7 prandi - converter indivíduos, mudar culturas

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    Reginaldo Prandi

    C onverter indivduos, m udar culturas*

    I

    A persistir a tendncia atual de converso religiosa, a Amrica culturalmen-te catlica se tornar num futuro no distante culturalmente evanglica?Asrelaes entre as religies e as culturas e os devotos, antigos e potenciais,tomados individualmente compreendem aspectos e abordagens variadas. meu propsito neste artigoapontar tendncias recentes da religio, pro-curando mostrar que a relao com a cultura diferente quando se tratadesta ou daquela religio, e que essa particularidade importante para seentender a dinmica atual das religies em termos de seu crescimento, es-

    tagnao ou declnio.Socilogos entendem que a religio, sobretudo a que pode ser classifica-

    da como internalizada (Camargo, 1971; Pierucci e Prandi, 1996), intervmna viso de mundo, muda hbitos, inculca valores, enfim, fonte de orien-tao da conduta. Antroplogos ensinam que a cultura constitui um pro-cesso pelo qual os homens orientam e do significado s suas aes atravsde uma manipulao simblica que atributo fundamental de toda prticahumana, nas palavras de Eunice Durham (2004: 231). comum dar como

    certo que a religio no apenas parte constitutiva da cultura, mas tambma abastece axiolgica e normativamente. E que a cultura, por sua vez, inter-fere na religio, reforando-a ou forando-a a mudanas e adaptaes. Ain-

    * O presente texto re-produz minha confe-rncia inaugural nasXIV Jornadas sobre Al-ternativas Religiosas naAmrica Latina, reali-zadas em Buenos Aires,de 25 a 28 de setem-bro de 2007. Agrade-o a Mara Julia Caro-zzi e Alejandro Frigerioe aos demais membros

    da comisso organiza-dora pela distino doconvite para abrir asJornadas de 2007. AAntnio Flvio Pieru-cci sou grato por crti-cas e sugestes no pre-paro do texto. Versoreduzida e modificada

    foi publicada sob o t-tulo Religions andcultures: religious dyna-

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    da que tais definies possam ser questionadas diante da crise conceitualcontempornea, religio e cultura ainda so referidas uma outra, sobretu-do quando se trata de uma nao, uma etnia, um pas, uma regio.

    Diz-se que a cultura da Amrica Latina catlica, embora apresentedistines internas devidas formao histrica diferenciada de cada um deseus pases e regies. Assim, a cultura brasileira e algumas outras se distin-guem por seu carter sincrtico afro-catlico. Nelas, a dimenso religiosade origem negra ocupa espao relevante, maior que os de elementos indge-nas; nos pases em que prevalece a religiosidade catlica com pouca ounenhuma referncia africana, componentes de origem indgena podem ocu-par lugar mais importante que aquele observado no Brasil. Sabemos, con-

    tudo, que a cultura muda, e que a formao de uma cultura global se impea padres locais.

    Nos dias atuais, com o avano das igrejas evanglicas e o concomitantedeclnio do catolicismo, o debate sobre religio e cultura tem proposto ques-tes importantes, como esta, antes referida: uma Amrica Latina de maioriareligiosa evanglica se tal mudana viesse a se concretizar seria cultural-mente evanglica?No Brasil, apagaria os traos afro-brasileiros, repudiadospelos evanglicos de hoje?Extinguiria o carnaval, as festas juninas de Santo

    Antnio, So Joo e So Pedro, o famoso So Joo do Nordeste?E ostopnimos catlicos seriam mudados rios, serras, cidades, ruas?Os nomesde estabelecimentos comerciais, indstrias, escolas, hospitais?A cidade deSo Paulo voltaria a se chamar Piratininga?

    No so perguntas para responder num exerccio de futurologia, masdo o que pensar. Afinal, cultura e religio so muito interligadas, a pon-to de se confundirem no passado e ainda hoje em muitas situaes esociedades. E tambm podem, como conceitos, ter definies diferentes.

