36571996 o estranho mundo de tim burton

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O Estranho Mundo de Tim Burton CORTEZ, Anna Emlia; MUDADO, Gabriela; NORBIM, Oswaldo; PAULA, Marina de; S, Soraia Casal de. Belo Horizonte, PUCMG, 2006. Orientadora: Roberta Veiga Supervisor: Mrcio Serelle Projeto Experimental (Graduao) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais Faculdade de Comunicao e Artes Graduao em Publicidade e Propaganda. Introduo Timothy William Burton Vendendo o fantstico Semelhanas, influncias ou apropriaes A marca de um autor Dissoluo do sujo Mise en scne Concluso Referncias Bibliogrficas - Filmografia4

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS Faculdade de Comunicao e Artes

O Estranho Mundo de Tim BurtonPor: Anna Emlia Cortez Gabriela Mudado Marina de Paula Oswaldo Norbim Soraia Casal de S Projeto Experimental apresentado Faculdade de Comunicao de Artes da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito para a obteno do ttulo de bacharel em Publicidade e Propaganda.

Orientadora: Roberta Veiga Supervisor: Mrcio Serelle

Belo Horizonte 2 Semestre de 2006

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Resumo: Nosso objetivo, neste estudo, foi apontar e caracterizar o trabalho do diretor de cinema Tim Burton em termos do conceito de autoria cinematogrfica desenvolvido na dcada de 1950 na Frana. Alm disso, buscamos destacar os elementos formadores de seu gesto autoral: matriz e mise en scne. Palavras-chave: Autoria no cinema Tim Burton Matriz e mise en scne

Abstract: Our goal, in this study, was to point out and characterize the work of the movie director Tim Burton on the terms of the concept of authorship in cinema developed on the 1950s in France. Besides, we sought to highlight the elements that form his author gesture: argument and mise en scne. Key-words: Authorship in cinema Tim Burton Argument and mise en scne6

AgradecimentosAos nossos pais, orientadora e ao supervisor,Anna Emilia: Aos meus irmos, Gabriela e Soraia Gabriela: Soraia, ao Danilo e ao Henrique Marina: Ao Lus Carlos, Daniela e ao Marcelo Oswaldo: Raquel Soraia: Gabriela Geny S (in memorian)

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SumrioIntroduo Timothy William Burton A Fantstica Fbrica de Filmes Semelhanas, influncias ou apropriaes A marca de um autor Os Estranhos de Divertem Mise en scne Concluso Referncias bibliogrficas Filmografia Imagens 11 13 21 31 43 55 87 119 122 127 133

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IntroduoO presente trabalho optou pela obra do cineasta Tim Burton como objeto de estudo. Ao fazer esta escolha, o grupo imediatamente encontrou uma deficincia bibliogrfica no s em relao obra deste cineasta, mas tambm a dos seus contemporneos. Seria mais fcil para um projeto experimental que trata de cinema trabalhar com os grandes cineastas consagrados, j que existem inmeras dissertaes, trabalhos e livros a respeito dos mesmos. Entretanto, escolhemos o diretor Tim Burton pelo desafio de compreender a forma com a qual ele se estabelece como um diretor dono de uma assinatura capaz de refletir-se em todos os seus filmes e, por este motivo, transformar-se em um autor de cinema. Ao pensar em Tim Burton, rapidamente constatamos que o diretor capaz de conquistar a simpatia tanto do pblico quanto da crtica, alm de ocupar um lugar de destaque raro no contexto hollywoodiano. Foi pensando nisso que a primeira questo foi levantada: o que tem de to especial em suas realizaes? E, a partir desta, como produzida a assinatura burtonesca nos filmes? baseado nestas indagaes que este estudo apresenta seus seis captulos seguintes. O conceito da autoria no cinema foi criado na dcada de 50, ou seja, o auge do cinema moderno, e ser retomado nessa anlise por ser capaz de abranger a obra de Burton, um diretor essencialmente ps-moderno, sem, no entanto, limit-la. Para apontar a autoria cinematogrfica de Tim Burton, optamos pelo auxlio da teoria de Jean-Claude Bernardet, pensador de cinema e defensor da teoria do autor de cinema. Baseando-nos neste11

conceito, pretendemos mostrar algumas das caractersticas latentes na obra de Burton que configuram a criao de um trabalho nico na stima arte. necessrio ressaltar, no entanto, que compreendemos que esta uma tarefa bastante ambiciosa para um estudo como o projeto experimental e que temos conscincia de nossas limitaes acadmicas e imaturidade terica, bem como a escassez de tempo disposto para este trabalho. Nesta iniciativa de O captulo Timothy William Burton dedicado a apresentar o homem responsvel pelo mundo burtonesco, ou seja, o prprio diretor e seus atributos profissionais. Em A Fantstica Fbrica de Filmes, o objetivo demonstrar e esclarecer, atravs de elementos que regem a indstria hollywoodiana, a forma como Tim Burton se encontra inserido e bem posicionado no mbito comercial do cinema atual. No captulo intitulado Semelhanas, influncias ou apropriaes, pretende-se apontar algumas caractersticas das correntes cinematogrficas que mais se destacam na obra do cineasta, sendo vistas como formadoras da caracterstica hbrida do cinema burtonesco que se apropria de elementos produzidos no decorrer da histria cinematogrfica na produo de um trabalho indito. O captulo A marca de um autor, baseado em Bernardet, define traos na obra de Burton que o configuram como autor, e os dois captulos seguintes, como mera formalidade didtica existente na prpria teoria, foram divididos entre os dois elementos formadores de um gesto autoral: matriz e mise en scne. Sendo que a matriz, aqui chamada de Os Estranhos de Divertem, apresentada atravs da anlise de todo o conjunto narrativo da obra de Burton; e a mise en scne focada nos aspectos visuais de sua filmografia.12

Timothy William BurtonTimothy William Burton, mais conhecido como Tim Burton, nasceu em 25 de agosto de 1958, na pequena cidade de Burbank, no estado da Califrnia, Estados Unidos. Algumas fontes que tratam sobre sua vida afirmam que Tim teve uma infncia conturbada e ela a origem de sua criatividade bizarra e de sua personalidade excntrica. Entretanto, o prprio Burton declara que em sua infncia no existiram muitos eventos peculiares, ele possua amigos e brincava como qualquer outra criana.A primeira coisa que as pessoas perguntam quando eu menciono que conheo o Tim Burton : Ele estranho? (...) sim, ele o que alguns chamam de ligeiramente excntrico (...) mas aps passar um tempo na companhia de Burton voc pode comear a ter a sensao de que talvez, s talvez, todos ns que somos os estranhos, e ele, o nico completamente so. (MILLS, 2002:147)

O cineasta no possui nenhuma biografia oficial, mas algumas de suas declaraes revelam um pouco da sua histria, principalmente, no livro Burton on Burton, no qual, em entrevista a Mark Salisbury, Burton explica um pouco mais sobre sua vida pessoal e seu trabalho como diretor. Ainda jovem, Burton tinha problemas em aceitar o subrbio onde morava, o que se tornou referncia recorrente e reconhecvel em seu trabalho. Burbank conhecida como a cidade que acolhe os grandes estdios de Hollywood, ela faz parte da13

Grande Los Angeles, mas mantm caractersticas de cidades interioranas. Apesar da proximidade com uma grande capital, Burbank um arqutipo de um subrbio de classe trabalhadora americana. Ambiente no qual Burton se sentia alienado desde a juventude, o que, mais tarde, retratado em Edward Mos de Tesoura (BURTON; SALISBURY, 2000:1). Burton, desde muito jovem, j demonstrava um gosto pelo cinema e uma criatividade de destaque. Era um estudante preguioso que nunca leu um livro como tarefa e, para conseguir pontos, fazia pequenos filmes sobre os assuntos tratados na matria. Quando perguntado se pensava em ser cineasta, Tim Burton diz: Eu, na verdade, nunca pensei em realmente fazer filmes como um meio de vida. Talvez em algum lugar bem guardado, mas eu nunca conscientemente disse que queria ser um diretor. Eu gostava de fazer filmes. E me ajudava a passar na escola (BURTON; SALISBURY, 2000:6). Alm dos filmes, Burton demonstrava um interesse grande por desenho, sendo que, na poca de halloween ganhava dinheiro pintando decoraes como vampiros, esqueletos e abboras nas janelas dos vizinhos de Burbank. Ainda na infncia, assistia com freqncia aos chamados filmes lado b1, tais como: Godzilla (1954), Frankenstein (1931), Jaso e o Velo de Ouro (1963), The Brain That Wouldnt Die (1962), King Kong, (1933) O Monstro da Lagoa Negra (1954), entre outros. Mas, segundo Burton, os estrelados por Vincent Price so os que me tocaram especificamente por alguma razo. (...) Vincent Price era algum com quem eu conseguia me identificar, talvez da mesma forma que Gary Cooper ou John Wayne para outras pessoas1 Filmes lado b: o termo surgiu em Hollywood quando havia apresentaes duplas, e o segundo filme, de menos valor, era chamado de B. Os filmes classificados como lado b, ou apenas filmes-b, atualmente, so aqueles cujo oramento para realizao muito baixo comparado aos filmes realizados no circuito hollywoodiano. Algumas vezes, o termo pode ser utilizado como sinnimo de cult, mas, na maioria dos casos designa filmes de baixa qualidade e/ou pouca visualizao mercadolgica. (WIKIPEDIA, s.d.) 14

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(BURTON; SALISBURY, 2000:4,5). A admirao de Burton pelo ator notria, sendo que Price foi homenageado pelo ttulo de seu primeiro curta, Vincent (Vincent, 1982), e, anos depois, atuou no filme Edward Mos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990) como o criador de Edward. Existe tambm um rumor sobre o relacionamento de Burton com seus pais ser conturbado. Alguns especulam que desentendimentos entre Tim e o pai (Bill) podem ser a razo pela qual, ainda aos doze anos de idade, ele mudou-se para a casa de sua av. Bill Burton faleceu em 2003, antes das gravaes de Peixe Grande e Suas Histrias Maravilhosas (Big Fish), sem que ele e Tim voltassem a se falar. O diretor relutante ao tratar sobre o assunto, mas afirma que o filme sobre o relacionamento de pai e filho serviu como uma forma de terapia para ele (BURTON, 2003). Detalhes da sua vida pessoal parte, Tim Burton foi bolsista no Instituto de Artes da Califrnia (Cal Arts), criado pela Disney com o objetivo de incentivar novos profissionais em animao. Em 1979, no seu terceiro ano no Instituto, Burton foi selecionado pelos estdios Disney e contratado como animador. A padronizao dos desenhos fez com que Burton deixasse o emprego, ele alega que quando cria-se formas especficas para produzir arte, a criatividade e liberdade do artista limitada. Entretanto, sua experincia nos Estdios de Animao Disney incluiu em seu currculo trabalhos como animador, desenhista e fotgrafo, e, foi atravs dela que Burton foi contratado para realizar seu primeiro longa-metragem: As Grandes Aventuras de Pee-Wee (Pee-Wees Big Adventure, 1985). Tim Burton tambm possui alguns trabalhos como escritor. Ele autor de contos infantis, como A Melanclica Morte do Menino Ostra (The Melancholic Death of Oyster Boy), lanado em 1997; de algumas das histrias usadas em seus filmes: Vincent17

(Vincent, 1982), Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem (Beetlejuice, 1988), Edward Mos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), O Estranho Mundo de Jack (Nightmare Before Christmas, 1993); e, tambm, co-autor de um livro sobre seu trabalho como diretor de cinema, Burton on Burton de Mark Salisbury (1995), j mencionado aqui; alm de vrias coletneas de entrevistas do diretor sobre a produo e realizao de seus filmes. Burton tambm um produtor respeitado em Hollywood, assinando a produo de quinze filmes, sendo cinco deles para televiso, um em animao grfica e nove feitos para o cinema. Em sua carreira, Burton assina, como diretor, doze longasmetragens, trs curtas e trs filmes para TV. Entre seus filmes mais conhecidos esto: Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem (Beetlejuice, 1988), Batman (Batman, 1989), Edward, Mos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), Ed Wood (Ed Wood, 1994), Marte Ataca! (Mars Attacks!, 1996), A Lenda do Cavaleiro Sem Cabea (Sleepy Hollow, 1999), Peixe Grande e Suas Histrias Maravilhosas (Big Fish, 2003), A Fantstica Fbrica de Chocolate (Charlie and the Chocolate Factory, 2005) e, mais recentemente, A Noiva-Cadver (Tim Burtons Corpse Bride, 2005). [ver quadro p. 19] O crtico de cinema William Arnold (2005), do Seattle PosterIntelligencer, apesar de depreciar alguns filmes da obra de Tim Burton, ele diz que o trabalho do diretor possui uma magia especial e uma contribuio arte do cinema.

