ida ao Haiti para perceber melhor a questão da terra, da relação com a pro- priedade privada, com a financeirização. Ao chegar lá, pensando no processo de reconstrução pós-terremoto, estava to- do o sistema de cooperação internacio- nal paralisado, sem conseguir recons- truir moradias porque a maioria do que foi destruído não tinha registro formal de propriedade. E, se não tem registro, como você vai construir uma casa que não é da pessoa? Isso me permitiu de- senvolver a discussão da relação da pro- priedade privada versus as outras for- mas de acesso à terra e o modelo global de financeirização da moradia urbana. Você descreve o programa Minha casa, minha vida como reprodutor da lógica de financeirização da habitação. Por quê? Porque para a moradia poder ser mer- cadoria capaz de circular plenamente nos circuitos financeiros internacio- nais, hoje, crescentemente, a única ló- gica é a da propriedade privada indivi- dual registrada. Todas as outras formas que exigem mediações mais comple- tas, mais complexas, outras formas de relação com a terra, não têm essa pos- sibilidade. E essa lógica se dá através da garantia da transformação das hipote- cas em ativos financeiros, mas que, por meio de fundos imobiliários, permi- tem que você tenha um papel que cor- responde a uma porcentagem da par- ticipação daquele investimento imobi- liário, sem sua real materialidade. É por isso que estamos vivendo um proces- so global de fragilização das diferentes formas de vínculo com a terra, trans- formando a propriedade privada indi- vidual registrada no modelo único da relação do indivíduo com o território. Isso ocorre através de reformas fundiá- rias e de políticas públicas de promo- ção de propriedade individual, a casa própria. O Minha casa, minha vida é um exemplo disso. Embora isso seja vendido como a possibilidade mais se- gura de posse, observamos que, na cri- se imobiliário-financeira, ela é absolu- tamente insegura. As pessoas estão na rua, sem casa e sem poupança. Quais seriam as outras formas de criar a relação com a terra e com a habitação? Há experiências concretas implemen- tadas e importantes de serem observa- das neste momento de crise. Por exemplo, as formas cooperativas, em que a propriedade não é individual, mas é cooperativa, foram muito me- nos atingidas pela crise financeira hi- potecária. No caso, as Communities Land Trust (CLT, Comunidades de Ter- ra Comuns) nos EUA e em outros paí- ses da Europa. São propriedades coo- perativas coletivas, desmercantiliza- das, que podem ser vendidas sob con- sulta desse coletivo. São formas muito menos suscetíveis e menos inseguras. A Alemanha, particularmente, tem po- líticas de proteção ao aluguel que são importantes. E a crise financeira hipo- tecária na Alemanha atingiu muito menos as pessoas de baixa renda e mais vulneráveis. E, sobretudo, é dizer: Olha, não dá pra trabalhar com mode- lo único. Tem-se que trabalhar com uma diversidade de modelos: aluguel subsidiado, cooperativas, casa própria, costurando tudo isso. Não pode ser um modelo único, porque não dá certo. Vista de Pluit Dam, em Jacarta, capital da Indonésia, um dos países visitados pela pesquisadora como relatora da ONU Raquel Rolnik, premiada urbanista brasileira, atualmente se dedica à academia na USP Crônica da casa apropriada MARTIN HUNTER/THEGUARDIAN/BOITEMPO ADEK BERRY/AFP – 11/6/13 GUERRA DOS LUGARES: A COLONIZAÇÃO DA TERRA E DA MORADIA NA ERA DAS FINANÇAS De Raquel Rolnik Boitempo 424 páginas R$ 62

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Page 1: 1999), e absoluto Crônica da casa apropriada · 2.ESTADODEMINAS Sexta-feira,4demarçode2016.3 Em Guerra doslugares,aurbanista Raquel Rolnik expõe como amoradia se tornou um produto

( ) Sexta-feira, 4 de março de 2016 .32. ESTADO DE MINAS

Em Guerra dos lugares, a urbanista Raquel Rolnik expõe como a moradia se tornou um produtosubmetido ao mercado financeiro globalizado às custas do direito a habitação adequada em todo o mundo

PABLO PIRES FERNANDES

CARLOS M. TEIXEIRA*

Arquiteto Carlos M.