    Maneiras diversas de conceituar religio e cultura no so encontradasapenas entre cientistas sociais, preocupados com suas teorias e voltados produo de uma compreenso da realidade social. Tambm h diferenasprofundas na forma como cada religio por meio de seus pensadores entende o que cultura e explica a si mesma como instituio, produzindoestratgias especficas de se pr no mundo ou, mais precisamente, no con-texto do mercado religioso contemporneo, que implica concorrncia, pro-paganda, tcnicas de persuaso, definio do consumidor e meios eficazes

    de chegar a ele (Pierucci e Prandi, 1996).Religies tradicionais de crescimento vegetativo tm que reter seus se-

    guidores, evitar que mudem de religio. Religies que crescem pela conver-

    mics in Latin America,em Social Compass, 55(3): 265-275.

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    so tm que conquistar novos adeptos. Um modo de a religio se posicionarconsiste em considerar que os devotos esto no mundo, numa sociedade,num territrio, numa cultura que preciso conhecer para defender ou cap-

    turar. Isso no nenhuma novidade histrica. Com o cuidado devido a umacomparao desigual, podemos imaginar que, em outros tempos, conquis-tadores de outro tipo usaram o conhecimento da cultura fundando paraisso uma cincia nova, a antropologia como meio de conquista e domina-o. No perodo avanado do colonialismo, pases que contavam com umacincia da cultura puderam dominar os conquistados sem ter que necessa-riamente destruir sua cultura original. Pases que no cultivavam tal habili-dade tenderam a persistir na poltica de terra arrasada, sobrepondo sua cul-

    tura do invadido. Na destruio de culturas nativas pelo invasor, a religiofoi a ponta-de-lana da dominao, porque ela, especialmente ela, podianaquele tempo ensinar o que era a verdade do mundo e fundamentar asrelaes sociais e econmicas que passavam a imperar nos territrios domi-nados. Para um novo mundo, um novo deus, o Deus nico e verdadeiro foi lema na conquista da Amrica indgena.

    Hoje, felizmente, a religio tem alcance menor e s pode conquistarindivduos, um a um. No tem fora nem brao armado para submeter

    naes. A religio de hoje busca a universalizao, indiferente identifica-o com esta ou aquela nao. Essa regra contrariada pelos casos em que,primeiro, a religio, negando uma tendncia ocidental avanada na moder-nidade, continua a existir como religio tradicional de preservao de umpatrimnio tnico, isso , como religio cultural; segundo, ela se faz reli-gio de Estado, o que ocorre com freqncia no mundo islmico; e, tercei-ro, as comunidades de imigrantes que se renem, segregados, em pases ecidades em que a religio predominante outra, assim como a lngua e os

    costumes. Ainda h, nessa categoria, os grupos indgenas isolados.Vamos limitar nossas preocupaes ao mundo das religies de carter

    universal, confrontando, num primeiro momento, o catolicismo com oevangelicalismo. Antes seria apropriado tratar de algumas idias mais geraissobre a cultura nos dias de hoje.

    II

    No clima dos movimentos de contestao da dcada de 1960, a nooherdada de cultura imutvel e homognea foi radicalmente contestada. Ailuso, antes talvez a realidade, de culturas fixas e coesas se dissolveu, assim

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    como a identidade fixada por nascimento, diz Adam Kuper (2002: 263-272). Podemos acrescentar nesse processo a dissoluo da determinao dafiliao religiosa.

    Uma nao uma cultura, uma cultura uma nao coisa do passado,anterior queda do colonialismo. Hoje, quando se fala em cultura, logo sur-ge a idia da existncia de uma cultura global, sem fronteiras a globalizaocultural do planeta (Mazzoleni, 1992). Essa cultura abrangente marcadapela coexistncia da diversidade ps-colonial, com a atuao de relaes so-ciais das mais diversas ordens e origens.

    Na cultura global podemos imaginar muitos recortes, se levarmos emconta a presena ativa de indivduos que, de acordo com este ou aquele cri-

    trio, pensam e agem diversamente, construindo e manipulando de formadesigual smbolos da mesma matriz. comum considerar que existe umacultura da juventude, uma cultura dos homens de negcio, a cultura negra,a cultura do migrante, a cultura da pobreza, cultura gay, cultura das mulhe-res, cultura da terceira idade, e assim por diante. Segundo Ulf Hannerz, cadauma dessas culturas pode ser encontrada em todo lugar, porque h jovens emtodas as partes do mundo, mulheres tambm etc. etc. (Hannerz, 1996: 30).

