33 comunicação performativa do corpo: o fazer-dizer da contemporaneidade
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Tese de doutorado - Para se comunicar publicamente, o corpo hoje enfrenta um tipo de superexposição midiática que se torna uma moldura a enfrentar quando não deseja fazer parte do processo em curso. Embora pareça aos menos atentos que vivemos em uma época na qual o corpo tornou-se um dos assuntos mais explorados, aqueles que refletem sobre a cultura contemporânea chamam a nossa atenção para o fato de que esse corpo hiper-exposto nas mídias está sempre atrás de um mesmo tipo de filtro. Em certos segmentos da cultura, o corpo optou por outra forma de comunicação e, por ferir as suas imagens hegemônicas da cultura de massa, é por elas detido em nichos periféricos. A dança contemporânea é um deles. A hipótese que resultou na pesquisa aqui apresentada sob a forma de uma tese dedoutorado partiu da teoria dos atos de fala de J. L. Austin a respeito da linguagem verbal e a estendeu para a linguagem corporal, pondo as suas formulações em diálogo com a teoria corpomídia, desenvolvida por Katz & Greiner (1999, 2000, 2001, 2004, 2005) e com a bilbiografia de críticos da cultura como Negri (2004, 2005) e Foucault. Propondo que o corpo é corpomídia da contemporaneidade quando instaura um outro modo de atuar, a hipótese é a de que isso se dá quando o seu dizer inaugura o seu fazer. Esse fazer-dizer distingue corpos humanos ou institucionais. A partir do arcabouço teórico aqui apresentado, a tese propõe-se a investigar a relação da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia com os grupos que produziu. Seriam elescorposmídia da instituição que os gerou e abrigou? A pesquisa deparou-se ainda com a questão da visibilidade/ invisibilidade da própria dança contemporânea, que entendeu como um subproduto do jornalismo cultural praticado no Brasil.TRANSCRIPT
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JUSSARA SOBREIRA SETENTA
Comunicao Performativa do Corpo: o fazer-dizer da contemporaneidade
Programa de Estudos Ps-Graduados em Comunicao e Semitica PUC/SP
So Paulo - 2006
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JUSSARA SOBREIRA SETENTA
Comunicao Performativa do Corpo: o fazer-dizer da contemporaneidade
Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutora em Comunicao e Semitica, na rea de concentrao Signo e Significao nas Mdias, sob a orientao da Prof. Dr. Helena Tania Katz
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Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao/tese por processos de fotocopiadoras ou eletrnicos. Assinatura:______________________Local e Data:_______________
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Banca Examinadora:
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Dedico este trabalho s instncias que instigam o exerccio de aes compartilhadas: minha Famlia, a Escola de Dana da UFBA, a rea da Dana.
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Querida Helena Katz pela generosidade, solidariedade, carinho e amizade Ao PQI/CAPES por fomentar a realizao desta pesquisa Juara Brbara Martins Pinheiro pelo acompanhamento e incentivo carinhoso dispensado Adriana Bittencourt Machado pela amizade, cumplicidade e parceria Tomas pelo gentileza do acolhimento Dulce Aquino, Marli Sarmento, Conceio Castro, Leda Iannitelli, Tnia Bispo, Edleuza Santos, Sueli Ramos por compartilharem informaes dos grupos GDC, ODUND e TRANCHAN Aos artistas Wagner Schwartz e Jorge Alencar pela permisso e confiana na citao de suas invenes Aos amigos paulistas que no deixaram chegar o frio: Neli Casimiro e famlia, Maurioleo, D.Soave, Dora Leo, Fabiana Britto, Nirvana Marinho, ngela DAmbrosis Fernando Passos pela apresentao de autores que contriburam significantemente para o trabalho Aos Professores, Colegas e Funcionrios da PUC/COS pela troca e compartilhamento de informaes
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Resumo Para se comunicar publicamente, o corpo hoje enfrenta um tipo de superexposio miditica que se torna uma moldura a enfrentar quando no deseja fazer parte do processo em curso. Embora parea aos menos atentos que vivemos em uma poca na qual o corpo tornou-se um dos assuntos mais explorados, aqueles que refletem sobre a cultura contempornea chamam a nossa ateno para o fato de que esse corpo hiper-exposto nas mdias est sempre atrs de um mesmo tipo de filtro. Em certos segmentos da cultura, o corpo optou por outra forma de comunicao e, por ferir as suas imagens hegemnicas da cultura de massa, por elas detido em nichos perifricos. A dana contempornea um deles. A hiptese que resultou na pesquisa aqui apresentada sob a forma de uma tese de doutorado partiu da teoria dos atos de fala de J. L. Austin a respeito da linguagem verbal e a estendeu para a linguagem corporal, pondo as suas formulaes em dilogo com a teoria corpomdia, desenvolvida por Katz & Greiner (1999, 2000, 2001, 2004, 2005) e com a bilbiografia de crticos da cultura como Negri (2004, 2005) e Foucault. Propondo que o corpo corpomdia da contemporaneidade quando instaura um outro modo de atuar, a hiptese a de que isso se d quando o seu dizer inaugura o seu fazer. Esse fazer-dizer distingue corpos humanos ou institucionais. A partir do arcabouo terico aqui apresentado, a tese prope-se a investigar a relao da Escola de Dana da Universidade Federal da Bahia com os grupos que produziu. Seriam eles corposmdia da instituio que os gerou e abrigou? A pesquisa deparou-se ainda com a questo da visibilidade/ invisibilidade da prpria dana contempornea, que entendeu como um sub-produto do jornalismo cultural praticado no Brasil. Palavras-chave: corpo performativo, atos de fala, Escola de Dana da UFBA, jornalismo cultural, dana contempornea.
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Abstract
In public communication, the body currently encounters a kind of overexposure by the media that can be seen as a frame to be confronted if the principle intent is to not participate in the media process as such. Although it may seem to a averagely attentive person that we live in a time where the body has become one of the most explored of subjects, those who reflect upon contemporary culture call attention to the fact that this highly exposed, mediated body is always behind the same type of filters. In certain cultural areas, the body chooses other forms of communication and, in challenging the hegemonic images of mass culture, is by them confined to peripheral niches. Contemporary dance is one such peripheral niche. The hypothesis that resulted in the research herein presented as a doctoral dissertation was developed out of the speech acts theory of J. L. Austin, regarding verbal language, which was extended to body language by placing its formulations in dialogue with the corpomdia [body-media] theory developed by Katz & Greiner (1999, 2000, 2001, 2004, 2005), as well as with works of critics of culture such as Negri (2004, 2005) and Foucault. Proposing that the body is corpomdia of contemporaneity in installing other forms of behavior, the hypothesis is that this happens when its saying initiates its doing. This doing-saying distinguishes human and institutional bodies. Based on the theoretical frame here presented, this dissertation investigates the relationship between the Dance School of the Federal University of Bahia and the dance companies it produced. Could they be considered as corposmdia of the institution that created and supported them? The research also deals with the question of the visibility/ invisibility of contemporary dance itself, understood here as a sub-product of the cultural journalism practiced in Brazil. Key-word: performative body, speech acts, Dance School of the Federal University of Bahia, cultural journalism, contemporary dance.
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ndice Apresentao....................................................................................................10 Captulo I Falas que se enunciam..................................................................13
Atos de fala no corpo.........................................................................................26
Ao e corpomdia.............................................................................................35
Corpomdia e performatividade.........................................................................38
Diferentes fazeres-dizeres da dana.................................................................41
Captulo II Do corpo-sujeito para o corpo-institucional...................................52
Ao-atitude-comportamento: processos de semiose e agncia......................52
O poder formativo/performativo das Instituies...............................................64
A forma(ao) disciplinar do corpo....................................................................66
Atuao performativa corpo-dana-instituio..................................................69
Visibilidade e invisibilidade dos processos artsticos da Escola de Dana da
UFBA.................................................................................................................72
Captulo III A contemporaneidade e o fazer-dizer..........................................83
Por que performatividade?.................................................................................83
Possveis conseqncias ..................................................................................87
Tema 1: autoria..................................................................................................90
Tema 2: novas formas de organizao..............................................................94
Tema 3: outro tipo de sociedade (comum)........................................................96
Tema 4: uma dana interessada nas singularidades coletivas.......................101
Hbitos e Performatividade.............................................................................104
Em vez de concluses, proposies...............................................................108
Referncias Bibliogrficas...............................................................................112 Anexos.............................................................................................................128
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APRESENTAO
A dana coloca em cena corpos em movimento que produzem
significados e estabelecem diferentes modos de enunciao. As maneiras como
esses corpos organizam as idias e as expem de fundamental importncia
para a proposio que entende o corpo que dana como indissocivel do
contexto onde apresenta suas propostas. Indispensvel tambm o jeito como a
dana observa e tem observado seu fazer.
O jeito como se pratica a observao, de modo geral, est comprometido
com crenas e compreenses de mundo ainda muito estabelecidas por
entendimentos de essncia, origem, verdade, certeza. Provavelmente, esta
maneira de enunciar idias de dana reproduza a lgica do indizvel vinculada a
propostas artsticas que destacam individualidades e lidam com as idias de
dana como propriedades privadas.
Na contramo dessa maneira de tratar a dana, esta tese apresenta a
dana enquanto fazer que tambm dizer. Neste fazer-dizer, dana e poltica
compartilham o mesmo processo de constituio das propostas e idias
artsticas e coletivas. O acolhimento da tnica poltica no processo de
organizao do fazer em dana, se constri como um acontecimento singular.
Criar e enunciar vo se dar ao mesmo tempo, produzindo corpos especficos
para cada enunciado.
A percepo e a produo de aces-movimentos do corpo que dana no
prescindem das informaes que esto no mundo e, num compromisso crtico-
reflexivo, aproximam a dana daquilo que ela enuncia. Pensar a dana como um
fazer que dizer e, onde, dana e poltica co-existam aciona outros modos de
agir artisticamente, capaz de discutir, com o seu fazer, qual o lugar da dana
na sociedade atual. Para tal empreendimento, esta tese considera poltica como
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performatividade que se enuncia em corposmdias que danam. Corpos
implicados e comprometidos com as relaes que estabelecem com o ambiente.
