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Movimento 33 Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 5-18, setembro/dezembro 2002 Artigos Originais ... .. Resumo Este estudo investiga as contribuições do ambiente familiar para o desenvolvimento da criança com Paralisia Cerebral, na faixa etária dos 5 aos 6 anos de idade. Os participantes do estudo são três famí- lias, que têm crianças com diferentes tipos de Pa- ralisiaCerebral.Foramrealizadasentrevistassemi- estruturadas com as mães das crianças e observa- ções indiretas através de gravações em VT das ati- vidades desenvolvidas pelas crianças, no ambiente familiar. As informações coletadas respondem aos objetivos específicos do estudo que são: descrever o status social familiar; identificar e analisar as ati- vidades realizadas no ambiente familiar, as rela- ções interpessoais da criança com Paralisia Cere- bral e os papéis desempenhados durante as ativi- dades, no ambiente familiar. Palavras-chave:criançascomParalisiaCerebral,de- senvolvimento humano, ambien- te familiar. Abstract This study looks at the contributions of the family context to the development of the child with Cere- bral Palsy in the 5 to 6 year-old age group. The study participants are three families with children who have different kinds of Cerebral Palsy. Semi- structured interviews were carried out with the mothers of the children and indirect observations were made through video tape recordings of the O desenvolvimento da criança com Paralisia Cerebral no ambiente familiar Sofía Rubinstein* Maria Helena da Silva Ramalho** Francisco Camargo Netto*** activities carried out by the children in the family context. The data obtained answer to the specific goals of this study, which are: a description of the social status of the family; identification and analysis of the activities carried out in the family context,oftheinterpersonalrelationshipsofthechild with Cerebral Palsy, and of the roles performed during the activities in the family context. Keywords: children with Cerebral Palsy, human development, family context. Resumen Este estudio investiga las contribuciones del ambi- ente familiar en el desarrollo del niño con Parálisis Cerebral, en edades comprendidas entre los 5 y 6 años. Los participantes del estudio son tres familias, con niños con diferentes tipos de Parálisis Cerebral. Se realizaron entrevistas semi-estructuradas con las madres de los niños y observaciones indirectas a través de grabaciones en video de las actividades desarrolladas por los niños en el ambiente famili- ar. Las informaciones recogidas responden a los ob- jetivos específicos del estudio que son: describir el status social familiar; identificar y analizar las actividades realizadas en el ambiente familiar, así como relaciones inter-personales del niño con ParálisisCerebralylosrolesdesempeñadosdurante las actividades en el ambiente familiar. Palabras-clave: niñosconParálisisCerebral,desarrollo humano, ambiente familiar. Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 33-45, setembro/dezembro 2002

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MMMMMovimento33

Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 5-18, setembro/dezembro 2002

Artigos Originais . . . . .

Resumo

Este estudo investiga as contribuições do ambiente

familiar para o desenvolvimento da criança com

Paralisia Cerebral, na faixa etária dos 5 aos 6 anos

de idade. Os participantes do estudo são três famí-

lias, que têm crianças com diferentes tipos de Pa-

ralisia Cerebral. Foram realizadas entrevistas semi-

estruturadas com as mães das crianças e observa-

ções indiretas através de gravações em VT das ati-

vidades desenvolvidas pelas crianças, no ambiente

familiar. As informações coletadas respondem aos

objetivos específicos do estudo que são: descrever o

status social familiar; identificar e analisar as ati-

vidades realizadas no ambiente familiar, as rela-

ções interpessoais da criança com Paralisia Cere-

bral e os papéis desempenhados durante as ativi-

dades, no ambiente familiar.

Palavras-chave:crianças com Paralisia Cerebral, de-

senvolvimento humano, ambien-

te familiar.

Abstract

This study looks at the contributions of the family

context to the development of the child with Cere-

bral Palsy in the 5 to 6 year-old age group. The

study participants are three families with children

who have different kinds of Cerebral Palsy. Semi-

structured interviews were carried out with the

mothers of the children and indirect observations

were made through video tape recordings of the

O desenvolvimento da criança comParalisia Cerebral no ambiente familiar

Sofía Rubinstein*

Maria Helena da Silva Ramalho**

Francisco Camargo Netto***

activities carried out by the children in the family

context. The data obtained answer to the specific

goals of this study, which are: a description of the

social status of the family; identification and

analysis of the activities carried out in the family

context, of the interpersonal relationships of the child

with Cerebral Palsy, and of the roles performed

during the activities in the family context.

Keywords: children with Cerebral Palsy, human

development, family context.

Resumen

Este estudio investiga las contribuciones del ambi-

ente familiar en el desarrollo del niño con Parálisis

Cerebral, en edades comprendidas entre los 5 y 6

años. Los participantes del estudio son tres familias,

con niños con diferentes tipos de Parálisis Cerebral.

Se realizaron entrevistas semi-estructuradas con las

madres de los niños y observaciones indirectas a

través de grabaciones en video de las actividades

desarrolladas por los niños en el ambiente famili-

ar. Las informaciones recogidas responden a los ob-

jetivos específicos del estudio que son: describir el

status social familiar; identificar y analizar las

actividades realizadas en el ambiente familiar, así

como relaciones inter-personales del niño con

Parálisis Cerebral y los roles desempeñados durante

las actividades en el ambiente familiar.

Palabras-clave: niños con Parálisis Cerebral, desarrollo

humano, ambiente familiar.

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Introdução

Especificamente, aAssociação Brasilei-ra de Paralisia Cere-bral, citada por GO-MESet al. (1995, p.288), considera aParalisia Cerebral(PC) como

...o conjunto de

alterações oriun-

das de um deter-

minado acometi-

mento encefálico,

caracterizado es-

sencialmente por uma alteração persistente, porém não

estável do tônus, da postura e do movimento que se

inicia durante o período de maturação anatomofisio-

lógico do sistema nervoso central.