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Filmografia de Tim BurtonLongas-MetragensA Noiva-Cadver (Tim Burtons Corpse Bride) A Fantstica Fbrica de Chocolate (Charlie and the Chocolate Factory) Peixe-Grande e Suas Histrias Maravilhosas (Big Fish) Planeta dos Macacos (Planet of the Apes) A Lenda do Cavaleiro Sem Cabea (Sleepy Hollow) James e o Pssego Gigante (James and the Giant Peach) Marte Ataca! (Mars Attacks!) Batman Eternamente (Batman Forever) Ed Wood (Ed Wood) Cabin Boy (Cabin Boy) O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas) Batman - O Retorno (Batman Returns) Edward Mos de Tesouras (Edward Scissorhands) Batman (Batman) Beetlejuice, Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice) As Grandes Aventuras de Pee-Wee (Pee-Wee's Big Adventure) O Caldeiro Mgico (The Black Cauldron) Tron O Co e a Raposa (The Fox And The Hound)

Ano Funo2005 Direo e Produo 2005 2003 2001 1999 1996 1996 1995 1994 1994 1993 1992 1990 1989 1988 1985 1985 1982 1981 Direo Direo Direo Direo Produo Direo e Produo Produo Direo e Produo Produo Produo e Histria Direo e Produo Direo, Produo e Histria Direo Direo e Histria Direo Concepo Artstica Animao Animao

Curtas-MetragensThe World of Stainboy Frankenweenie Vincent

Ano Funo2000 Direo, Produo e Histria 1984 Direo, Histria e Storyboard 1982 Direo, Histria e Design

Filmes para TVLost in Oz Family Dog (Spielberg's Amazing Stories) Beetlejuice - Srie de TV Joozinho e Maria (esp. Disney: Hansel and Gretel) Luau (participao como ator) Stalk of The Celery19

Ano Funo2000 1992 1989 1982 Produo Executiva Produo Executiva Produo Executiva e Criao Direo e Histria

1982 Direo, Produo, Histria Direo, Produo, Histria e 1979 AnimaoFonte: IMDB - Internet Movie Database

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A Fantstica Fbrica de FilmesTim Burton um diretor atual que para criar seu trabalho enfrenta as condies impostas pelo status do cinema contemporneo: a transformao dos filmes em produtos e dos espectadores em clientes. Apesar disso, o diretor capaz de criar pelculas que se destacam em um meio to competitivo, que conquistam grandes pblicos e possuem uma espcie de assinatura diferenciada. Um mundo fantstico criado e vendido com sucesso no mercado hollywoodiano. Sob tantas interferncias e tantos interesses em jogo (principalmente o financeiro), Burton deixa sua marca no produto-arte do cinema atual. Segundo Costa (1989), o cinema aquilo que se decide que ele seja numa sociedade, num determinado perodo histrico, num certo estgio de seu desenvolvimento, numa determinada conjuntura polticocultural ou em um determinado grupo social. Ele se constitui, ao mesmo tempo, como tcnica, indstria, arte, espetculo, divertimento cultura. Ao observar o status da cultura atual, percebe-se que necessrio levar em considerao alguns aspectos viabilizados pelo desenvolvimento tcnico da humanidade e que se tornam influncias para a criao cinematogrfica como, por exemplo, a onipresena da televiso e das novas estruturas tecnolgicas. Sem dvida, estas novas tecnologias influenciam o cinema, principalmente no mbito da produo, distribuio e consumo dos filmes.21

Neste contexto, o cinema vivencia avanos tecnolgicos inumerveis. Softwares, digitalizaes e tcnicas televisivas so arrebanhados pelas tcnicas cinematogrficas: so tecnologias muito recentes, capazes de criar praticamente qualquer coisa em cena. Tim Burton extrai, destas novas tecnologias, possibilidades expressivas que contribuem para despertar emoes no pblico, utilizando-as como quem as domina, e no o contrrio. a juno destes novos artifcios e as tcnicas tradicionais do cinema que alimenta as produes fantsticas do diretor, sem atingir um extremo computadorizado ou a simplicidade pura da imagem capturada. Segundo Burton (2003), quando as cenas so produzidas sem o auxlio de computadores, a sensao de realidade maior e a atuao dos atores se torna mais prxima de algo que realmente est acontecendo, o que acaba refletindo diretamente no resultado final. At mesmo em animaes, o cineasta opta por bonecos reais que tomam vida a partir da tcnica de stop-motion2, ao invs de produzi-los totalmente atravs dos recursos computadorizados. Exemplos disso so os filmes Vincent (Vincent 1982), A Noiva-Cadver (Tim Burtons Corpse Bride 2005), O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas 1993), e James e o Pssego Gigante (James and the Giant Peach 1996), sendo que os dois ltimos foram dirigidos por Henry Selick, mas produzidos por Tim Burton.Acho que CG (Imagem Gerada por Computador) funciona para algumas coisas. No d para fazer certas coisas sem isso. Mas, ao mesmo tempo, acho que as pessoas confiam demais nisso. Sempre vou partir do princpio que se voc pode fazer a cena sem CG, melhor. Eu tambm gostei de2

Stop-motion: tcnica de animao cinematogrfica que consiste em dar vida a objetos atravs do sistema quadro-a-quadro. Nesta tcnica, o animador faz um registro das vrias nuances do movimento em diversos quadros diferentes, depois os ordena para formarem um movimento completo. 22

usar esse recurso, mas tento misturar as tcnicas para no ficar preguioso. (...) algo que acho que as pessoas percebem. Mesmo que no percebam, sabem inconscientemente. (...) No me importa o que digam. Se fosse efeito, voc sentiria. Isso lhe d um foco que voc no teria em uma sala de tela azul. (BURTON, Informao verbal)3

A questo tecnolgica permeia no somente a forma utilizada para a produo do filme, mas tambm se configura como tema e crtica na obra burtonesca. Tim Burton parece empenhado em valorizar apetrechos antiquados e destacar conexo do homem moderno e ps-moderno ao maquinrio, mesmo que arcaico. Todos os filmes produzidos atualmente retratam de alguma maneira o avano tecnolgico, seja de forma sutil como referncia cultura atual, como crtica contra a automatizao da vida ou como elemento primordial para a produo do conjunto flmico. Em Burton, este tema aparece de variadas maneiras, porm nunca tratado como algo a ser temido pela humanidade. A tecnologia mostrada como parte da rotina dos personagens e, mesmo quando h falhas relacionadas a elas, estas surgem somente para criticar uma valorizao que ultrapasse os limites do mutualismo estabelecido pelo ser humano com tais avanos. Em diversas entrevistas, Tim Burton diz que prefere criar todos os cenrios em estdios e locaes sempre que possvel, dependendo das possibilidades fsicas em produzi-los e do oramento disponvel. Observando a afirmao do diretor em relao s limitaes impostas pelas finanas dos filmes, outra caracterstica importante do cinema atual se destaca: a produo e o consumo. J h algum tempo considerado como um produto da era capitalista, o filme faz parte de uma indstria lucrativa e disputada. Hollywood, a empresa mais bem sucedida na rea, o3 Fala de Tim Burton extrada de Peixe-Grande e Suas Histrias Maravilhosas: Comentrios do Diretor de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay. 23

centro da produo cinematogrfica e financiadora dos filmes, atravs dos grandes estdios, desde a dcada de 1920. O que ser produzido, como ser produzido, por quem ser feito e at mesmo os temas abordados, tornam-se determinaes dos comandantes dessa indstria cujo objetivo principal o lucro. A transformao do filme em produto acarreta em vrias influncias e empecilhos para o processo de criao dos diretores. Ainda assim, Tim Burton capaz de fechar contratos milionrios com os estdios mantendo seu gesto autoral, produzindo um cinema nico dentro da mquina hollywoodiana. Depois do lanamento do primeiro Batman (Batman, 1989), seu nome passou a ser atrativo para um pblico fiel, j que o filme trouxe notoriedade internacional ao nome do diretor, principalmente pelo recorde histrico de bilheteria em uma estria cinematogrfica. The Economist descreveu o Batman de Burton como o filme de maior sucesso financeiro do vero mais bem sucedido de Hollywood. Ele foi o primeiro filme na histria do cinema a arrecadar 100 milhes de dlares em dez dias (SMITH; MATTHEWS, 2002:83) claro que o relacionamento de Burton com os estdios no sempre tranqilo. Um caso de tenso entre o diretor e os empresrios da indstria a polmica que foi criada em torno do projeto Superman Lives (1996) um roteiro escrito por Kevin Smith4, contando a histria do Super-Homem. Burton foi convidado para dirigir a produo, porm suas mudanas no roteiro e na esttica do super-heri (a roupa do Super-Homem, por exemplo, seria preta aos moldes do protagonista de Edward, Mos de Tesoura) criaram conflitos com o roteirista e o projeto foi abandonado, aps o pedido de afastamento do diretor feito pelo estdio Warner (MEDEIROS, 2002).