Alm disso, constrem condies de contaminao do pensamento para
produo de danas que organizam e enunciam suas idias de diferentes
modos. Em alguns desses modos, os processos tendem a abordagens
interrogativas e investigativas pertinentes ao fazer dana. Importa instigar o
exerccio de aes-atitudes performativas, trabalhadas em corpos que so
mdias de si mesmos e, que, abordam e discutam questes da diferena no
fazer-dizer artstico. Estes assuntos vo estar discutidos e distribudos em trs
captulos que trabalham para modificar o modo como a rea da dana se
observa, e o modo como ela observada.
O primeiro captulo discute o corpo que dana com interesse na
constituio e organizao da fala do corpo. Prope-se um jeito diferenciado de
observar o corpo que dana que, no seu fazer, se torna um fazer-dizer. A
performatividade trazida para discutir e problematizar corpos que organizam
pensamentos-falas na forma de dana. A observao da produo desse falar
propicia a percepo de que o corpo que dana organiza e constitui sua fala no
fazer, alm de destacar que esta fala construda no e pelo corpo.
Compreender as muitas maneiras de enunciar falas de dana passa pela
observao destas falas como cena e em cena, onde, as enunciaes podem
expor configuraes distintas e singulares. A questo da performatividade ajuda
na discusso que trata da posio/condio de visibilidade da rea da dana. A
discusso distancia-se da compreenso de que a dana indizvel.
No segundo captulo o corpo que dana observado enquanto corpo-
sujeito e corpo-instituio e, no trato com questes de poder implicadas nesses
corpos. As operaes de poder viabilizadas por estes corpos desviam-se de
caractersticas impeditivas e assumem caractersticas produtivas. Busca-se
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perceber se existe algum vnculo entre os fazeres institucionais de dana e os
fazeres artsticos. A instituio em pauta a Escola de Dana da Universidade
Federal da Bahia (UFBA). A Escola atua a quase 50 anos na sociedade e
carrega no seu currculo a constituio de grupos artsticos: O GDC, o Odund e
o Tranchan. Estes vo ser trazidos para a discusso e investigao da produo
de um fazer-dizer que tenha configurao performativa.
O captulo terceiro trata das implicaes polticas provenientes do fazer-
dizer performativo. Destaca questes que focalizam a utilizao das idias de
performatividade na organizao do corpo que dana na contemporaneidade.
Indica a importncia de aproximar a idia de performatividade aos fazeres da
dana contempornea. Busca-se, ainda, apresentar a potencialidade da rea da
dana que trabalha de maneira compartilhada e coletiva, ou seja, atua enquanto
comunidade artstica comprometida com o durante, o antes e o depois. Em
comunidade, existe a possibilidade de negociar, transformar e traduzir prticas,
pensamentos, posicionamentos, idias e ideais de modo diferenciado.
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CAPITULO I Falas que se enunciam
No trato com questes relativas ao corpo humano, as formulaes
seguem definies diversas que se abrigam em discusses psicolgicas,
fisiolgicas, sociolgicas, antropolgicas, psicanalticas, polticas, tecnolgicas,
artsticas, culturais, dentre outras. Em cada um desses espaos ocorrem
subdivises, de acordo com as hipteses que vo sendo formuladas, ao longo
do tempo. O captulo I, que aqui comea, tem o corpo como assunto e privilegia
o corpo que dana como seu recorte. Na sua investigao, parte-se da proposta
de que a organizao da dana em um corpo pode ser tratada como sendo uma
espcie de fala desse corpo. Atravs da observao do modo como esse falar
se produz surge a percepo de que existe, dentre os distintos tipos de fala, um
que inventa o modo de dizer-se. Ele se distingue exatamente por no ser uma
fala sobre algo fora da fala, mas por inventar o modo de dizer, ou seja, inventar
a prpria fala de acordo com aquilo que est sendo falado. Essa modalidade de
fala ser aqui denominada de fazer-dizer.
O corpo que dana ser tratado fora da compreenso de que a dana
indizvel. Para tal, a argumentao se iniciar com a abordagem do corpo
humano e, mais adiante, se ampliar para a do corpo-instituio. Para
possibilitar isso foi necessrio eleger uma bibliografia que permitisse sustentar a
existncia de uma construo de fala no e pelo corpo, e que tambm facilitasse
a compreenso das maneiras de enunciar essa fala e de observ-la como cena
e em cena.
As teorias aqui apresentadas obedecem ao interesse em inventar um jeito
de aplicar, sem perder o rigor, em um corpo que dana, os conceitos
trabalhados nelas. Vale recorrer ao dispositivo denominado de reducionismo
interterico (Churchland e Churchland: 1995) para compreender uma forma de
normatizar o trnsito entre os saberes.
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...pode-se dizer que o exerccio de reduo interterica, tambm
chamado de materialismo eliminativo, ajuda a perceber questes que
antes no pareciam pertinentes ou vagavam totalmente desconhecidas e
alheias nossa ateno. A idia parte do princpio de que quando
aplicamos uma teoria que normalmente no usada para observar
determinados fenmenos, iluminamos de modo inusitado a discusso.
Isso pode acontecer entre teorias (como propem os Churchlands) e
tambm entre diferentes fenmenos. assim que os deslocamentos
conceituais parecem se transformar no trunfo de novas descobertas, no
no sentido de explicar os fenmenos do mundo, mas no de reformul-los.
(Greiner 2005:18)
Aqui, o entendimento do corpo que dana, por sua vez, se d a partir da
teoria do corpomdia. Esto aqui colocados em rede pensamentos que
investigam modos de constituir e organizar a fala do corpo e as implicaes
polticas produzidas nesse fazer. Tratar o corpo que dana como um fazer-dizer
significa conjugar pensamentos que se distanciam da noo causa/efeito e da
moldura fato/prova. Vai, ento, sustentar modos de pensar que percorrem
caminhos indiretos, imprecisos, circunstanciais e arriscados na maneira de
enunciar e implementar idias no corpo.
Para tratar da dana como um fazer-dizer, toma-se como ponto de partida
a teoria dos atos de fala trabalhada por Austin1 (1990). Considera-se aqui que
Austin traz para a rea verbal um tipo de questo compartilhvel com a rea da
dana. Apresentada de modo suscinto, a sua teoria vai considerar a linguagem
como uma forma de ao esse sendo o interesse maior em descrev-la aqui -
levando-se em conta convenes, contextos, finalidades e intenes dos
falantes. A partir de uma abordagem pragmtica, a linguagem passa a ser
pensada como produtiva e no apenas reprodutiva. Nessa perspectiva, o falar
1 John Langshaw Austin (1911-1960), era um filsofo da linguagem que desenvolveu a teoria dos atos de fala.
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(comunicar) pode deixar de ser entendido somente como uma mera transmisso
e veiculao de informao, pois ocorre um outro tipo de atribuio de valor ao
que comunicado. Manifesta-se no ato de fala a inteno de um sujeito em se
comunicar com outro sujeito a partir do reconhecimento da inteno do primeiro.
...geralmente o proferimento de certas palavras uma das ocorrncias,
seno a principal ocorrncia, na realizao de um ato (seja de apostar ou
qualquer outro), cuja realizao tambm alvo do proferimento, mas este
est longe de ser, ainda que excepcionalmente o seja, a nica coisa
necessria para realizao de um ato [...] necessrio que o prprio
falante, ou outras pessoas, tambm realize determinadas aes de certo
tipo, quer sejam fsicas ou mentais, ou mesmo o proferimento de
algumas palavras adicionais. (Austin 1990:26)
A hiptese que legitima o translado de Austin para os domnios do cnico
se apia no respeito s regras que ele prope. Isso significa eleger, dentro do
arcabouo por ele montado, sobretudo as aes sempre no presente, sempre na
primeira pessoa e sempre sendo um verbo de ao. Este tipo de verbo aquele
que constitui um ato de fala ou uma cena no caso da dana - que no usa a
linguagem para descrever o que est fora dela.
Na dana, possvel localizar exemplos que acompanham as regras
explicitadas acima e, outros, que no as acompanham. Desse ltimo exemplo,
traz-se o espetculo Saur (1982) do coregrafo Carlos Moraes para a
companhia estvel e oficial da cidade de Salvador, o Bal do Teatro Castro
Alves. Nela se percebe um processo de fazer que se orienta por vocabulrios
referenciados em informaes anteriormente aprontadas. Ou seja, com um
vocabulrio nascido da tcnica do bal, a obra elege um tema de outra natureza
(no prximo aos assuntos habitualmente tratados no bal). O vocabulrio existe
antes da escolha do assunto e no sofre grandes mudanas quando usado para
explicitar o assunto sobre o qual a obra falar. Nesse tipo de criao, o assunto
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no inventa nem a lngua na qual quer ser falado nem um modo prprio ao
assunto, que o faa articular-se dentre de uma lngua j pronta.
A predisposio a um fazer que se apronta na ao do fazer - pode ser
exemplificado no espetculo A Lupa (2005), do coregrafo Jorge Alencar,
apresentado no Ateli de Coregrafos de 2005, no Teatro Castro Alves, em
Salvador, Bahia, onde est perceptvel a transformao dos vocabulrios da
dana, pela necessidade de inventar o modo de dizer, em tempo presente. Vale
salientar que, na escolha destes dois exemplos, no h pretenso de fazer
julgamento de valor dos trabalhos, mas de indicar a observao, no exerccio do
fazer dana, das regras propostas por Austin. Ou seja, no se trata de levar
Austin para compreender toda e qualquer forma de dana, mas somente
aquela(s) na(s) qual(is) a sua proposio pode ser verificada. Eis alguns dos
elementos que revelam o porqu da eleio da proposta de Austin (1990): a
formulao do enunciado performativo que no descreve a ao, mas a realiza;
a significao como ao mais que um significado referencial; a diferena entre
proferimento constativo (aquele que descreve e afirma) e performativo (aquele
que se produz enquanto ao de linguagem); linguagem como uma articulao
produtiva e no apenas reprodutiva.