A Paralisia Cerebral pode estar acompanhada de ou-tros transtornos como: distúrbios visuais, auditivos,déficit mental, epilepsia, dificuldades respiratórias, dealimentação, transtornos na linguagem, de comuni-cação, problemas de conduta e outros.

Há décadas que os profissionais da medicina tentamdesvendar as causas da lesão cerebral produzida du-rante o desenvolvimento do Sistema Nervoso Central,tentando saber quais são as possíveis repercussões des-sa lesão no organismo. Assim, quando se pensa emParalisia Cerebral, o primeiro que vem à mente sãoconteúdos sobre conceitualização, etiologia, diagnós-tico, causas, classificações, tratamento, entre outros.

Não se desmerecem os trabalhos realizados na área damedicina, já que constituem uma base sólida e impor-tante para entender a Paralisia Cerebral; no entanto,não se pretende limitar o estudo aos diagnósticos, àscausas e aos tratamentos que são realizados com a cri-ança, mas compreender o desenvolvimento da crian-ça com PC em seu meio ambiente natural, e comoesse ambiente influencia seu desenvolvimento. Desen-volvimento humano entendido como processo, bioló-

gico, cultural e evolutivo, que delineia a quantidade ea qualidade das experiências adquiridas ao longo davida. Assim, concorda-se com BRONFENBRENNER(1996, p. 5) quando define o desenvolvimento como“... uma mudança duradoura na maneira pela qualuma pessoa percebe e lida com o seu ambiente.”

Para VYGOSTKI(1997), o ambientenão só é uma condi-ção para o desenvol-vimento da criançadeficiente, senãotambém a fonte des-se desenvolvimento.Todavia, o compo-nente hereditário,por pequeno queseja, é importante eparticipa tambémno desenvolvimento.

É sabido, que em fun-ção da própria deficiência, as crianças com Paralisia Ce-rebral sofrem alterações em seu desenvolvimento, tornan-do-o mais limitado e o ganho de habilidades mais lento.Dependendo da gravidade e da instalação precoce da defi-ciência, as oportunidades interativas da criança com omeio podem estar mais ou menos restringidas, acentuan-do as possíveis defasagens de desenvolvimento. Entretan-to, mesmo que o desenvolvimento dessas crianças ocorrade forma atípica, as suas necessidades básicas permane-cem existindo como as de qualquer criança. Assim, as cri-anças com PC necessitam ser encorajadas a realizaremdiversas atividades que maximizem seu desenvolvimentoem nível cognitivo, social e motor, reconhecendo suaspotencialidades, assim como suas limitações, condiçõescomuns a todos os seres humanos.

Durante a procura de material bibliográfico, percebeu-se que existem escassas pesquisas em relação ao ambi-ente familiar como um contexto que pode ser um possí-vel facilitador do desenvolvimento da criança com Pa-ralisia Cerebral. A maioria dos estudos sobre PC enfocam

Ao longo da história, a Pa-

ralisia Cerebral vem sendo

entendida, explicada e tra-

tada fundamentalmente

por médicos, fisioterapeutas,

terapeutas ocupacionais e

outros profissionais, enqua-

drando as crianças com Pa-

ralisia Cerebral em uma

questão médico-terapêutica

e entendendo-a como uma

deficiência.

A criança cresce em deter-

minado ambiente e as

interações com outras pes-

soas que participam desse

ambiente são essenciais

para seu desenvolvimento.

Partindo-se desta premissa,

o contexto ambiental é vis-

to como um sistema de

inter-relações ou de inter-

dependências entre os vá-

rios componentes físicos e

humanos, que participam

desse contexto.

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o diagnóstico e o tratamento dessas crianças. Entretan-to, em um estudo realizado por CURADO, NETO; KOOIJ(1997), sobre o comportamento lúdico da criança por-tadora de Trissomia 21, constata-se a importância dafamília no desenvolvimento da criança, ao dizer que,no enquadramento social, “a família funciona como ocontexto primário que mais influencia o crescimentopsicológico, o desenvolvimento e o bem-estar da crian-ça” (CURADO, NETO, KOOIJ, 1997, p. 85).

Nesse sentido, o caráter relevante do presente estudoestá na abordagem que se faz ao estudar o ambientefamiliar da criança com Paralisia Cerebral. Conside-ra-se o ambiente familiar como um contextosociocultural relevante para o desenvolvimento da cri-ança com Paralisia Cerebral. Partindo-se desse pres-suposto o presente estudo propõe-se a estudar a seguintequestão: como o ambiente familiar contribui para odesenvolvimento da criança com Paralisia Cerebral?

Para poder responder a essa pergunta elaboram-se oobjetivo geral:

- Investigar as contribuições do ambiente familiarpara o desenvolvimento da criança com ParalisiaCerebral, na faixa etária dos 5 aos 6 anos de idade.

E os objetivos específicos:

- Descrever o status social familiar da criança comPC, considerando-se o nível de escolaridade dos pais,jornada de trabalho e renda mensal.

- Identificar e analisar as atividades realizadas, noambiente familiar, pela criança com PC, os brin-quedos, objetos e outros materiais utilizados du-rante essas atividades.

- Identificar e analisar as relações interpessoais dacriança com PC, com os membros mais próximosdo núcleo familiar e com amigos dentro do ambi-ente familiar.

- Identificar e analisar os papéis desempenhados pelacriança com PC durante as atividades realizadasno ambiente familiar.

Pressupostos para análise dacriança com Paralisia Cerebral

O presente estudo está inspirado na Teoria da Ecologiado Desenvolvimento Humano de Urie Bronfenbrenner(1996), que tem, como paradigma, o desenvolvimen-to enquanto processo fenomenológico não isolado, ouseja, a função do ambiente enquanto sistemadeterminante no processo de desenvolvimento do serhumano. Neste estudo, realizou-se um recorte da refe-rida teoria, a qual subsidia aspectos relevantes do tra-balho para atender a questão geradora do estudo.