4 Kevin Smith: o americano cartunista, ator, roteirista, diretor e produtor. Seu filme mais conhecido Dogma com Bem Affleck e Matt Damon. Kevin tambm conhecido como Silent Bob, personagem que representa em algumas de suas produes. 24

Grandes estdios realizam, em sua maioria, filmes que possam ser rentveis, j que a produo cinematogrfica bastante dispendiosa. Na tentativa de garantir o sucesso financeiro, normalmente, os estdios procuram roteiristas e diretores dispostos a criarem filmes usando a mesma receita daqueles que geraram maior renda, criando, assim, uma espcie de moda em Hollywood. Recentemente, no fim da dcada de 1990, uma grande onda de filmes de suspense atingiu as salas de todo o mundo, pelculas como Pnico (Scream, 1996), Eu Sei o Que Vocs Fizeram no Vero Passado (I Know What You Did Last Summer, 1997), A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999) so exemplos de filmes que seguem tendncias do mercado, tambm conhecidos como blockbusters. J no incio do sculo XXI, foi a vez dos heris dos quadrinhos: X-Men (X-Men, 2000), O HomemAranha (Spider-Man, 2002), O Demolidor (Daredevil, 2003) e O Incrvel Hulk (Hulk, 2003). Sobre isto, podemos observar que Tim Burton j havia se antecipado moda, ao lanar o j mencionado Batman em 1989 uma filmagem do famoso heri dos quadrinhos criado por Bob Kane em 1939 e, sendo um dos responsveis pela tendncia, como sugerem Jim Smith e J. Matthews (2002:84): Batman inquestionavelmente o filme de heri de maior influncia de todos os tempos. Ele iniciou a onda de dark blockbusters (...) e definiu a abordagem de filmes fantsticos por mais de uma dcada. Esta recusa de Burton pelas tendncias impostas pela indstria, ainda pode ser observada em outros exemplos: enquanto as telas eram invadidas pelos thrillers de suspense, Tim Burton lanou Marte Ataca! (Mars Attacks!, 1996) uma comdia sobre um ataque aliengena e, durante o domnio dos super-heris, Peixe-Grande e Suas Histrias Maravilhosas (Big Fish, 2003) um drama sobre a relao de pai e filho. Nos comentrios de Tim Burton em relao ao filme, ele diz que bom trabalhar em um projeto proposto por um estdio que no seja25

baseado em quadrinhos, figurinhas ou algo assim (Informao verbal)5. Esse tipo de negao aos padres estipulados no mundo hollywoodiano consegue estabelecer uma relao contraditria: mesmo se opondo s tendncias, Burton no as recusa completamente. Explorando formatos cinematogrficos que no se encontram no alvo da moda mas que j estiveram em alta em algum momento na histria do cinema o diretor acaba por lanar ou re-lanar tendncias. Exemplos disso so os filmes Batman (1989) e Marte Ataca! (1996). Ambos acabaram por despertar uma tendncia em Hollywood, o primeiro redescobriu a fora dos filmes inspirados em quadrinhos, tendo sido um dos filmes mais bem sucedidos em comercializao e merchandising da histria do cinema, como j foi dito neste captulo. Sobre esse caso, ainda podemos observar que a idia de lanar o heri Batman nas telas j era bem difundida no meio televisivo com uma srie de TV das dcadas de 1960 e 1970. O grande xito de Burton se deu pela forma obscura e sombria com a qual o heri foi apresentado, causando uma surpresa positiva para a maior parte dos fs do personagem que consideravam o Batman da TV uma ofensa ao trabalho de Bob Kane. J em Marte Ataca! (1996), o tema de aliengenas e ataques ao planeta tambm trazido com uma abordagem diferente da disseminada por Hollywood: ao invs de tratar os ataques como algo trgico e repleto de melodrama, Burton exibe a morte de maneira cmica e critica todos os filmes criados anteriormente com o mesmo tema ao apresentar uma soluo banal para salvar a humanidade, vindo da fonte mais improvvel na narrativa. Alm das modas impostas s narrativas de tempos em tempos, outro aspecto que domina o mercado de cinema so as grandes5 Fala de Tim Burton extrada de Peixe-Grande e Suas Histrias Maravilhosas: Comentrios do Diretor de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay. 26

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estrelas. Desde a Era de Ouro de Hollywood (Andrade, 2003), aproximadamente de 1920 a 1960, as estrelas de cinema ganharam um status de semideuses, uma espcie de realeza norte-americana, sendo admirados e adorados pelo grande pblico. Desde ento, a presena de uma estrela em um filme capaz de atrair um maior pblico e, conseqentemente, maior renda para seus executivos. Num processo inverso ao da maioria, Burton no um diretor conhecido por correr atrs de astros para seus filmes. Seu critrio de seleo visa encontrar atores com caractersticas que se encaixem nos roteiros e personagens, como declarou o ator Ewan McGregor (2004) em uma entrevista a BBC de Londres. Talvez por essa fama, se tornou comum que as prprias estrelas busquem trabalhos com o diretor, que tambm conhecido por manter parcerias com seus atores e equipe. Fica evidente outra caracterstica importante do diretor: sua predileo por trabalhar com amigos (EVANS, 2005), e muitas dessas relaes se destacam na repetio de profissionais ao longo de suas produes. Desde As Grandes Aventuras de Pee-Wee (PeeWees Big Adventure 1985), todos os filmes de Tim Burton tm a trilha sonora produzida por Danny Elfman exceto Ed Wood (1994) e a grande maioria tem Colleen Atwood como figurinista. Christopher Lee, Jeffrey Jones, Michael Keaton, Danny DeVitto, Jack Nicholson, Winona Ryder, Deep Roy, Helena Bonham Carter e Tim Roth so alguns dos nomes que aparecem duas ou mais vezes no elenco dos filmes assinados por Burton. Mas o nome que merece maior destaque o de Johnny Depp: o ator j protagonizou cinco filmes de Burton, incluindo sua ltima animao (A Noiva-Cadver, 2005), na qual o boneco do personagem principal, Victor Van Dort, foi construdo imagem e semelhana do ator que tambm responsvel pela dublagem de Victor. A valorizao do trabalho de Tim Burton tem como um dos motivos o fato de seus filmes atrarem o pblico no por serem29

estrelados por atores de sucesso ou por seguirem as modas cinematogrficas, mas sim por terem sido idealizados e realizados por ele. Seu filme mais recente, produzido pelo estdio Warner um dos maiores da atualidade leva o nome do diretor no prprio ttulo original, trata-se Tim Burtons Corpse Bride (A Noiva-Cadver 2005). O filme, somente no fim-desemana de estria, arrecadou mais de 20 milhes de dlares nas bilheterias americanas (GEIRMAN, 2005), valor que o transforma em um sucesso de pblico.

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Semelhanas, influncias ou apropriaesUma das caractersticas mais chamativas do trabalho de Tim Burton que nele possvel encontrar diversas caractersticas desenvolvidas ao decorrer da histria do cinema, provenientes de variadas pocas, movimentos e escolas. Com o objetivo de facilitar o seu estudo, a histria cinematogrfica foi dividida em correntes e escolas que se organizam de acordo com avanos tcnicos, tipos de linguagem e estilos de expresses cinematogrficas. As divises peridicas mais disseminadas e aceitas pelos estudiosos do cinema so: o primitivo, o clssico, as vanguardas, o moderno e, finalmente, o ps-moderno que tambm chamado de contemporneo ou, em alguns casos, maneirista. Algumas destas divises temporais mostram essas correntes como algo que existiu apenas em um perodo histrico especfico, mas importante ter em mente que um movimento no precisa cessar sua existncia para que outro acontea. O hibridismo do cinema ps-moderno exemplo disso por ser to recente, encontra-se dificuldade em defini-lo causando polmica entre os pensadores e crticos atuais que ainda no so capazes de classificar o cinema da atualidade, principalmente, por no ter o distanciamento temporal necessrio para uma anlise mais cientfica dessa corrente. Esta, no entanto, uma discusso que est fora dos objetivos e pretenses deste projeto e, portanto, 31

baseando-se na diviso mais comparaes deste trabalho.

comum

que

seguiro

as

Uma caracterstica latente no cinema atual que ele no tem o objetivo de romper com nenhum dos movimentos pr-existentes, ao contrrio, ele se torna uma unio de todas as correntes anteriores, dialogando com vrios aspectos desenvolvidos pela linguagem cinematogrfica ao longo de sua histria, sendo eles estticos, tcnicos ou narrativos. O rompimento do ps-moderno nica e exclusivamente com as normas, com o que separa uma escola de outra, ele uma interseo de todas as correntes sem se limitar a uma especfica. O cinema da atualidade um terreno frtil para a combinao, contraposio, permutao e descontextualizao de diversos elementos situados em variados segmentos espaos-temporais. Segundo Ferraraz (2001), baseando-se em Jameson, o psmoderno se caracteriza por um ecletismo muito grande de estilos, de formas, de paradigmas, numa arte que trabalha com estruturas esquizofrnicas6 (FERRARAZ, 2001:4). Afirmar que Tim Burton um artista ps-moderno significa que ele produtor de um cinema pluralista, que segue uma arte que no nega o passado, pelo contrrio, se apropria dele para criar o novo. Na arte psmoderna, o que j foi feito reaproveitado sob uma nova tica e forma de criao, ou seja, no cinema, aquele que arrebanha todas as escolas passadas e, a partir delas, produz um novo em uma espcie de pastiche. Segundo Dubois (2004), na dcada de 1980, o que se observa em diretores, tais como Francis Ford Coppola, Peter Greenaway, Lars Von Trier, Raoul Ruiz e diversos outros, o verdadeiro cinema do depois, feito por quem tem a ntida conscincia de ter chegado logo aps a criao de um ideal de perfeio, quase como se todas as possibilidades de experincia e inovao j6

Estruturas esquizofrnicas: grifo do autor 32

estivessem esgotadas. O desafio, colocado para o autor de cinema hoje, como filmar algo de forma diferente do que j foi feito, e ainda, a questo de qual objeto filmar. Assim, pode-se dizer que a histria do cinema se torna um peso para o autor cinematogrfico contemporneo que desafiado por ela em todo momento de criao. No entanto, sob outra perspectiva, ela pode se tornar uma infindvel fonte de inspirao. Da mesma forma que um cientista se torna mais apto a realizar pesquisas na medida em que aumenta seu conhecimento terico, um artista aumenta suas possibilidades criativas ao conhecer mais sobre sua arte. claro que esta analogia no implica que a criao artstica siga os modelos do processo cientfico, at porque, o sistema cartesiano tradicionalmente utilizado nas cincias no tem espao na arte hoje, principalmente aps tantos movimentos do sculo XX nos quais artistas, como Marcel Duchamp, lutavam contra a ditadura binria do belo e do feio, o bom e o ruim, o certo e o errado atualmente o processo comea a ser questionado at mesmo pelos prprios cientistas. Esta comparao apenas uma forma de tornar mais fcil a compreenso do acrscimo de possibilidades atravs do conhecimento, ou seja, o artista torna-se capaz de se apropriar de certas caractersticas por ele vistas e, a partir delas, se inspirar, criando algo nico. atravs deste hibridismo contemporneo que Burton explora suas capacidades criativas, re-moldando elementos j utilizados e transformando-os com a sua personalidade e gnio criativo. Sua esttica visual, por exemplo, possui caractersticas especficas, perceptveis at para o olhar mais desatento, o que torna possvel a identificao de seu gesto autoral.Cineasta inclasificable y libre de prejuicios, Tim Burton ha desarrollado a lo largo de su carrera cinematogrfica un catlogo de pelculas que en nada parece seguir los cnones33

comerciales que imperan en el cine manufacturado en serie en los Estados Unidos. Iniciado como animador en la todopoderosa Disney y siempre ligado a los grandes productores americanos, ha conseguido desarrollar su propia y original forma de hacer cine. Director de culto para algunos, incapaz de contar una historia de forma visual para otros, lo cierto es que en Burton encontramos uno de los mejores ejemplos de lo que se ha dado en llamar 'autora posmoderna', etiqueta donde se engloban cineastas como los hermanos Cohen, Tarantino, Cronenberg o David Lynch. (ARZA, 2004)

