4. da agressividade à culpa - dbd puc rio · obra winnicottiana “da pediatria à psicanálise”...
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4.
Da Agressividade à Culpa
Para Winnicott, a agressividade significa o movimento em direção ao mundo
externo, na busca de objetos. Neste aspecto, a agressividade está estreitamente
ligada às noções de tendência anti-social e delinqüência. Segundo ele, a
delinqüência e a atitude anti-social representam sinais de esperança, na medida em
que por exemplo, quando um adolescente rouba algo, ele está recuperando algo
que lhe foi tirado antes; em suas primeiras experiências. Winnicott dá uma
positividade ao que é considerado como negativo. E, neste sentido, um ato
delinqüente segundo ele, deve ser considerado como um pedido de ajuda.
Nas análises jurídicas não se pode prescindir do discurso dos sujeitos. Como
nos diz Marta Gerez-Ambertim, o adolescente é um sujeito do ato. Desta
perspectiva, a possibilidade de ser escutado e falar acerca do seu ato é o que
permite ao sujeito subjetivar a culpa. Permite que ele se comprometa
subjetivamente e consequentemente, assuma as responsabilidades por sua
conduta.
4.1 Agressividade, Tendência Anti-social e Delinqüência em
Winnicott
Donald W. Winnicott foi um pediatra inglês que cuidou de crianças e
adolescentes, em hospitais na Inglaterra na década de 40, durante os bombardeios
a Londres, quando muitas delas foram evacuadas e afastadas de seus pais. Em
função desta experiência como pediatra de crianças traumatizadas pela guerra,
interessou-se pela psicanálise. Percebeu que sua formação médica não era
suficiente para entender os distúrbios daquelas crianças. Tornou-se então
psicanalista.
O tema da agressividade para Winnicott é importante para o nosso estudo
por estar ligado às explicações acerca da tendência anti-social e delinqüência.
Para ele, o processo de maturação implica em crescimento emocional, que
necessariamente se dá a partir da relação mãe-bebê. Para Winnicott, “antes da
integração da personalidade, já está lá a agressividade” (Winnicott, 1950-55,
50
p.289), o que o leva a afirmar que um estudo da agressividade real deve ter como
base o estudo das raízes da intenção agressiva.
O bebê humano é extremamente dependente da mãe, não apenas de cuidados
físicos, mas também, e sobretudo, dos investimentos afetivos que a mãe, ou que
alguma figura substituta dedica a ele. Para Winnicott, no início, o bebê aparece
fundido com a mãe, e só posteriormente e aos poucos é que ele vai perceber a mãe
como um objeto externo a ele.
Winnicott utiliza o termo „holding‟ para designar este cuidado materno, que
vai além do segurar físico do lactente. Trata-se sobretudo de uma provisão
ambiental total, que é anterior ao conceito de „viver com‟.
Em sua teoria do desenvolvimento emocional, Winnicott descreve a
participação da agressividade nos processos de subjetivação descrevendo as etapas
do desenvolvimento, a saber: dependência absoluta, dependência relativa e rumo à
independência. Segundo Winnicott, o ambiente é decisivo para o rumo dos
acontecimentos ao longo de todo o processo.
Na dependência absoluta, a criança está totalmente dependente dos cuidados
maternos. Quando as coisas vão bem, a mãe e o bebê estão extremamente
envolvidos, o que Winnicott chama de unidade mãe-bebê. A mãe suficientemente
boa, se identifica com o seu bebê. Nesse estado, ela é capaz de compreender as
necessidades dele de forma integral. Winnicott denomina esse estado de
"preocupação materna primária". É o que permite que a mãe se envolva
inteiramente com o bebê. É o chamado estado de devoção materna. Aos poucos,
esse estado vai se transformando, o que permite que tanto a mãe, quanto o bebê se
tornem relativamente dependentes.
Nesse período, chamado de dependência relativa, a mãe já se comporta de
forma diferente com relação ao que bebê necessita. Ela já não está mais
totalmente voltada para ele. E, é esse novo estado, que vai permitir ao bebê,
começar a olhar para o mundo externo, e por outro lado, também para si mesmo.
Aqui, já como alguém que pode começar a se descobrir inteiro. Poderá enxergar a
mãe também como alguém que não é ele. Para Winnicott, nesse momento, ele já é
capaz de sentir amor e ódio. Esse momento do desenvolvimento é crucial. O
bebê vai experimentar o que ele chama de experiência de ter um self, e também de
não tê-lo. A integração da personalidade só poderá ocorrer se no estado anterior, a
mãe tiver demonstrado a atitude de devoção, a entrega total à criança. Isso é de
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suma importância para garantir a integração emocional do bebê. Ou seja, o bebê
depende da preocupação materna primária para seu desenvolvimento como uma
pessoa inteira, para que tenha um verdadeiro self. O ambiente precisa ser
suficientemente bom, o que é sinônimo da mãe suficientemente boa, para que o
bebê tenha possibilidade de se adaptar e de se desenvolver; para que possa existir
de forma verdadeira.
A partir daí é que vai se constituir o verdadeiro self. Para Winnicott, o
verdadeiro self significa que o indivíduo se sente real, não apenas vivo. Assim, ele
é capaz de viver de forma criativa, capaz de ser espontâneo, coincidindo consigo
mesmo. O que é chamado de falso self é a experiência de um sentimento de
irrealidade. O indivíduo pode estar bem fisicamente, aparentemente saudável. Mas
é dominado pelo sentimento de que não coincide consigo mesmo. A vida parece
não ter sentido, o que muitas vezes, é vivido como um sentimento de inutilidade.
Somente num ambiente suficientemente bom, o bebê pode aprender a
experimentar o próprio corpo. O sentimento de existir no espaço tempo. Dessa
forma, o bebê, que já está se tornando um, pode de forma não traumática, lidar
com as mudanças do mundo externo, o não-eu. O papel do ambiente, ainda
representado pela mãe, precisa proteger o bebê das eventuais intempéries
externas. Essa proteção maternal, tem o papel vital de evitar que o ambiente possa
ser intrusivo para a criança. A própria criança, por intermédio de seus gestos, irá
experimentar o que ela sentirá como falhas, intromissões do ambiente. Isto é o que
permitirá que a criança possa experimentar e descobrir o mundo tendo o
sentimento de existir. É nesse momento que Winnicott descreve a personalização:
a possibilidade de sofrer as interferências do ambiente, podendo experimentar o
sentimento de continuidade de ser. Isso vai definir a saúde mental. Para
Winnicott, é de fundamental importância que tudo corra bem na relação ambiente-
mãe-bebê, para que o ego da criança, para ele, ego entendido como corporal,
possa se constituir. No momento em que isso acontece, o ser da criança pode
experimentar o corpo como seu, e apropriar-se de suas funções.
Aqui é o momento do aparecimento de um objeto importante. Na medida
em que a criança começa a perceber a mãe como um ser inteiro, separado dela, ela
pode criar um objeto substituto dela. É o objeto transicional. Normalmente, uma
fralda, uma toalhinha, um bichinho de pelúcia. Esses objetos permitem a transição
da dependência para a autonomia, na medida em que a criança aprende a substituir
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a mãe, apegando-se a eles. Então, temos os objetos transicionais, que se expandem
em fenômenos transicionais. Esses processos só acontecem quando o
desenvolvimento acontece de forma tranquila, com a mãe garantindo a proteção e
a provisão ambiental. É desse modo que a criança pode associar partes do self
com partes do ambiente. Experimentando assim a possibilidade de simbolização.
Os objetos simbolizam a mãe, enquanto está ausente.
No último estágio desse processo, a criança segue rumo à independência.
Winnicott enfatiza que esse percurso é uma conquista importante, mas faz a
ressalva de que há sempre um equilíbrio a ser mantido entre os estados da
dependência e da indepedência, ao longo da vida. O adulto que virá é totalmente
dependente da criança que pôde ser. A vida social, afetiva, dependerá das
primeiras experiências. A capacidade de se sentir uma pessoa real, de confiar no
mundo, dependerá do acolhimento, da devoção, da entrega da mãe, do ambiente.
Um ambiente estável, compreensivo, capaz de suportar as manifestações intensas
e variadas da criança, permite que ela tenha uma inserção suficientemente boa na
vida adulta.
Para Winnicott, a vida adulta saudável não significa indepedência
absoluta, mas sim autonomia. Ter saúde, significa viver, individual e socialmente,
de forma criativa e espontânea. Um indivíduo que tem boa saúde física e um bom
trabalho, pode ter um falso self. Pode viver de forma submissa ao ambiente e às
relações. Poder depender do ambiente sem se sentir aprisionado, e sim protegido,
acolhido, ajudado, é sinal de saúde. Sinal de que o seu desenvolvimento aconteceu
de maneira tranquila. Experimentar a vida de forma inteira, sentindo-se real,
recriando-a a cada percalço é a consequência de ter vivido num ambiente
suficientemente bom.