O elemento central na abordagem ecológica está navisão de que o ser humano e seu ambiente sãoindissociáveis e, portanto, não podem ser separados seo objetivo for a compreensão de um ou outro. Assimsendo, Bronfenbrenner (1992), citado por RAMALHO(1996, p. 10), define o desenvolvimento como “o pro-cesso através do qual as propriedades da pessoa e doambiente interagem para produzir constância e mu-danças nas características da pessoa através da vida.”Essa definição faz lembrar que os componentes gené-ticos do ser humano estão presentes no processo dodesenvolvimento, misturando-se com os fatoresambientais. PELLEGRINI (1991) e BEE (1996)enfatizam a importância de compreender-se asinterações entre as várias influências da natureza e domeio ambiente.

O ambiente ecológico na Teoria da Ecologia do De-senvolvimento Humano é concebido como uma sériede estruturas encaixadas, uma dentro da outra, comoafirma BRONFENBRENNER (1996), como um con-junto de bonecas russas. Essas estruturas são chama-das de microssistema, mesossistema, exossistema emacrossistema.

Na Teoria da Ecologia do Desenvolvimento Humano,também chamada Teoria dos Sistemas Ecológicos, omicrossistema, é compreendido como o nível maisimediato para o desenvolvimento da criança, se cons-titui como o ambiente no qual a criança vivencia e

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cria a realidade de seu dia-a-dia, e onde as pessoaspodem facilmente interagir. As atividades desenvolvi-das, as relações interpessoais estabelecidas e os papéissociais desempenhados caracterizam-se pelos elemen-tos do ambiente em que o sujeito em desenvolvimentoparticipa ativamente, constituindo-se como os com-ponentes estruturais do microssistema.

As atividades que a criança realiza são chamadas deatividades molares. Estas são formas de comportamen-to significativos ou influentes sobre o desenvolvimen-to. As formas de comportamento constituídas de ativi-dades momentâneas e carentes de significado e inten-ção, que não influenciam o desenvolvimento, são cha-madas de atividades moleculares.

As relações interpessoais, ou estruturas interpessoais ocor-rem a partir do momento em que duas pessoas estabele-cem uma relação. A presença desse relacionamento en-tre duas pessoas caracteriza a unidade básica do siste-ma, chamada de díade. Esta é formada sempre que duaspessoas prestam atenção ou participam nas atividadesda outra, constituindo-se como um contexto crítico parao desenvolvimento. Além disso, a díade é o componentebásico do microssistema, possibilitando a formação deestruturas interpessoais maiores, como tríades, tétradese assim por diante. As díades apresentam um processoevolutivo, que vão de estruturas, relações simples, a re-lações mais complexas. Dependendo do tipo de relaçãoestabelecida, do grau de complexidade, as díades se clas-sificam em: díade observacional, díade de atividade con-junta e díade primária.

A díade observacional ocorre quando uma pessoa prestaatenção continuada na atividade realizada por umaoutra pessoa e ela percebe que está sendo observada,emitindo algum tipo de resposta à atenção que está sen-do demostrada. Esse tipo de díade, facilmente evolui parauma díade mais ativa e complexa como a díade de ati-vidade conjunta. Esta díade se produz quando duas pes-soas se percebem a si próprias, fazendo alguma coisajuntas, mesmo que elas não estejam fazendo a mesmacoisa. Por sua vez, as díades primárias são o tipo de rela-cionamento interpessoal mais duradouro, pois elas con-

tinuam a existir fenomenologicamente para ambos osparticipantes, mesmo quando eles não estão juntos.Mesmo estando separados, fazendo atividades diferentese em diferentes ambientes, cada um dos membros apa-rece nos pensamentos do outro, sendo objetos de fortessentimentos emocionais e continuam a influenciar ocomportamento reciprocamente.

Os papéis sociais desenvolvidos pelas crianças, são en-tendidos como uma série de atividades e relações espe-radas de uma pessoa que ocupa uma determinadaposição na sociedade e de outros em relação àquelapessoa (BRONFENBRENNER 1996). Esses papéis iden-tificam-se com os rótulos usados para designar as dis-tintas posições sociais em uma cultura, os quais sãodiferenciados pela idade, sexo, ocupação ou o statussocial que a pessoa ocupa na sociedade.

Até aqui, referiu-se aos papéis sociais vivenciados pe-las crianças em desenvolvimento. Entretanto, OLIVEI-RA (1988) chama a atenção para outra dimensão nojogo dos papéis. Por um lado, observam-se os papéisdesempenhados nas atividades de encenação da reali-dade, os quais foram abordados por Bronfenbrenner(1996); por outro, o papel interpessoal, manifestadonas interações entre as crianças, fundamentado porMead, Moreno e Piaget. OLIVEIRA (1988) ressalta queas crianças, desde muito cedo, assumem estruturas deinteração mesmo quando brincam sozinhas, expres-sando esses comportamentos. Mesmo sem ainda indi-car a existência de interação explícita, a própria cri-ança passa a desempenhar partes de uma história vi-vida anteriormente. A autora mostra que as criançasenvolvem-se em interações tanto nas brincadeiras defaz-de-conta, onde o jogo de papéis visualiza-se maisclaramente, em explorações conjuntas de objetos e si-tuações quanto em disputas ou cooperação.

Com os pressupostos teóricos anteriormente descritos,tem-se como foco central, o estudo da criança comParalisia Cerebral no ambiente familiar, sendo consti-tuído pelo microssistema: as atividades, as estruturasinterpessoais e os papéis sociais e interpessoais desem-penhados por essa criança.