Entende-se que, assim como tais proposies operaram transformaes
nos estudos da linguagem, elas tambm podem colaborar na rea dos estudos
do corpo, ajudando a entender melhor como, por exemplo, o corpo que dana
est dizendo enquanto est fazendo a sua dana. Compreender a natureza dos
proferimentos constativos e performativos, atentar para o diferencial entre
ao/atuao, pode ajudar a tratar com mais clareza as diferentes danas que
um corpo dana. Serve tambm para tratar o corpo como produtor de questes
e no receptculo reprodutor de passos ordenados e, longe de pretender
encontrar solues e respostas definitivas, investigar de que maneira os
questionamentos do corpo esto se resolvendo no corpo.
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A teoria dos atos de fala parte da premissa de que falar uma forma de
ao. Tais aes, diferentemente de andar ou comer, so aquelas que
realizamos quando falamos o que no ocorre fora da linguagem, isto , aquilo
que acontece quando se enuncia. Exemplos que deixam mais claro: um
perguntar, um afirmar, um jurar, um propor, um concordar. Sua premissa diz que
se a linguagem o instrumento da realizao de tais aes, elas no ocorrem
fora da linguagem, uma vez que ela mesma que as constitui.
Pode ser que esses proferimentos sirvam para informar, mas isso
muito diferente. Batizar um navio dizer (nas circunstncias apropriadas)
as palavras Batizo, etc.. Quando digo, diante do juiz ou no altar, etc.,
Aceito, no estou relatando um casamento, estou me casando. (Austin
1990:25)
Nem sempre se utiliza a linguagem para representar um estado de coisas
exterior si mesma. Quando um juiz enuncia: declaro o ru culpado, ele no
est descrevendo uma ao fora do ato de sua enunciao, ele a est
realizando. Esse tipo de enunciado ganha nome de enunciado performativo. O
resultado dessas aes de linguagem um significado que envolve um sujeito e
outro sujeito, numa relao de falar e ouvir.
A importncia dessa proposta reside em nos fazer pensar na linguagem
como uma encenadora de falas e de suas respectivas significaes. Pensar
sobre os momentos em que a linguagem encena uma ao. Sobre essa
questo, Austin (1990) diverge da compreenso de que a linguagem
significativa porque representa algo que est fora da prpria linguagem, dando
mesma uma funo de referncia (referir-se a algo do mundo). Sua teoria dos
atos de fala traz o entendimento de significao como ao de linguagem, pois,
quando falamos, significamos mais do que o significado referencial daquilo que
proferimos: realizamos uma ao.
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vamos tomar alguns proferimentos que no podem ser enquadrados
em nenhuma das categorias gramaticais reconhecidas, exceto a de
declarao; tampouco constituem casos de falta de sentido, nem
encerram aqueles indcios verbais de perigo que os filsofos j
detectaram [...] proferir uma dessas sentenas (nas circunstncias
apropriadas, evidentemente) no descrever o ato que estaria praticando
ao dizer o que disse, nem declarar o que estou praticando: faz-lo
(Austin 1990:24).
Ao diferenciar enunciados constativos (afirmao, descrio) dos
enunciados performativos (ao da palavra), Austin (1990) vai mostrar que a
significao no deve ser entendida apenas como referncia ou representao,
mas como ao de linguagem. Ento, vai considerar linguagem como
performance:
O termo performativo ser usado em uma variedade de formas e
construes cognatas, assim como se d com o termo imperativo.
Evidentemente que esse nome derivado do verbo ingls to perform,
verbo correlato ao substantivo ao, e indica que ao se emitir um
proferimento est se realizando uma ao [...] caracterizamos, de modo
preliminar, o proferimento performativo como aquela expresso lingstica
que no consiste, apenas, em dizer algo, mas em fazer algo, no sendo
um relato verdadeiro ou falso sobre alguma coisa. (Austin 1990:25, 38)
A diferena entre descrio e ao dos enunciados constativo e
performativo, parece aproximar a linguagem verbal da linguagem corporal. A
nfase no agir em vez de descrever traz um modo de organizao de fala que
remete a uma certa configurao tpica do corpo. No caso de uma descrio (ato
constativo), os elementos se distanciam do corpo porque so buscados em
referentes fora dele. O que conta a referncia a algo fora, uma linguagem
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sobre, enquanto na ao/realizao, a proximidade corporal definitiva para a
ocorrncia do enunciado, que deixa de ser sobre e passa a ser um enunciar-se.
A partir dessas referncias, torna-se possvel pensar o corpo que dana
dentro dos modos de organizao que propem e que nos permitem aprender
que existem diferentes modos de enunciar. O modo constativo de enunciao,
portanto, pode equivaler a um corpo que, ao danar, simplesmente relata os
seus assuntos, sejam quais forem, sempre com uma linguagem j pronta, pronta
antes dos assuntos. Trata-se do uso da linguagem da dana como um universal
pronto para ser usado para relatar qualquer tema. Esse tipo de dana se
diferencia de outro, que realiza - performatiza e no se interessa apenas pelo
relato do assunto na linguagem j pronta. Assim como na linguagem sero os
verbos presentes nas aes constativas e performativas que vo dar a
articulao entre a linguagem e seus temas, precisaremos atentar para o que
corresponde a esses verbos nas aes produzidas no/pelo corpo que dana
quando da constituio e enunciao de sua fala.
Adriana Banana: Desenquadrando as possibilidades de movimentos (2004)/Foto: Gil Grossi
interessante destacar a ocorrncia da dupla articulao
(constativo/performativo) que se enuncia tanto no fazer verbal quanto no
corporal. Um modo de enunciar no anula o outro e ambos podem estar em
exerccio concomitante na produo de fala. Porm, considera-se importante
ressaltar que, assim como na teoria dos atos de fala em Austin (1990) a
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enunciao verbal produz falas que se distinguem (aquelas que apenas
descrevem e aquelas que agem), nos enunciados corporais da dana, essa
distino tambm pode ser observada, ou seja, torna-se imprescindvel observar
as diferentes maneiras de como se organiza a fala da dana2 no corpo em
movimento de dana. O modo performativo de enunciao da linguagem, aquele
que utiliza sempre verbos no presente, faz pensar nas aes corporais de dana
que possam privilegiar idias-movimentos, que se processam no fazer (o
presente do movimento). Elas vo constituir-se em processos significativos que,
pela natureza da relao entre significao/uso tendem a exercitar uma reflexo
critica na enunciao em dana.
Na teoria dos atos de fala, a significao passa a ser objeto de um campo
particular de estudo: a pragmtica. Passa a ser entendida no como unidades
lingsticas independente da utilizao dos falantes, mas a partir da
considerao de que produzida pelo uso. Ou seja, o ambiente (onde acontece
o uso) interfere na significao. Passa, tambm, a ser estudada fora da moldura
verdade-mentira, pois um enunciado performativo no tem aptido para
assegurar um valor de verdade, uma vez que seu objetivo no o de enunciar
algo sobre algo fora da enunciao que, ento, necessita ser a mais clara
possvel. A partir de uma abordagem pragmtica, a linguagem passa a ser
pensada como produtiva e no apenas reprodutiva.
... quanto mais consideramos uma declarao, no como uma sentena
ou proposio, mas como um ato de fala (a partir do qual os demais so
construes lgicas), tanto mais estamos considerando a coisa toda como
um ato. (Austin 1990:35)
2 A fala no corpo aqui trabalhada como a organizao das idias em movimento de dana e vinculada a
uma bibliografia que uso atualmente. Est, ento, desencompatibilizada de argumentaes que identificam (de modo enftico e primordial) essa fala com o sinnimo de expressividade e comunicao do corpo.
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Nesse sentido, possvel acompanhar o raciocnio de Austin e traduz-lo
para a linguagem corporal da dana a partir da observao das falas produzidas
para perceber se, elas, tm seu foco na produtibilidade e/ou reprodutibilidade de
significados. A produo ao de um tipo de fazer que pode ser pensado no
sentido de um verbo no presente o que se afigura como bastante diferente de
reproduzir uma feitura j aprontada. O tempo de referncia o tempo presente,
que aponta para o momento de sua feitura e no para referentes fora do fazer.
Neste modo de apresentar a questo, ocorre o encontro de duas referncias
tericas, a saber, a teoria dos atos de fala e a do corpomdia. A ao
performativa da linguagem verbal pode ser relacionada linguagem corporal
atravs do entendimento de corpo como corpomdia. Nessa teoria, corpo e
ambiente encontram-se implicados e as informaes e experincias vivenciadas
se transformam em corpo. O corpo vai se aprontando num processo co-evolutivo
de fluxo constante e num fazer no presente, construdo atravs do uso de
metforas pelo corpo. Trata-se de um corpo-sempre-verbo-no-presente.
O conceito metafrico representa um modo de estruturar parcialmente
uma experincia em termos de outra [...] Nesta perspectiva, o ato de
danar, em termos gerais, o de estabelecer relaes testadas pelo
corpo em uma situao, em termos de outra, produzindo, neste sentido,
novas possibilidades de movimento e conceituao. (Greiner 2005:131-
132)
A aproximao dessas teorias colabora para a percepo dos modos de
constituio do corpo que dana. Podemos entender, ento, que a ao dos
enunciados performativos - seja na linguagem verbal, seja na linguagem
corporal possui caracterstica marcada por um verbo que est sempre no
presente do indicativo e na primeira pessoa. E expressa uma ao de linguagem
que figura num enunciado com a funo de realizar tal ao.
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Na primeira conferncia caracterizamos, de modo preliminar, o
proferimento performativo como aquela expresso lingstica que no
consiste, ou no consiste, apenas, em dizer algo, mas em fazer algo, no
sendo um relato, verdadeiro ou falso, sobre alguma coisa (Austin
1990:38).