Winnicott considera então, que o desenvolvimento do bebê acontece por
intermediação de um outro, daquela pessoa que cuida dele. Num primeiro
momento, esta pessoa, é o espelho no qual se vê refletido. Khan, na introdução à
obra winnicottiana “Da pediatria à psicanálise” (2000), assinala que:
Para Winnicott, o indivíduo humano era isolado e incognoscível, que poderia
personalizar-se e conhecer-se somente através do outro, como ele o descreveu em
seu trabalho “A capacidade de estar só” (1958). Foi para explicar esse paradoxo
humano crucial que ele investiu com extrema diligência seus esforços clínicos e sua perspicácia (Khan, In Winnicott, 2000, p.14)
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Em conferência em 1963, intitulada “Da dependência à independência no
desenvolvimento do indivíduo”, Winnicott postula que “a maturidade do ser
humano é uma palavra que implica não somente crescimento pessoal mas também
socialização”. A ideia de saúde é quase sinônimo de maturidade: nestas
condições, espera-se que o adulto seja capaz de identificar-se com a sociedade
sem que para isso sacrifique sua espontaneidade pessoal, o que significa dizer que
“o adulto é capaz de satisfazer suas necessidades pessoais sem ser anti-social”, e
que com isso possa “assumir alguma responsabilidade pela manutenção ou pela
modificação da sociedade em que se encontra” (Winnicott, 1963a, p.80)
Posteriormente, em “O conceito de indivíduo saudável” (1967b), Winnicott
alerta que “não se pode avaliar um homem ou uma mulher sem levar em conta seu
lugar na sociedade” (p.3). Falar em “maturidade individual implica num
movimento em direção à independência, mas não existe essa coisa chamada
“independência”. O fato de estar vivo implica em dependência, e a ideia de ser
saudável quer dizer que um homem ou uma mulher “sejam capazes de alcançar
uma certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos
individuais ou pessoais” (Winnicott, 1967, p.9- o grifo é do autor).
A ideia de saúde como simples ausência de doença não é de modo algum satisfatória. O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua
própria vida, assumindo a responsabilidade pela ação ou pela inatividade, e sejam
capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas. Em outras palavras, pode-se dizer que o indivíduo emergiu da dependência para a
independência, ou autonomia. (Winnicott, 1967, p.10)
O que nos leva aos estágios pré-genitais e pré-verbais do desenvolvimento
individual e à provisão ambiental: a adaptação atrelada às necessidades primitivas
que são características da primeira infância.
Num primeiro momento o bebê ainda não tem uma diferenciação entre o que
seja o seu corpo, e o mundo externo; entre o que seja eu e não-eu. Neste momento
ele ainda não faz diferenciação entre ele e o corpo da mãe.
Aos poucos “o bebê se torna uma unidade, passando a ser capaz de sentir o
self (e portanto os outros) como um inteiro, uma coisa com membrana limitadora,
e dotado de um interior e um exterior” (Winnicott, 1990, p.87). Este processo é
que o conduz até a totalidade do sentimento de ser um.
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Surge a ideia de uma membrana limitadora, e daí segue-se a ideia de um interior e
um exterior. Em seguida desenvolve-se a ideia de um EU e de um não-EU 1.
Existem agora conteúdos do EU que dependem em partes de experiências
instintivas. Desenvolve-se a possibilidade de um sentimento de responsabilidade pela experiência instintiva e pelos conteúdos do EU, e um sentimento de
independência em relação ao que está fora. Surge um sentido para o termo
“relacionamento”, indicando algo que ocorre entre pessoas, o EU e os objetos. A conseqüência é o reconhecimento de que há algo equivalente ao EU na mãe, o que
implica em senti-la como uma pessoa; o seio, então, é visto como parte de uma
pessoa (Winnicott, 1990, p.88)
Winnicott fala que “mais cedo ou mais tarde surge por parte dele uma
tendência a entremear objetos „diferentes de mim‟ no padrão pessoal”. O uso
destes objetos, chamados objetos transicionais, permite ao bebê a chegada ao
estádio de ser uma unidade, através da construção de uma membrana limitadora
entre um exterior e um interior.
Esta área intermediária de experimentação é também uma área de
experiência ilusória. É importante ressaltar que “o objeto transicional jamais está
sob controle mágico, como o objeto interno (de M.Klein, que é uma possessão),
nem tampouco fora de controle, como a mãe-real” (Winnicott, 1971, p.24).
Quando o simbolismo é empregado, a criança já está claramente
distinguindo entre fantasia e fato, entre objetos internos e objetos externos, entre
criatividade primária e percepção. Para Winnicott o termo objeto transicional
permite tornar-se capaz de aceitar diferença e similaridade. O objeto transicional
designa a passagem do puramente subjetivo até a objetividade. Seria, portanto, um
progresso no sentido da experimentação.
Para que isso seja possível, é necessário que exista uma mãe suficientemente
boa, que não precisa ser necessariamente a mãe do bebê, mas precisa efetuar uma
adaptação ativa às necessidades do bebê e, gradativamente, ir diminuindo sua
atenção, de acordo com as capacidades dele em lidar com o fracasso dela, em
tolerar os resultados da frustração. “Se tudo corre bem, o bebê pode, na realidade,
vir a lucrar com a experiência da frustração, já que a adaptação incompleta à
necessidade torna reais os objetos, o que equivale a dizer, tão odiados quanto
amados.” (Winnicott,1971, p. 25).
Através de uma adaptação quase completa, a mãe propicia a oportunidade
da ilusão de que o seio dela faz parte e está sob o controle mágico do bebê. Isso
1 No original, ME e not-ME (N. do T.)
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permite à ele, a sensação de onipotência, que vai sendo desiludida gradativamente
pela mãe.
Winnicott afirma que “não existe saúde para o ser humano que não tenha
sido iniciado suficientemente bem pela mãe”, na solução daquilo que, desde o
nascimento, o ser humano está envolvido com o problema da relação entre aquilo
que é objetivamente percebido e aquilo que é subjetivamente concebido.
O objeto transicional e os fenômenos transicionais iniciam uma área que
representam os primeiros estádios do uso da ilusão, que é o que permite dar
significado à ideia de relação com um objeto que é percebido por outros como
externo a esse ser. Podemos definir o espaço transicional como uma área
intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido. É uma
área de experimentação entre uma realidade interna e uma vida externa.
A principal tarefa da mãe, após propiciar a oportunidade da ilusão, é a
desilusão. Esse processo de ilusão-desilusão deve ser gradativo para que o bebê
possa suportar a frustração, como a aceitação da realidade.
Presume-se aqui que a tarefa de aceitação da realidade nunca é completada, que
nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna e externa, e que o alívio dessa tensão é proporcionado por uma área intermediária de
experiência que não é contestada (artes, religião, etc). Essa área intermediária está
em continuidade direta com a área do brincar da criança pequena que se “perde” no
brincar (Winnicott,1971, p.28/29-o grifo é do autor)
Essa área intermediária é o que possibilita o início de um relacionamento
entre a criança e o mundo. Na fase primitiva crítica, é a mãe suficientemente boa
que torna tudo possível. Além disso, é essencial a continuidade do tempo e dos
elementos transicionais, que só podem estar ausentes por um período de tempo
que seja suportável pela criança.
A ilusão está na base do início da experiência, e esta área intermediária de
experiência compartilha tanto a realidade interna quanto externa. Ela vai constituir
a maior parte da experiência do bebê e, através da vida, é conservada na
experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo e
ao trabalho científico criador.
No interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle
de objetos reais, reside a importância do brincar.
A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a
do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em
conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é
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dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de
brincar para um estado em que o é (Winnicott, 1971, p.59).
O brincar não é exclusividade da análise com crianças, Winnicott fala que o
brincar é evidente na análise dos adultos, por exemplo, nas escolhas das palavras,
nas inflexões de voz e, na verdade, no senso de humor:
A diferença entre a análise de uma criança e a de um adulto é que com a criança
grande parte da atuação (acting out) se dá na forma do brincar durante a sessão,
enquanto que com o adulto quase toda a atuação ocorre fora da análise, e o trabalho da análise é feito verbalmente. O analista está preparado, no entanto, para encontrar
a criança no interior do adulto, bem como encontrar o adulto no interior da criança
(Winnicott, 1990, p.113).
O brincar tem um lugar e um tempo. E é no brincar, e talvez só no brincar
que a criança e o adulto fruam sua liberdade de criação. A brincadeira é universal
e própria da saúde:
O brincar facilita o crescimento e, portanto a saúde; o brincar conduz aos
relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na
psicoterapia; finalmente a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente
especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros (Winnicott,1971, p.63).
A psicoterapia acontece na sobreposição das áreas lúdicas do paciente e do
terapeuta. O brincar é essencial porque nele o paciente manifesta a sua
criatividade, e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self).
Para Winnicott,
experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, no excitante
entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área
intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos (Winnicott, 1971,p.93)
O sentimento de “sentir-se real” é o que possibilita ao indivíduo reconhecer
a vida como sendo digna de ser vivida. Uma vida criativa constitui um estado
saudável, ao passo que a submissão é a base para uma vida doentia.
A criatividade a que nos referimos diz respeito à realidade externa.
Winnicott considera o ambiente fundamental para o desenvolvimento de um
indivíduo saudável.
O impulso criativo é algo presente em qualquer pessoa que se inclina de
maneira saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, mas quando
um indivíduo tem dúvida sobre o valor de viver, esta está relacionada diretamente
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à qualidade e à quantidade das provisões ambientais no começo ou nas fases
primitivas da experiência de vida de cada bebê.
O brincar criativo e a experiência cultural estão localizados no espaço
potencial existente entre a mãe e o bebê. O uso que uma criança faz de um objeto
transicional, a primeira possessão não-eu, representa o primeiro uso de um
símbolo bem como a primeira brincadeira.
A característica essencial do brincar refere-se a uma experiência criativa
na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver. O objeto transicional é
o símbolo da união mãe e bebê, e ele se localiza na mente do bebê quando a mãe
está em transição. O sentimento de que a mãe existe dura um certo tempo, se sua
ausência ultrapassa este tempo, a imago se esmaece, e o bebê se vê incapaz de
utilizar o símbolo da união.
Em contrapartida, os efeitos da privação são constantemente curados pelo
mimar localizado da mãe que repara a estrutura do ego, o que restabelece a
capacidade do bebê utilizar um símbolo de união, assim o bebê pode permitir
novamente a separação e até beneficiar-se dela.