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O ambiente familiar comocontributo para a criançacom Paralisia Cerebral

O ambiente familiar conforme CAMPION (1987), sig-nifica um conjunto de partes em interação contínuaque constituem, unidas, um conjunto superior à somadessas partes. Existe a tendência de cada uma dessaspartes a afetar a todas às demais e ao mesmo temposer afetada por elas.

Neste estudo, aborda-se especificamente o ambien-

te familiar que, crê-se, é o primeiro ambiente que

acolhe a criança em desenvolvimento. Dessa ma-neira, concorda-se com SERRANO; NETO (1997),quando destacam que a criança nasce no seio de umafamília e, progressivamente, irá conquistando múlti-plos contextos, como a escola e a comunidade social.Entretanto, eventos externos ao contexto familiar per-tencentes a outros ambientes podem influenciar dire-ta ou indiretamente a criança em desenvolvimento evice-versa.

Revisando estudos sobre a vida familiar, Hoffman (1984),citado por RAMALHO (1996), destaca quatro variáveis que,no entendimento dele, podem afetar a família e a criança:as condições econômicas gerais, a classe socioeconômica,o trabalho do pai e o trabalho da mãe. Hoffman enfatizaque o desenvolvimento da criança muitas vezes é influen-ciado pelo status econômico designado pela ocupação dopai. Os constituintes da vida da criança, como a saúde,nutrição, educação e, ainda, o seu ambiente físico, vizi-nhos e amigos, além dos padrões de educação da criançae o número de seus familiares, sua estrutura autoritária esua estabilidade, são relativos à classe social. No que serefere à classe social, COCHRAN (1993) descreve que arenda familiar, o nível educacional dos pais, o status e acomplexidade da profissão dos mesmos, são fatores quecontribuem para determinar em qual classe social a fa-mília está localizada. Bronfenbrenner (1986), citado porRAMALHO (1996), apresenta três sistemas que provavel-mente podem afetar o desenvolvimento da criança: o lu-gar de trabalho dos pais, redes sociais, e influência da co-munidade no funcionamento familiar. SERRANO; NETO

(1997) ainda ressaltam que pesquisas feitas com criançasem idade pré-escolar têm demostrado que o desenvolvi-mento delas pode estar relacionado ao nível socioeco-nômico da família, com as condições de habitação e osprocessos relacionados com os padrões de interaçãoparentais, com os elementos de fratria e com os grupos desocialização em jogos e dinâmicas de aventura.

Estudos realizados por MARTINEZ (1992), RAMALHO(1996), SERRANO; NETO (1997), NETO (1997), CU-RADO; NETO; KOOIJ (1997) e CARVALHO (1998) mos-tram a importância do ambiente familiar e dos diver-sos elementos do contexto social no desenvolvimento(cognitivo, social e motor) de crianças pré-escolares,escolares e portadoras de necessidades especiais.

Metodologia

O paradigma escolhido para este estudo foi o modelopessoa-contexto, devendo ser explorado quanto à exten-são na qual o mesmo ambiente pode ter diferentes efei-tos sobre seres humanos com diferentes característicaspessoais. O enfoque foi o qualitativo, no qual se conside-ra toda a informação disponibilizada pelos informantescomo importante, estudando o fenômeno em seu con-texto. Caracteriza-se este estudo, também, como descri-tivo-interpretativo, por investigar, através da descrição,interpretação e da compreensão os componentes estru-turais relevantes ao desenvolvimento da criança com PC,tendo como foco o ambiente familiar.

Participantes da pesquisa

Fizeram parte do presente estudo três famílias de cri-anças com diagnóstico de Paralisia Cerebral. Duas cri-anças foram escolhidas no CEREPAL – Centro de Rea-bilitação de Porto Alegre; e uma no EDUCANDÁRIOSÃO JOÃO BATISTA – Centro de Reabilitação Física eEducação Especial. Em linhas gerais, essas famílias sedistinguem por apresentar um baixo nível de instru-ção, uma renda mensal baixa e residir em casas hu-mildes, localizadas em bairros periféricos e pobres dacidade de Porto Alegre.

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O Quadro 1 caracteriza as crianças que participaramdo estudo. São considerados os aspectos identificaçãoda criança, sexo e idade no momento do estudo, e di-agnóstico da Paralisia Cerebral. Optou-se por identifi-car as crianças com uma letra, respeitando-se a suaidentidade.

Quadro 1. Caracterização das crianças

Os diagnósticos médicos foram obtidos através dosprontuários das crianças nos Centros de Reabilitação.Percebe-se que o grau de comprometimento motorvaria desde a paralisia de um hemicorpo, em duas cri-anças, até as alterações nos membros superiores e in-feriores, em uma criança.

Instrumentos para coleta dasinformações

Considera-se que os instrumentos que mais se ajus-tam ao presente estudo são a entrevista semi-estruturada e a observação indireta, através de grava-ções em VT. Os instrumentos escolhidos foram testa-dos através de um estudo preliminar e não houve ne-cessidade de realizar modificações.

Para este estudo, optou-se pela entrevista semi-estruturada, que permite obter informações de ques-tões concretas, previamente definidas pelo pesquisa-dor, e, ao mesmo tempo, oferece liberdade ao entrevis-tado para abordar aspectos relevantes sobre o que pen-sa (NEGRINI,1999). As entrevistas foram realizadaspela própria pesquisadora, com cada mãe das crian-

ças, individualmente, e gravadas em fitas cassete. Asperguntas procuraram respostas aos seguintes tópicos:ocupação dos pais; horário de trabalho de ambos ospais; nível de escolaridade do pai e da mãe e rendafamiliar mensal. Outras perguntas também foram re-alizadas durante as entrevistas, entretanto nem as per-guntas nem as informações obtidas são pertinentes deserem discutidas nesse artigo.