Teixeira propõe

uma transformação

do Bulevar Arrudas

em área a ser

ocupada por

ciclovias, áreas

verdes e passarelas

que ligam o norte

ao sul da capital

O rio como evento

Muito já se falou sobre o descaso históricopara com o Arrudas em Belo Horizonte: o riofoi canalizado e hoje não é mais percebidocomo um elemento natural. Seu leito foi su-cessivamente retificado, canalizado e, porfim, coberto. É um divisor norte-sul, já quehá três barreiras paralelas trabalhando jun-tas: rio, topografia de fundo de vale e a linhado metrô. Sua presença na cidade só é mani-festa como obstáculo e problema (enchen-tes, mau-cheiro, poluição sonora e visual,edifícios abandonados). Poucas são as passa-relas de pedestres que unem a margem sul enorte. E sua arquitetura, que poderia tirarpartido do único elemento natural presenteno Centro, é uma arquitetura de serviço, pre-dominando galpões, postos de gasolina, de-pósitos e vazios urbanos ociosos.

O prédio da rodoviária, por exemplo. Seuvolume modernista, que merece ser valoriza-do, situa-se num rotor de modais desarticu-lados. O que antes era uma várzea do rio se-parando o Centro do Bairro Lagoinha trans-formou-se num mar de viadutos, num com-plexo de vias expressas bem típico do urba-nismo rodoviarista que infelizmente moldouas cidades brasileiras nas últimas décadas.Com a transferência de suas funções para osbairros, seu novo programa pode se transfor-mar numa oportunidade para iniciarmosuma nova relação entre cidade e rio.

É preciso ir contra aquele urbanismo e pri-vilegiar as áreas verdes, as praças e, principal-mente, o resgate da água como potencial re-qualificador da cidade. Ao norte, a Lagoinhaprecisa de uma melhor conexão de pedestrescom o Centro; de uma transposição que pos-sa aproveitar a passarela existente para entãotransformá-la numa praça elevada, como sefosse uma extensão do jardim suspenso deBurle-Marx sobre a laje da rodoviária. Essepaisagismo flutuaria sobre aquela barulhen-ta conjunção de viadutos, provendo sombrasao árido percurso bairro-Centro, revisitando aherança burle-marxista e incorporando umaciclovia, assim permitindo que a futura ma-lha cicloviária da Avenida Antônio Carlos se-ja articulada às ciclovias das avenidas Paranáe Santos Dumont.

Passarelas de pedestres poderiam setransformar num verdadeiro instrumentode uma nova identidade do vale: pontes ge-nerosas, com programas acoplados e poten-cial para valorizar um rio para o qual a cida-de virou as costas. Há exemplos na arquite-tura das cidades que conjugam, alhures,marcos visuais e travessias prazerosas (aPonte Vecchio, de Florença, a Ponte doBrooklin, de Nova York, a Pont Neuf, de Paris,a Ponte D. Luiz I, no Porto), – mas nossas pon-tes mais ambiciosas são de uma escala inti-midante, para não dizer acachapante: a pon-te mais famosa do Brasil é a Rio-Niterói...

Além de uma conexão Centro-Lagoinhamais generosa que a pinguela de pedestresatual, é preciso construir várias outras: umaprimeira ligando o circuito da Praça FlorianoPeixoto à Praça Duque de Caxias, em SantaTereza, outra como continuação da Rua Sa-pucaí e Rua Itambé, no Floresta, até o ParqueMunicipal, uma outra na Avenida BernardoMonteiro etc. – todas colaborando para que ainfraestrutura urbana se transforme emoportunidades para prover identidade emarcos visuais a esses bairros.

E sob essas passarelas, não um trânsito depassagem, mas um parque linear ao longode um canal com seções de diferentes tipos ecom novas encostas verdes, quadras, escada-rias, jardins verticais e diversos equipamen-tos para a prática de esportes – todos confor-mando um futuro Corredor Verde Centro-Leste. Sendo uma das raríssimas regiões pla-nas de BH, esse corredor vai funcionar tam-bém como item fundamental da rede de ci-clovias que está sendo implantada, definin-do uma nova infraestrutura de mobilidade edesempenhando papel importante num ur-banismo agora pensado para a experiênciadaqueles que mais fazem uso da cidade: opedestre e o usuário de transporte coletivo.

No Centro, o chamado Bulevar Arrudasprecisa se transformar num bulevar de fato,com calçadas mais largas, árvores que justifi-quem sua alcunha e um tratamento am-biental extenso que irá da Praça da Estaçãoao Corredor Verde, ou até o final da Avenidados Andradas. Nessa perspectiva, a Andradasdeixa de ser uma via de oito pistas (que sóconfirma a cidade do automóvel) para setransformar num calçadão capaz de recriarum vale verde Centro-Leste.