Estamos aqui diante de um dos paradoxos de Winnicott - ao mesmo tempo
em que a mãe estimula a separação, ela evita que esta ocorra. A separação não
pode de fato acontecer, pois implicaria ruptura traumática no processo de
desenvolvimento do bebê, rumo à integração e à independência. A saúde psíquica
do adulto vai depender de forma radical da qualidade, do ritmo e da intensidade
com que o bebê sente esses primeiros momentos da ausência da mãe. Winnicott
diz que com o ser humano não pode haver separação, mas apenas ameaça de
separação; sendo que a ameaça será mais ou menos traumatizante dependendo de
como foram experimentadas as primeiras separações. A separação é o tempo
vivido como espera do reencontro com o objeto; a ameaça de separação é o tempo
vivido como medo de não reencontrá-lo. No futuro, a saúde psíquica do sujeito
dependerá fortemente da maneira como se deu esse interjogo (Bezerra Jr, 2007,
p.46/47).
Winnicott definiu a experiência cultural como uma ampliação da ideia dos
fenômenos transicionais e da brincadeira. A experiência cultural localiza-se no
espaço potencial, existente entre o indivíduo e o meio ambiente. Portanto, a
experiência criativa começa com o viver criativo, que se manifesta primeiramente
na brincadeira.
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O espaço potencial acontece apenas em relação a um sentimento de confiança por
parte do bebê, isto é, confiança relacionada à fidedignidade da figura materna ou
dos elementos ambientais, com a confiança sendo a prova da fidedignidade que se
está introjetando (Winnicott, 1971, p.139).
O espaço potencial é um campo de ação, onde o eu se projeta como agente.
Constitui-se assim, como um campo de experimentação, uma “área disponível de
manobra”, onde o self se realiza na ação criativa que seus impulsos engendram,
ampliando progressivamente o campo de suas experiências (Bezerra Jr., 2007,
p.44). Para Winnicott a agressividade é inerente à vida, e amor e ódio constituem
os dois principais elementos a partir dos quais se constroem as relações humanas.
Mas amor e ódio envolvem agressividade (Winnicott, 1939, p.93).
Para tal afirmação, Winnicott parte do pressuposto “de que todo o bem e o
mal encontrado no mundo das relações humanas serão encontrados no âmago do
ser humano”(Winnicott, 1939, p.93). Portanto, ao observar o ser humano adulto
ou a criança pequena poderemos facilmente constatar o amor e o ódio que existem
neles. Segundo ele, o principal problema é que: “de todas as tendências humanas,
a agressividade, em especial, é escondida, disfarçada, desviada, atribuída a
agentes externos, e quando se manifesta é sempre uma tarefa difícil identificar
suas origens (Winnicott, 1939, p.94)
Ele atenta para o fato de que é importante para o desenvolvimento da
criança que esta tenha “se encolerizado com freqüência numa idade em que não
precisa sentir remorso” (Winnicott, 1939, p.97). Da mesma maneira que o bebê
possui uma grande capacidade de destruição, é notável sua capacidade para
“proteger o que ama de sua própria destrutividade”.
Winnicott ilustra:
existe uma voracidade teórica ou amor-apetite primário, que pode ser cruel2,
doloroso, perigoso, mas só o é por acaso. O objetivo do bebê é a satisfação, a paz
de corpo e de espírito. A satisfação acarreta a paz, mas o bebê percebe que, para sentir-se gratificado, põe em perigo o que ama (Winnicott, 1939, p.97).
Winnicott “defende a ideia de um relacionamento objetal inicial impiedoso
(ruthless), inerente à exploração benigna e „natural‟ que o bebê faz de sua mãe”
(Lima, 2007, p.76). Em meio à brincadeiras, a criança tem prazer na relação
2 A palavra crueldade é freqüentemente utilizada para traduzir um conceito chave winnicottiano:
ruthlessness, que significa “a qualidade daquele destituído de compaixão ou remorso”. Algumas
traduções mantém o termo original em inglês, por ter “um sentido próprio impossível de conter
numa única e inevitável palavra da língua portuguesa” (N. do T., em Winnicott, 1990, p.11)
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impiedosa (ruthless) com a mãe, e esta é a única capaz de tolerar. “Ele postula que
um self impiedoso (ruthless) antecederia um self preocupado (concerned) ou, mais
especificamente, que a capacidade de sentir compaixão é dependente, para seu
desenvolvimento, que tenha sido possível para seu self impiedoso se expressar”
(idem).
É fácil perceber a tremenda quantidade de crescimento que ocorre nesta progressão da ruthlessness até o concern (preocupação), da dependência do EU ao
relacionamento do EU, da pré-ambivalência à ambivalência, da dissociação
primária entre os estados de tranquilidade e excitação à integração destes dois aspectos do self. O bebê se vê às voltas com uma tarefa que exige de forma
absoluta tanto tempo quanto um ambiente pessoal contínuo (Winnicott, 1990, p.89-
o grifo é do autor).
Portanto, o desenvolvimento da capacidade para o concern (preocupar-se)
depende da continuidade do relacionamento pessoal entre um bebê e a figura
materna. Através do dar e receber psíquico, que ocorre em paralelo ao dar e
receber físico, a criança está construindo um mundo de relações internas. A parte
principal dessa realidade interior é um mundo que se sente estar dentro do corpo
ou dentro da personalidade. Vemos aí um jogo de forças destrutivas no interior da
personalidade da criança onde “podemos encontrar, de fato (no decorrer da
psicanálise, por exemplo), as forças boas e más em plena força” (Winnicott, 1939,
p.98).
Ser capaz de tolerar tudo o que podemos encontrar em nossa realidade interior é
uma das grandes dificuldades humanas, e um dos importantes objetivos humanos consiste em estabelecer relações harmoniosas entre as realidades pessoais internas
e as realidades exteriores (Winnicott, 1939, p.98).
Winnicott completa que diante de uma ameaça de que as forças cruéis ou
destrutivas dominem as forças de amor, uma das coisas que o indivíduo faz para
salvar-se “é pôr para fora de seu íntimo, dramatizar exteriormente o mundo
interior, representar ele próprio o papel destrutivo e provocar seu controle por uma
autoridade externa” (Winnicott, 1939, p.99).
Quando existe esperança, no que se refere às coisas internas, a vida instintiva está
ativa e o indivíduo pode usufruir do uso de impulsos instintivos, incluindo os agressivos, convertendo em bem na vida real o que era dano na fantasia. Isso
constitui a base do brincar e do trabalho (Winnicott, 1939, p.99).
Quando a agressão não é negada e pela qual se aceita a responsabilidade
pessoal, pode-se aproveitá-la para dar força ao trabalho de reparação e restituição.
“Por trás de todo jogo, trabalho e arte está o remorso inconsciente pelo dano
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causado na fantasia inconsciente, e um desejo inconsciente de começar a corrigir
as coisas” (Winnicott, 1939, p.101).
Winnicott resume em dois os significados da agressão. Por um lado é uma
reação direta ou indireta à frustração, por outro, é uma das muitas fontes de
energia de um indivíduo. Uma criança em evolução implica o desenvolvimento de
uma coisa a partir de outra (Winnicott, 1939, p.102-103).
Para Winnicott, o início da agressividade pode ser observado nos
movimentos de um bebê. Os movimentos de chute ou pontapé são o movimento e
a experiência de ir ao encontro de alguma coisa.
Assim, o que no início são “pancadas infantis”, representa um movimento
de descoberta do mundo que não é o eu da criança e é o começo de uma relação
com objetos externos, no início é um impulso que leva a um movimento e aos
primeiros passos de uma exploração. Dessa maneira, Winnicott define que “a
agressão está sempre ligada (...) ao estabelecimento de uma distinção entre o que é
e o que não é o eu” (Winnicott, 1939, p.104).
Uma criança sadia desenvolve sua capacidade de colocar-se no lugar dos
outros e de identificar-se com as pessoas e objetos externos. Uma alternativa
muito importante à destruição é a capacidade de construir, portanto o brincar
construtivo é um dos mais importantes sinais de saúde:
Trata-se de algo que não pode ser implantado, como não pode ser implantada, por
exemplo, a confiança. Aparece, com o tempo, como resultado da totalidade das experiências de vida da criança no ambiente, proporcionadas pelos pais ou pelos
que atuam como pais (Winnicott, 1939, p.107).
A capacidade de envolvimento “refere-se ao fato de o indivíduo preocupar-
se ou importar-se e tanto de sentir, como aceitar responsabilidade” (Winnicott,
1963b, p.111)
Na vida imaginativa total do indivíduo, o envolvimento suscita questões ainda mais amplas, e a capacidade de envolvimento está por trás de todo o trabalho e brincar
construtivos. Está ligado à existência normal e saudável, e merece a atenção do
psicanalista (Winnicott, 1963b, p.112).
A idéia de capacidade de envolvimento, significa que muita coisa já
aconteceu no desenvolvimento do bebê. Pressupõe-se que houve um ambiente
suficientemente bom nos estágios iniciais da vida, e, portanto, a capacidade de
envolvimento resulta de complexos processos maturacionais que dependem, para
serem realizados, de cuidados adequados ao bebê e à criança.
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Mas não é necessário que haja uma precisão absoluta quanto ao tempo, e, de fato, a
maioria dos processos que se iniciam nos primeiros meses de vida nunca se
estabelecem plenamente e continuam sendo fortalecidos pelo crescimento que
prossegue nos anos subseqüentes da infância – e, na verdade, da vida adulta e até mesmo da velhice (Winnicott, 1963b, p.112).