A observação é entendida RODRÍGUEZ GÓMEZ; GILFLORES; GARCÍA JIMÉNEZ (1996) como um procedi-mento de coleta de informações que proporciona umarepresentação dos fenômenos que estão em estudo. Esseprocedimento tem um caráter sistemático e tem queestar orientado por uma pergunta, propósito ou pro-blema. O papel do observador foi não-participante,individual, e as observações foram realizadas em situ-ações concretas, na casa das crianças com PC, apósautorização por escrito dos pais. O comportamento dacriança durante a rotina diária foi gravado em VT, uti-lizando-se uma câmera móvel. A duração das grava-ções acompanharam as atividades, relações interpes-soais e os papéis desempenhados pela criança no am-biente familiar, sendo que esse tempo variou de 23 a87 minutos. Realizaram-se 4 observações em VT du-rante a semana para cada criança.

As atividades, as relações interpessoais e os papéis fo-ram registrados, levando-se em conta a duração dasatividades, a ocorrência, os objetos, a situação de exe-cução (só e/ou acompanhado) e as interações entre acriança e a pessoa envolvida. O comportamento dacriança foi registrado a cada minuto, procurando-sedescrever de forma objetiva e completa cada atividaderealizada pela criança, incluindo-se outras pessoasenvolvidas, os espaços em que as atividades foram exe-cutadas, e os materiais utilizados ou que serviram desuporte para sua realização. No total, foram descritas563 atividades molares. As relações interpessoais fo-ram detectadas dentro das atividades molares, pelasdiferentes formas de interação da criança com outraspessoas. Os papéis foram visualizados nos comporta-mentos das crianças durante as atividades molares.

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Procedimento de análiseinterpretativa das informações

Inspirado na Teoria da Ecologia do DesenvolvimentoHumano, apresentada por BRONFENBRENNER(1996), mostra-se a análise interpretativa dos resulta-dos, a partir das informações adquiridas através dasentrevistas semi-estruturadas e das observações utili-zando-se de gravações em VT.

Entrevista semi-estruturada

As entrevistas realizadas foram transcritas pela própriapesquisadora, sem realizar alterações dos vocábulosutilizados nos depoimentos e/ou nas respostas e entre-gues às mães para que elas pudessem, após verificar oconteúdo das mesmas, validar a veracidade das infor-mações.

O status social familiar, foi analisado da seguinte ma-neira: para o nível de escolaridade dos pais foram con-sideradas três categorias. A primeira categoria com-preende o ensino fundamental incompleto; a segun-da, o ensino fundamental completo e o ensino médioincompleto; e a terceira categoria, o ensino médio com-pleto. A primeira e segunda categorias foram conside-radas baixo nível educativo e a terceira, nível médio.

A jornada de trabalho foi analisada tanto para o paicomo para a mãe, considerando-se duas categorias.Um turno, quando é manhã, tarde ou noite e integralquando é dois turnos.

A análise da renda mensal per capita fundamentou-se em uma distribuição, baseando-se em valores rela-tivos ao salário mínimo vigente, classificando-se asfamílias em duas categorias: menos favorecidas (≤ 2,5)e mais favorecidas (> 2,5).

Para a descrição e análise interpretativa dos conteú-dos das entrevistas foi elaborada uma categoria deanálise, denominada contexto sociocultural, onde es-tão contidas as informações referentes ao status socialfamiliar: nível de escolaridade dos pais, jornada de tra-balho e renda mensal “per capita”, além de informa-ções referentes à ocupação dos pais.

Observação em VT

A elaboração interpretativa das atividades espontâne-as, realizadas no ambiente familiar, partem das nar-rativas pormenorizadas dos comportamentos da cri-ança. Essas descrições adquirem sentido através dasrelações entre os diferentes tipos de categorias de ativi-dades molares, definidas durante as observações, acomplexidade, as estruturas interpessoais e os papéisexperenciados no contexto de desenvolvimento(RAMALHO, 1996).

As atividades visualizadas durante as observações fo-ram analisadas a partir de diversos tipos de categorias,definidas, a partir do estudo preliminar. Os conceitosdos sistemas de categorias foram inspirados em estu-dos anteriores de PEREIRA; NETO (1994),BRONFENBRENNER (1996), RAMALHO (1996), CU-RADOet al. (1997) e Pereira (1993), citado por NETO(1999). Ressalta-se que algumas categorias de ativi-dades propostas pelos autores foram modificadas eadequadas às necessidades deste estudo, ficando assimconstituídas: a) atividades audiovisuais; b) jogos di-dáticos; c) atividades artísticas; d) atividades de faz-de-conta; e) atividades de biblioteca; f) atividades decoordenação dos movimentos; g) atividades com bola;h) atividades de equilíbrio e i) atividades de manipu-lação.

A complexidade estrutural das atividades diz respeito àscategorias descritivas: quantidade de atividades molaresrealizadas durante a observação no contexto da casa;perspectiva temporal ampliada, no que se refere à parti-cipação da criança no decorrer das observações, em ati-vidades progressivas, dentro de metas estruturadas ex-plícitas, em um curso único de ação, porém construídasem submetas seqüenciais. Decorrem da complexidadeos eixos complementares, que refletem os elementos:relações interpessoais, referentes ao campo ecológico,percebidos, na participação da criança com ParalisiaCerebral em sistemas inter-pessoais (díades de observa-ção e de atividade conjunta, tríades); papéis, com rela-ção à modificação ou expansão do espaço vivenciado,por meio da fantasia ou reconstrução real do ambiente

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objetivo. Os papéis sociais e interpessoais foram aquelescategorizados a partir da interpretação das observaçõesdas atividades molares realizadas no contexto da casapelas crianças com Paralisia cerebral (RAMALHO, 1996).Esses não tem expressão numérica, entretanto realiza-se uma descrição dos que tiveram maior ocorrência. Astendências nas relações interpessoais foram analisadasa partir das díades de observação e atividade conjunta,observadas durante os comportamentos realizados pe-las crianças com diferentes objetos e envolvimentos noambiente familiar.