Sob o olhar da esttica de Burton, podemos encontrar similaridades com aspectos visuais de algumas das chamadas vanguardas cinematogrficas. Estas vanguardas so resultados de uma interao desenvolvida, no incio do sculo XX, entre o cinema produzido e a ascenso de vanguardas artstico-literrias. Tratava-se de um questionamento radical dos valores estticos tradicionais burgueses e procurava, entre outras coisas, atribuir novas funes linguagem artstica recorrente, explorando caminhos de representao que o prprio cinema viabilizava, buscando possibilidades, experimentando os limites desta mdia e tentando se distanciar da ditadura flmica que comeava a aparecer nos EUA. Um dos principais traos dessas vanguardas o desejo de exibir algo alm da viso considerada normal, extrapolar os significados dos objetos e dos acontecimentos percebidos pelo olhar humano, dando significaes alm do comum enraizado na percepo. Entre estes movimentos, o surrealismo e o expressionismo alemo so os que ganham maior destaque ao analisar a obra de Burton. Os surrealistas exploraram as associaes de imagens, fantasmas erticos e as pulses revolucionrias, representados na poca principalmente pelo cineasta Lus Buuel e o artista Salvador Dal. A esttica surrealista se baseou na transformao34

de sonhos em imagens, o filme Um co andaluz (Un chien andalou, 1928), realizado em parceria por Buuel e Dal, por exemplo, lana a proposta de uma narrao que no obedece a uma ordem ou lgica, que cultiva as rupturas, o onirismo, as imagens mentais, a confuso entre subjetividade e objetividade. Neste sentido, Tim Burton opta pelo caminho contrrio, mantendo sempre a linearidade no enredo ao contar suas histrias. O cineasta Federico Fellini (s.d.), diz que:Falar sobre sonhos como falar sobre filmes, j que o cinema usa a linguagem dos sonhos; anos podem passar em um segundo e voc pode pular de um lugar ao outro. uma linguagem feita de imagem. E no cinema de verdade, todo objeto e toda luz possui um significado, assim como nos sonhos.

O meio cinematogrfico, portanto, oferece ao artista alm da possibilidade de compartilhar imagens mentais o mesmo tipo de desprendimento existente nos sonhos, viabilizando a criao de uma realidade suspensa, flexvel, composta por mundos alucinados sem qualquer tipo de obrigao com a realidade. Consciente disto, Burton se aproveita desta possibilidade oferecida pelo cinema para criar atmosferas preenchidas por elementos extraordinrios e criaturas fantsticas livres da maioria das restries fsicas impostas pela vida real, explorando possibilidades imagticas, que, se no existissem os filmes, s poderiam existir se sonhadas ou imaginadas. A fuga da realidade tambm marca do expressionismo alemo, que teve sua realizao definitiva por intermdio de uma nova arte, o domnio da imagem em movimento, que deu vida a um mundo paralelo, povoado por vises subjetivas, misteriosas agitaes do inorgnico e profecias inquietantes sobre uma nova era (RUBINATO, 2006). O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Doktor Caligari 1919), de Robert Wiene, um marco dessa vanguarda,35

cujo trao mais marcante a oposio verossimilhana. A maquiagem, as roupas e o desempenho dos atores, com movimentos e expresses exageradas, participam na instalao de um universo fictcio, inquietante, com cidades labirnticas e de criaturas estranhas. Visualmente, caractersticas da arte gtica tomam lugar em cena, enriquecem e caracterizam o estilo esttico do movimento. Burton, como ele prprio afirma diversas vezes, tem um fascnio por esses elementos obscuros, estranhos e bizarros. Seus filmes e seus personagens, principalmente seus monstros, tm caractersticas exageradas, visuais expressivos que chocam individualmente, mas que so peas comuns dentro do contexto narrativo e no possuem uma conotao absurda. Um humor sombrio e sarcstico pode ser sempre percebido em seus filmes, uma caracterstica que desconstri os significados de senso comum e maniquesta, freqentemente atribudos aos monstros. Para a formao dessa expresso em cena, Burton valoriza um aspecto do cinema mudo: a capacidade do ator de se comunicar sem usar palavras. Ao comentar sobre a seleo de seus atores, repetidamente, afirma que precisa da qualidade de cinema mudo, a expressividade de uma cena na imagem e no no texto. Segundo Burton (2003), um dilogo, algumas vezes, fala muito sem dizer nada. Quando perguntado por Maxwell Bridiay sobre os comentrios de alguns crticos que afirmam que ele no sabe contar histrias e faz filmes apenas com apelo visual, Burton responde que o cinema um meio visual, h muitas formas diferentes de apresentar as coisas. Para mim, quanto mais formas para apresentar, melhor (Informao verbal)7. Seguindo para o aspecto narrativo das histrias, o diretor mantm caractersticas que so remetidas ao cinema clssico: a7 Fala de Tim Burton extrada de Peixe-Grande e Suas Histrias Maravilhosas: Comentrios do Diretor de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay. 36

linearidade, a lgica e a clareza. O encadeamento das cenas e das seqncias do clssico se desenvolvia de acordo com uma dinmica de causas e efeitos clara e progressiva. A narrativa centrava-se em geral num personagem principal ou em um casal (de carter bastante definido), enfrentando diferentes situaes de conflito. O desenvolvimento levava o espectador s respostas das questes colocadas pelo filme. Nesse aspecto, Burton mantm sua obra basicamente sob a narrativa clssica. Suas histrias possuem um carter linear lgico, os enredos so claros e diretos (sem nenhuma pretenso de confuso temporal) e um heri central que acompanhado durante o filme. O cineasta D. W. Griffith responsvel por criar, no cinema, a chamada narrativa clssica, utilizada at hoje pela maioria dos filmes , foi profundamente influenciado por romances dos escritores Charles Dickens e Fiodor Dostoievski. Segundo Guimares (1997), a narrao flmica clssica carregava a marca das grandes formas romanescas do sculo XIX interessante ressaltar que, alm desta forte influncia inicial, a literatura ainda se mostra muito presente no cinema ao inspirar assuntos, histrias e idias dos filmes, principalmente, quando estes so baseados em obras literrias. Na prpria filmografia de Tim Burton temos exemplos de adaptaes de romances e contos: Peixe Grande e Suas Histrias Maravilhosas (Big Fish, 2003) teve seu roteiro baseado em um romance de Daniel Wallace; Edward Mos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990) em um conto escrito pelo prprio Burton; A Fantstica Fbrica de Chocolate (Charlie and The Chocolate Factory, 2005) originalmente um livro infantil de Roald Dahl; e A NoivaCadver (Tim Burtons Corpse Bride, 2005) foi baseado em um conto popular russo. Sobre a narrativa clssica, ento, foi Griffith que, utilizando-se de critrios literrios, introduziu no cinema a idia de uma37

continuidade, definiu novos parmetros como a decupagem, a montagem, a escala de planos e as relaes entre o espao, cenrio, narrativa e som. A continuidade clssica gerou a constante homogeneizao do significante visual (cenrios, iluminao) e do significado narrativo (as relaes legendas imagens, o desempenho dos atores, a unidade do roteiro, a histria, o perfil dramtico e a tonalidade de conjunto), depois do significante audiovisual (sincronismo da imagem e dos sons palavras, rudos, msica). A introduo da linearidade modo pelo qual um plano se vincula ao plano seguinte despertou tambm o vnculo ao movimento (no gesto de um personagem ou no movimento de um veculo), o vnculo ao olhar (um personagem olha / enxerga-se o que ele enxerga) e o vnculo ao som (ouve-se um rudo em um plano, identifica-se sua fonte no plano seguinte). Todas essas tcnicas criadas pelo cinema clssico tm um nico objetivo: fazer com que o espectador se esquea do carter descontnuo do significante flmico, constitudo de imagens coladas umas sobre as outras. So elas as responsveis por proporcionar a sensao de realidade experimentada pelo espectador que assiste ao filme com a impresso de estar participando de eventos reais e testemunhando partes da vida de algum. esta caracterstica hipntica e ilusionista do cinema que responsvel por envolver o espectador no ambiente flmico e faz-lo esquecer-se de que o que est sendo projetado foi na verdade criado, pensado, cortado e novamente remontado antes de chegar tela. Este invlucro que faz o espectador se perder nesse mundo fictcio remete a outra qualidade do cinema: a magia. No surgimento do meio cinematogrfico, ele possua basicamente duas expresses: a documentao da realidade ou o ilusionismo. Esse segundo o que nos interessa ao falar de Tim Burton. Em38

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2001, Burton disse: parte do que eu gosto sobre o meio cinema que existe algo mstico nele. Quando o cinema apareceu pela primeira vez, as pessoas no sabiam como era feito e isso dava uma qualidade mgica aos filmes (Informao verbal)8. A experimentao visual e explorao dos efeitos ilusrios possibilitados pelo cinema foram inicialmente explorados pelo mgico Georges Mlis que, aps a primeira exibio cinematogrfica9, demonstrou interesse pela nova tcnica e, atravs de experimentaes, passou a produzir filmes que, alm de registros documentais de seus nmeros de magia, tambm exibiam tcnicas de efeitos especiais. Seu filme mais famoso, Viagem Lua (Voyage dans la lune, 1902), foi a primeira fico cientfica da histria do cinema e utilizava elementos fantsticos e ldicos, atravs dos efeitos especiais descobertos e desenvolvidos por ele. Neste sentido, o trabalho de Burton se aproxima especialmente com o trabalho do mgico francs: da mesma forma que Mlis seduzia seu pblico com elementos de magia, Burton exibe um reino de fantasia. Segundo Pommer (2003), a disponibilidade que o espectador manifesta de ser enganado decorre do fato de que ele entra num cinema (...) para recuperar o contato com um certo estado de coisas que nele produza emoes. sob essa atmosfera da iluso que Burton envolve seus espectadores e busca a produo de emoes mostrando em seus filmes o que na vida real seria impossvel e, misturando acontecimentos provveis com elementos absurdos, constri um mundo de significados reconhecveis e criaturas inusitadas. Alm disso, importante dizer que Burton se encontra diversas vezes com a histria do cinema, apropriando-se e recriando cenas filmadas por diretores que vieram antes dele. Em A Fantstica Fbrica de Chocolate (Charlie and the Chocolate8 9

Fala de Tim Burton extrada de Planeta dos Macacos: Comentrios do Diretor de 2001. A primeira exposio cinematogrfica foi feita pelos irmos Lumire, em 8 de dezembro de 1895, na Frana. Ela consistia em nada alm de cenas do cotidiano de carter documental. 41

Factory, 2005), por exemplo, possvel perceber uma referncia direta ao clssico filme 2001: Uma Odissia no Espao (2001: A Space Odyssey, 1968). A seqncia dentro da sala de TV da fbrica, alm de exibir algumas cenas do filme de Stanley Kubrick, apresenta o chocolate da mesma forma que o importante monlito negro do filme de 1968. A trilha sonora tambm vale ser mencionada, j que, na seqncia, a mesma do clssico de Kubrick. Outro exemplo Marte Ataca! (Mars Attacks!, 1996), no qual o diretor empenha-se em homenagear os filmes que fizeram parte de sua infncia. Alm de uma cena cmica dos aliengenas assistindo ao Godzilla (Gojira, 1954) na TV, o filme preenchido por pequenos detalhes que lembram alguns dos filmes lado b que Burton destaca como seus favoritos na juventude (como j foi mencionado no captulo I): os humanos, ao serem atingidos pelas armas dos marcianos, transformam-se em esqueletos agonizantes que se movimentam lembrando os soldados mostrados em Jaso e o Velo de Ouro (Jason and the Argonauts, 1963) e as naves dos extraterrestres so uma verso um pouco mais atualizada das naves apresentadas por Ed Wood no filme Plan 9 From Outer Space de 1959. Poderamos tambm considerar como uma referncia a The Brain that Wouldnt Die de 1962, a seqncia na nave aliengena em que Nathalie (Sarah Jessica Parker) e Kessler (Pierce Brosnan) so submetidos a experincias e perdem o corpo, sendo que suas cabeas continuam com funcionamento normal. Ao colocar todas estas homenagens em seus filmes, Burton, alm de se mostrar conhecedor do meio em que trabalha, ainda demonstra um respeito memria do cinema.