As aes performativas vo ainda estabelecer relaes comunicativas. E
a maneira de tratar ao e comunicao tambm trazida discusso pela
teoria corpomdia. Em Austin (1990), a depender da situao em que seja
proferido um enunciado performativo e das pressuposies de quem fala e de
quem ouve sobre a situao e as expectativas da ao, tais enunciados podem
ser explcitos ou no explcitos. No caso do ltimo, a ao leva em conta dados
situacionais para serem interpretados, e, no anterior, especifica, na sua forma
lingstica, a ao que se realiza. Ambos visam dar uma informao. Sendo
assim, reside nos enunciados performativos uma peculiaridade de que neles
est explicitada uma propriedade comum a todo enunciado, que a de
comunicar certo contedo e, ao mesmo tempo, estar realizando uma ao
constri-se o conceito de ato ilocucionrio descrito adiante.
Cristina Moura: I was born to die (2004)/Foto: Gil Grossi
Trata-se de um ponto de grande importncia a ser bem compreendido. A
significao de um enunciado, nos atos ilocucionrios, abrange mais do que a
significao das unidades lingsticas que o constituem. Um ato ilocucionrio
-
23
(inteno comunicativa) constitui-se de um enunciado produzido efetivamente. O
ato ilocucionrio uma ao do falante em direo a um ouvinte, e atua no
processo de emisso de um enunciado em que o produto dessa ao um
efeito de significado.
Nessa relao entre o falante e o ouvinte surgem os conceitos de
inteno ilocucionria e efeito ilocucionrio. A inteno corresponde fora
ilocucionria, que a parte da significao geral de um enunciado que
especifica o ato ilocucionrio que se realiza atravs da frase enunciada, e que
se manifesta atravs dos seguintes indicadores: frmula performativa, forma
sinttica do enunciado, a presena de certas marcas (palavras ou expresses),
a entonao e as caractersticas da situao. Est implicada na inteno
ilocucionria uma necessidade de ser reconhecida.
Essa caracterstica leva para o conceito de efeito ilocucionrio, pois no
basta haver a inteno do falante no proferimento de um enunciado para que o
mesmo se realize. Existe a necessidade de que o ouvinte reconhea e acolha o
enunciado. Ento, a inteno ilocucionria do falante se realiza enquanto efeito
ilocucionrio no ouvinte. No ato ilocucionrio, a inteno e o efeito encontram-se
vinculados. V-se aqui estabelecida uma conveno e o aparecimento de
regras. Para que ocorra, num ato ilocucionrio, a ligao entre a inteno e o
efeito, existe o envolvimento de determinadas regras que especificam quais
condies esto pressupostas na sua realizao. Essas regras no so
reguladoras, so regras constitutivas. No se trata do que adequado para o
ato, e sim o que efetivo para a realizao de um ato ilocucionrio. As regras
constitutivas no regulam, mas definem a prpria atividade. Regras de um jogo
que precisam ser seguidas para que o jogo esteja sendo jogado.
Essa proposta de comunicao vincula o ato de comunicar realizao
de uma ao e, apesar desse agir comunicativo constituir-se sobre regras, a
ao produzida comunica ao mesmo tempo em que realiza uma idia. Percebe-
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24
se, ento, que a comunicao trabalhada no corpo e por ele acionada. A
compreenso aqui proposta para a relao corpo-ao-comunicao, onde o
corpo no apenas comunica uma idia, tem como prioridade apresentar o corpo
como o realizador da idia que comunica. A comunicao transformada em
corpo, em vez de ocupar o corpo como um lugar de sua ocorrncia ou faz-lo
funcionar como mero veculo de transmisso. Mais uma vez, percebe-se uma
aproximao com a abordagem corpomdia, que trata o corpo no como meio
por onde as informaes passam nem como lugar onde as mesmas se abrigam.
Em vez disso, entende que a mdia qual o corpomdia se refere diz respeito ao
processo evolutivo de selecionar informaes que vo constituindo o corpo. A
informao se transmite em processo de contaminao. (Greiner 2005: 131)
Apesar de afirmar em suas conferncias que seus ditos no eram difceis
nem polmicos e que continham um carter provisrio e passvel de
reformulao, Austin (1990) vincula circunstncias apropriadas a possibilidade
de acontecimento dos enunciados performativos. Para tanto, indica condies
para que os enunciados no fracassem numa relao de comunicao
performativa. S so considerados aqueles enunciados que ocorrem em
circunstncias ordinrias, em linguagem ordinria. As enunciaes fora dessa
conveno so tidas como vazias e referentes ao campo do estiolamento3 da
linguagem: O que quero dizer o seguinte: um proferimento performativo ser,
digamos, sempre vazio ou nulo de uma maneira peculiar, se dito por um ator no
palco, ou se introduzido num poema, ou falado em solilquio. (Austin1990: 36).
Entretanto, do lugar onde Austin (1990) se exclu aquele da
apresentao de uma obra artstica - que a presente argumentao se constri,
a saber, buscando a especificidade do proferimento performativo realizado, em
cena, no e pelo corpo que dana. Ou seja, estamos saindo do domnio do escrito
3 O significado literal desse termo o enfraquecimento, definhamento. Na Teoria dos Atos de Fala o estiolamento tomado para identificar o empobrecimento, a no vitalidade de um ato de fala proferido em
um contexto exterior ao da linguagem ordinria; em um contexto no literal.
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e do verbal. Austin acompanha a transferncia de domnios porque a sua
proposta de tratar a linguagem como ao instiga a discusso sobre o corpo que
dana buscando nele a percepo de como o seu mover pode ser entendido
como um enunciador de falas. Talvez Austin no tenha conseguido, por falta de
domnio sobre outros tipos de linguagem que no a verbal, fazer a dilatao da
sua teoria dos atos de fala para essas outras linguagens. Para tal, torna-se pr-
requisito ser capaz de observar, no movimento do corpo que dana, um dizer e
avaliar se se trata de um fazer-dizer ou de um dizer sobre algum objeto fora do
dizer.
Quando se trata o corpo como um auto-organizador de enunciados, est
implicado nesse seu fazer a compreenso de que ele se d em estados de
provisoriedade, transformao, inquietude, permeabilidade, investigao e
reflexo crtica. Esse entendimento possvel atravs da adoo da teoria
corpomdia para falar de corpo e, mais especificamente, do corpo em movimento
de dana. Entretanto, percebe-se que nem sempre assim que dele se fala ou
com ele se trabalha em processos artsticos em dana. Nem sempre os
inventores de dana apresentam o corpo como um apresentador de indagaes
e solues provisrias. Ele (o corpo) est todo o tempo processando
informaes e, nesse constante movimento, vai se constituindo como corpo
um estado de coleo de informaes que somos, cada um de ns, a cada
instante de nossas vidas.
Adriana Banana: Desenquadrando as possibilidades de movimentos (2004)/Foto: Gil Grossi
Mario Nascimento: Escambo (2004)/Foto: Gil Grossi
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26
Esse corpo-coleo de informaes pode lidar de maneiras distintas com
a dana. Pode privilegiar o exerccio descritivo de referncias, pode preferir a
narrativa em seqncia linear, pode priorizar o processo e no a obedincia a
um produto, pode optar por vrias outras escolhas. Evidentemente, para ser
capaz de distinguir essas possibilidades tanto quanto outras tantas, h que se
exercitar uma reflexo crtica. a sua prtica que favorece a indicao do
performativo.
Trabalhar com a idia do performativo, provoca uma certa instabilidade de
informaes muito assentadas entre os praticantes da dana. Abala crenas
sobre representao. Aponta para desvios. Revolve as idias. Desmistifica
ideais. Prope uma ateno sobre a ao que no tem como objetivo expressar
algo fora dela (existente antes). Nesse sentido, a prpria possibilidade de
traduzir elementos discutidos no ambiente da linguagem para o ambiente do
corpo que dana pode ser tomada como uma empreitada performativa.
No performativo, as aes se configuram nelas mesmas e no em
referentes fora dela. Isso interessante para pensar o corpo que dana sem se
descolar dele. Observ-lo no seu fazer. Sem deix-lo em segundo plano. A partir
do corpo que, em sua produo, constitui sua fala. O seu fazer-dizer leva esse
entendimento para outro espao, mais ampliado de compreenso do termo
performativo e culmina na aproximao ao conceito de performatividade.
Atos de fala no corpo
A partir da teoria de Austin, Butler (1997, 1998,2000) vai expandir o
conceito de performativo para o conceito de performatividade. De maneira mais
ampliada, trata os atos e a organizao da fala como aes no apenas
fontica. O ato de fala passa a ser entendido como um ato corpreo e, dessa
maneira, constitui-se um cruzamento sinttico da fala, que j corpo, com a
lingstica. De partida, o que chama a ateno na abordagem de Butler o
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27
estado corporal da ao indicando outros modos de falar e expressar idias. a
performatividade do performativo. E vale destacar, desde j, a importncia do
contedo poltico da fala que se constri no e pelo corpo e comunica-se atravs
desse fazer.
A implicao poltica no entendimento do corpo como realizador de atos
de fala performativos, de performatividade, indica a existncia de situaes de
poder na relao do social e do corporal e, por conta disso, provoca a
mobilizao de aes que recontextualizam condies pr-estabelecidas.
Decorre da uma tomada de ateno para situaes de falas consideradas
dizveis e aquelas consideradas indizveis. Essas consideraes sero
trabalhadas no captulo seguinte que transporta questes focalizadas no corpo-
sujeito para o corpo-instituio a partir da indicao de situaes de dizibilidade
e indizibilidade. Torna-se vivel, ento, observar tanto falas institudas pelo corpo em configurao humana, quanto em configurao institucional alm de
question-las nas esferas do pblico e do privado.
Trazer essa compreenso e discusso para o ambiente do corpo que
dana, permite o emprego do conceito de poltica no restrito a fatos relativos a
partidos polticos ou governos, mas como um modo de operao do corpo4. O
uso de conceito de poltico nesse sentido vincula-se compreenso de que se
as idias se organizam no corpo, o corpo assim formado sempre poltico, isto
, sempre age no mundo a partir de uma determinada coleo de informao.