A articulação dos resultados das entrevistas e das ob-servações obtidos e interpretados após reflexão e dis-cussão, talvez nos permitam demonstrar que o ambi-ente familiar seja um determinante favorável para odesenvolvimento da criança com Paralisia Cerebral.

Apresentação e discussão dosresultados

Explicita-se a seguir as informações referentes ao con-texto sociocultural coletadas com as entrevistas semi-estruturadas.

O Quadro 2 proporciona informações sobre o nível deescolaridade, ocupação dos pais, jornada de trabalhoe renda mensal “per capita” das três famílias que par-ticiparam da pesquisa.

Quanto ao status social das três famílias de criançascom Paralisia Cerebral, verificou-se baixo nível de es-

colaridade, pois somente uma mãe completou o ensi-no médio. Em relação ao trabalho, constatou-se jor-nada integral para os pais, diferente das mães em queestão o dia todo no lar. A renda mensal “per capita”inferior a 2,5 salários mínimos; na realidade, o rendi-mento mensal “per capita” maior é de 1 salário míni-mo e o menor de 0,27 salários mínimos.

Apresenta-se, seguidamente, as atividades molares re-alizadas pelas crianças, organizadas previamente emcategorias de atividades, os brinquedos e outros obje-tos usados durante as mesmas, assim como as rela-ções interpessoais e os papéis sociais e interpessoaisexperienciados durante a execução das diversas ativi-dades no ambiente familiar.

As diferentes atividades realizadas pelas crianças no con-texto de desenvolvimento são mostradas na Figura 1.

Figura 1. Categorias de atividades realizadas no am-biente familiar

Quadro 2. Status social e ocupação dos pais

*Ensino fund. = Ensino fundamental

0

10

20

30

Pe

rce

ntu

al

Categorias de atividades

Audiovisuais Didáticos

Artísticas Faz-de-conta

Biblioteca Manipulação

Coordenação dos movimentos Atividades com bola

Atividades de equilíbrio

oãçacifitnedI)a(ohlif/siap

edadiralocsEedlevíN oãçapucO ohlabartedadanroJrep"lasnemadneR

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G-eãM

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M-eãM

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rodedneVedrateãhnaM

soirálas24,0

sominím

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Quanto às categorias de atividades que as crianças exe-cutam no ambiente familiar, destacam-se as ativida-des audiovisuais com 28%, seguidas das atividades defaz-de-conta, 22%, e os jogos didáticos, com 17%. Commenor percentual é possível visualizar as atividadesartísticas, 10%, e ainda com percentual inferior à an-terior categoria constatam-se as atividades de biblio-teca, com 7%. As atividades que requerem uma maiormovimentação por parte de quem as realiza, como: asatividades de manipulação com 6%, de coordenaçãodos movimentos, 5%, as atividades de equilíbrio com4% e as atividades com bola, 1%, apresentampercentual muito pequeno quando comparadas às ati-vidades com percentuais maiores.

Esse resultado mostrando a elevada presença das ati-vidades audiovisuais na rotina da criança com Parali-sia Cerebral, assemelha-se aos resultados obtidos emestudos realizados por MARTINEZ (1992) e CARVALHO(1998), que apontam que a atividade de assistir televi-são está muito presente na vida das crianças com pro-blemas de desenvolvimento e Paralisia Cerebral.

Sobre as atividades de faz-de-conta, CARVALHO (1998)refere que essas atividades estão presentes na rotina devida de quatro crianças, com idades entre os 4 e 6 anos,que participaram de sua pesquisa e acrescenta que,quando a criança cria uma atividade como a de brin-car de casinha ou de professora, ela vive uma situaçãoimaginária em que pode-se observar, efetivamente, oinício da representação de papéis.

Referindo-se às práticas de escrever, desenhar e pintar,CARVALHO (1998) afirma que à medida que as crian-ças com Paralisia Cerebral entram em contato comesse tipo de atividades aparecem dificuldades em suarealização, de maneira mais forte do que o prazer quedelas poder-se-ia obter.

Ressalta-se que as atividades de coordenação dos mo-vimentos, de equilíbrio, as atividades com bola e asatividades de manipulação não foram visualizadas narotina da criança de sexo feminino, o que pode estarrelacionado às maiores dificuldades motoras que acriança apresenta. Entretanto, destaca-se que essas

quatro categorias de atividades também são pouco pra-ticadas pelas outras duas crianças.

Até aqui, basicamente, as atividades foram analisadas,em termos de quantidade de cada categoria de ativida-des visualizadas no ambiente da casa. Para completar aanálise, a seguir as atividades serão analisadas sob oponto de vista da perspectiva temporal ampliada.

Na análise das atividades visualizadas durante as obser-vações, depreende-se que as atividades com bola apre-sentam submetas seqüenciais, dentro de um único cur-so de ação: a criança se envolve em uma seqüência depassos até completar a atividade. No jogo de futebol, acriança corre atrás da bola, chuta a bola com o pé, correenquanto empurra a bola com o pé, joga a bola com amão, entre outros movimentos, até atingir a meta que éfazer o gol. No jogo de basquete, a situação é similar: acriança caminha quicando a bola, quica a bola, estan-do de pé, em determinado lugar, corre com a bola namão, entre outros movimentos, até tentar fazer a cesta.Embora esses dois jogos categorizados dentro das ativi-dades com bola sejam construídos em submetasseqüenciais, não se visualizam como atividades progres-sivas no decorrer das sucessivas observações, mas semostram progressivas em determinados dias de obser-vação. As restantes categorias de atividades não apre-sentam complexidade estrutural do ponto de vista daperspectiva temporal ampliada. Em síntese, as categori-as de atividades que mostram complexidade estruturaldo ponto de vista da quantidade, e que se apresentamdurante as sucessivas observações, carecem de comple-xidade quanto à perspectiva temporal ampliada, en-quanto que as atividades com bola, que possuem com-plexidade estrutural em relação à perspectiva temporal,aparecem vagamente na rotina das crianças.