Os processos de maturação formam a base para o desenvolvimento
emocional da criança, e para tal, necessitam de certas condições externas, como
um ambiente suficientemente bom. Passar de um estado de fusão (mãe-bebê) para
um estado de ambivalência (amor-ódio) implica num “ego que começa a ser
independente do ego auxiliar da mãe, e pode-se agora dizer que existe um lado de
dentro do bebê e, por conseguinte, um lado de fora. O esquema corporal adquiriu
existência e rapidamente desenvolve complexidade” (Winnicott, 1963b, p.114)
Deste momento em diante, o crescimento não é apenas do corpo e do self em
relação a objetos tanto externos quanto internos; é também um crescimento que se desenrola no interior, como uma novela que vai sendo escrita ao longo do tempo,
um mundo desenvolvendo-se no interior da criança. Na saúde existem inúmeras
oportunidades de intercâmbio entre essa vida no mundo interno e o mundo externo, no qual se vive e em que há relacionamentos. Cada um enriquece o outro
(Winnicott, 1990, p.98).
Winnicott aponta que “os indivíduos normais estão sempre fazendo o que os
anormais só podem fazer por tratamento analítico, isto é, alterando seus eus
internos por novas experiências de incorporação e projeção” (Winnicott, 1939,
p.100). Numa criança pequena a “relação com a realidade externa ainda não está
enraizada; a personalidade ainda não está bem integrada, o amor primitivo tem um
propósito destrutivo e [ela] ainda não aprendeu a tolerar e enfrentar os instintos”
(Winnicott, 1946, p130). Nesta idade, a criança tem necessidade de viver num
círculo de amor e força, que também seja tolerante, para que não sinta um medo
excessivo “de seus próprios pensamentos e dos produtos de sua imaginação, a fim
de progredir em seu desenvolvimento emocional” (Winnicott, 1946, p.130)
Winnicott pergunta: “o que acontece se o lar faltar à criança antes de ela
ter adquirido uma ideia de um quadro de referência como parte de sua própria
natureza?” (Winnicott,1946, 130). Quando percebe que o quadro de referência de
sua vida se desfez, deixa de sentir-se livre, tornando-se angustiada; ela sai em
busca de um outro quadro de referência fora do lar.
Para Winnicott, “na base da tendência anti-social está uma boa experiência
inicial que se perdeu” (Winnicott, 1956, p.145). A tendência anti-social está
62
inerentemente ligada à privação, que diz respeito a um fracasso específico, não
social geral.
A tendência anti-social não é um diagnóstico, assim como não é
exclusividade de um indivíduo normal, ela também pode ser encontrada num
indivíduo neurótico ou psicótico, bem como em todas as idades.
Uma criança sofre privação quando passam a lhe faltar certas características essenciais da vida familiar. Torna-se manifesto um certo grau do que poderia ser
chamado de “complexo de privação”. O comportamento anti-social será manifesto
no lar ou numa esfera mais ampla. Em virtude da tendência anti-social, a criança poderá finalmente ter que ser considerada desajustada e receber tratamento num
alojamento para crianças desajustadas, ou pode ser levada aos tribunais como
criança incontrolável. Agora, delinquente, a criança pode tornar-se um indivíduo
em liberdade condicional sob mandado judicial ou ser enviada para um reformatório (Winnicott, 1956, p.138-o grifo é do autor).
A principal característica da tendência anti-social é que, por “agir contra os
bons costumes”, ou às normas, ela convoca o meio ambiente a interferir, a se
manifestar. Através de pulsões inconscientes que se manifestam como atos anti-
sociais, o indivíduo (inconscientemente), convoca o meio ambiente, que pode se
representar de diversas maneiras, a encarregar-se do cuidado dele.
Para se entender as raízes do problema do delinquente, é preciso ter em
mente que “tudo o que leva aos tribunais (ou aos manicômios, pouco importa no
caso) tem seu equivalente normal na infância, na relação da criança com seu
próprio lar”. Se a criança tiver alguma dúvida quanto à estabilidade da instituição
parental e do lar, ela vai testá-lo; mas se o lar consegue suportar tudo o que a
criança é capaz de fazer para desorganizá-lo, ela se dá por satisfeita e vai brincar.
Para brincar, fazer seus próprios desenhos e ser uma criança irresponsável, ela
precisa estar consciente de um quadro de referência para sentir-se livre
(Winnicott, 1946, p129)
Isso acontece porque “os estágios inicias do desenvolvimento emocional
estão repletos de conflito e desintegração potenciais”. Uma criança pequena ainda
não aprendeu a tolerar e enfrentar seus instintos, então para não temer
excessivamente seus próprios pensamentos e os produtos de sua imaginação, ela
necessita viver num círculo de amor e força para que se desenvolva
emocionalmente (Winnicott, 1946, p.130).
Podemos dizer que durante um determinado momento as coisas andavam
bem para a criança, até que por algum motivo essa situação foi perturbada e a
63
criança foi exigida além de sua capacidade. A partir de então com base num novo
modelo de defesa do ego, inferior em qualidade, a criança se reorganiza. Quando
ela começa a ter esperanças novamente, organiza atos anti-sociais na esperança de
que a sociedade retroceda com ela para a posição em que as coisas deram errado,
e reconheça esse fato.
Ao perceber que o quadro de referência de sua vida se desfez, a criança
deixa de ser livre, o que a torna angustiada. Se ela tem esperança, diante da falta
de sentimento de segurança, busca um outro quadro de referência fora de casa.
Procura uma estabilidade externa na casa de parentes, amigos da família ou
escola. A criança ainda tem a oportunidade de avançar da dependência e da
necessidade de ser cuidada, para a independência se a estabilidade puder ser
oferecida em tempo oportuno.
A criança anti-social está simplesmente olhando um pouco mais longe, recorrendo
à sociedade em vez de recorrer à família ou à escola para lhe fornecer a
estabilidade de que necessita a fim de transpor os primeiros e essenciais estágios de seu crescimento emocional (Winnicott, 1946, p.130).
Winnicott afirma que a delinqüência indica que alguma esperança subsiste
(1946, p.131). O comportamento anti-social não se trata necessariamente de uma
doença, muitas vezes é um pedido de controle de pessoas fortes, amorosas e
confiantes. Por outro lado, Winnicott afirma que na delinqüência há muitos casos
em que esse sentimento de segurança não chegou à vida das crianças a tempo de
ser incorporado às suas crenças, e por isso podem ser chamados de doentes.
A diferença entre tendência anti-social e delinqüência pode ser descrita
numa escala, onde cada uma encontra-se numa extremidade. O termo tendência
anti-social “pode ser aplicado a tendências que aparecem na extremidade normal
da escala, de vez em quando em nossos próprios filhos ou em crianças que vivem,
em bons lares, e é aqui o que se pode ver melhor a conexão que creio existir entre
a tendência e a esperança” (Winnicott, 1967a, p.81). Num outro extremo da
escala está o delinquente, que não obteve ajuda em tempo, ou quando tudo o mais
falhou:
Quando o menino ou a menina ficaram empedernidos pela falta de comunicação, o ato anti-social não sendo algo em que se reconheça um S.O.S., ou quando ganhos
secundários tornaram-se importantes, e já se alcançou grande perícia em alguma
atividade anti-social, então fica mais difícil ainda enxergar (apesar de ainda estar
lá) o S.O.S., que é um sinal de esperança no menino ou na menina anti-sociais (Winnicott, 1967a, p.81).
64
Num extremo da escala existe algo que acontece repetidamente em toda
família. Noutro, há algo que se enrijece como ato compulsivo sem significado e
sem produzir satisfação direta, mas que está florescendo enquanto habilidade
(Winnicott, 1967a, p.85)
A criança normal desenvolve um “ambiente interno”, capaz de descobrir um
bom meio. Para Winnicott, uma criança anti-social, doente, que não teve essa
oportunidade, requer um rigoroso controle externo para ser feliz e capaz de
brincar ou trabalhar.
A criança normal, ajudada nos estágios iniciais pelo seu próprio lar, desenvolve a
capacidade para controlar-se. Desenvolve o que é denominado, por vezes,
“ambiente interno”, com uma tendência para descobrir um bom meio. A criança anti-social, doente, não tendo tido a oportunidade de criar um bom “ambiente
interno” necessita absolutamente de um controle externo se quiser ser feliz e capaz
de brincar ou trabalhar (Winnicott, 1946, p.132).
A tendência anti-social convoca o meio ambiente a ser importante porque
por meio de pulsões inconscientes expressas em atos anti-sociais, o paciente exige
que alguém se encarregue de cuidar dele. Por isso a tendência anti-social implica
esperança. A tendência anti-social se manifesta justamente no período de
esperança.
Quando existe uma tendência anti-social, existe um verdadeiro desapossamento
(não uma simples carência); quer dizer, houve perda de algo bom que foi positivo
na experiência da criança até uma certa data, e que foi retirado; a retirada estendeu-se por um período maior do que aquele em que a criança pode manter viva a
lembrança da experiência (Winnicott, 1956, p.140).
Num momento de esperança, a criança percebe alguns elementos de
confiabilidade no ambiente e experimenta um impulso de busca do objeto. Pode-
se dizer que diante da possibilidade desse ambiente permanecer o mesmo, ele
precisa agitá-lo a fim de organizá-lo e torná-lo tolerável. Se esta situação não se
modifica:
O ambiente será testado repetidamente em sua capacidade para suportar a agressão,
para impedir ou reparar a destruição, para tolerar o incômodo, para reconhecer o
elemento positivo na tendência anti-social, para fornecer e preservar o objeto que é procurado e encontrado (Winnicott, 1956, p.146).
Winnicott fala que o tratamento deve ser a psicoterapia associada à um
ambiente estável e forte. Sem uma assistência ambiental especializada a
psicanálise muito pouco pode fazer. Winnicott coloca como tarefa do terapeuta
65
envolver-se com a pulsão inconsciente do paciente. E sugere que seu trabalho
deve pautar-se na administração, tolerância e compreensão.