Cada coleo implica em um determinado modo de se agir no mundo cada
qual com sua conseqncia poltica. Faz pensar ainda nos procedimentos do
corpo que dana a partir de modelos convencionalizados, sistematizados. Ser
que as suas aes tambm questionam e refletem criticamente o mundo, tal
4 Esse modo de operar se baseia no entendimento de poltica trabalhado por Espinosa (Tratado Poltico) que trata poltica como ao para o bem comum, de vnculos que se estabelecem entre sujeitos e
sociedades incidindo na formulao do indivduo poltico (indivduos so conatus). Ver mais em CHAUI,
Marilena. (2003). Poltica em Espinosa. So Paulo: Companhia das Letras.
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qual no fazer dizer performativo? Esse constitui um ponto fundamental para a
aceitao da dana enquanto ato de fala, com conotaes polticas que indicam
uma condio de dizibilidade que se expresse como um fazer que dizer.
Importa aqui discutir a constituio da fala da dana que se organiza no corpo
tendo em vista que ela tambm resulta do vnculo com a sociedade e com as
estruturas de poder. E sustentar que ela se distingue de outras falas da dana
que se formulam com outros pressupostos.
A performatividade ento, no opera em contextos prontos a priori. Ela os
apronta e, nesse sentido, no da instaurao do dizer que precisa inventar o
modo de ser dito que a sua ao pode ser pensada como sendo poltica. A fala
construda no corpo e pelo corpo que assume a responsabilidade pelas
invenes de seus modos de apresentao. uma fala que no totalmente
livre e configura-se atravs da operao de regulao determinada pela relao
com o social. Para Butler (2000), o ato de fala est relacionado ao corpo e
tambm linguagem. A fora do ato de fala numa relao corprea comunica-se
atravs do fazer. Um fazer-dizer que no comunica apenas uma idia, mas
realiza a prpria mensagem que comunica.
...sustento que um ato de fala um ato corpreo, e que a fora do
performativo nunca totalmente separada da fora corprea: isso
constituindo o quiasma da ameaa enquanto ato de fala ao mesmo
tempo corpreo e lingstico [...] em outras palavras, o efeito corpreo da
fala excede as intenes do falador, propondo a questo do ato de fala
ele mesmo como uma ligao do corpreo e foras psquicas. (Butler
2000:255) 5
5 ...maintained that the speech act is a bodily act, and that the force of the performative is never fully
separable from bodily force: this constituted the chiasm of the threat as a speech act at once bodily and
linguistic [] In other words, the bodily effects of speech exceed the intentions of the speaker, raising the
question of the speech act itself as a nexus of bodily and physics forces.
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29
Na abordagem de Butler, a realizao do ato de fala implica na ruptura
com contextos previamente dados. Como esse ato de fala processo corporal,
esto reunidas no corpo informaes transitrias que colaboram na organizao
da fala performativa. Na especificidade do corpo que dana e que processa
performativamente a fala no corpo, ocorre produo de signos que so
percebidos e transformados na contnua relao de troca das informaes que
esto no dentro e no fora, no sujeito e no mundo. Ento, faz valer a condio de
possibilidade enquanto sistema complexo, capaz de organizar e compartilhar
diferentes informaes, permanecendo num fluxo contnuo de transformao.
Assim procedendo, o fazer-dizer da dana complexifica sua existncia. Arrisca-
se dizer que a performatividade da fala performativa configura-se e organiza-se
no trnsito das informaes. Instala-se uma comunicao que tambm uma
forma de conduta.
A partir do entendimento lingstico de que a fala no est s no verbo,
mas tambm no corpo, Butler (1997, 1998,2000), inicia a investigao na qual os
atos de fala so construdos como conduta. Esse modo de investigar vai discutir
o que e o que no considerado dizvel no exerccio de constituio da fala. A
noo de proferimento corporal, impressa nas discusses de Butler, faz com que
seja possvel pensar o corpo que dana como inventor de modos prprios de
proferir idias. Ajuda a trabalhar com o entendimento de que o corpo, quando
faz algo, ele est dizendo algo e, se esse fazer necessita inevitavelmente de
uma inveno do corpo para a sua realizao (pode ser dito), tem-se a situao
de um corpo que dana o seu fazer-dizer. Refora-se da o interesse em abordar
as idias de Butler e traduzi-las para o corpo que dana costumeiramente
considerado em sua indizibilidade.
A performatividade significa no s o modo de se apresentar no mundo,
mas a prpria constituio epistemolgica de um tipo de mundo. Os corpos
compem textos, falas que se constrem para serem percebidas e
reconhecidas. No processo de organizao dos campos de fala h o exerccio
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de reconhecer, selecionar, censurar e excluir informaes (essa censura ser
tratada no somente no vis habitual, castrador, mas sobretudo como censura
produtiva, a partir de Butler).
O modo de tratar o vocabulrio expe situaes de poder na regulao e
produo da fala. A censura trabalhada por Butler (1998) como forma mais
incisiva de poder e, por isso, reconhecida como produtiva na constituio do
sujeito e dos atos de fala ... nessa viso que sugere que censura produz fala
[...] censura precede o texto (no qual eu incluo fala e outras expresses
culturais), e em algum sentido responsvel por sua produo. (Butler
1998:248) 6. Nesse sentido, a produo da fala, que tambm corpo, se d
numa relao ambivalente da censura e do censurvel. Ou seja, no
exclusividade do sujeito que censura ser censurador, ele tambm censurado.
Luis de Abreu: Samba do Crioulo Doido (2004)/Foto: Gil Grossi
Isso provoca uma dinmica na atuao do sujeito que busca trabalhar a
censura produtivamente em vez de fixar-se numa ou noutra condio (de
censurado ou censurador). Desconsiderada a produtibilidade da restrio, o
processo de construo e constituio do discurso pode apresentar a
6 ...in the view that suggest that censorship produces speech [...] censorship precedes the text (by which I
include speech and other cultural expressions), and is in some sense responsible for its production.
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reproduo de modelos dados previamente. A restrio vai operar no trnsito
desse duplo poder, fazendo-os atuar sem determinaes somente de um no
outro. Da a possibilidade de movimentao em vez de fixao/limitao, o que
permite a sobrevivncia do exerccio de produzir e promover outras maneiras de
constituio. Essa argumentao remete a Austin (1990) que, ao propor a
linguagem como ao, sugeria ainda que a linguagem no se fechasse na
restrio da lngua. Ai esto proposies/questes7 polticas de um jeito de
entender censura e de lidar com a restrio.
Entendida como forma produtiva de poder, a censura pode trabalhar em
duas dimenses: implcita e explcita. Em ambos os casos trata-se de regulao
da fala. O que pode ou considerado dito e o que pode ou considerado no
dito. No modo implcito, o poder opera impondo regras que determinam o que
ou no dizvel e essa restrio vai ser qualificada por Butler (1998) como
apropriada para a constituio social dos sujeitos. Apesar disso, so as
dimenses em conjunto que vo operacionalizar a formao do discurso.
Pode-se pensar que ao distinguir analiticamente entre formas de censura
explcita e implcita mais nos aproximamos da ao dual da censura como
forma de poder. Porm pode acontecer que as formas explcita e implcita
existam em um contnuo no qual a regio do meio consiste em formas de
censura que no so rigorosamente distinguveis nesse sentido.
Realmente, as formas simuladas ou fugidias de censura que tm ambas
dimenses (explcita e implcita) so, talvez, as mais conceitualmente
confusas e, por conta dessa confuso, quem sabe as mais politicamente
eficazes. (Butler 2001:249, 250) 8
7 As questes polticas sero melhor tratadas no captulo 3 8 We might think that by distinguishing analytically between explicit and implicit forms of censorship that we more closely approximate the dual workings of censorship as a form of power. Yet it may well be that explicit
and implicit forms exist on a continuum in which the middle region consists of forms of censorship that are
not rigorously distinguishable in this way. Indeed, the masquerading or fugitive forms of censorship that
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32
Vale lembrar que todo o entendimento de corpo aqui trazido se apia na
compreenso de corpo trabalhado pela teoria corpomdia. Sendo assim, as
ocorrncias se do no corpo e esse negocia com a informao a partir de
acordos que se estabelecem no ato de sua constituio. Da possvel observar
falas de dana que inventam seu dizer a partir da escolha de assuntos que
emergem no fazer e, aquelas que selecionam assuntos que j foram trabalhados
em outros fazeres. Acredita-se que o questionamento levantado por Butler
acerca da construo da fala que corpo, encontre-se com a compreenso de
corpo do corpomdia. Isso tendo em vista os processos de organizao dos atos
performativos na dana que agem numa repetio de aes de troca, onde se
estabelecem relaes entre as informaes externas e internas.
Na produo da fala da dana necessrio perceber a existncia de
instantes de manuteno e excluso. Isso pode ser observado a partir das
consideraes de Butler acerca da operao dos modos explcitos e implcitos
que regulam os atos performativos. Alm disso, sendo o corpo que dana aqui
trabalhado luz da teoria corpomdia, na organizao da fala como um fazer-
dizer devem acontecer trocas de informaes num processo de mediao com o
ambiente para que o sistema dana possa permanecer e produzir diferentes
percepes.
Importante observar que o entendimento de Butler (2000:251, 252) sobre
os modos explcitos e implcitos que regulam e organizam a fala, esto
configurados como agncia. Nessa configurao os processos de escolha no
sofrem a soberania do sujeito, no so propriedade do sujeito que exerce o
poder. Trata-se da agncia enquanto ps-soberania do sujeito que promove
delimitaes imprevistas. Baseando-se nessa observao, considera-se a
ocorrncia de escolhas na organizao da fala processada no e pelo corpo que
have both explicit and implicit dimensions are perhaps the most conceptually confusing, and, by virtue of
that confusion, may be the most politically effective.
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33
dana; que constri sua fala enquanto se move. No trato com o movimento, o
corpo que dana experimenta a censura a partir da escolha de aes corpreas
que emergem e/ou se repetem no processo de produo da fala.