Na descrição das categorias de atividades molares,depreendem-se os brinquedos e outros objetos utiliza-dos durante as atividades, porém apresenta-se somenteaqueles que se visualizaram com mais freqüência. Nasatividades de faz-de-conta os brinquedos visualizadossão: carros, caminhões, bonecas, bonecos, telefone, vas-soura e futebol de pregos; o televisor é o objeto utilizado

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nas atividades audiovisuais; os blocos, quebra-cabeças,o baralho, CDs e suas caixas, nos jogos didáticos. Nasatividades artísticas encontra-se as folhas de papel, oslápis de cor e a guitarra; livros com figuras, desenhospintados pelas crianças, folhas de papel e canetas, nasatividades de biblioteca. Durante as atividades de mani-pulação são usadas moedas, e nas atividades de coorde-nação dos movimentos, as crianças brincam com o jogode boliche e o balão inflável. Por último, nas atividadesde equilíbrio, o objeto é a bicicleta, e nas atividades combola, a cesta de basquete e a bola.

Em relação às estruturas interpessoais que acompanha-ram as atividades executadas no ambiente familiar, apre-senta-se a Figura 2, em que se explicita o percentual dedíades de observação e atividade conjunta no total derelações interpessoais. Não foram observadas tríadesdurante a realização das atividades molares.

Figura 2. Relações interpessoais – díades de obser-vação e atividade conjunta

A Figura 2 mostra que existe um predomínio das díadesde observação sobre as de atividade conjunta, duranteas atividades molares praticadas pelas crianças. Nasdíades de observação, não significa que a criança este-ja realizando uma determinada atividade sozinha.Através das observações constatou-se que a criança podeestar sozinha durante a atividade, porém geralmentea mãe está sempre por perto, interagindo com a crian-ça e esta com a mãe.

A tabela a seguir explicita a quantidade e o percentualde díades de observação e atividade conjunta, em cadacategoria de atividades realizadas pelas crianças emdesenvolvimento, no ambiente da casa.

Tabela 1. Quantidade e percentual de díades de ob-servação e atividade conjunta em cadacategoria de atividades

Da leitura da Tabela 1, depreende-se que as díades deobservação são o tipo de relação interpessoal que maisocorre durante as diferentes atividades molares.

Analisando-se as díades em cada categoria de ativi-dades, destaca-se que, durante as atividades audio-visuais, nas atividades com bola e nas atividades deequilíbrio somente se manifesta a díade de observa-ção. Esse tipo de díade também se apresenta com altopercentual durante as atividades de faz-de-conta,90%, as atividades artísticas, 82%, e as atividades debiblioteca, em que as díades de observação obtêm71%. Nas atividades de manipulação, a díade de ob-servação obtêm 56% sobre o total de relaçõesinterpessoais, no entanto, a diferença de percentualcom a díade de atividade conjunta não é tão notóriaquanto nas categorias anteriores. Todavia, nos jogosdidáticos e atividades de coordenação dos movimen-tos predomina a díade de atividade conjunta, apre-sentando-se com percentuais de 76% e 86%,respetivamente. Confere-se dessa maneira, que só emduas categorias de atividades a díade de atividade con-junta predomina sobre a díade de observação.

edsairogetaCsedadivita

edsodaDoãçavresbO

edsedaíDedadivitaatnujnoc

edlatoTsedadivita

.tnauQ % .tnauQ %

siausivoiduA 551 001 0 0 551

socitádiD 32 42 47 67 79

sacitsítrA 64 28 01 81 65

atnoc-ed-zaF 411 09 21 01 621

acetoilbiB 92 17 21 92 14

oãçalupinaM 81 65 41 44 23

oãçanedrooC

sotnemivomsod4 41 52 68 92

mocsedadivitA

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oirbíliuqe12 001 0 0 12

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74%

Díades de observação

Díades de atividade conjunta

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Percebe-se que as atividades audiovisuais e as ativi-dades de faz-de-conta apresentam alto percentual deexecução no cotidiano das crianças. Entretanto, ca-recem de díades de atividade conjunta no primeirocaso, e, no segundo, apresentam-se poucas díades deatividade conjunta durante essas atividades. Porém,durante os jogos didáticos, que também se apresen-tam freqüentemente na rotina das crianças, aindaque com menor incidência que as atividades audio-visuais, visualiza-se alto percentual de díades de ati-vidade conjunta.

Quanto aos componentes da família que participamativamente das atividades junto com as crianças cons-tata-se em primeiro lugar, a companhia da mãe. A mãeestá presente em todas atividades em que ocorremdíades de atividade conjunta, no entanto, durante osjogos didáticos, nas atividades de coordenação dosmovimentos e nas atividades de manipulação, a pre-sença da mãe é observada com maior assiduidade. Acompanhia materna em muitas das atividades reali-zadas pelas crianças no contexto familiar também foievidenciada por RAMALHO (1996), em um estudo re-alizado com crianças pré-escolares. A companhia daavó e um primo é constatada durante os jogos didáti-cos, e durante as atividades de faz-de-conta verifica-sea presença de um irmão. Não se evidencia a compa-nhia do pai nem de amigos nas atividades realizadaspelas crianças no ambiente familiar. A não participa-ção do pai nas atividades molares praticadas pelas cri-anças, justifica-se pela jornada de trabalho deles du-rante os dias de semana, e foi nos dias úteis que ascrianças foram observadas através de gravações em VT.