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A marca de um autorTim Burton deixa marcas que viabilizam a identificao de sua presena em cada um de seus filmes. Diferente de Hitchcock ou Salvador Dal, Burton no aparece literalmente em seus trabalhos, na representao de sua prpria imagem, mas ao assistirmos seus filmes facilmente apontado como o realizador. Um conjunto de caractersticas estticas e narrativas, que percorre toda a sua obra, cria o que poderamos chamar de assinatura do diretor. por este conjunto que os termos gesto autoral e autor de cinema foram remetidos a Burton neste estudo, expresses originrias do que chamado de cinema autoral. O cinema de autor uma expresso artstica que contm elementos inequvocos de seu criador (COVALESKI, 2003:49). Segundo Covaleski (2003), o conceito de autor de cinema mais complexo e profundo do que em outras formas artsticas. A variedade de linguagens utilizadas pelo cinema (imagem, som, movimento etc) exige que o cineasta seja aquele que se mostra capaz de interrelacionar e dialogar com diferentes formas de expresso. Alm disso, poderamos ainda apontar que o cinema exige que o cineasta dependa do trabalho de outros indivduos para a produo da sua obra, como por exemplo, o desempenho do ator, a qualidade profissional do editor, a habilidade do cameraman, entre outros que compem o conjunto de pessoas que acabam por interferir na produo do filme. Porm, estes sujeitos sempre seguem a regncia do diretor do filme, trabalham sempre de acordo com a viso do cineasta.43

No incio da dcada de 1950, surgiu a iniciativa, at ento indita, de se pensar o cinema. Um grupo de pensadores e crticos de cinema, reunidos por Andr Bazin e que ficaram conhecidos como Jovens Turcos10, criou uma nova filosofia cinematogrfica que foi chamada de a poltica de autores. A poltica propunha que o realizador de cinema autor deveria inserir no seu filme uma srie de caractersticas especficas e pessoais que possibilitassem o reconhecimento da assinatura da obra. Dentro desta ideologia, o cinema feito por um autntico autor aquele cuja obra possui um tom, uma unicidade que se estende, inclusive, prpria vida do criador. Franois Truffaut, um dos crticos da revista Cahiers du Cinma, vislumbrava um cinema feito por diretores que chegavam ao auge da pessoalidade no filme, colocando na tela referncias e assuntos que refletissem ao mximo a prpria intimidade. Em 1957, ele declara em seu Les films de ma vie (Os filmes da minha vida) que o filme de amanh me parece portanto como ainda mais pessoal que um romance individual e autobiogrfico, como uma confisso ou como um dirio ntimo. Os jovens cineastas se expressaro na primeira pessoa. (TRUFFAUT apud BERNARDET, 1994:21). Sobre isto, Bernardet diz: Esse o ponto crucial da poltica: autor aquele que diz eu. (BERNARDET, 1994:21). Sob esta perspectiva que afirma que o filme deve ser to pessoal, cria-se, ento, uma ntima relao entre o autor e sua obra que possibilita a identificao entre um e o outro, tornandoos inseparveis. Desta maneira, a obra se torna uma assinatura do autor (e vice-versa) que, segundo Bernardet (1994), pode ser percebida atravs de duas linguagens, chamadas de matriz e mise en scne. O cineasta autor apresenta seu gesto de forma evolutiva,10

Jovens Turcos: Conjunto de jovens crticos que escreviam para a revista francesa Cahiers du Cinma dos anos 50, que pouco depois se tornariam realizadores famosos, como Jean-Luc Godard, Franois Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmes, Jacques Rivette, Jean Doniol-Valcroze, expoentes da Nouvelle Vague. O redator da revista era Andr Bazin. (Bernardet, 1994, p. 9,10) 44

desenvolvendo sua marca gradualmente em sua matriz e mise en scne, e sua assinatura quase nunca est clara no primeiro filme havendo excees, como o caso do diretor Orson Welles, que conquistou o ttulo de autor j em sua primeira obra: o aclamado Cidado Kane (Citizen Kane, 1941). A matriz pode ser concebida como um determinado tema, moral ou assunto que percorre toda a obra uma espcie de linha repetitiva que se apresenta em cada pea como uma obsesso ntima, e de certa forma inconsciente, de seu criador. Matriz representada por repeties a serem identificadas em um conjunto de filmes de um mesmo cineasta (TAMARU, 2004:78). Ela um argumento usado sempre pelo autor, mesmo que, explorado de formas diferentes. A matriz deve ser entendida como algo que est presente no autor desde o incio de sua carreira cinematogrfica, ela algo que o artista precisa expressar, necessita dizer, mas no tem conscincia do que exatamente. Portanto, toda a sua obra caminha no sentido de descobri-la e este processo culminar na maturidade construtiva de um estilo nico e pessoal, o que Bernardet (1994) chama de cristalizao. A plenitude da realizao da matriz permite sua percepo at mesmo em obras anteriores a essa cristalizao, gerando uma espcie de panorama didtico das etapas de todo o processo de desenvolvimento da linguagem do cineasta.O encontro da matriz pelo cineasta e pelo crtico se d por caminhos paralelos. O autor vai buscando a matriz at o momento da cristalizao; o crtico segue as pegadas do autor, chegando, depois dele, percepo dessa cristalizao. A partir do momento em que a matriz encontrada, ela passa, para o crtico, a ter um efeito retrospectivo (...) que vai permitir dizer que j estava presente, mas ainda, digamos, fora de foco porque o cineasta se buscava. (BERNARDET, 1994:34,35.)45

Para compreender a matriz burtonesca necessrio um estudo e uma anlise mais detalhada da obra de Tim Burton, o que ser feito no prximo captulo deste projeto. Entretanto, ao assistirmos seus filmes, j podemos apontar diversos elementos que fazem parte de um conjunto de repeties que figuram as narrativas do diretor. Analisando o contexto de todas as histrias apresentadas por Burton, a sua produo revela uma seqncia de elementos que retratam uma viso pura e livre de preconceitos a respeito dos acontecimentos. Seus heris so sempre sujeitos diferentes que se encontram deslocados em um espao no qual, muitas vezes, se vem obrigados a habitar. Atravs dessa inocncia do olhar e da percepo do mundo, Burton conta histrias que transparecem uma viso infantil para acontecimentos de gravidade psicolgica adulta, sendo esta sempre representada em seus protagonistas e heris. A infantilidade, aqui colocada, no se refere a histrias contadas para crianas, ao contrrio, os filmes de Burton no se configuram como infantis. Por apresentar imagens sombrias, escuras e algumas vezes assustadoras, Burton traz para os seus filmes um clima de seriedade e maturidade em sua esttica. Porm, aps uma anlise mais cuidadosa, podem-se detectar histrias que demonstram elementos do imaginrio infantil: a liberdade pueril em aceitar novidades e diferenas, alm da fascinao e a curiosidade por entender o novo. Muitas vezes, as crianas nas histrias so dotadas de maior racionalidade que os prprios adultos, ressaltando, assim, a pureza e inocncia existente em seus excludos. Essa maneira pura e aberta de ver elementos bizarros destaca o posicionamento em relao aos monstros nos filmes, que so sempre tratados com mais justia em comparao aos contos infantis. Burton parece empenhado em perseguir o ideal de mostrar o outro lado da histria. No intuito de ilustrar a46

hostilidade com que a sociedade ocidental cria e trata seus medos, e como ela transforma o estranho em vilo, Burton utilizando-se sempre do humor sarcstico e afiado inverte os papis e transforma os monstros em mocinhos. Ele nos mostra o monstro como uma vtima de uma srie de desventuras, acontecimentos que fogem ao seu controle, que o transformaram em uma figura desajustada e fizeram com que ele seja incapaz de se adaptar aos padres construdos no contexto social em que vive. O Edward de Edward, Mos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), por exemplo, resultado das experincias de um cientista que morre antes de terminar a sua obra, deixando o personagem incompleto com tesouras no lugar de mos. Em um conto infantil tradicional, Edward seria um excelente candidato a vilo de escritores como os irmos Grimm ou Hans Christian Andersen, porm Burton no o coloca como vilo, mas sim como a vtima. Neste caso, a narrativa do filme de aproxima do monstro criado e manipulado pelo Dr. Frankenstein no livro de Mary Shelley lanado em 1831 o personagem Edward, assim como o personagem de Shelley, se torna vtima da fria dos nativos do local onde a histria narrada. Vale lembrar que alguns anos antes, em 1984, o clssico de Shelley tambm foi referncia para Burton na criao do curta-metragem Frankenweenie (1984). O filme faz uma releitura da histria do livro, transformando o monstro da autora em um co e o cientista em um garoto que faz seu animal de estimao retornar vida depois de um atropelamento. Sob o contexto que explora a inverso de papis, alguns assuntos, considerados tabus, tambm so constantemente tratados pelo cineasta. A morte, por exemplo, se apresenta em todos os filmes de Burton. Algumas vezes retratada com apelo emocional como em Batman (Batman, 1989) e Peixe-Grande e47