Lia Rodrigues: Aquilo de que somos feitos (2000)/Foto:Tatiana Altberg
Esse procedimento indica que, no fazer da dana, as escolhas so
determinantes na formulao do discurso e na apresentao das idias no
corpo. O que fica (escolhido) e o que no fica (no escolhido) expressam a
maneira como o corpo lida com as informaes externas e internas. Entender a
organizao da fala da dana com essa viso permite observar a censura como
escolha e, portanto, descolada de um sentido de restrio como privao da
ao da fala. Explica Butler (2000:252) que A censura procura produzir sujeitos
de acordo com normas implcitas e explcitas, e essa produo do sujeito tem
tudo a ver com regulao 9 .
Mais atentamente, vale notar que as implicaes dessas escolhas na
formulao da fala da dana indicam a ocorrncia de processos distintos na
produo artstica em dana. No processo de construo dessa fala, a presena
de aes reguladas (censura/escolha e formas de poder) transforma restrio
em possibilidade produtiva, alm de dar forma legitimidade da fala. A restrio
9 Censorship seeks to produce subjects according to explicit and implicit norms, and this production of the subject has everything to do with the regulation of speech.
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encarna-se na censura enquanto instrumental necessrio para realizao,
processamento e concepo de uma fala performativa, agindo no processo de
seleo, escolha e produo dos campos de fala.
Vera Sala: Impermanncias (2004)/Foto: Cndida Almeida
O proferimento da fala performativa atende, por conseguinte, a uma
operao normativa de poder (j traduzida como produtiva), que qualifica o
relacionamento intersubjetivo e lida ainda, com a inteligibilidade e ilegibilidade da
mesma. Expe-se ento, modos de ao como tambm sentido de
independncia e autonomia construdos sob o vnculo das convenes sociais.
Tanto a performatividade da fala (proferimento verbal) quanto a performatividade
da fala da dana (proferimento corporal) configuram-se enquanto sistemas
abertos que se permitem encenar fragmentos do real.
Visto dessa maneira, o corpo em ao rene e troca informaes
produzindo textos que ampliam os seus discursos, onde possvel perceber
formas de poder, de censura, e de excluso. Sob essa considerao, os atos de
fala so entendidos como atos insurrecionrios10, e os proferimentos podem
ganhar fora precisamente na quebra do contexto ou posio a priori que o ato
de fala realiza.
10 As aes performativas so consideradas enquanto atos insurrecionrios (Butler) por desafiarem e
modificarem a relao com as convenes sociais. Os atos performativos reconhecem as regras, mas no se acomodam no lidar com elas. Em vez disto, trabalham para subvert-las.
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Para dar conta de tais atos de fala, todavia, deve-se compreender a
linguagem no como um sistema fechado e esttico cujos proferimentos
so funcionalmente assegurados previamente pelas posies sociais s
quais so mimeticamente relacionadas. A fora e o significado do
proferimento no so exclusivamente determinados pelo contexto
antecedente ou posies; um proferimento pode ganhar sua fora
exatamente em virtude da quebra do contexto que ele performa. (Butler
2000:257) 11
As aes corporais organizadas na fala performativa indicam a
possibilidade de ocorrer relaes e/ou conexes entre diferentes elementos
numa ao de troca e compartilhamento de informaes. Os proferimentos
performativos reestruturam as condies de possibilidade do ato de fala para
viabilizar a ocorrncia de outras falas que questionem a existncia de um
contexto dado e atuem para a inaugurao de novos contextos. Ao e corpomdia
A teoria Corpomdia12 emprega um princpio co-evolutivo, que se revela
pertinente para explicar os processos de comunicao do ato de performar. A
mdia de que o corpomdia fala um processo co-evolutivo e transformador, e
11 To account for such speech acts, however, one must understand language not as a static and closed system whose utterances are functionally secured in advanced by the social positions to which they are
mimetically related. The force and meaning of an utterance are not exclusively determined by prior context
or positions; an utterance may gain its force precisely by virtue of the break with the context that its
performs
12 A compreenso da vida como produto e produtora de uma rede inestancvel de troca de informaes, marca uma diferena bsica. Nela, a idia de corpo como mdia ocupa posio central. GREINER e KATZ.
A Natureza Cultural do Corpo In: Lies de Dana 3.1. Ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2002. Vale
reforar que essa mdia de si mesmo, e no de uma informao que o atravessa. No corpomdia a
informao vira corpo.
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no somente difusor e transmissor de informao um entendimento peculiar,
muito distinto do de outros, mais conhecidos sobre a mdia. Esse aspecto
transformador justamente o que distingue essa proposta da acepo comum
de mdia reduzida a meios e/ou veculos.
Com a mdia do corpomdia escapa-se da concepo do corpo-caixa
preta, aquele que recebe inputs, os processa e os devolve na forma de outputs
(modelo computacional), e torna-se possvel perceber que dentro de tal modelo
o corpo sempre visto como um processador de informao. Na proposta do
corpomdia h uma nfase na permeabilidade do prprio corpo e o abandono do
entendimento de corpo processador. Trata-se de uma relao de constante co-
autoria entre corpo e ambiente. Ambos se ajustam permanentemente, por isso a
mdia do corpomdia se refere ao seu modo de estar no mundo: uma mdia de si
mesmo.
Os processos de troca de informao entre corpo e ambiente atuam, por
exemplo, na aquisio de vocabulrio e no estabelecimento das redes de
conexo. H algumas evidncias em teoria de sistemas dinmicos de que
o ato de aprender um movimento implica num acoplamento entre
sistemas de referncia que vo mudando gradualmente de moldura.
Tendo a estrutura de fluxo, o movimento irriga para frente e para trs
plugando o corpo cadeias cada vez mais gerais. Nesse aspecto, v-se
instalada no corpo a prpria condio de estar vivo e ela se apia
basicamente no sucesso da transferncia permanente de informao.
(Katz e Greiner 2001:7)
Assim, o corpo sempre o estado de um processo em andamento de
percepes, cognies e aes mediadas. O corpo organiza as suas mediaes
e a sua relao com o mundo, onde tanto opera a regularidade quanto o acaso.
O corpo mdia no no sentido de ser um primeiro veculo de comunicao,
mas como produtor da comunicao de si mesmo, daquilo que ele no
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momento em que se comunica. As negociaes desencadeadas pela relao de
troca com o ambiente constrem o corpo que atua de modo singular numa
presentidade imediata.
O corpo resultado desses cruzamentos, e no um lugar onde as
informaes so apenas abrigadas. com essa noo de mdia de si
mesmo que o corpomdia lida, e no com a idia de mdia pensada como
veculo de transmisso. A mdia qual o corpomdia se refere diz respeito
ao processo evolutivo de selecionar informaes que vo constituindo o
corpo. A informao se transmite em processo de contaminao. (Greiner
2005:131)
O corpo , portanto, movimento em permanente comunicao. Relao
dinmica no espao tempo, declarando-se como processo e produto histrico,
resultante de conquistas evolutivas e conexes efetuadas atravs de memria e
novas trocas comunicacionais geradoras de novas linguagens que intervm e
transformam sua trajetria. Focalizar no corpo importante porque
quando se olha para o corpo humano, percebe-se que se trata de um
exemplo privilegiado. No h melhor lugar para deixar explcito o tipo de
relacionamento existente entre natureza e cultura. No h outro to apto a
demonstrar-se como um meio para que a evoluo ocorra. Corpo mdia,
nada alm de um resultado provisrio de acordos cuja histria remonta a
alguns milhes de anos. H um fluxo contnuo de informaes sendo
processadas pelo ambiente e pelos corpos que nele esto. (Katz
2003:263)
Essa abordagem trabalha ainda com a idia de corpo que age como
reorganizador de propriedades, modelos, funes, para, de maneira objetiva,
disseminar-se em rede informacional. Como produtor de significados
factualmente contextualizados pelos mltiplos instantes que so valorizados
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indistintamente num processo de trocas evolutivas, o corpo produz signos que
so sempre culturais, se organizam em sistemas complexos, e sobrevivem
exatamente da possibilidade de acordos e negociaes que mantm viva a
multiplicidade, sobretudo no ambiente evolutivo da comunicao. A idia de
corpo como enunciador de pensamentos e produtor de significados abordada
por Katz (2004)
Quando considera que o corpo comunica a si mesmo e no algo que o
atravessa sem modific-lo [...] tambm carrega requisitos e limites para se
realizar. Todavia, como se trata de um projeto de design em que natureza
e cultura no esto separadas, o corpo vive em permanente estado de se
fazer presente. E tal condio invalida as tentativas de trat-lo como
objeto pronto, sujeito ou agente de influncias. O mais indicado, seria
pens-lo enquanto articulador, propositor e elaborador de informaes
que o singularizam, pois as trata de modo sempre nicos afinal, cada
corpo um, apesar de todos compartilharem informaes com o
ambiente. (Katz 2004:121, 122)
A percepo de corpo em fluxo permanente de transformao e agindo
num processo de construo de diferenas traz como questo que aquilo a que
se denomina corpo sempre um estado provisrio de negociaes com o que
habitualmente se denomina de mundo interno e externo, e que atua de modo
circunstancial. No h um resultado nico nem ltimo.
Corpomdia e performatividade
A provisoriedade apontada do corpo ajuda a pensar o corpo que dana
como enunciador de idias, conceitos e imaginaes que deixam de ser tratadas
como de outra natureza, diferentes da natureza do corpo para serem
apresentadas como idia-carne, conceito-carne, imaginao-carne. Auxilia,
ainda, a pensar o corpo que dana como ao performativa que apresenta
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idias, conceitos e imaginaes encarnadas e suscetveis a exposies que
aciona mltiplas e diversas percepes.
Christian Duarte: Chris Basic Dance (2006)/ Production LISA Inge Koks
Tais entendimentos so imprescindveis para compreender, refletir e
discutir a ao de performar enquanto ato de fala na enunciao de dana. E
tambm como se organizam as falas do corpo (campos de fala) em aes
performativas e como se d o processo de comunicao dessa ao. Essa
compreenso tem inicio no entendimento de que a dana, enquanto ao
performativa e organizadora de sua fala, tem voz. Sua fala est nos modos de
fazer dana que ecoam o fazer-dizer materializado como aes corpreas que
apresentem traos, vestgios e caractersticas de inmeras informaes que so
grudadas, trocadas e negociadas atravs da relao sujeito-mundo. Organizada
performativamente a dana, produz atos de fala performativos.