    Uma religio tambm se diversifica internamente. O evangelicalismo,

    que j uma diversificao do protestantismo, formado por uma mira-de de igrejas com diferenas pequenas e grandes. O catolicismo romanotambm no uniforme, embora centralizado numa Igreja. Em seu inte-rior proliferam muitos movimentos que propem relaes diversas comindivduos, grupos e cultura. Houve o tempo do catolicismo da teologiada libertao, que imaginava mudar a sociedade, a cultura, e que passou,superado pelo movimento de Renovao Carismtica, focado ao con-trrio daquele no indivduo, na cura e nos dons do Esprito Santo,

    moda pentecostal (Prandi, 1997). Para a maioria dos catlicos, esses mo-vimentos so vistos com indiferena ou desconfiana. Tratados com re-serva pelo Vaticano, no chegam a afetar a face mais geral do catolicismo.So movimentos de adeso individual que, de certo modo, fazem a crticado antigo catolicismo.

    A cultura global marcada por diferenas de religio. Antes, a diferenareligiosa era entre naes, agora entre indivduos. E o que define a culturaglobal a pressuposio da existncia de relaes sociais entre indivduos de

    diferentes naes, pases, regies do mundo, rompendo com o isolamentodas culturas locais. A religio, nesses termos, limita, restringe, particulariza.Tomemos um exemplo. Numa cultura mundial de juventude, hoje, quatro

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    elementos ocupam certamente lugar proeminente: sexo, drogas, rocknrolle internet. Mas haver tambm uma cultura de jovens evanglicos, digamos.Um garoto dessa cultura pode se integrar com outros jovens do mundo in-

    teiro por meio da internet, manter seus grupos de discusso, ter seu espaono Orkut, enviar e receber mensagens por e-mail, mas, sendo evanglico,riscar de seu horizonte muito do que diz respeito ao sexo e s drogas, quegeralmente lhe so interditos, e sua experincia musical estar restrita m-sica evanglica, pela qual os jovens no evanglicos do mundo no estarominimamente interessados. Esse jovem evanglico no participar, por cau-sa dos limites estticos e comportamentais impostos por sua religio, de umgrupo maior do que aquele limitado pela sua prpria igreja. Ele est fora de

    uma cultura mundial de jovens, mesmo usando jeans, calando tnis e co-mendo Big Mac. Sua religio , nesse sentido, restritiva, excludente.

    Ainda que pertencesse a outra religio, provavelmente continuaria ex-cludo, porque todo grupo de jovens religiosos procura se auto-excluir. Acultura crist jovem costuma se mostrar como a prpria negao da juventu-de, caracterizada por sua rebeldia, imprudncia e ousadia. Nela, o fervor re-ligioso exasperante do jovem soa despropositado, e sua confiana na lideran-a adulta tem algo de ingnuo e subserviente. Muito de suas atitudes revela a

    sublimao do sexo, quando no sua castrao. Aos olhos de outros jovens,ele visto com reserva.

    Vejamos outro exemplo. Um catlico carismtico poder se conectarmais facilmente com carismticos catlicos de Barcelona, Budapeste ouBogot do que com os catlicos no carismticos do bairro da Penha, emSo Paulo, onde ele mora, estuda e trabalha. A religio aproxima os iguais eos distancia dos outros, agrega e imprime identidade, como faz a cultura.Mas como se trata de uma escolha e no mais de um atributo herdado, o

    outro do qual ele se afasta pode ser sua prpria famlia ou indivduos quenaturalmente lhe seriam prximos.