Suas Histrias Maravilhosas (Big Fish, 2003) e, outras vezes, como algo trivial e cmico como em Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem (Beetlejuice, 1988) e Marte Ataca! (Mars Attacks!, 1996). Outro tema recorrente o conflito entre pais e filhos. Neste sentido, Burton explora de diversas formas as influncias do relacionamento familiar na estrutura psicolgica do indivduo sendo que, em todos os seus filmes, um de seus excludos possui traumas ou relaes problemticas com pelo menos um dos progenitores. Segundo S (1974), em todo filme posto em pauta uma ou algumas problemticas humanas o bem, o mal, o amor, a morte o que varia de acordo com as perspectiva de quem os realiza, com a matriz de seu autor. Muitos deles buscam fazer refletir sobre a condio humana, como no caso de Burton. Exibindo sua matriz em um mundo fantstico e diferente, Tim Burton se preocupa em retratar um mundo recheado de conceitos prprios e livre das limitaes da realidade concreta, mas mantendo uma similaridade com questes naturais da realidade de cada espectador de cinema. Os ambientes e os personagens das narrativas de Burton so uma espcie de caricatura, uma mistura inusitada esteretipos, mesclados com vrios aspectos cotidianos do mundo real. Os contextos e personagens so alimentados por caractersticas improvveis sob a anlise cientfica.Fico surpreso com as pessoas que so muito prticas ou bitoladas. O que real e o que no ?. Se voc observar a vida, vai ver coisas estranhas. Quem imaginaria que Arnold Schwarzenegger (ator) seria Governador da Califrnia? Isso real ou no ? Realidade um mundo estranho. o que eu adoro nos contos populares e nos contos de fadas. Voc acha mais realidade neles se isso o atingir em um nvel emocional. Voc v as notcias e tudo48

parece surreal e irreal. Sempre considerei a vida uma mistura dessas coisas. (BURTON, Informao verbal)11

essa mistura de realidade com fantasia que forma um conjunto cinematogrfico que apresenta questes humanas em uma viso maravilhosa. A variao entre estes elementos possveis e fantsticos se torna evidente nas imagens em toda a sua obra. E justamente essa evidncia que nos leva a refletir sobre outra caracterstica importante para um realizador do cinema de autor, a mise en scne. Em uma interpretao simples e literal, a mise en scne , precisamente, a forma colocada em cena. Ela a maneira que o autor de cinema encontrou para expressar, demonstrar fatos e produzir sensaes atravs da tela, ela constitui toda a linguagem visual utilizada. A mise en scne e a matriz devem ser vistas como dois elementos que se complementam, sendo impossvel que uma acontea sem a outra. A mise en scne torna possvel a expresso da matriz, e vice-versa. necessrio extrapolar os limites do conhecimento tcnico e material em prol da percepo do importante papel que o cinema possui como mecanismo de produo de sentido, portanto, a valorizao da mise en scne no deve se basear em argumentos tcnicos, e sim nos significados agregados obra por uma determinada tcnica, ou seja, o objetivo pelo qual uma habilidade tcnica foi usada e seus efeitos no produto final. Os planos, os cortes, os cenrios, os ngulos, as expresses, as cores so as partes que em conjunto formam a mise en scne. As cenas coloridas, quase que como pintadas mo, to freqentes nos filmes de Tim Burton, chamam ateno ao serem contrastadas com os elementos gticos amplamente explorados por ele estes de qualidade obscura e enevoada destacando,11 Fala de Tim Burton extrada de Peixe-Grande e Suas Histrias Maravilhosas: Comentrios do Diretor de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay. 49

mais uma vez, a diferena e apoiando a sua matriz. A formao de seus monstros e as expresses de seus excludos possui uma espcie de essncia visual semelhante, segundo Rick Baker, so personagens plidos, de pele muito clara, com grandes olheiras e cabelos arrepiados (Informao verbal)12. No geral, faces que expressam uma idia de desamparo, inocncia e um ar melanclico. Diversos exemplos poderiam ser apresentados para caracterizar a mise en scne de Burton, pois em toda a sua obra possvel encontrar texturas, cores, tcnicas e elementos estticos que se tornaram recorrentes, elementos que ganham significados variados em cada contexto complementando o valor expressivo de cada cena e compem a idia matricial. Mesmo em filmes em preto-e-branco, como Ed Wood (Ed Wood, 1994), a animao Vincent (Vincent, 1982) ou Frankenweenie (Frankenweenie, 1984), as tonalidades usadas, os cenrios e o figurino formam o estranho caracterstico do universo imaginrio criado por Burton. A composio da mise en scne ser melhor e mais amplamente explorada no captulo 6 deste projeto. No momento, iremos apenas destacar algumas caractersticas curiosas que so repetidas constantemente nas imagens burtonescas. Algumas delas podem caracterizar-se como uma fixao visual do autor, quase como uma brincadeira do cineasta: estampas em espiral, pontos e listras aparecem, mesmo que apenas por segundos, em todos os filmes; espantalhos e esqueletos sempre encontram espao nas histrias; geringonas, maquinrios de funcionamento arcaico, so freqentemente apresentados. A unio da mise en scne com a matriz compe as diversas realidades construdas por Burton que, por mais fantasiosas ou bizarras que sejam, valorizam aspectos humanos e criam uma impresso de real dentro de uma constante variao entre12 Fala de Rick Baker extrada de Planeta dos Macacos: O Making of dos Macacos Cara de Macaco de 2001. 50

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possveis realidades e extremos absurdos. Elas se deslocam a todo o momento frente aos olhos do espectador, e toda a fascinao esttica provocada por esse fluxo de energia criativa conta com o contrato da fico, ou seja, a suspenso da descrena por parte do espectador. A construo dessa realidade ficcional percorre um nmero infinito de signos do cotidiano criando a afinidade do espectador com as questes apresentadas. Estas novas realidades trazem a assinatura de sua produo artstica no ambiente cinematogrfico. A arte das imagens em movimento, mais do que a fotografia, o teatro ou a pintura, transmite o sentimento de assistir diretamente a um espetculo quase real. Segundo Metz (1972), este ar de realidade atua diretamente sobre o cerne da percepo humana. A impresso de realidade do cinema, fundamentada na idia do movimento, surge como um elemento capaz de gerar credibilidade especial a esse tipo de arte.Uma das razes de no gostar de analisar muito os filmes deixar as pessoas decidirem o que quiserem sobre eles. Bem, quando eu assistia Frankenstein, eu via como se fosse sobre Burbank (cidade natal), os aldees furiosos eram os meus vizinhos. Todos vem filmes de maneiras diferentes, eu gosto disso. As pessoas ficam muito literais na vida e isso o que eu tento reagir contra. Deixe as pessoas pensarem coisas da maneira que querem, se eles acreditam em algo, deixe-os. Eu gosto de saber o que as pessoas pensam (sobre os filmes) porque isso mostra muito sobre quem elas so e de onde elas vm. (BURTON, Informao verbal)13

O estranho mundo de Tim Burton a oscilao entre uma representao de um mundo possvel com extremos inslitos, cujos elementos formadores so: um estranho, representado em13

Fala de Tim Burton extrada de Planeta dos Macacos: Comentrios do Diretor de 2001. 53

um personagem, no ambiente ou em um fenmeno, cercado de um contexto familiar e identificvel que confunde o espectador a ponto de se envolver naquela fantasia como que em uma nova realidade. Apresentado em imagens contrastantes de clareza e obscuridade. Portanto, Tim Burton um autor de cinema, o autor de um estranho mundo cinematogrfico ligado s questes do imaginrio humano e, ao mesmo tempo, realidade do mundo. Como Burton mesmo afirma, mais fcil encontrar realidade no mundo dos contos de fadas do que nas notcias de jornais, desde que este conto o atinja pelo emocional. Assim, esses elementos visuais e narrativos que se repetem e se complementam, constroem e solidificam a autoria de Tim Burton, enriquecendo seu trabalho com caractersticas nicas e exclusivas. Apontar quais so esses traos, como eles se apresentam e quais so seus objetivos, so as metas seguintes deste estudo. Desta forma, definiremos, nos prximos captulos, alguns dos principais componentes da obra de Tim Burton, porm, sem nenhuma pretenso de abordar plenamente todos seus aspectos e possibilidades, trabalho que se mostraria impossvel para este projeto experimental devido magnitude da obra do cineasta.

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Dissoluo do sujoAps definir Tim Burton como um realizador de cinema autoral, preciso esclarecer alguns aspectos do que est sendo chamado de autoria na obra burtonesca. Como j foi dito no captulo anterior, de acordo com Bernardet (1994), as duas facetas mais importantes a serem observadas no cinema de autor so a matriz e a mise en scne, sendo que a primeira, essencialmente subjetiva, se realiza na segunda, essencialmente objetiva. Portanto, correto afirmar que uma no existe sem a outra. No entanto, optamos aqui por separ-las em dois captulos para que seja mais fcil a exposio cada uma delas, mas tendo em mente que, assim como nos filmes, ambas necessitam estar juntas no processo de leitura para que sejam completamente compreendidas. O presente captulo buscar o que compe a matriz de Burton sendo que, para isso, nos colocaremos no papel de crticos e seguiremos os passos do autor em busca da identificao do seu tema recorrente de modo que, no prximo captulo, possamos demonstrar como as descobertas aqui feitas se do na esttica cinematogrfica. Tendo definido que a matriz o argumento que se repete na obra de um autor, deve-se considerar que ela desenvolvida de acordo com o amadurecimento artstico da expresso do mesmo, sendo parte de um processo que acontece de forma natural e inconsciente. Por conseqncia, a matriz no exposta com muita clareza no primeiro filme do cineasta e, na maioria dos casos, sua apresentao acontece gradualmente e aparece com o avanar dos anos na carreira de um diretor, provando que ela , de fato, uma evoluo, um alvo que o artista deve alcanar. Por este55

motivo, esta anlise seguir a seqncia cronolgica da obra de Burton para demonstrar o processo de evoluo da sua matriz. O trabalho para identific-la como se depusessem os filmes uns sobre os outros para verificar o que h de coincidente neles (TAMARU, 2004:78). Segundo Maxwell Bridiay (Informao verbal)14, Tim Burton apresenta uma predileo pelo estranho, pelo forasteiro, pelo desajustado e pelo no compreendido. Tal predileo ser a linha guia na busca pela matriz burtonesca, analisando a forma na qual esta estranheza se apresentou no desenvolvimento de sua obra. Bauman (1998) diz que o estranho aquele que vem destacar, em uma sociedade, a fragilidade dos cdigos ticos, padres morais e comportamentais criados pela mesma. Os princpios que guiam a criao destes preceitos objetivam garantir a ordem e a pureza. Baseando-se em Freud, Bauman (1998) explica que o ideal da civilizao percorre trs conceitos que se relacionam diretamente: ordem, pureza e beleza. Este ltimo, tambm chamado de harmonia, a conseqncia dos dois primeiros, que, por sua vez, no existem separadamente. Com o propsito de atingir estes trs ideais, uma sociedade cria padres, regras e categorias para os indivduos que servem de guia para que os inseridos naquele contexto reajam s situaes de forma planejada e esperada.A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que tm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de relao social em ambientes estabelecidos nos permitem Fala de Maxwell Bridiay extrada de entrevista feira com Tim Burton em Peixe Grande e Suas Histrias Maravilhosas: Comentrios do Diretor de 2003.5614

um relacionamento com outras pessoas previstas sem ateno ou reflexo particular. (GOFFMAN, 1988:11,12)

Para Simmel (1983), esta regulamentao acontece a partir de um cdigo de comportamento que nasce como formao natural do grupo, so inicialmente costumes que produzem morais e, em alguns casos, leis. Esta padronizao do comportamento limita a liberdade e variedade de atitudes individuais, o que garante um controle maior sobre os acontecimentos, alm de um grau de previsibilidade das aes. Uma vez que se espera que todos sigam formas pr-definidas para a interao do grupo, criada uma estabilidade nas relaes, ou seja, um invlucro de segurana em torno do ambiente social. Ordem significa um meio regular e estvel para os nossos atos; um mundo em que as possibilidades dos acontecimentos no sejam distribudas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita (BAUMAN, 1998:15). Em uma sociedade ocidental, por exemplo, so alguns referenciais como no roubar, no matar e no trair, que definem uma tica a ser seguida. Esta regulamentao determina como as coisas devem ser feitas e onde devem ser dispostas. Quando estabelecido o posicionamento adequado de cada componente do sistema, conclui-se que, caso um indivduo se encontre em qualquer lugar diferente do que lhe foi convencionado, ele ser, automaticamente, contrrio ordem ou seja, um desequilbrio na harmonia social. Ordem uma situao na qual cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro (BAUMAN, 1998:14). Sem ordem, se torna impossvel conceber o ideal da pureza, pois esta depende diretamente de que as coisas estejam em seus lugares justos. Quando um indivduo causa um desequilbrio na ordem, conseqentemente, produz uma impureza.