Os papéis sociais e interpessoais desempenhados pelascrianças em desenvolvimento estão diretamente rela-cionados não só às atividades, mas, também, aoenvolvimento de outras pessoas e aos brinquedos eobjetos utilizados durante as mesmas.

Durante as atividades audiovisuais, o único papelvisualizado é o de espectador, constituindo-se um pa-pel passivo. Na opinião de CARVALHO (1998), a atitu-de das crianças frente à televisão é de total passivida-de, e considera que esse comportamento é sempre es-

perado frente a esse veículo de comunicação. Nasatividades de faz-de-conta, vários papéis sociais sãovisualizados: de fisioterapeuta, de condutor de veícu-los, de telefonista, de mãe, de cavaleiro e de jogador defutebol. Aqui, as crianças agem como se fossem perso-nagens de determinadas situações da vida cotidiana,utilizando diferentes brinquedos e/ou objetos para exe-cutar com eles um gesto representativo. O papel decondutor de diversos veículos foi o mais encenado pe-las crianças, os outros apareceram vagamente. Os pa-péis de construtor e de jogador de cartas constatam-senos jogos didáticos. Durante as atividades artísticas,visualizam-se os papéis de desenhista/pintor einstrumentista; enquanto que nas atividades de bibli-oteca, observa-se os de observador e escritor. Nas ativi-dades de manipulação, as crianças desenvolvem ospapéis sociais de jogador, arrumadeira, construtor eobservador; e durante as atividades de coordenação dosmovimentos, os papéis de jogador de boliche, lutador,jogador de futebol e o papel interpessoal demanipulador. Este último papel é observado quando acriança explora o objeto com o qual ela está brincan-do, assumindo uma estrutura de interação demanipulador com esse objeto, sem existir a interaçãodireta com outra pessoa. Portanto, neste caso é consi-derado como existindo um papel interpessoal quandoa criança brinca com algum brinquedo, porém sozi-nha. Em relação às atividades de equilíbrio, encon-tram-se o papel de ciclista e, por último, nas ativida-des com bola, observa-se somente o papel de jogadorde futebol e basquete.

Verifica-se que os papéis sociais são os que predomi-nam nas atividades realizadas pelas crianças com PCque participaram do estudo. Contudo, um papelinterpessoal foi visualizado em duas ocasiões: o demanipulador. Essa ausência de papéis interpessoaisesclareceu uma realidade que já foi mostrada anteri-ormente, relativa às relações interpessoais, e especifi-camente à escassa participação das crianças em díadesde atividade conjunta durante as atividades. No casodos papéis sociais, estes podem ser vivenciados pelascrianças sem o envolvimento direto de outras pessoasdurante as atividades, no entanto, seria mais favorável

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se as diferentes formas de atuação das crianças, emdiversas situações, estivessem acompanhadas dainteração com outras crianças ou adultos, e, de prefe-rência, interações complexas, o que não foi visualizadona análise das observações.

Considerações finais

A criança com Paralisia Cerebral, como qualquer ou-tra criança, para se desenvolver necessita dos proces-sos de maturação do seu organismo, e precisa estabe-lecer interações com o seu meio para adquirir as con-dições necessárias visando tornar-se um ser humanocom possibilidades de se integrar à sociedade. Os pro-cessos de maturação do organismo não foram alvo dopresente estudo, porém, as interações com o seu meioforam abordadas, através do estudo do ambiente fa-miliar, onde a criança com Paralisia Cerebral estáinserida.

Os resultados apresentados anteriormente permitemresponder à questão geradora do estudo: como o am-biente familiar contribui no desenvolvimento da cri-ança com Paralisia Cerebral?

O ambiente familiardisponibiliza e tentacriar (dentro dassuas possibilidades)condições para quea criança vivencieatividades agradá-veis dentro do espa-ço de domínio dospais (casa e suas de-pendências). Contu-do, acredita-se que ostatus social das fa-mílias estudadas, nopresente estudo, in-fluência muito adisponibilidade queo ambiente familiar

tem em oferecer experiências significativas para a cri-ança. Principalmente, a baixa renda mensal “percapita”, e o baixo nível de escolaridade dos pais trans-formam o ambiente familiar em um universo pobrede estímulo.

O desenvolvimento da criança com PC é um processoque, certamente, deve ser alimentado e realimentadodiariamente, no ambiente familiar, não apenas em ra-ros momentos ou durante atividades específicas comofoi constatado. Dessa maneira, da forma como o am-biente familiar está estruturado, contribui pobremen-te no desenvolvimento da criança com Paralisia Cere-bral.

Considerando-se que o ambiente familiar é o primei-ro contexto que possibilita a vivência de atividades e ainteração com outras pessoas, é necessário investir nes-se ambiente, para que possa oferecer diversidade deoportunidades às crianças com Paralisia Cerebral, eàs pessoas que formam junto com elas o núcleo fami-liar.

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Pode existir a intenção, por

parte dos pais, de oferecer

um ambiente rico em pos-

sibilidades de experimenta-

ção e movimentação, mas,

de fato, na rotina de vida

das crianças com Paralisia

Cerebral, evidenciou-se

uma complexidade estru-

tural das atividades, ten-

dendo a realizações com

poucas díades de atividade

conjunta, e um ambiente

pouco variado em diversi-

dade de atividades e ne-

nhum envolvimento com

pessoas alheias à família.

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Notas

* Mestre em Ciências do Movimento Humano pela ESEF/UFRGS.

** Doutora em Educação Física pela UFSM. Professora daUCS e da FSG.

*** Livre Docente em Ginástica e Doutor em Ciências pelaUFRGS. Diretor da FEFID/PUCRS.

Recebido: 09/09/02Aceito: 05/12/02

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