    Em vez de atuar como amlgama social, a religio nesse caso estariaatuando como solvente de relaes sociais tradicionalmente bsicas, dissol-vendo antigas pertenas e linhagens, como mostrou Pierucci (2006). Pen-sado em termos de cultura, isso significa uma mudana importante no squanto construo da identidade (que agora requer a escolha religiosa),quanto de lealdade. Quando a cultura tradicional brasileira entrou em crise

    na esteira do processo de industrializao baseado no capital multinacio-nal, o capital sem ptria, sem nao, socilogos perguntaram-se com quemseriam estabelecidas as futuras relaes de lealdade, uma vez que, nessa nova

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    sociedade capitalista, os antigos laos da famlia patriarcal, da religio tradi-cional, das relaes pessoais de trabalho etc. tornavam-se cada vez maisfrouxos. A nova lealdade do indivduo seria com as empresas multinacio-

    nais?Isso felizmente se revelou uma boutadeda sociologia, mais que outracoisa. Quando aquele futuro chegou, se pde perceber como a religio aque agora o indivduo adere por livre escolha (e que no a religio tradi-cional) pode ser uma nova fonte de lealdade, criando-se no mbito da novacultura elementos de apoio emocional e justificativas socialmente aceitveispara que ele possa se libertar com legitimidade da antiga religio e daquelesoutros velhos laos sociais. A religio passa a atuar, portanto, como solventenuma cultura que promove o indivduo, valoriza as escolhas pessoais e fixa

    suas ncoras por todo o globo terrestre sem se prender em especial a lugarnenhum. Nesse novo contexto, podemos continuar chamando a culturabrasileira ou a latino-americana de catlica?Sim, pelas origens e pelos smbo-los que mantm; e no, pelo esgotamento da orientao que pressupunha afidelidade ao catolicismo.

    III

    Ao se tomar uma cultura como objeto de reflexo, preciso consideraros indivduos que dela participam, que a partir dela orientam suas aes,que manipulam seus smbolos e a transformam. Se o que mais nos interes-sa, no caso da religio, so os valores e normas, preciso considerar que eless fazem sentido no contexto da conduta real dos indivduos e no podemser dissociados das aes que orientam e que podem constituir padresculturais, mas que tambm so histricas e concretas. No se pode perderde vista que h um processo permanente e rpido de reelaborao cultural

    na sociedade atual, e que tanto o indivduo como as instituies e o merca-do tm conscincia disso em maior ou menor grau, procurando no apenastirar proveito dessa condio, mas interferir no processo.

    O contrrio seria imaginar a cultura como um continer, como hoje sediz no campo da educao comparada, usando um modelo em que umacultura definida e diferenciada em oposio a outra (Lambeck e Boddy,1997), como dois sujeitos que poderiam dialogar entre si. Implicaria trat-la como uma objetividade concreta, que ela no tem, como se os indivduos

    estivessem dentroda cultura, como se a cultura contivesseos indivduos,isolando-os e impondo limites compreenso e ao agir humanos (Hoffman,1999). O continer poderia ser modificado de fora para dentro, levando

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    com ele os indivduos que esto l dentro. A cultura no e cada vez menos um compartimento fechado, isolado. Evidentemente h muitasgradaes, com interao e partes comuns em maior ou menor grau. Mais

    do que nunca, hoje os indivduos que vivem uma determinada cultura es-to em permanente contato com outros que vivem suas culturas prprias,integrando-se, uns e outros, numa cultura globalizante, sem fronteiras, emque diferentes fontes e referncias se cruzam e se substituem, fazendo dasculturas especficas vasos comunicantes enredados em possibilidades semfim. Mas h quem no veja as coisas assim.

    Pensadores e lderes catlicos acreditam que a Amrica Latina continuasendo um continente de cultura catlica e que os latino-americanos, por

    conseguinte, so naturalmente catlicos. H quem diga que a Amrica La-tina profundamentecatlica! O crescimento exponencial do pentecostalis-mo mostra que isso j significa muito pouco. Acreditam tambm que, se areligio vai mal, preciso renov-la agindo nacultura, no sentido de traz-la de volta ao catolicismo. Para isso procuram estabelecer um dilogo daIgreja com a cultura e no com os indivduos. O declnio constante docatolicismo mostra que essa maneira de ver a cultura ineficaz. Mas esseno um problema que diga respeito apenas Igreja catlica latino-ameri-

    cana. O Vaticano pensa o mesmo com respeito aos pases europeus: a Euro-pa um continente de cultura catlica, logo, a presena cada vez maior deoutras religies, sobretudo as levadas pela imigrao, aliada ao desinteressedos europeus por qualquer religio, soa Igreja como uma crise que se dna suposta cultura europia catlica e que pode ser sanada por um esforoda Igreja de restaurao cultural.