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No so as caractersticas intrnsecas das coisas que as transformam em sujas, mas to-somente sua localizao e, mais precisamente, sua localizao na ordem de coisas idealizada pelos que procuram a pureza. As coisas que so sujas num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar e vice-versa. (BAUMAN, 1998 p.14)

Partindo do princpio de que sujeira refere-se a todas as coisas que esto onde no deveriam por exemplo, caf em um copo est onde pertence, mas quando cai em uma camisa sujeira uma impureza pode facilmente se tornar limpa quando colocada em seu lugar designado. Entretanto, alguns indivduos no possuem um lugar pr-definido, eles so sujeiras sociais em qualquer contexto que se encontrem. O sujeito que no segue o mapa social, ou no faz parte dele, visto como uma sujeira (impureza) que ameaa o ideal traado. Uma sociedade pura, ou seja, livre de sujeiras, aquela que contm apenas o que lhe foi planejado: sujeitos que compartilhem os mesmos valores, sigam as regras e se comportem como foi definido. Aquele que se difere, o sujo tambm chamado de estranho, estrangeiro, forasteiro, deslocado entre outros nomes , necessariamente, peculiar, inusitado e diferente no ambiente e, por esse motivo, destoa do resto grupo. O estranho social se manifesta no momento em que no compreende ou no compartilha do mesmo cdigo de valores implcitos em determinada sociedade, sejam eles morais, comportamentais ou, at mesmo, visuais. Estas caractersticas do estranho o transformam em algo que pe em risco, mesmo que involuntariamente, a validade das regras. O deslocado reala o cerceamento da liberdade feito em busca dos ideais da pureza e da ordem.(...) A chegada de um estranho tem o impacto de um terremoto. (...) O estranho despedaa a rocha sobre a qual58

repousa a segurana da vida diria. Ele vem de longe; no partilha as suposies locais e, desse modo, torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questo quase tudo o que parece ser inquestionvel para os membros do grupo abordado. (BAUMAN, 1998, p. 19)

essa estranheza que Tim Burton aborda em sua obra: o diferente incompreendido que assim o por possuir outros valores ou parmetros, e as reaes que ele causa em uma sociedade em busca de harmonia. O filme As Grandes Aventuras de Pee-Wee (Pee-Wees Big Adventure, 1985) primeiro longa-metragem de Burton conta a histria de um garoto chamado Pee-Wee, cuja nica preocupao na vida sua bicicleta, que roubada no incio da narrativa. Para recuper-la, ele quebra diversas regras como, por exemplo, invadir um estdio de Hollywood para roub-la de volta. O personagem vive em um mundo de sonhos e todas as pessoas que cruzam seu caminho na jornada de busca pela adorada bicicleta, parecem elementos tirados de folclore ou contos de fadas. No final, ele ganha popularidade e aceitao social quando o estdio compra a histria de sua aventura e a transforma em um filme. J em Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem (1988), o estranho domina a tela atravs de uma mistura entre o alm e o mundo dos vivos. O casal de protagonistas, Adam e Brbara, fica preso em sua prpria casa aps falecer em um acidente de carro, e o enredo consiste em mostrar a disputa territorial travada pelos mortos com os novos proprietrios do imvel. Segundo as regras da sociedade retratada no filme, aquela casa no pertence mais aos finados proprietrios, j que, ali, os mortos no tm direito a posses materiais. Na tentativa de recuperarem sua casa e expulsarem os vivos do local, Adam e Brbara recorrem ao estranho exorcista de vivos chamado Besouro-Suco (Betelgeuse). Ele excludo do mundo dos mortos por no possuir escrpulos59

e burlar a burocracia existente no alm burtonesco. No fim da histria, os mortos e os novos donos entram em acordo para se livrarem de Betelgeuse e proteger Lydia, a filha do casal vivo, que se v presa s garras do exorcista. Analisemos mais detalhadamente o exemplo de Edward Mos de Tesoura de 1990, um dos primeiros estranhos de Burton. Na histria, o protagonista Edward (Johnny Depp) esteve, durante toda sua existncia, enclausurado em uma manso, tendo gozado exclusivamente da companhia do homem que o construiu (a quem chama de pai). Seu criador a nica referncia de mundo e de convivncia em sociedade que ele possui, tendo sido seu nico tutor no que diz respeito ao ensino de valores e formas de conduta, tais como regras de etiqueta, cultura geral e formas de interao em ocasies sociais. Porm, apesar destas aulas, Edward nunca tinha tido a chance de coloclas em prtica, at que levado ao convvio dos moradores de Suburbia. Segundo a descrio de um psiclogo no filme, os anos passados em isolamento no o [Edward] equiparam com as ferramentas necessrias para distinguir o certo do errado. Ele no teve contexto, viveu sem orientao nenhuma (Informao verbal)15. Sua chegada a Suburbia chama a ateno dos habitantes que o avaliam atravs de suas habilidades sociais e o aprovam. A princpio, ele no representa nenhum perigo ordem local, j que demonstra um certo traquejo social e nenhuma de suas atitudes atenta contra os ideais daquela comunidade. Fisicamente, ele foi construdo, uma mquina com aparncia humana e tesouras no lugar de mos, apesar disso, a aparncia no configura um elemento relevante quela comunidade. No decorrer da narrativa, apesar dos esforos para se adaptar ao funcionamento daquela sociedade, algumas caractersticas de15 Trecho extrado do dilogo entre um psiclogo e um policial sobre Edward, no filme Edward Mos de Tesoura de 1990. 60

Edward comeam a se mostrar como falhas morais. Ele, por exemplo, no possui renda, nunca trabalhou e no registrado no possui documentos como carteira de identificao ou registro social o que o impede de se inserir economicamente naquela comunidade. A posse de bens materiais, ali, um valor importante, ela faz parte do perfil do indivduo planejado para o grupo e deve ser conquistada atravs da remunerao pelo trabalho. Em certo momento da histria, Edward arromba uma casa, o que leva os moradores (erroneamente) a crerem que a inteno do personagem era roubar ou seja, adquirir posse de coisas conquistadas pelo trabalho de outros. Este ato representa um atentado a um valor social e um abalo segurana, portanto, precisa ser extirpado para que aquele grupo seja puro e assptico. Instala-se, ento, um desequilbrio na ordem de Suburbia e, como nos mostra a teoria de Bauman, o responsvel por este desequilbrio deve ser expurgado em prol da reinstalao da assepsia social. Edward, a partir deste momento, passa a ser rejeitado pelo grupo e tomado pelos habitantes como aquele que representa uma sujeira: o estranho. Uma seqncia de fatos ocorridos aps o incidente da invaso potencializa a idia da sujeira em Edward e, a partir de ento, todos os seus atos so interpretados como nocivos, como se seu nico objetivo ali fosse ferir a ordem.Um indivduo que poderia ter sido facilmente recebido na relao social quotidiana possui um trao que pode-se impor ateno e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de ateno para outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma caracterstica diferente da que [ns, normais] havamos previsto. (GOFFMAN, 1988:14)

Edward, assim, estigmatizado se torna imprprio para o convvio naquela comunidade e deve ser removido para que a61

normalidade seja restaurada. Como conseqncia, a populao se torna agressiva e exige uma ao policial (o poder que rege as regras sociais e garante a ordem) contra Edward. Na seqncia final do filme, sob a justificativa de defesa de sua prpria segurana, todos os moradores da regio perseguem Edward de volta ao seu refgio inicial e s retornam sua rotina quando so levados a crer em sua morte. Edward pode ser definido como um tpico estranho moderno. Mesmo que a referncia ao estado representado na polcia aparea poucas vezes, a histria de Edward Mos de Tesoura (1990) demonstra reaes tomadas pela prpria sociedade em defesa da ordem que seriam definidas como a estratgia da excluso. Tal estratgia se refere ao processo de retirar os estranhos do convvio administrvel, afast-los, bani-los dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicao com os do lado de dentro (BAUMAN, 1998:29). Algumas vezes, quando esse estranho no pode ser apenas afastado ou assimilado, preciso destru-lo fisicamente. A necessidade de excluir Edward daquele convvio justifica a atitude agressiva dos moradores. E, enfim, a tranqilidade regressa quando so informados que a ameaa deixou de existir. A forma que Edward exposto na histria faz com que o espectador se coloque em seu lugar e deixe de v-lo como estranho, esquecendo tanto sua falta de referncia quanto sua aparncia bizarra. Ele induzido a ver o estranho como vtima e os moradores como ameaas, invertendo os papis do que seria natural na viso social. Em uma das cenas finais do filme, Peggy diz a sua filha:Sabe, quando trouxe o Edward para viver conosco eu realmente no pensei direito. No pensei nas conseqncias para ele, ou para ns, ou a vizinhana. E agora penso que talvez seja melhor que ele se v. Volte62

para l. Pelo menos l ele estar a salvo. E ns voltaramos vida normal. (em Edward Mos de Tesoura, 1990)16

Quando Peggy afirma que Edward precisa estar longe para sua prpria segurana, ela coloca em jogo a prpria idia de sujeira em Edward mostrando a possibilidade de que, para o estranho, toda aquela sociedade seja suja, ou, at mesmo, que o estranho no seja to sujo assim. Ele apresentado com sentimentos puros, inocncia e correndo perigo por causa da impureza dos moradores de Suburbia, fazendo crer que estes que possuem valores distorcidos e no compreendem o personagem. Apresentado sob um olhar invertido, Edward, para o espectador, aquele que possui valores reais e padres que deveriam ser valorizados em uma sociedade, transformando os habitantes em viles precipitados e ameaadores. Apesar disso, ele ainda facilmente apontado como estranho na narrativa e , primordialmente, uma pea fora do lugar. Percorrendo toda a obra de Burton ainda possvel encontrar outros estranhos como, por exemplo, um heri que, mesmo sendo um sujeito inserido socialmente, se transformou em um justiceiro para defender a segurana j que os rgos competentes no foram capazes de garanti-la (Batman de 1989 e Batman, o Retorno, 1992). Assim, ele elimina os estranhos da sociedade, mas, ao mesmo tempo, se transforma em um. Em todos os filmes de Burton, possvel identificar um estranho, no entanto, Edward definitivamente o estranho mais bvio em sua obra, caricato e excludo. Portanto, se definssemos a estranheza como a matriz de Burton, poderamos concluir que Edward Mos de Tesoura (1990) a cristalizao da sua matriz. Entretanto, o processo da16