A psicoterapia pessoal é orientada no sentido de tornar a criança capaz de
completar seu desenvolvimento emocional. Isso significa muita coisa, inclusive o estabelecimento de uma boa capacidade para sentir a realidade de coisas reais,
internas e externas e o estabelecimento da integração da personalidade individual.
O pleno desenvolvimento emocional significa isso e muito mais. Depois dessas coisas primitivas, seguem-se os primeiros sentimentos de envolvimento e culpa,
bem como os primeiros impulsos para fazer reparações. E na própria família há as
primeiras situações triangulares e todas as complexas relações interpessoais que
acompanham a vida no lar (Winnicott, 1946, p.134).
Como bem coloca Winnicott, numa sessão terapêutica, a moralidade não
importa, a não ser que surja do próprio paciente. Ela não deve servir para a
apuração de fatos porque não se deve estar preocupado com a verdade objetiva, o
que realmente importa é aquilo que ele sente como real.
Diz Winnicott:
O paciente, sem saber, busca que alguém o ajude a recordar: do momento de privação ou da fase em que esta se consolidou numa realidade
inescapável. A esperança é que ele seja capaz de reexperimentar na relação com o
terapeuta o intenso sofrimento que precedeu a reação à privação (Winnicott, 1967a,
p.89).
Se o ambiente não for capaz de suportar a agressividade, dando destinos
criativos à ela, é a violência que surge em seu lugar. É quando a esperança se
perde, já não há mais apelo, já não há mais reivindicação.
Portanto, podemos dizer que a atitude anti-social é uma resposta do sujeito
na tentativa de restabelecer uma ordem que foi perdida, por ter sido abalado pela
falha ambiental no início da vida ou por condições inóspitas do mundo. Esse
sujeito, à sua maneira tenta caminhar rumo à liberdade, e cabe ao terapeuta
atender a este pedido de ajuda, colocar-se frente a este paciente e deixar-se ensinar
pelo que o paciente diz e apresenta: a historicidade de seu ser. Permitir-se entrar
nesta brincadeira para compartilhar com seu paciente as questões fundamentais do
destino humano e de sua própria história.
Existem sempre duas direções na tendência anti-social, embora às vezes uma seja mais acentuada que a outra. Uma direção é representada tipicamente pelo roubo e a
outra pela destrutividade. Numa direção, a criança procura alguma coisa, em algum
lugar, quando tem esperança. Na outra, a criança está procurando aquele montante de estabilidade ambiental que suporte a tensão resultante do comportamento
impulsivo (Winnicott, 1956, p.141).
66
São duas tendências, a busca de objeto e a destruição. Principalmente, é por
causa da segunda tendência que a criança provoca reações ambientais totais, como
quem busca uma moldura mais ampla, “um círculo que teve como seu primeiro
exemplo os braços da mãe ou o corpo da mãe”. Winnicott enumera a partir daí
uma série: “o corpo da mãe, os braços da mãe, a relação parental, o lar, a família
(incluindo primos e parentes próximos), a escola, a localidade com suas
delegacias policiais, o país com suas leis” (Winnicott, 1956, p.141).
“O furto está no centro da tendência anti-social, associado à mentira”
(Winnicott, 1956, p.141). Tem relação com a mãe e com a sua adaptação às
necessidades da criança, a mãe capacita o filho a encontrar objetos de modo
criativo. Ela o inicia no uso criativo do mundo. Quando isso falha, a criança perde
o contato com os objetos, perde a capacidade de encontrar qualquer coisa
criativamente. No momento de esperança, a criança alcança um objeto – e o rouba
(Winnicott, 1967a, p.84).
Objeto este que não satisfaz, porque não é este o objeto que ela estava
procurando, ela estava procurando a sua capacidade de encontrar objetos, não um
objeto específico. Isso acontece em vários graus, que de tão comum, chega a ser
normal. Ao pensarmos numa escala, segundo Winnicott, encontramos:
algo que está se enrijecendo como ato compulsivo sem significado e sem produzir satisfação direta, mas florescendo enquanto habilidade; e, em outro extremo, existe
algo que acontece repetidamente em toda família: uma criança reage à privação,
mesmo que relativa, fazendo uso de algum ato anti-social, e os pais respondem de
modo indulgente durante um certo período, no qual pode-se ver bem que a criança está passando por um período difícil (Winnicott, 1967a, p.85).
Já a destruição está relacionada ao desenvolvimento posterior, que constitui
a interação da criança com o pai. O menino (mesmo que seja uma menina,
Winnicott refere-se ao menino que há na menina), “descobre que é seguro ter
sentimentos agressivos e ser agressivo, por causa do quadro de referências da
família, que representa a sociedade de forma localizada” (Winnicott, 1967a, p.85).
O lar possibilita à criança um sentimento de segurança, que lhe permite
explorar “rudemente atividades destrutivas que se relacionam ao movimento em
geral, mais especificamente à destruição relacionada à fantasia que se acumula em
torno do ódio” (idem).
A criança torna-se capaz de fazer uma coisa muito complexa, ou seja, integrar seus
impulsos destrutivos com os amorosos, e o resultado, quando tudo corre bem, é que
a criança reconhece a realidade das ideias destrutivas que são inerentes, na vida, ao
67
viver e ao amor, e encontra modos e maneiras de proteger de si mesma pessoas e
objetos valorizados (...) a criança organiza sua vida de modo construtivo, a fim de
não se sentir muito mal em relação à destrutividade real que passa por sua mente.
Para adquirir isso em seu desenvolvimento, a criança requer, de modo absoluto, um ambiente que seja indestrutível em certos aspectos essenciais: com toda certeza, os
tapetes vão ficar sujos, as paredes terão que receber papel novo e às vezes uma
vidraça será quebrada, mas, de alguma forma, o lar se mantém coeso, e por trás de tudo está a confiança que a criança mantém na relação dos pais; a família é uma
empresa que continua funcionando (Winnicott, 1967a, p.86-o grifo é do autor).
Para Winnicott, diante de uma privação, em termos de rompimento do lar ou
desavença entre os pais, ocorre uma mudança na organização mental da criança,
suas ideias e seus impulsos agressivos se tornam inseguros:
Imediatamente a criança assume o controle que acabou de ser perdido e identifica-se com o novo quadro de referências familiar. Resultado: a criança perde sua
própria impulsividade e espontaneidade. O nível de ansiedade é tão alto que o ato
de experimentar, que poderia fazê-la chegar a um acordo com a própria
agressividade, se torna impossível. Segue-se um período que pode ser outra vez (como no primeiro tipo de privação) razoavelmente satisfatório do ponto de vista
daqueles que cuidam da criança, no qual o menino está mais identificado com os
tutores do que com seu próprio self imaturo (Winnicott, 1967a, p.86-o grifo é do autor).
Diante de um momento de esperança de retorno da segurança, surge a
tendência anti-social, numa redescoberta da própria agressividade. Seu sinal de
“SOS”, em vez de surgir em termos de roubo, neste caso, surge como explosão de
agressão. Esse atos, tanto o roubo quanto a destrutividade são, geralmente, sem
sentido nem lógica, e por isso não adianta perguntar a criança o motivo que a
levou a ter feito o que fez.
De acordo com Winnicott, esse dois tipos clínicos de manifestação da
tendência anti-social estão realmente relacionados entre si. “A união das duas
tendências está na criança e representa uma tendência para a autocura, cura de
uma dissociação de instintos” (Winnicott, 1956, p.141-o grifo é do autor).
Quando há, na época da privação original, alguma fusão de raízes agressivas (ou motilidade) com raízes libidinais, a criança solicita a mãe roubando, ferindo,
fazendo bagunça, de acordo com os detalhes específicos do estado de
desenvolvimento emocional dessa criança. Quando existe menos fusão, a busca de objeto e a agressão estão mais separadas uma da outra na criança, é porque há um
maior grau de dissociação (Winnicott, 1956, p.142).
O incômodo que uma criança anti-social pode causar é uma característica
essencial, e também, favorável, pois “indica ainda uma potencialidade de
recuperação da fusão perdida dos impulsos libidinais e da motilidade” (idem).
68
Tudo indica que o momento da privação original ocorre durante um período em
que o ego do bebê ou da criança pequena está em processo da realização da fusão
das raízes libidinais e agressivas (ou motilidade) do id (Winnicott, 1956, p.145).
Posteriormente, num momento de esperança a criança percebe um novo
ambiente que possui alguns elementos de confiabilidade; experimenta um impulso
que poderia ser chamado de busca do objeto; reconhece o fato de que a
implacabilidade está prestes a tornar-se uma característica marcante e assim:
Agita o ambiente num esforço para alertá-lo para o perigo e para organizá-lo de modo que tolere o incômodo. Se a situação se mantém, o ambiente deve ser testado
repetidamente em sua capacidade para suportar a agressão, para impedir ou reparar
a destruição, para tolerar o incômodo, para reconhecer o elemento positivo na
tendência anti-social, para fornecer e preservar o objeto que é procurado e encontrado (Winnicott, 1956, p.146).
O problema da violência não é a agressividade em si, mas a impossibilidade
da experimentação da agressividade pessoal, a impossibilidade de dar um destino
criativo à agressividade, inerente à vida humana.
Agressividade é gesto, é ação, é o primeiro movimento em direção ao
mundo, é criatividade. O ser humano criativo acontece por meio do gesto, que
acontece em meio à liberdade.
A ação é o que possibilita o surgimento de algo de singular em si mesmo.
Quando algo não vai bem, essa ação surge sob a forma da atitude anti-social, que
deve ser compreendida como indício de esperança.