    Enquanto perde fiis sem parar, o catolicismo, nas palavras de Flvio Pie-rucci, se pensa referido antes de mais nada a povos com suas culturas do que

    a seres humanos com sua humanidade e insiste em querer evangelizar asculturas, pretenso que hoje se resume na seguinte palavra de ordem teol-gica, mas de inspirao etnolgica inculturao (Pierucci, 2005).

    Inculturar nada mais que inserir na cultura algo tomado de fora oumudar o significado de algo que j est nela contido.

    Baseando-se no artigo Catequesis e inculturacin (1978), do padrePedro Arrupe, superior geral da Companhia de Jesus por quase vinte anos,Marcelo Azevedo explica que:

    Incul turao o processo ativo que, a partir do prprio interior da cultura, recebe a

    revelao catlica atravs da evangelizao, e que a compreende e traduz segundo

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    seu modo de ser, de atuar e de se comunicar. Esta semente da f se desenvolve ento

    nos termos e segundo a ndole da cultura que a recebe. A incul turao o processo

    pelo qual a vida e a mensagem crist so assimiladas pela cultura de modo a no

    somente se expressar pelos elementos prprios dessa cultura, como tambm a seconstituir em inspirao, norma e fora que transformam, reanimam e recriam

    essa cultura (Azevedo, 2007).

    Da conclui que a inculturao, portanto, implica e conota sempre umarelao entre a fea(s)culturas(s), realidades que abarcam a totalidade davida e dos seres humanos, num nvel individual e comunitrio (Idem).

    Na mesma linha, diz o telogo catlico Faustino Teixeira que a

    inculturao implica sempre uma reinterpretao criadora, o choque deum encontro criador, e que o empenho em favor da inculturao exigeum conhecimento aprofundado da cultura com a qual a mensagem cristestabelece relao (Teixeira, 2007). Evidentemente, essa estratgia de aonaou coma cultura trata de identificar as culturas especficas, as variantesnacionais, regionais e locais, as culturas de grupos, classes e categorias so-ciais, de modo a dotar a ao evangelizadora de certo fundamento cient-fico emprestado por uma antropologia que reifica o conceito de cultura e

    a imagina como portadora dos indivduos.Enquanto isso, o protestantismo pentecostal e neopentecostal segue

    adiante, conquista, nessa Amrica catlica, mais e mais fiis, convertendoindivduo por indivduo, sem se importar a mnima com a evangelizao dacultura. Sua estratgia consiste em trazer novos seguidores, convertidos in-dividualmente para dentro de suas igrejas, construir mais e mais templos,avanar no territrio do outro, ciente de que de gro em gro a galinhaenche o papo. Da cultura ele aproveita alguns elementos que possa usar em

    seu favor smbolos, referncias, imagens, benzimentos, pequenas magias aque os candidatos converso esto afetivamente habituados.

    A histria recente do pentecostalismo no Brasil mostra, inclusive, quesua estratgia de expanso parte do individual, do mido, do pequeno,reservadamente, para aos poucos ir se mostrando de forma grada, se im-pondo por fim na paisagem, forando, por assim dizer, seu reconhecimen-to e ingresso na cultura. A emblemtica Igreja Universal do Reino de Deusinstalou-se primeiro nos sales desocupados das grandes cidades, nos cine-

    mas fora de uso, em galpes de aluguel. At chegar o dia em que as coisasmudaram e seu bispo fundador anunciou algo como ter chegado o tempode construir catedrais. E as catedrais dessa igreja smbolo de consolidao

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    de seu processo de institucionalizao e meio de incorporao culturabrasileira comearam a ser plantadas na paisagem urbana do maior pascatlico do planeta. Do mesmo modo, mesquitas imponentes foram se

    impondo na paisagem de capitais da Europa, inclusive em Roma, revelan-do a presena agora inequvoca de um isl de imigrantes, que por muitotempo ali cresceu na sombra.

    As palavras seguintes de Antnio Flvio Pierucci resumem a diferenamarcante entre catolicismo e religies evanglicas em sua relao com acultura.