A organizao corporal da fala da dana faz das informaes trocadas
entre corpo e ambiente, o seu material no mundo. Registros, traos e vestgios
de vida; histrias de vida. Do contato que se estabelece entre as informaes
que vm de fora com as informaes existentes em um corpo, ocorre um
movimento de reorganizao, que desencadeia a produo de outras
informaes. O movimento nascido dessas informaes pode tomar a forma de
falas construdas, estruturadas e organizadas como um discurso de dana onde,
a cada nova situao do estar no mundo, j outras informaes se configuram.
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O trnsito dessas informaes traz outras dimenses, propriedades e
configuraes percepo. Um ato de fala em dana no visa o mesmo tipo de
compreenso ambicionada pela linguagem verbal. Esse fato, todavia, no
inviabiliza o uso da teoria de Austin na dana como, por exemplo, Butler,
demonstrou com sua proposio de uso da performatividade (ver pg. 29).
Na base da construo-organizao da fala da dana repousa a
compreenso de que seu discurso seja, talvez, ainda mais aberto e proliferador
de significados que o do verbal. A intencionalidade dessa fala reside nela
mesma, ou seja, no fazer. O corpo em movimento de dana participa de um
processo contnuo, onde as informaes no desaparecem, mesmo depois da
apresentao da obra, e isso independe do acompanhamento de um libreto ou
um texto de apresentao. Embora fugaz, a dana imprime algo no corpo de
quem dana e no de quem assiste que vai participar do processo de
continuidade das transformaes que caracterizam o corpo. No toa, a fala
encontra diferentes espaos de percepo nos diversos sistemas corporais com
que entra em contato.
A fala da dana, ento, pertence a um processo de muitas possibilidades
de percepo e organizao: pertence a um coletivo. A informao gruda em
todos os envolvidos, seja no processo de construo, no de apresentao ou no
de percepo da fala. Dana, na organizao de sua fala, no existe para ser
entendida, compreendida no sentido em que o senso comum atribui a esses
termos, mas sim, trabalhada pela percepo como uma coleo de idias que
arranjou um certo modo de se organizar no corpo.
No processo de organizao da fala da dana, no trnsito de informaes
at a apresentao do discurso, ocorrem operaes de regulao. Da gerao
das idias, seleo e traduo h informaes que so mantidas e informaes
que so excludas. O movimento de manuteno e excluso de informaes
promove a permanncia (parmetro sistmico que implica numa conectividade
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temporal). Numa aproximao ao princpio ontolgico de que todas as coisas
tendem a permanecer, o movimentar dessas informaes torna-se importante na
existncia de informaes armazenadas, no reconhecimento da entrada e sada
de informaes e, na organizao e produo da fala performativa.
A dana, enquanto sistema complexo organiza sua fala, sua ao
performativa, num discurso. Expressas nesse discurso encontram-se
informaes diversas que, num processo contnuo de transformao, combinam,
emitem, recebem, trocam e produzem informao. As aes performativas se
constrem nesse processo, que da natureza do continuum, que aposta na
experincia das aes para a produo de significados.
Um corpo de dana contempornea ser performativo quando tiver uma
marca no seu modo de enunciar a dana: precisar ser um fazer-dizer com
investimento em aes e organizaes corporais que busquem realizar
(performativizar) as idias em movimentos e em trat-las de maneira crtico-
reflexiva. Esta diferena entre os fazeres representa um ponto poltico crucial na
compreenso e discusso da performatividade na dana contempornea. Diferentes fazeres-dizeres da dana
Esta tese vai considerar que na produo da fala da dana ocorrem
diferentes fazeres. Cada um deles deve ser observado a partir do modo como
lidam com as informaes. No fazer da dana, operam-se diferentes maneiras
de lidar com o corpo, da a possibilidade de se discutir os distintos
procedimentos e modos de enunciao. No processo de produo da fala da
dana possvel observar os modos de fazer ressaltando a necessidade de
reconhecer a existncia de diferentes maneiras de organizar a fala no corpo.
A indicao da diferena nos fazeres em dana, no supe valores
qualitativos nem inclinao para classificao em grupos opostos. A abordagem
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da diferena feita para ressaltar modos e estratgias distintas que se
apresentam nas experincias desse fazer artstico. O tratamento dado ao corpo
que se move, o entendimento de como o corpo resolve situaes que se
apresentam no processo de produo de falas, as maneiras de relacionarem-se
com elementos externos e internos ao corpo, as escolhas no processo e para
apresentao da fala, vo se dar a ver nas diferentes formulaes.
Aqui se prope pensar o fazer da dana enquanto um fazer-dizer e,
portanto, implica em perceber a experincia artstica em dana sob tal
abordagem. Entende-se que esse j um outro modo de observar e perceber
dana. Um modo diferente de compreender as idiossincrasias pertinentes ao
processo de criao, que materializa suas idias sem modelos prvios em
corpos que possuem especificidades fsicas, sociais e culturais.
Lia Rodrigues: Formas Breves (2002)/Foto: Lcia Helena Zarembe
O corpo possui um elenco de informaes que se estabilizam no
processo de sua constituio como corpo. Esto impregnadas no corpo variadas
experincias que colaboram no processo de produo de falas. O corpo que
dana est exposto a distintas formas de preparao corporal e, ainda, a
distintas instrues que disparam o processo de criao. Corpos em movimento
na dana expem peculiaridades e refletem sobre o seu fazer. Entretanto, faz-se
importante apontar que nem sempre ocorre a reflexo crtica desses fazeres.
Nem sempre os corpos em processo encontram-se disponveis para investir em
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perguntas em vez de respostas. O corpo propicia o encaminhamento de muitas
perguntas que no precisam ser respondidas, mas merecem ser levantadas.
Uma proposta de reflexo crtica viabiliza a existncia de proposies que
apaream no decorrer do fazer e, instiguem o corpo a apresentar tantas
questes quantas se fizerem necessrias, at o proferimento de falas
provisoriamente finalizadas.
As diferentes falas da dana ganham configurao poltica ao entender
que no corpo que questes do dentro e do fora podem ter acomodamento, que
o corpo, alm de trocar com o ambiente onde est, tambm o ambiente onde
ocorre as discusses e decises provenientes do processo de fazer dana e,
ainda, no corpo que se explicitam as condies de produzir fala. O processo
do fazer est acompanhado por exerccios de reflexo crtica que colaboram na
formulao do discurso, provocando desestabilizaes que propiciem a
emergncia de informaes renovadas.
A co-existncia de dana e poltica no corpo que dana, vai ocorrer num
espao intersticial, no entre, onde a possibilidade necessidade. Esse entre -
lugar requer ainda um deslocamento da ateno do poltico como prtica
pedaggica, ideolgica, da poltica como necessidade vital no cotidiano a
poltica como performatividade. (Bhabha 1998:37). No entre, ocorre a mescla
das informaes existentes com aquelas que ainda no ganharam existncia no
corpo. Ambas vo ser trabalhadas pelo corpo. Nem s uma nem s a outra.
Desse mesclado vai surgir uma informao, que carrega traos das outras, mas
que se apresenta como informao singular. No interstcio se d, ento, o
trnsito de idias, informaes, proposies.
Pensar em corpos que, em movimento de dana, agem dessa maneira
pensar em movimentos de corpos-idias e no corpos ideais. Importa destacar,
nessa discusso, as aes corporais na dana que privilegiam questes/feituras
implcitas no fazer. Dessa maneira, pode-se estar prximo do entendimento de
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fala performativa que construda no corpo e pelo corpo, e onde as aes
investem na investigao e na experimentao de outras falas. O corpo
performativo vai agir produzindo intervenes na produo da fala. O modo de
agir performativamente procura no se fixar a modelos pr-estabelecidos e
trabalha com a possibilidade de reorganizar as informaes existentes no corpo
e inventar uma maneira de movimentar-se que enuncie as indagaes e
transformaes ocorridas no processo do fazer.
Importa notar que formulaes renovadas s podem ocorrer no corpo que
se coloca em estado de disponibilidade. Ser preciso a disposio em acolher
informaes estrangeiras, estranhas a ele para que transitem pelo corpo e
possam ganhar existncia ou no. Entende-se que estar em disponibilidade no
significa despir o corpo das informaes existentes. Essas no podem ser
descartadas. interessante que ocorra o aproveitamento das informaes,
estrangeiras e conhecidas, no exerccio do fazer, no processo de produo da
fala. A reflexo crtica, mais uma vez, pode colaborar para percepo do como
se aproveitam as informaes.
Essa compreenso serve para ressaltar que no fazer da dana
performativa, se inventa um modo de dizer prprio, urdido no fazer. Um fazer
que tem um tempo de feitura vinculado ao prprio fazer. Ento, para produzir
esse dizer s seu, o corpo trabalha experimentando/testando as informaes,
movimentando-as. Atravs da repetio de movimentos vai-se acionando o
corpo para a organizao da fala. Entretanto, na fala performativa, essa
repetio est relacionada a um processo citacional. Trata-se de citao como
iterao13.
O processo performativo adota um movimentar-se onde as aes retiram-
se de determinado contexto e inserem-se em outro, configurando uma operao
13 O conceito de iterao trabalhado por Derrida (1990) para demarcar a diferena na escrita. A iterabilidade tratada como marca de qualquer tipo de escrita e une repetio a alteridade.
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de repetio que pode ser interrompida, questionada, contestada. Nesse
procedimento de interrupo so ativadas reorganizaes de experincias e
possibilidades de produo que no ambicionem somente reproduzir contextos
pr-estabelecidos. Ocorre um investimento no processo de reorganizao que
produz aes renovadas nos enunciados performativos. E ainda ocorre a
inveno de falas prprias do fazer do corpo.
Wagner Scharwtz: Transobjeto 1 (2004)/Foto: Gil Grossi
Para ilustrar esse modo de lidar da repetio como citao, vale citar o
espetculo wagner ribot pina miranda xavier le schwartz transobjeto14. Composta
pelo coregrafo de Uberlndia, Minas Gerais, Wagner Schwartz, um exemplo
da possibilidade de produzir fala performativa na dana. Ele permite a percepo
de um modo de organizar o pensamento que se enuncia como um fazer-dizer.