Trecho extrado do dilogo entre a personagem Peggy, interpretada por Dianne Wiest, e sua filha Kim, interpretada por Winona Ryder, no filme Edward Mos de Tesoura de 1990. 63

matriz burtonesca no se resume na apresentao do estranho social e sim, na dissoluo deste estranho dentro de um conjunto social. Ela baseada no abrandamento do desajustado: ele apresentado claramente nos seus primeiros filmes, mas, de forma gradual, diludo, sendo cada vez mais difcil identific-lo no contexto narrativo. Esse processo ilustrado pela inverso de papis, colocando os estranhos como heris nas narrativas, mostrando as impurezas das sociedades apresentadas e amenizando a obviedade visual dos estranhos. Edward, portanto, parte do incio do processo matricial em Burton. O filme seguinte de Tim Burton, Ed Wood (1994), destoa um pouco do conjunto da obra burtonesca, pois o nico longametragem filmado em preto-e-branco e uma histria biogrfica com personagens reais que, apesar de suas diferenas, tambm colabora no processo de reconhecimento da matriz em Burton. A narrativa sobre a vida de Edward D. Wood Jr. (interpretado por Johnny Depp), que almejava o reconhecimento pelo seu trabalho como diretor e confiava na qualidade de sua obra. Na narrativa, o personagem demonstra uma viso diferente da realidade, principalmente se tratando dos padres de qualificao da arte cinematogrfica e, apesar de pssimas crticas e fracassos seqenciais, ele acreditava ser um vanguardista que deixaria um legado a ser reconhecido aps sua morte. Algumas caractersticas da vida pessoal de Wood o tornam mais peculiar, como, por exemplo, sua necessidade de vestir roupas femininas para se acalmar, motivo pelo qual sua namorada o abandona. Esta atitude de Ed repudiada pela moa, que considera o hbito anormal e bizarro, desaprovao que piora quando a garota percebe que os amigos do cineasta no se importam: so um bando de aberraes, exclama. Ed Wood passou sua vida se esforando para conquistar um lugar no mundo dos grandes diretores, acompanhado por um64

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grupo amigos que, de alguma forma, tambm falharam na busca pelo sucesso em Hollywood, com maior destaque para o ator Bela Lugosi, interpretado por Martin Landau. A histria mostra a decadncia de Bela Lugosi na sociedade hollywoodiana: aps sua excluso devido ao vcio em drogas, ele foi abandonado pela esposa, no conseguia mais papis em filmes (o que o levou a falncia) e at o tratamento para a dependncia qumica lhe fora recusado, pois ele no foi capaz de pagar a aplice do seguro de sade. O desejo desesperado pela fama bem ilustrado na seqncia que Bela, antes de ser expulso do hospital, est cercado por reprteres e fotgrafos em seu leito. Ed chega e os expulsa do local para o choque do amigo. Ento, Bela pergunta a Ed porque ele os havia espantado e diz:Bela Lugosi: Aps todos estes anos, a imprensa se interessa de novo em Bela Lugosi. Ed Wood: Eles so parasitas. S querem explor-lo. Bela Lugosi: timo, deixe que explorem. No existe m publicidade, Eddie. O homem de Nova Iorque at disse que vou aparecer na primeira pgina! A primeira celebridade a se internar para reabilitao. Quando eu sair daqui, estarei saudvel, forte, pronto para retornar [a atuar]. (em Ed Wood, 1994)17

Todos os personagens do filme so caracterizados como estranhos no meio cinematogrfico, mas, em conjunto, formam um grupo com valores semelhantes, sendo que todos compartilham do mesmo desejo de se inserir no mundo do show business. Segundo Bauman (2001), esta proximidade do grupo acontece porque as semelhanas existentes so significativas o bastante para que o impacto das diferenas seja superado. Essa17

Trecho extrado do dilogo entre o personagem Bela Lugosi, interpretado por Martin Landau, e Ed Wood, interpretado por Johnny Depp, no filme Ed Wood de 1994. 67

similaridade de valor faz com que o espectador, apesar de ver estranheza em cada personagem individualmente, perca a noo de sujeira existente no grupo em relao Hollywood. O filme foca na vida deste grupo e como ele interage na luta em busca do sucesso, levando o espectador a torcer para que cada um dos personagens atinja seus objetivos. Na seqncia final do filme, informado o fim de cada membro deste grupo marginal, sendo que a maioria conquistou o sucesso, mas de maneira diferente da desejada por eles, atravs da incapacidade de produzir algo de qualidade. Ed Wood o maior exemplo de fama entre eles, o cineasta , hoje em dia, conhecido mundialmente como o pior diretor da histria de Hollywood18. Comparando Edward Mos de Tesoura (1990) com Ed Wood (1994), pode-se perceber que o estranho perde um pouco a obviedade, sendo transferido de um personagem especfico (Edward que possui caractersticas nicas) para um grupo de estranhos (Ed Wood e seus companheiros). Portanto, em um processo um pouco diferente do primeiro, todos so apresentados como estranhos e perdem essa qualidade com o decorrer da narrativa, quando vistos em interao com outros estranhos similares, ou seja, so deslocados em relao ao mundo, mas se encaixam perfeitamente no pequeno grupo ao qual pertencem. Mesmo assim, todos os estranhos do filme so facilmente detectveis e s perdem sua obviedade e evidncia quando esto reunidos. Um abrandamento similar acontece em Marte Ataca! (Mars Attacks!, 1996), onde todos os personagens apresentados so18

Pior diretor da histria de Hollywood: Ed Wood foi eleito, em 1980, o pior diretor de todos os tempos. O fato aconteceu dois anos aps sua morte e o tornou o cineasta mais conhecido quando se trata de filmes lado B. Seu filme mais famoso foi Plan 9 From Outter Space, de 1957 (Ed Wood DVD, 1994)68

caricatos. Na narrativa sobre um ataque aliengena, as caractersticas estranhas dos personagens so amenizadas pela enorme diferena entre os humanos e aliens, que formam um conjunto muito mais peculiar que qualquer estranheza presente nos personagens humanos. Os extraterrestres que desejam eliminar a espcie humana acabam forando as pessoas a perceberem que possuem uma caracterstica comum entre si: o instinto de sobrevivncia. As pessoas, sob a influncia do desejo de conservarem suas vidas, ignoram suas diferenas que sem o ataque seriam separadoras e excludentes e se unem para destruir a ameaa aliengena. Assim, uma populao, que se posicionaria em diversos grupos diferentes, encontra um valor comum importante o bastante para eliminar as fronteiras que normalmente os separariam. J em 1999, o filme A Lenda do Cavaleiro Sem Cabea (Sleepy Hollow) uma histria policial com elementos sobrenaturais indica, inicialmente, que a sujeira est presente no personagem do fantasma assassino. No entanto, aos poucos, o enredo vai transferindo, ou melhor, diluindo a sujeira entre os moradores do vilarejo de Sleepy Hollow. Estes apresentam caractersticas incriminadoras que so gradualmente descobertas pelo detetive Ichabod Crane (Johnny Depp). No desenrolar da misteriosa narrativa, o prprio detetive, um representante forasteiro da ordem e da justia, demonstra caractersticas que o transformam no personagem mais estranho no contexto de Sleepy Hollow. O detetive , primordialmente, um estrangeiro em Sleepy Hollow. Ele no pertence ao local e introduz qualidades que no se originaram na comunidade. A respeito do estrangeiro, Simmel diz que a sua definio se d na juno de duas caractersticas: a liberao de qualquer ponto definido no espao e, assim, oposio conceitual fixao nesse ponto (SIMMEL, 1983:182). O que, em outras palavras, significa a unificao de proximidade e distncia.69

A distncia significa que ele, que tambm est prximo, est distante; e a condio de estrangeiro significa que ele, que tambm est distante, na verdade est prximo (SIMMEL, 1983:183). Isso quer dizer que o forasteiro mesmo quando prximo fisicamente mantm uma distncia do grupo, mas, ao mesmo tempo, possui similaridades com o meio que ajudam a diminuir esta distncia abstrata. O estrangeiro um estranho que no completamente estranho e nunca completamente familiar. Alm da natureza estrangeira de Ichabod Crane, traumas de infncia o impedem de aceitar os valores e crenas da comunidade na qual ele chega e dificultam sua adaptao, mesmo que temporria, ao grupo. Sua estranheza vista como uma qualidade positiva pelos membros do vilarejo, pois seu distanciamento do grupo o torna capaz de decidir e resolver os problemas da comunidade de forma imparcial. Segundo Simmel (1983), o estrangeiro, devido sua mobilidade e desprendimento local, mais livre, examina as condies com menos preconceito, seus critrios so mais gerais e mais objetivamente ideais. Ele no influenciado por interesses familiares ou partidrios e, assim, suas diferenas deixam de ser vistas como nocivas e passam a colaborar na conservao do grupo. No caso de Ichabod, pode-se destacar ainda o fator da sujeira maior, aquela que comete os crimes e leva a comunidade a aceitar interferncias exteriores em busca de um objetivo mais importante: eliminar o assassino e recobrar a segurana. No desfecho da histria, o detetive soluciona o mistrio e toda a estranheza remetida a um nico membro da comunidade, precisamente aquele que no tinha feito parte dos suspeitos durante todo o enredo. A responsvel pelos crimes, Lady Mary Van Tassel (Miranda Richardson), era uma senhora respeitada na comunidade, casada com um dos membros mais importantes do vilarejo, que mantinha em segredo o fato de ser uma bruxa com70

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poderes para dominar o cavaleiro sem cabea e for-lo a assassinar pessoas. somente no fim do filme que a personagem se apresenta como uma sujeira, e acaba por abrandar a sujeira dos outros personagens, incluindo, a do prprio fantasma que passa a ser visto como uma vtima de Lady Mary. No caso de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabea (1999), todos os personagens, uma vez vistos como estranhos, perdem tal qualidade no fim da narrativa, sendo que toda a estranheza da histria transferida para um nico indivduo sendo ele o menos provvel de todos, o imaculado, apresentado inicialmente como um exemplo de pureza. Alm disto, includo no contexto um tipo de estranho bem sucedido o estrangeiro cujo objetivo no se incluir no grupo, mas apenas ajud-lo em sua conservao como tal. Desta maneira, a estranheza destacada primordialmente em um indivduo dentro da obra de Burton Edward em Edward Mos de Tesoura (1990) sofre uma dissoluo sendo eliminada gradualmente em um conjunto maior de indivduos e redirecionada a um sujeito que inicialmente no se apresentava como deslocado. Esta dissoluo, ao passo que suaviza a imagem do estranho, ainda questiona a rotulao que os grupos impem aos indivduos e pode, em uma interpretao mais complexa, representar a possibilidade de uma falha no que a sociedade julga ser sujo ou limpo. Em A Lenda do Cavaleiro Sem Cabea (1999), aquele que seria a sujeira inicial, o forasteiro, se apresenta como a soluo dos problemas do grupo, e aquele que apontado como o responsvel pelo abalo segurana no incio da narrativa, o criminoso, se torna limpo quando o enredo explica sua condio de manipulado por uma sujeira maior. Ou seja, Burton elimina a estranheza inicial e inverte os papis, tanto do deslocado quanto do ajustado, ao produzir uma narrativa na qual a sujeira questionada a cada momento, impedindo o espectador de73

identificar o causador da insegurana local antes do fim da histria. Em 2001, no re-make de Planeta dos Macacos (Plan