A infraestrutura do canal existente deveagora ser vista com um olhar menos funcio-nalista e mais poético. As centenas de vigasde concreto sobre o Arrudas não estão à es-pera de novas pistas de rolagem (como o fo-ram no retrógrado Bulevar Arrudas): são va-zios expectantes onde estão os melhores fu-turos da cidade. Já há o Praia da Estação; ago-ra imaginemos a praia sobre o rio: o leito doArrudas como um vazio urbano à espera dejardins elevados, cinemas ao ar livre, showsmusicais, atividades cívicas inusitadas.

Quimeras? Enquanto Belo Horizonte con-tinua cobrindo o Arrudas, outras cidades es-tão redescobrindo seus rios. Aquelas vigas po-dem ser ressignificadas como elemento pro-pulsor de novos espaços públicos e de um ei-xo verde central. E assim, uma cidade de fes-tas e de celebrações poderá reativá-lo: o Arru-das como evento, como um campo ativo ca-paz de catalisar uma ampla gama de ativida-des fixas e transitórias, públicas e privadas, lú-dicas e de lazer, possibilitando diferentes ar-ranjos e assumindo as mais diversas facetas.

Arquitetourbanista

formado pelaUFMG, autor de

Em obras:História do vazio

em BeloHorizonte

(CosacNaify,1999),

e O condomínioabsoluto

(C/Arte, 2009).

*

AconstataçãofeitaporRaquelRolniké contundente e certeira. A urbanista,uma das maiores autoridades sobre po-lítica habitacional nas cidades, defendequeamoradiapassaporumradicalpro-cesso de mutação, no qual sua dimen-são pública ou de direito humano estásofrendoumgolpeaosertransformadoem ativo financeiro submetido ao mer-cado. Em Guerra dos lugares – A coloni-zaçãodaterraedamoradianaeradasfi-nanças (EditoraBoitempo),escritoapar-tir de sua tese de doutoramento, argu-menta que o projeto neoliberal tem im-posto a propriedade privada individualcomo modelo único para a relação daspessoas com os lugares onde vivem.

Em sua perspectiva, a autora susten-ta que o Estado desempenha papel es-sencial no que chama de “financeiriza-ção da moradia”. “Esse processo é 100%conduzido pelo Estado, não existe semessa participação. É um processo emque o mercado capturou e se mimeti-zou com o Estado. Não há mais diferen-ça entre essas duas instâncias.”

A análise de Rolnik é ambiciosa, massua vasta experiência garante solidez àtese.DesdequandoeraestudantenaFa-culdade de Arquitetura e Urbanismo(Fau) da Universidade de São Paulo(USP), nos anos 1970, dedicou-se a pes-quisarofenômenodamoradianascida-des,estudandoaformaçãodasperiferiasde São Paulo. A partir de então, aliou“um trabalho mais acadêmico sobre ar-quitetura e urbanismo com um traba-lho de assessoria na área de política ur-bana habitacional, ora assumindo umcargo no governo – em governo muni-cipal, estadual e federal – ora através deconsultorias a municípios”.

Em 2008, foi escolhida para ocupar ocargo de relatora especial para o DireitoàMoradiaAdequadadoConselhodeDi-reitos Humanos (CDH) das Nações Uni-das (ONU). Na função, visitou diversospaíses e aprofundou a pesquisa sobre oprocesso global de financeirização dascidades e seu impacto na população.

Antes disso, nos anos 1990, partici-poucomoconsultoradepolíticaurbanana gestão do petista Patrus Ananias(1993-1996) na Prefeitura de Belo Hori-zonte.Eelogiaamobilizaçãocidadãqueocorreatualmentenacapitalcontraaló-

gica “financeirista” e privatizante quedetalhanolivro.“NãoéporacasoeneméespecíficodeBHaapropriaçãodacida-de por parte da sociedade civil”, afirma.

Rolnik explica que houve um movi-mento importante de lutas urbanas nofinal dos anos 1970 e 1980, mas que ele“sucumbiu à lógica histórica da capturadoEstadopelosnegóciosnocampourba-no”.Noentanto,apostaque“muitacoisavemporaí”,poisháumnovocicloprota-gonizado pela juventude. “O movimen-to do direito à cidade tem como um deseuseixosimportantesaocupaçãodoes-paço público numa espécie de constru-ção,naprática,daquilo queépúblico. Ouseja:opúbliconãoépropriedadeprivadadospartidosedospolíticos,masproprie-dadecoletivadocidadão.Eosmovimen-tosdeocupaçãodoespaçopúblico–sejaatravésdocarnavaloudasocupaçõesemtornodamoradia–sãojustamenteumaafirmaçãodisso.”