O corpo apresentado na cena um corpo que expe a reflexo critica
sobre o fazer do seu e de outros corpos. O trabalho faz muitas citaes. Fora da
cena - no ttulo do trabalho, esto citados vrios corpos que danam: corpo pina,
14 Trabalho criado/inventado pelo artista da dana Wagner Schwartz e observado durante a apresentao no Projeto Rumos Dana, na cidade de So Paulo em 2004.
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corpo la ribot, corpo xavier, corpo schwartz. As marcas desses corpos so
aproveitadas por um nico corpo. O que ele enuncia, , ento, no entendimento
aqui apresentado, uma fala performativa. As vozes desses outros corpos esto
processadas no fazer daquele corpo que dana, mas esto digeridas e
transformadas. J corpo encenando uma voz prpria. Em cena, o corpo
Wagner Schwartz, vai citando ao mesmo tempo em que vai inventando sua fala.
possvel observar no corpo em cena a existncia de propostas crticas. Isso se
d no jeito como o corpo-wagner relaciona informaes de matria corpo e de
outras matrias.
A movimentao expe aes simples e de fcil reconhecimento, porm,
elas no se expem desvinculadas de outros elementos em cena que se
organizam como outros corpos: corpo-msica, corpo-texto, corpo-copo, corpo-
vinho, corpo-frutas, corpo-banco, corpo-cigarro, corpo-vestido, corpo-lao,
corpo-metrnomo, corpo-microfone. Na maneira de organizar a fala, os
elementos que se diferem da matria corpo so aproveitados e digeridos,
transformados em corpo. O corpo-wagner que dana provoca nos corpos que
assistem, um pensar em como se do as escolhas do que apresentado na
cena. Levanta questes acerca de relaes corporais e culturais. Acena com
posicionamento crtico na forma como mescla tantos corpos diferentes no seu
fazer. Inventa um corpo que enuncia a fala daquele fazer. Nem de outros
produzidos por esse corpo, nem da produo de outros corpos.
A performatividade da fala corporal desse espetculo expe o modo de
tratar o corpo que dana como propositor de pensamentos de dana. A
relevncia do fazer enquanto espao de emergncia de idias em movimento,
substancializa o exerccio de um fazer que dizer. As formulaes se organizam
em rede, tecendo opes de escolha, renovando dados existentes, acolhendo
dados emergentes, refletindo criticamente sobre as aes-movimentos
experimentadas no contnuo do fazer corpreo. O corpo se prepara adaptando-
se s necessidades que se apresentam no decorrer do processo de produo da
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dana performativa. Ele pode ter experenciado ou experenciar diversas tcnicas
de dana, diferentes instrues motoras, mas o que vai prevalecer a
experimentao do seu fazer naquele momento, a sua adaptabilidade corporal
para a enunciao daquela fala performativa.
Quando o corpo no se prope a inventar seu fazer, o corpo tratado sob
outros enfoques. Ainda o corpo o ambiente onde se processam a
experimentaes que, ento, se apresentam vinculados a algo fora deles. Um
mesmo movimento pode ser empregado para dizer falas distintas, pois, nesse
caso, os movimentos so geralmente organizados e no inventados
especificamente para cada situao.
A transformao que ocorre a partir da oportunidade de experimentar no
corpo outra informao, parece despercebida e traduzida como uma concesso
corporal para realizao daquela experimentao corprea. quase um corpo-
transmissor que d passagem para a exposio daquela fala. O corpo
desempenha o papel do outro corpo. No parece interessado em discutir a
ocorrncia de mudanas corporais desencadeadas pela experimentao de
outras propostas. Como se estivesse sempre em estado de pronta resposta para
solicitaes. Pronto a responder sem formular qualquer pergunta sobre o fazer.
Se o corpo mudou a partir do contato com outras informaes, essa mudana
quase sempre ser indicada pelo corpo instrutor que aponta a eficincia na
realizao de sua proposta.
Mas se em cada corpo, particularizado, onde ocorre a transformao,
quem, seno ele mesmo, para falar dessas modificaes? No corpo que age
sem interessar-se em inventar, como se ele se entendesse como uma folha
em branco onde fosse possvel rabiscar e exibir contornos e formas. So
processadas falas onde o dizer enuncia algo que, mesmo quando indito, no
produz modos de dizer tambm inditos, mas organiza materiais j existentes de
modo especfico ao seu objetivo. um dizer que no se inventa. Expe-se um
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fazer-dizer que tende a apresentar movimentos j autenticados. Percebe-se que
o agir permite a expresso de movimentos produzidos pelo treino-modelo, pelo
uso dos materiais da aprendizagem das tcnicas de dana, e isso que fica
exposto em primeiro plano na representao. Parece que h uma fronteira clara
entre o fazer e o dizer. Porque o dizer est pronto antes do fazer.
Nesse tipo de enunciao, as questes ocupam o corpo como um lugar.
Assim, esse modo de organizar o corpo que dana parece descartar como
prioridade um encontro com o novo que no seja parte do continuum de
passado e presente [...] uma idia do novo [...] que inova e interrompe a atuao
do presente. (Bhabha 1998:27). O corpo geralmente lida com cdigos de
movimento como materiais espera de novas combinaes. A codificao se d
em passos e seqncia de passos que mais parecem ordenados do que
organizados. Na ordenao, os movimentos seguem princpios de categorizao
rgidos e so dispostos por meio de classificao. Onde esto alguns, outros no
podem estar.
Os acordos entre os passos privilegiam uma montagem/colagem. Nessa
organizao, as aquisies que ganham estabilidade no corpo do ao mesmo o
status de corpo hbil, talentoso e virtuoso. Um corpo que executa com preciso
os exerccios de imitao de informaes que j dispe. Aquelas informaes
que ganharam estabilidade no processo e foram classificadas como eficientes,
tendem a fixar-se numa condio de impermeabilidade e de serem
supervalorizadas na ordenao da fala que no se inventa. Ao invs de trabalhar
para organizar as percepes e aes que, possibilitam a renovao das
informaes estabilizadas, o corpo tende sistematizao dos modos de
combinar as experincias de movimento.
Os bals de repertrio so um bom exemplo dessa maneira de enunciar
dana. Suas idias remetem para mundos de iluso. A encenao do bal
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Giselle15, por exemplo, pode ocorrer com corpos do oriente ou do ocidente e,
apesar da distino desses corpos, eles mantero em cena as seqncias de
passos j prontos no sculo 19. Evidentemente, cada montagem carregar os
acordos dos corpos especficos com a partitura j existente, mas esses corpos
no inventaro seus modos prprios se escolheram repetir a coreografia criada.
Como se sabe, h coregrafos, como Mats Ek (Giselle-1982, Lago dos Cisnes-
1987, Carmem-1992) que inventam modos seus de encenar o mesmo roteiro,
atestando que a questo da performatividade no diz respeito somente dana
contempornea, mas permite vrios entendimentos. Que mesmo a negociao
baseada na referncia, como nos exemplos citados, carrega mais complexidade
do que a que habitualmente se usa para tratar do assunto.
Mats Ek: Lago dos Cisnes (1987) Mats Ek: Carmem (1992)
A fixao de movimentos j estabilizados termina por encobrir qualquer
aspecto de instabilidade no processo de produo de falas. A preocupao com
a singularidade substituda pelo exerccio de imitao que leva o corpo a imitar
outro(s) corpo(s) sem intencionalidade de diluir normas fixas ou mesmo
transgredi-las. Faz com que o corpo repita o fazer tornado visvel pelo outro.
Esse um exerccio de imitao onde o corpo age para se transformar no outro
corpo, para tornar invisvel sua diferena. Considera-se que, na organizao da
15 O Ballet Giselle estreou em Paris (Opera de Paris) em 1841. A coreografia de Jean Coralli, Jules Perrot, revisada por Marius Petipa. A danarina que encenou Giselle, nessa estria foi Carlotta Grisi.
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fala que no se inventa ocorra a preocupao com o referente (um outro corpo,
ou informao, idia, pensamento, formulao artstica) como determinante da
produo de falas. O fazer-dizer dessa dana, ao lidar com o procedimento de
repetio para produzir sua fala, impossibilita o corpo de inventar um modo
prprio de se enunciar.
Os diferentes fazeres da dana obedecem ento, a dinmicas distintas
para a produo da fala. O falar despreocupado com propostas inventivas se
aproxima mais de arranjos para enunciados de um discurso j referenciado. No
falar que se inventa e, que pode ser traduzido num falar performativo, o
processo tende a subverter e desestabilizar as referncias. Como se trata de
atos de fala que existem na e como linguagem, cada proferio precisa buscar
os materiais que melhor lhe sirvam. Dessa maneira, parece perceptvel que na
dana que se inventa, as falas do corpo exercitem hipteses que so levantadas
no corpo e l realizadas. No exerccio que no se disponibiliza a procedimentos
inventivos, as experincias so colocadas no corpo e l referenciadas.
A produo das diferentes falas da dana vai, ainda, por em discusso a
possibilidade de atuao onde ocorra falas/aes hbridas, realizadas num
espao de agncia que lida com questes de ambivalncia16. Nesse espao
ocorrem negociaes, traduzidas na articulao de diferentes informaes e na
possibilidade de deslocamentos de idias e pensamentos que produzam a re-
inscrio e re-configurao dos modos de organizar e enunciar a fala na dana.
O interesse em pesquisar a dana que se organiza como um fazer-dizer
ajuda a enfoc-la priorizando condies de traduo e transformao de idias
em movimentos. A dana indica seu estado de existir com as
imagens/pensamentos/informaes que lhe do forma. Como um sistema
16 A discusso acerca desses conceitos relacionando-os ao processo de criao em dana ser feita no captulo seguinte.
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dinmico e em permanente fluxo, vai atuar contaminando, ao mesmo tempo em
que contaminada, descrevendo em tempo real o estado em que se encontra.
Entender a produo em dana como um fazer que dizer pode ser a