    Pergunte se qualquer uma das igrejas de converso puramente individual, como as

    evanglicas, no intuito de responder aos desafios do nosso tempo, vai l perdertempo com a reevangelizao da cultura! E, no entanto, so elas as que mais cres-

    cem nessas naes catlicas que se estendem de norte a sul da Amrica catlica,

    no sem desde logo alcanar em plena Amrica protestante os novos imigrantes

    de origem hispnica ou brasileira, culturalmente catlicos, mas j agora postos em

    franca disponibilidade para uma converso provavelmente evanglica apostasia

    que no cessa de multiplicar-se, minando por baixo e por dentro os povos cultu-

    ralmente catlicos que o discurso pastoral de Joo Paulo II no se cansava de

    contemplar, envaidecido, em seu embaado retrovisor polons (Pierucci, 2005).

    Poderamos dizer mais: olhando saudosamente para o passado, a Igrejadeixa de se interessar pelos avanos que podem ser observados na culturaem termos de favorecimento de segmentos importantes da populao, quan-do no da populao como um todo. Com isso, perde o p da realidade,mostra-se desatualizada, intransigente, incapaz de acompanhar os temposatuais e de servir, assim, como intrprete e farol (exatamente o que o Con-

    clio Vaticano II pretendia evitar). A Igreja passa a ser vista por segmentosda sociedade atualizados e atuantes em termos culturais como inimiga, comoagente contrrio a aspectos por eles considerados decisivos da mudanasociocultural conquistada e a conquistar sem mediao religiosa.

    Assim, o pensamento catlico, na medida em que no acompanha mu-danas recentes na cultura introduzidas por aqueles que a vivem, acaba seauto-excluindo. A cultura contempornea em permanente transformao,cada vez mais secularizada, oferece sentidos mltiplos para um mundo que

    a cada dia exige novas respostas, prope novas solues e cria necessidadesinimaginveis. O pensamento catlico atribui as perdas (em adeptos, pres-tgio e influncia) ao desgaste crescente provocado por uma cultura nova

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    que mina a f, corri os valores cristos verdadeiros e substitui a orientaotradicional religiosa pela orientao secular cientfica, filosfica e poltica livre escolha de qualquer um. Precisa, portanto, interferir na nova cultura e

    restaurar a cultura das origens, da raiz, da formao das nossas sociedades.Nos dias atuais, enquanto a Igreja catlica, sob a batuta retrgrada de

    Bento XVI, procura recompor a unidade doutrinria e ritual relativizada eculturalmente diferenciada pelas reformas do Conclio Vaticano II no sen-tido de melhor aproximar a Igreja das transformaes do mundo, as igrejasevanglicas continuam em seu curso obsessivo: multiplicam-se, diversifi-cam-se, inventam novas abordagens do sagrado e do converso , aplicam-se no desenvolvimento de tcnicas de persuaso e converso. Oferecem-se

    como novas alternativas, mudam a concepo a respeito do dinheiro e dosbens materiais, propem-se a resolver problemas individuais de toda sorte,criam uma oferta de servios religiosos (e mgicos) jamais imaginada nombito protestante em seu percurso desencantado. Acabam por modificara relao de poder entre Deus e o homem, e assim vo enchendo suas igre-jas de novos crentes. Mas querem mais. Num segundo momento, queremvisibilidade, esperam reconhecimento social, desejam ser aceitas como in-tegrantes legtimas da cultura contempornea.

    IV

    incontvel o nmero de smbolos e elementos de origem catlica quecompem a cultura latino-americana nas suas mais diferentes manifesta-es. Brasileiros orgulhosos votaram recentemente em massa no CristoRedentor plantado no alto do Corcovado, no Rio de Janeiro, para sua in-cluso na nova lista das sete maravilhas do mundo. O Redentor venceu,

    assumindo seu lugar entre as Maravilhas do Mundo ao lado das outras seisganhadoras: a Grande Muralha da China, a cidade helenstica de Petra, naJordnia, a cidade inca de Machu Picchu, no Peru, a pirmide maia deChichen Itz, no Mxico, o Coliseu de Roma, na Itlia, e o tmulo TajMahal, na ndia. Significa que o eleitor do Cristo Redentor votou comocatlico? muito mais provvel que tenha votado como simples brasileiro,sem nenhuma orientao religiosa. Votou num monumento paisagstico eturstico, num smbolo to secular do Rio de Janeiro como Copacabana e o