A professora diz que os atuais mo-vimentos, com suas particularidadesem cada lugar, têm questionamentosem comum: Para que serve a cidade?Qual é a relação dos indivíduos com olugar onde habitam?. E, apesar do diag-nóstico sombrio, é otimista. Acreditaque essa mobilização é capaz de afetaros processos decisórios das políticaspúblicas sobre a cidade, “que não po-dem ficar restritos à esfera do diálogoda política dos partidos com o mundodos negócios urbanos”.

Quais são as bases do processo de fi-nanceirização da habitação e as ori-gens dessa lógica?Estamos falando da emergência doneoliberalismo como teoria e comoprática. É a tese de que o mercado temque dar conta de traduzir o acesso damaior parte da população à educação,à saúde, a seus elementos básicos da re-produção da vida cotidiana. E isso de-corrente da dívida dos Estados e deuma reposta que seria da migração dasdívidas dos Estados para as famílias. Adívida migra através do movimento demercantilização dos serviços e bens pú-blicos até então providos pelo Estado,como educação, saúde, moradia etc. E,para entender esse modelo da finan-ceirização como fenômeno global, aorigem é a questão do endividamentodos Estados. Mas há também a existên-cia de uma grande quantidade de capi-tal excedente global procurando novoscampos de investimento para saciarsua necessidade de rentabilidade. Esta-mos falando da necessidade de expan-são do próprio capital financeiro, en-contrando novas formas e espaços on-de ele pode ser investido gerando valo-rização e remuneração. A terra, o imo-biliário e o espaço construído passam aser elemento fundamental desse cir-cuito de valorização do capital.

Como a política de habitação social eu-ropeia, constituída dentro da perspecti-va do Estado de bem-estar social (wel-fare state), se distingue da política nor-te-americana em relação à moradia?Primeiro,é importanteentenderqueosEUA, desde o New Deal (1933-1937), ti-nham uma política importante deapoioàhabitaçãosocial–deconstruçãode conjuntos habitacionais públicos,alugados de forma subsidiada por tra-balhadores – que foi capaz de construirum estoque muito significativo de ha-bitação pública de aluguel. Essa políticacomeça a ser desmontada na Era Rea-gan(1981-1989), juntamentecomodes-mantelamento das políticas de welfareem quase todos os países da Europa. OexemplodaMargaretThatcher(primei-ra-ministra britânica entre 1979 e 1990)é muito radical, porque, no final dosanos 1960, quase 40% do total do esto-que de moradias no Reino Unido erapúblico-social,baseadoemaluguel.E is-so é totalmente privatizado. Depois,

com a queda do comunismo real, essaprática começa a ser disseminada portodos os países ex-comunistas. Poste-riormente, esse modelo é replicado naexperiência chilena, mexicana, brasilei-ra,sul-africanaeemváriospaísesemer-gentes e não desenvolvidos. Essa mer-cantilização vai dar na crise de 2007. Oproduto dessa crise mostra os limites eos fracassos desse modelo, que procu-rou substituir o modelo do welfare – daprovisão pública de moradia, com to-dos os seus problemas, diga-se –, pelaideia de que basta todo mundo ter umcrédito acessível que todos terão acessoà moradia. Não é bem assim.

Depois da crise, como o sistema finan-ceiro agiu em relação à moradia?É impressionante o que está ocorren-do hoje com parte do estoque, porquehouve uma superprodução de produ-tos imobiliários nos EUA, uma série deexecuções de dívidas hipotecárias nãopagas, de pessoas sem casa e casas va-zias. O estoque residencial ganhou va-lor muito alto nos anos de bolha imo-biliária e hoje se desvalorizou. Agora,os mesmos personagens que geraramo estouro da bolha – Wall Street, omercado financeiro, etc. – estão consti-tuindo fundos de investimento quecompram esse estoque desvalorizadopara especular com ele no futuro. Ocapitalismo faz isso. Ele destrói, desva-loriza e isso abre uma nova fronteirapara um capital que não tem nenhumcompromisso com a vida, nem com aprodução, nem com a necessidade daspessoas. Ele só tem compromisso coma sua própria remuneração. Essa é agrande questão.