O indivíduo se movimenta em busca de que o ambiente lhe proporcione a
provisão de que necessita para ser livre, independente e singular. Ser criativo é o
sentido da própria existência, é a criatividade que origina a experiência de
liberdade.
É neste ponto de interseção, entre necessidade de provisão e busca criativa
de liberdade, que se inscreve o trabalho do terapeuta. Ele deve estar disponível
para acolher as experiências do paciente, para compreender seu pedido de ajuda e
trabalhar em função de promover o suporte ambiental na busca pela sua história
singular.
As relações sociais são regidas pelas leis, e viver em sociedade implica
subordinar-se à elas. O desafio do ser humano consiste em buscar uma existência
criativa que esteja de acordo com as leis que regem as relações sociais formuladas
pelo aparato Estatal.
69
4.2 O Sujeito responsável por seu ato
Gostaria de situar nossa experiência no juizado. Trata-se de um momento
específico no processo dos jovens infratores, realizado na reta final de sua
trajetória ali. É descrito como uma medida sócio-educativa, e talvez por isso seja
experimentado por alguns jovens como punição. Apesar de bastante restrita pelo
aparato do Juizado, das condições pouco adequadas quanto à privacidade,
constatamos que é possível oferecer acolhimento aos jovens. Esse acolhimento
pode ser descrito como um ambiente suficientemente bom, no qual alguém,
também representante das leis, quer escutá-los. Saber quem são, de onde vieram, o
que fizeram, em suma, conhecê-los. Winnicotianamente falando, temos o
ambiente suficientemente bom, a possibilidade da construção de um sentimento
de confiança a partir do vínculo, um convite a ter uma experiência de
continuidade no tempo, ainda que limitada. Esta escuta acolhedora nos mostrou
que o adolescente que pratica uma infração tem algo a falar. Alguns conseguem
mais do que os outros, o tempo que permanecem depende de cada um, certamente
em função do grau de dificuldades que sofreram em suas histórias pessoais.
Do ponto de vista da Psicanálise, já sabemos que os indivíduos que se
permitem falar acerca de sua história, podem ser levados a refletir sobre sua
conduta e aos poucos darem-se conta da trama discursiva que configura sua
própria história.
Citarei alguns autores que ilustram a importância do processo de fala em
contextos de escuta psicanalítica; a implicação em suas histórias, a descoberta de
suas motivações inconscientes, a possibilidade de dar sentido aos seus atos e a
responsabilização por estes.
Em psicanálise não se trata apenas de relatar apenas os aspectos sociais, mas
de ultrapassar essa barreira para chegar ao desejo. Em relação à isto, Gondar,
(2004) comenta que:
É com o desejo que o sujeito3 está comprometido, e é pela sua enunciação que ele
deve tornar-se responsável. Assim sendo, o esforço ético do sujeito será o de
responder por aquilo que faz e diz, e pelo desejo que habita sua fala e sua ação. Não se trata evidentemente de se fazer tudo o que se quer, de dar livre curso a
todos os caprichos e a todas as vontades (...) Contudo, o sujeito deve responder por
esse desejo que ele não domina e que, no entanto, traça seu destino: é no seu desejo
3 Nestas citações o termo sujeito está sendo utilizado segundo a terminologia lacaniana. Segundo a
qual, o sujeito é o sujeito do inconsciente.
70
que reside a sua verdade e ele pagará um preço por dizê-la (Gondar, 2004, p.35-
36).
Alberti, em seu livro “O adolescente e o outro” ressalta a importância de se
escutar o sujeito adolescente, visto que o sujeito “é sempre efeito da fala (...) se há
necessariamente algo que caracteriza o sujeito é o fato de ele necessariamente
exercer-se nos diferentes discursos como sujeito de desejos” (Alberti, 2004, p.14).
A autora comenta que
Freud dizia que o desejo é inconsciente, ou seja, todo desejo é desejo do Outro,4 o
que podemos constatar de saída na relação do bebê com o Outro primordial: se o
bebê tem uma mãe suficientemente boa, como diria D.W.Winnicott, é porque está motivada a humanizar seu filho a partir de um desejo que ela não sabe nem ao certo
expressar, mas que está lá, definitivamente. O conceito winnicottiano vem bem a
calhar aqui porque quando se trata de desejo não há modelo, prescrição e nem
mesmo um padrão a ser seguido. Só depois, e aqui nos referimos ao conceito da elaboração, que se dá sempre no a posteriori, pode acontecer a verificação do que
foi uma mãe para o seu filho. É do desejo dela que nascem as demandas do bebê,
ou seja, que ele pode começar a expressar o que quer do Outro. Por sua vez, se é uma mãe suficientemente boa para humanizar seu filho também ela terá demandas
que dirigirá a ele, e que ele pode não querer satisfazer para deixar o espaço aberto
ao desejo – desejo aquém da demanda, que não pode ser exatamente expresso, mas que é toda a razão de viver (Alberti, 2004, p.15).
Gerez-Ambertín apontou algumas contribuições que a psicanálise pode
trazer ao discurso jurídico, principalmente na importância de se valorizar o
“sujeito do ato”. A autora aponta que o sujeito5 deve implicar-se subjetivamente
com seu ato, dessa maneira, o único modo pelo qual o sujeito pode se implicar é
através da palavra. Então, a possibilidade de falar e ser escutado, para implicar-se
em sua história, serve para todos os sujeitos e também para o sujeito adolescente
em conflito com a lei.
É importante assinalar que adolescente em conflito com a lei é uma
expressão jurídica. Em psicanálise todos nós, sujeitos, vivemos um „conflito com
a lei‟, não somente os adolescentes em questão. Trata-se, contudo, de uma lei que
é simbólica e que é introduzida na subjetividade pelo ingresso do sujeito na
cultura, antecedendo as leis que organizam o Estado democrático de direitos.
Braunstein (2006) ao escrever acerca da relação entre direito e psicanálise,
assinala que ao sujeito que vive numa comunidade, é exigido que renuncie ao
gozo singular. Isto o coloca como sujeito dividido entre o seu desejo inconsciente
4 Lacan estabelece que o grande Outro é aquele a partir do qual ocorre a subjetivação do ser
humano. 5 Sujeito aqui está sendo usado segundo a terminologia psicanalítica lacaniana.
71
e o que lhe é proibido. Deste modo, antes da lei do Estado catalogada nos Códigos
Penais, cada sujeito, e não somente o adolescente em conflito com a lei, precisa
confrontar-se com as leis internalizadas pelas funções tanto maternas quanto
paternas, gerando, inevitavelmente conflitos entre o desejado e o proibido.
Segundo o autor:
O Sujeito é pois o resultado de uma divisão consigo mesmo: sujeito do inconsciente e objeto da lei que o sujeita. E esta dupla natureza sustentada por sua
vez por um corpo sexuado, um corpo truncado e desgarrado no conflito da lei com
o desejo. Esta divisão que está no seio de cada um é constitutiva da humanidade considerada tanto a nível social como a nível individual. O outro se introduz no
sujeito e o parte em dois: não resulta um sujeito sem conflito com o Outro
(Braunstein, 2006. p. 21).
O Outro (grafado com „o‟ maiúsculo) indica, na perspectiva lacaniana, o
Outro da cultura, do Estado, de Deus, o poder político, o Outro da linguagem
(ibid. p. 25).
Privilegiaremos a esta altura de nosso estudo a tese de que o sujeito deve
implicar-se em seu ato. Nos utilizaremos principalmente dos textos de Gerez-
Ambertin, que aponta algumas contribuições que a psicanálise pode trazer ao
discurso jurídico. As transcrições do texto da autora foram traduzidas livremente
do espanhol, e algumas passagens foram retiradas da dissertação de mestrado de
Cruz, intitulada “Agressividade e o adolescente em conflito com a lei: um estudo
psicanalítico”, mas o original será mantido em notas de rodapé.
Segundo a autora, para assegurar a existência da vida social, o aparato
jurídico se faz necessário, onde quer que haja seres humanos. Porém a
convivência com a lei jamais é pacífica, pelo contrário, tende a ser sempre
conflituosa. Não é possível se livrar da lei, pois “exilar-se da lei não só deixa fora
do laço social como também fora da casa interior onde se refugiar; sem lei o
sujeito acaba des-subjetivado” (Gerez-Ambertín, 2004, p. 18, apud Cruz, p.93).6
Portanto, segue a autora, na medida em que os parâmetros entre o que é
proibido ou permitido são estabelecidos pela lei, quando estabelecemos os limites,
abrimos espaço para a transgressão. Para que a lei seja transgredida é preciso que
exista um marco da lei, sem o qual não é possível pensar em transgressão, pois
sem lei não há organização humana.
6 (...) exiliarse de la ley no solo deja fuera del lazo social sino también fuera de la casa interior
donde refugiarse; sin ley el sujeto acaba desubjetivizado.
72
Portanto, o laço social é sustentado pela lei. Esta “regula este laço, porém,
como nada é gratuito, o dom que outorga a lei, deixa como lastro uma dívida e
uma tentação” (ibid., p. 19).7 A dívida a qual nos referimos é simbólica e deve ser
paga respeitando-se às leis, mas ao mesmo tempo há uma tentação para transpor
os limites do que é proibido. A lei social, de fato, marca os limites daquilo que
não pode ser ultrapassado, mas provoca nos homens a “inquietante fascinação”
(ibid.) para ultrapassar os limites estabelecidos por ela.
Quando as instituições fracassam em manter a eficácia simbólica da lei, elas
se esvaziam. Isto ocorre quando elas não são cumpridas ou quando os
responsáveis por elas são os primeiros a transgredir, o que é freqüentemente
transmitido nos noticiários. Nesta situação, o sujeito corre o risco de viver numa
espécie de automatismo, sem muitas possibilidades de refletir sobre sua conduta.
Esvaziada a eficácia da lei, fica vazia a eficácia da metáfora do sujeito, o que
conduz até os impasses de um automatismo, de um indivíduo automaticamente
vazio (e, sobretudo, esvaziamento em suas palavras e na ritualidade de seus atos) que, despojado das garantias da lei, é capaz de atacar ou defender-se sob as formas
mais aberrantes e inesperadas, já que, ao sentir a orfandade dos marcos que
deveriam preservá-lo ataca porque se sente atacado, vulnerável: absolutamente
inseguro, sem garantias (ibid., p.19-20, apud Cruz, p.94).8
Assim, quando a eficácia simbólica fracassa, Gerez-Ambertín afirma que o
sujeito fica impossibilitado de ocupar um espaço na cidade como cidadão, o que o
reduz a uma condição de objeto. Em conseqüência, ele atua (ou seja age, ao invés
de pensar/lembrar). Quando não se sente amparado pela lei, perde-se a garantia do
laço social, tanto para as instituições, quanto para o sujeito. O desfalecimento da
eficácia simbólica leva ao sentimento de desamparo que logo se transforma em
ressentimento; e a autora chama a atenção que há somente um passo para ir “do
ressentimento à violência. Assim como, do ressentimento à necessidade. Onde
não há mais transgressão, mas sim, destruição do campo do outro. (ibid. p. 20)9.
7 (...) regula esse lazo, pero, como nada es gratuito, el don que otorga la ley deja como lastre uma
deuda y uma tentación. 8 Vaciada la eficacia de la ley, queda vaciada la eficacia de la metáfora del sujeto, lo que conduce
hacia los atolladeros de un automatismo, de un individuo automáticamente vacío (y sobre todo
vacío en sus palabras y en la ritualidad de sus actos) que, despojado de las garantías de la ley, es
capaz de atacar o defenderse bajo las formas más aberrantes e inesperadas, ya que, al sentir la
orfandad de los marcos que deberían preservarlo ataca porque se siente atacado, vulnerado:
absolutamente inseguro, sin garantías. 9 (...) del resentimiento a la violencia hay sólo un paso, del resentimiento a la necesidad ya no de
transgresiones, sino de destrucciones del campo del otro, hay solo um paso.
73
Portanto, quando não há garantia das leis sociais surge a angústia, o que
favorece o acting out, a passagem ao ato. Para buscar respostas acerca da
violência, a autora recorre a Foucault (1964) em História da loucura na época
clássica para demonstrar a existência da angústia nos relacionamentos sociais.
“Nós os modernos começamos a dar-nos conta de que, tanto na loucura, na
neurose, no crime, como nas inadaptações sociais, ocorre uma espécie de
experiência comum de angústia” (FOUCAULT, 1964 apud GEREZ-AMBERTÍN,
2004, p. 21)10
. E ressalta que a psicanálise é a teoria que melhor aborda a
angústia.
Gerez-Ambertín resume que a lei está implicitamente incluída naquele que a
viola, e, que esta é constituinte da humanidade. A permanente tentação do crime
também está presente em cada um de nós. Tanto a ausência da lei (em sua
carência parcial ou ambigüidade) quanto a permissividade são angustiantes, seja
para adultos ou para crianças e – diríamos nós – também para adolescentes em
conflito com a lei.
Perguntamos então, até que ponto um sujeito pode se tornar responsável e
como ele subjetiva seu delito?
Enquanto o procedimento jurídico se propõe objetivar o que chama “atos danosos”, a psicanálise dá conta de como se subjetiva o proibido e quais são as causas que
levam os homens a se precipitarem nesse cone de sombras do ilícito, cone de
sombras intimamente ligado à culpabilidade, ao inconsciente e ao supereu (ibid. p. 21-22, apud Cruz, 95).
11
De acordo com a autora, a psicanálise aponta para uma causalidade psíquica
inconsciente dos atos humanos. Ela nos mostra que o sujeito é movido pelas
pulsões, e dessa maneira não goza de plena liberdade. Esse é o motor
inconsciente. Por outro lado, como há outras instâncias na economia psíquica, o
eu e o supereu; isto não o impede de se questionar acerca do seu envolvimento e
das implicações de seus atos.
Em seu artigo sobre o sujeito como efeito da lei, Elmiger (2006) assinala
que a vida humana, instituída, institucionalizada, o sujeito é estudado tanto pela
psicanálise quanto pelo direito, mas que o sujeito do Direito é o agente, autor de
10 Nosotros los modernos comenzamos a darnos cuenta que, bajo la locura, bajo las neurosis, bajo
el crimen, bajo las inadaptaciones sociales, corre una especie de experiencia común de la angustia. 11 Mientras el procedimiento jurídico se propone objetivar lo que llama “actos danosos”, el
psiconálisis da cuenta de cómo se subjetiviza lo prohibido y cuáles son las causa que llevan los
hombres a precipitarse en ese cono de sombras de lo ilícito, cono de sombras íntimamente ligado a
la culpabilidad, al inconsciente y al superyó.
74
um ato, enquanto que o sujeito da psicanálise é justamente o sujeito do
inconsciente, que é resultado, produto da palavra do Outro. Como esclarecimento,
a autora se utiliza de uma citação de Braunstein (1995):
(...) os advogados seriam os funcionários do dia, da palavra claramente expressada,
da lei escrita, do texto que se pode aprender e memorizar e que não tem
contradições, porque toda contradição tem que ser eliminada do texto legal para que não haja ambigüidades, enquanto que os psicanalistas somos os funcionários
da noite, do sonhar, dos equívocos, da ambigüidade, da incerteza, do que não se
pode objetivar, do que não se pode contar (Braunstein, 1995:78 apud Elmiger, 2006, p. 106).
12
Gerez-Ambertín sustenta que é “possível e necessária a implicação do
sujeito no seu ato do delito” (Gerez-Ambertín, 2004, p. 23). Para a psicanálise
este sujeito tem condições de estabelecer um diálogo consigo mesmo e com a lei.
Não se trata, portanto, de um discurso de vitimização do sujeito. A autora ressalta
que a psicanálise não se coaduna com nenhum tipo de determinismo, pois esta
privilegia o desejo implicado nos atos do sujeito:
A psicanálise pouco ou nada tem que ver com “determinismo” algum e que é falaz atribuir-lhe a intenção de tirar a responsabilidade, pois se há algo que procura é,
precisamente, o encontro do sujeito com sua “responsabilidade” no que cabe aos
desejos e ainda aos gozos que o atravessam (ibid., p. 26, apud Cruz, p.100).13
Ao falarmos de responsabilização do sujeito, trata-se de mostrar que a
objetividade legal é insuficiente ao se investigar os atos do sujeito, tendo em vista
que se restringe ao aspecto consciente deste. Para que haja uma verdadeira
responsabilização, o que significa descobrir o sentido do ato, é condição sine qua
non, que o inconsciente seja levado em conta.
A descoberta do inconsciente ensinou-nos que a culpabilidade subjetiva não nos é
acessível pela cientificidade objetiva, mas sim por uma interrogação sobre o saber à meia luz (via o discurso e a associação livre) de verdades sobre si às quais todo o
sujeito pode ter acesso e que determinam, em cada um, o modo mediante o qual
assume sua relação com a falta: o homicídio fantasiado (desejado) ou o homicídio
consumado (ibid., p. 27, apud Cruz p.100).14
12 Los abogados serían los funcionarios del día, de la palabra claramente expresada, de la ley escrita, del texto que se puede aprender y memorizar y que no tiene contradicciones, porque toda
contradicción tiene que ser eliminada del texto legal para que no haya ambigüedad, mientras que
los psicoanalistas somos los funcionarios de la noche, del soñar, de las equivocaciones, de la
ambigüedad, de la incertidumbre, de lo que no se puede objetivar, de lo que no se puede contar. 13 [...] el psicoanálisis poco y nada tiene que ver con “determinismo” alguno y que es falaz
atribuirle la intención de liberar de responsabilidad, pues si hay algo que procura es, precisamente,
el encuentro del sujeto con su “responsabilidad” en lo que cabe al deseo y aún a los goces que lo
atraviesan. 14 El descubrimiento del inconsciente nos ha enseñado que la culpabilidad subjetiva no nos es
accesible por la cientifización objetivista, sino por una interrogación sobre el saber a media luz
(via el discurso y la asociación libre) de verdades sobre sí a las que todo sujeto puede acceder y
75
A autora afirma então, que mais do que tentar apenas fazer a reconstrução
do ato (reconstituição do crime) dever-se-ia interessar-se pela reconstrução do
sujeito do ato. Numa análise jurídica não se deveria separar o sujeito de seu ato.
Dessa ótica, a única forma que o sujeito tem de dar significado ao seu ato é
através do discurso, a autora parte “de uma hipótese psicanalítica já indicada
anteriormente: só é possível vincular o autor do ato com o ato criminoso se a
culpabilidade se acompanha da responsabilidade, isto é, se o autor pode subjetivar
a culpa e atribuir significação a seu ato” (ibid., p.29).15
A culpa faz parte do sujeito, e é o que permite ao sujeito assumir as
conseqüências do seu ato de delito. Em psicanálise, a culpa é o registro da falta
na subjetividade, é o registro de que há algo que opera com um limite (a lei) e
pelo qual é preciso responder, não somente ao mundo externo, mas para si, em seu
tribunal interior.
Gerez-Ambertin, ao citar Lacan, comenta que não se pode pensar na
estrutura do sujeito sem que se leve em consideração esta categoria onipresente
que é a culpa. Extirpar a culpa supõe a dissolução da subjetividade (Gerez-
Ambetín, 2004, p.82).