Como foi o trabalho de relatora das Na-ções Unidas e como isso afetou suapesquisa?Ao longo da relatoria fui percebendo oprocesso da financeirização e passei ame dedicar bastante ao tema. Foi mui-to marcante a missão nos EUA, umadas primeiras que fiz como relatora.Não apenas porque foi quando tivecontato com essa questão da financei-rização da moradia e seus efeitos, mastambém porque a sociedade civil nor-te-americana é extremamente organi-zada. A missão nos EUA teve participa-ção intensa da sociedade civil e vejoque aquilo que a gente começou a fa-

zer no momento da missão reverberaaté hoje. Foi muito importante conhe-cer situações que eu não fazia ideia, co-mo a Indonésia ou o Cazaquistão. Achoque levar ao Conselho de Direitos Hu-manos (da ONU) a questão do direito àmoradia nos países centrais foi umacontribuição singular da relatoria.

Porque foi exatamente onde essa lógi-ca foi criada e se espalhou...Exatamente. E é muito hegemônica.Não se trata apenas de uma política im-perialista,dedisseminaçãoelaboradanoNorte, mas, é que existe uma economiapolítica de cada país, com interesses lo-caismuitofortes,quesebeneficiamdes-sas opções. Foi importante também aida ao Haiti para perceber melhor aquestão da terra, da relação com a pro-priedadeprivada,comafinanceirização.Ao chegar lá, pensando no processo dereconstrução pós-terremoto, estava to-do o sistema de cooperação internacio-nal paralisado, sem conseguir recons-truirmoradiasporqueamaioriadoquefoi destruído não tinha registro formalde propriedade. E, se não tem registro,como você vai construir uma casa quenão é da pessoa? Isso me permitiu de-senvolver a discussão da relação da pro-priedade privada versus as outras for-mas de acesso à terra e o modelo globalde financeirização da moradia urbana.

Você descreve o programa Minha casa,minha vida como reprodutor da lógica definanceirização da habitação. Por quê?Porque para a moradia poder ser mer-cadoria capaz de circular plenamentenos circuitos financeiros internacio-nais, hoje, crescentemente, a única ló-gica é a da propriedade privada indivi-dual registrada. Todas as outras formasque exigem mediações mais comple-tas, mais complexas, outras formas derelação com a terra, não têm essa pos-sibilidade. E essa lógica se dá através dagarantia da transformação das hipote-cas em ativos financeiros, mas que, pormeio de fundos imobiliários, permi-tem que você tenha um papel que cor-responde a uma porcentagem da par-ticipação daquele investimento imobi-liário, sem sua real materialidade. É porisso que estamos vivendo um proces-so global de fragilização das diferentesformas de vínculo com a terra, trans-formando a propriedade privada indi-

vidual registrada no modelo único darelação do indivíduo com o território.Isso ocorre através de reformas fundiá-rias e de políticas públicas de promo-ção de propriedade individual, a casaprópria. O Minha casa, minha vida éum exemplo disso. Embora isso sejavendido como a possibilidade mais se-gura de posse, observamos que, na cri-se imobiliário-financeira, ela é absolu-tamente insegura. As pessoas estão narua, sem casa e sem poupança.

Quais seriam as outras formas de criar arelação com a terra e com a habitação?Há experiências concretas implemen-tadas e importantes de serem observa-das neste momento de crise. Porexemplo, as formas cooperativas, emque a propriedade não é individual,mas é cooperativa, foram muito me-nos atingidas pela crise financeira hi-potecária. No caso, as CommunitiesLand Trust (CLT, Comunidades de Ter-ra Comuns) nos EUA e em outros paí-ses da Europa. São propriedades coo-perativas coletivas, desmercantiliza-das, que podem ser vendidas sob con-sulta desse coletivo. São formas muitomenos suscetíveis e menos inseguras.A Alemanha, particularmente, tem po-líticas de proteção ao aluguel que sãoimportantes. E a crise financeira hipo-tecária na Alemanha atingiu muitomenos as pessoas de baixa renda emais vulneráveis. E, sobretudo, é dizer:Olha, não dá pra trabalhar com mode-lo único. Tem-se que trabalhar comuma diversidade de modelos: aluguelsubsidiado, cooperativas, casa própria,costurando tudo isso. Não pode ser ummodelo único, porque não dá certo.

Vista de Pluit Dam,

em Jacarta, capital

da Indonésia, um

dos países visitados

pela pesquisadora

como relatora

da ONU

Raquel Rolnik, premiada urbanistabrasileira, atualmente se dedica àacademia na USP

Crônica dacasa apropriada

MARTIN HUNTER/THEGUARDIAN/BOITEMPO

ADEK BERRY/AFP – 11/6/13

●● GUERRA DOS

LUGARES: A

COLONIZAÇÃO DA

TERRA E DA

MORADIA NA ERA

DAS FINANÇAS

●● De Raquel Rolnik●● Boitempo●● 424 páginas●● R$ 62

IMAGENS: CARLOS M. TEIXEIRA