A culpa dá conta da relação do sujeito com a lei, da lei que surge como
resultado da inscrição do significante do Nome-do-Pai16
, da lei que introduz a
castração simbólica (Gerez-Ambetín, 2004, p.83).
A culpa requer o olhar do Outro e o Juízo do Outro. Este desdobramento do sujeito vinculado à consciência moral (um tribunal interior: o que olha e o que julga), é o
que faz com que o sujeito se julgue e se castigue, ou seja, a culpa inconsciente é o
padecimento estrutural do ser humano que vocifera sobre a duplicidade que nos habita (Gerez-Ambetín, 2006, p.45).
Por isso, Freud desde sua conceituação sobre o inconsciente estabelece que
não há autonomia na subjetividade (não se pode pensar que um seja “um mesmo”)
é o que ele chama da ficção da unidade do eu, e desta forma, esta tem a
que determinan, en cada uno, el modo mediante el cual asume su relación con la falta: el homicidio
fantaseado (deseado) o el homicidio consumado. 15 Parto de una hipótesis psicoanalítica ya indicada anteriormente: sólo es posible vincular al actor
del acto com el acto criminal si la culpabilidad se acompaña de responsabilidad, esto es, si el actor
puede subjetivizar la culpa y asignar significación a su acto. 16Descrito por Lacan através da Metáfora Paterna, é o conceito onde a função simbólica se torna
lei, que é a proibição do incesto. Não pretendemos aqui nos aprofundar na teoria lacaniana, o que
mereceria um espaço que ultrapassa os limites deste estudo.
76
responsabilidade de decifrar as formações do inconsciente, isto é, de responder
por elas. A grande descoberta freudiana não é somente o inconsciente, mas
decifrar as ferramentas simbólicas (como o lapso ou o chiste, pois somos culpados
pelo conteúdo dos mesmos) (Gerez-Ambetín, 2006, p.45). Quaisquer que sejam as
formações do inconsciente, o sujeito deve ser responsável pelas suas inúmeras
formas de culpa.
Em suma, a culpa inconsciente é uma falta ignorada pelo sujeito, e o sujeito não
pode escapar da responsabilidade de se interrogar por esta falta, pois uma vez ignorada (...) provoca mal-estar, remorsos, vergonhas, inibições, auto-acusações,
atos impulsivos incompreendidos, crimes sem motivo. (...) Nesse sentido, a culpa
para a psicanálise, está ligada a responsabilidade e o sujeito não pode se desprender dela (Gerez-Ambetín, 2006, p.46).
A concepção jurídica da culpabilidade implica num conjunto de condições
que determinam que um autor de uma conduta tida como antijurídica seja
criminalmente responsável pela mesma. Estas condições dependerão do ponto de
vista que se adote com respeito à pena. A questão da imputabilidade é uma destas
condições. Para ser culpado, um sujeito deve ser imputável. Ele pode ser
imputável e não ser culpado, mas um menor de idade, portanto inimputável, para
o Direito não pode ser culpado. Existe uma divergência entre Direito e Psicanálise
(Gerez-Ambetín, 2006, p.46).
Legendre (2004), nos aponta que “o direito é antes da mais nada uma
operação do discurso e a normatividade que preza só funciona se tal discurso for
considerado apropriado justamente na forma dogmática (...) trata-se da forma do
discurso que diz sempre a verdade” (Legendre, 2004, p.16).
O fato de ser o direito um discurso acarreta uma exigência lógica: que este discurso
tenha um sujeito. Não haveria discurso se uma sociedade fosse apenas um
aglomerado de indivíduos justapostos; um tal aglomerado não poderia articular um discurso que lhe fosse próprio. Esse tipo de sociedade seria sem palavra e sem
corpo. É preciso, portanto, fabricar um corpo, através do qual a sociedade possa
falar. É justamente pela alquimia jurídica que é obtido esse corpo bem especial, que todas as culturas do planeta se permitem os meios de produzir (Legendre,
2004, p.21).
Tanto no campo jurídico como psicanalítico a palavra é importante, porque
toda ação se sustenta na palavra. E a autora completa que temer a vergonha, o
remorso, a culpa pelas suas ações é algo que vai mais além das emoções, supõe o
sujeito posicionar-se ante a lei e ante ao olhar do Outro da lei, e neste sentido, a
77
questão jurídica da “capacidade de reciprocidade” é fundamental (Gerez-
Ambertín, 2004, p. 33).
Em contrapartida, uma pessoa pode cumprir toda a pena que lhe é imposta e
nunca assumir as conseqüências do seu ato, se não há implicação subjetiva a pena
é recebida como mero castigo, visto que “entender a pena como uma vingança
injusta é a via mais rápida e simples à “auto desculpabilização”, a partir da qual
não é improvável que o „iter criminis‟ recomece”17
(ibid).
A falta de reconhecimento e significação da sanção penal leva a redobrar a
tendência da passagem ao ato criminoso e as legislações penais têm sido
construídas não somente com o objetivo de estabelecer sanções, mas também, e fundamentalmente, para prevenir delitos. O objetivo (ao menos declarado) da lei
penal é estabelecer uma sanção para IMPEDIR que se cometa a infração e não
castigar as infrações cometidas [...] Daí a importância de que o delinquente outorgue significação às penas que se lhe aplicam (ibid., p. 34, apud Cruz, p.106).
18
Portanto, o temor do castigo não funciona como um bom método
preventivo, negligenciar o discurso do sujeito ou qualquer tipo de implicação
subjetiva de seu ato, pode potencializar sua conduta criminosa. Por outro lado, se
o réu for capaz de dar sentido ao seu ato ele poderá responsabilizar-se pelo
mesmo.
Com a aplicação da pena deve se pretender que o autor do ato dê algum significado
ao mesmo, que subjetive sua falta e recupere (não perca) seu lugar no tecido social
ao qual seu ato causou danos, mas também recupere aquilo de sua própria
subjetividade que ficou danificado pelo ato delituoso. Superado o mandamento de Rousseau de excluir com o desterro ou a morte a quem rompeu o pacto, temos que
admitir que o delito não somente causa danos ao tecido social, também causa danos
ao sujeito que o cometeu e pouco conseguiremos se a “reparação” do dano é meramente o suplício do delinquente (ibid., p. 35, apud Cruz, p.106).
19
17 O inter criminis significa caminho do delito. Eis a citação da autora: entender La pena como
uma venganza injusta ES La via más rápida y simple a “auto desculpabilización”, luego de La cual
no ES improbabile que El “ite criminis” recomience. 18 La falta de reconocimiento y significación de la sanción penal lleva a redoblar la tendencia al
pasaje ao acto criminal y las legislaciones penales han sido construidas no solo con el objetivo de establecer sanciones sino, y fundamentalmente, para prevenir delitos. El objetivo (al menos
declarado) de la ley penal es establecer una sanción para IMPEDIR que la infracción se cometa,
no castigar las infracciones cometidas [...] De allí la importancia de que el delincuente otorgue
significación a las penas que se le apliquen. 19 Con la aplicación de la pena debe pretenderse que el autor del acto dé alguna significación al
mismo, que subjetivice su falta y recupere (no pierda) su lugar en el tejido social al que su acto ha
dañado, pero también, recuperar eso de sua propria subjetividad que quedó dañado por el acto
delictivo. Superado el mandato de Rousseau de excluir con el destierro o la muerte a quien rompió
el pacto hemos de admitir que el delito no solo daña el tejido social, también daña al sujeto que lo
cometió y poco conseguiremos si la “reparación” del daño es meramente el suplicio del
delincuente.
78
Deve-se ter em mente que não estamos falando aqui em “cura” para o
delinquente ou levantando a bandeira de tratamento psicanalítico a todos que
passam pelo judiciário. Trata-se principalmente de se levar em consideração que
aquele que comete um delito deve ter seu discurso levado em consideração, visto
que responsabilizar-se por seus atos pode lhe permitir fazer parte do laço social.
a “cura” não pode ser outra coisa senão uma integração pelo sujeito de sua verdadeira responsabilidade e isso porque o homem se faz reconhecer por seus
semelhantes pelos atos cuja responsabilidade assume. Essa responsabilidade que é
o preço a pagar por viver em sociedade (ibid., p. 36, apud Cruz, p.107).20
Punição, pura e simples, como já vimos no primeiro capítulo deste estudo,
não diminui a criminalidade. Apontamos que uma saída possível é a de valorizar o
discurso e a subjetividade, ao se oferecer a possibilidade da palavra e da escuta,
para que aquele em “conflito com a lei” se torne sujeito de seu ato.
Gerez-Ambertín propõe que seja feito um trabalho com o réu. A autora não
apresenta exatamente um modelo a ser seguido, mas nos indica que o trabalho
deve permitir que o réu possa conferir alguma significação a esta “criminalidade”,
algo que lhe permita envolver-se eticamente com seu ato. Este seria o único
caminho para que ele subjetive sua pena.
A sanção penal não deve ser compreendida como uma simples aplicação
administrativa, como um dispositivo que funciona quase automaticamente, quase
“sem sujeito”, ou melhor, com a exclusão do sujeito. Não se trata de propor
tratamento psicanalítico ao réu, sobre isso a autora é bem clara: “poucas coisas
são mais ridículas que mandar que alguém faça psicanálise” (2004, p.35). No
entanto, nossa experiência demonstra que oferecer um espaço de escuta pode ser
terapêutico em alguns casos. Abordaremos as peculiaridades dessa forma de
atendimento no próximo capítulo desta dissertação.
20 [...] la “cura” no puede ser otra cosa que una integración por el sujeto de su verdadera
responsabilidad y ello porque el hombre se hace reconocer por sua semejantes por los actos cuya
responsabilidad asume. Esa responsabilidad que es el precio a pagar por vivir en sociedad.