    Po de Acar. Assim o Redentor foi referido na propaganda eleitoral pro-movida por governo e iniciativa privada. Incluindo monumentos que vodas igrejas do barroco colonial catedral modernista de Braslia e tantas

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    outras referncias, o patrimnio material erguido pelo catolicismo torico como o patrimnio imaterial de origem catlica, como muitas festas ecomemoraes importantes do calendrio e que h muito esto seculariza-

    das. A coisa, portanto, catlica e no . catlica na chave cultural, no catlica na religiosa.

    No caso do Brasil, e de alguns outros pases da Amrica Latina, no sepode falar em cultura sem levar em conta a presena de elementos religiososde origem africana. No Brasil, algumas influncias negras so mais antigas,como ocorre na lngua, e derivam da presena da populao escrava. Outrasso mais recentes e originam-se diretamente das religies afro-brasileiras,que s se formaram na primeira metade do sculo XIX. Sua ocorrncia veri-

    fica-se na msica popular, na literatura, poesia e teatro, no cinema e na tele-viso, nas artes plsticas, na culinria, no carnaval e na dana, tambm emprticas mgicas oferecidas como servios a consumidores no necessaria-mente religiosos, e nos valores e concepes extravasados dos terreiros para acultura popular, mais um rico repertrio de gostos e padres estticos. Tam-bm podem ser observadas no jeito diferente de encarar a vida.

    Tamanha a presena de elementos de origem religiosa nessa cultura,que a prpria religiosidade afro-brasileira entendida como cultura, e assim

    tratada tambm pelo Estado brasileiro. O mesmo Estado que garante direi-tos coletivos calcados na cultura, na origem tnica, como o direito terrados quilombolas (descendentes de escravos fugidos que se refugiavam nosquilombos) e dos povos indgenas. O Ministrio da Cultura mantm tam-bm a Fundao Cultural Palmares, cujo objetivo promover a preserva-o dos valores culturais, sociais e econmicos decorrentes da influncia ne-gra na formao da sociedade brasileira. rgo pblico de um Estadolaico, a Fundao Palmares no se exime de dar ateno especial aos terreiros

    do candombl e das demais religies afro-brasileiras, garantindo recursos emeios para sua manuteno, restaurao patrimonial e proteo institucio-nal, isso porque os considera uma espcie de celeiro que abastece a culturabrasileira. Sacerdotes dessas religies se do o direito de recorrer Palmarespara a soluo dos mais variados problemas. Na medida do possvel, a fun-dao os acolhe, mas no passa pela cabea de seus dirigentes oferecer a mes-ma ateno a pastores evanglicos negros.

    Desde a dcada de 1960, entretanto, essas religies deixaram de ser tni-

    cas para se transformar em universais, isto , abertas a seguidores de todasas origens tnicas, nacionais, geogrficas, de classe e de cor. So hoje reli-gies de adeso individual, descoladas das antigas bases populacionais de

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    origem africana, que se expandem por todo o Brasil e chegam a outrospases da Amrica, como Uruguai e Argentina, e da Europa. Evitemos aquio termo converso, porque o processo de adeso a uma religio afro-bra-

    sileira diferente daquele das evanglicas. O candombl e suas variantesso religies rituais que no dispem de um discurso salvacionista nempropem romper com o passado biogrfico dos indivduos. Rezadas emlnguas de origem africana intraduzveis (exceto no caso da umbanda, queusa o portugus), as religies negras no exercitam seus lderes para o usoda palavra, no usam a propaganda, no fazem proselitismo nem pregao.No tentam convencer as pessoas por meio da palavra. A adeso se d poraproximao mgica e ritual ou por afinidade pessoal, e extremamente

    personalizada. Aos poucos o novo aderente vai mergulhando num ritualismocomplexo e, quando se d conta, est comprando roupas em estilo africa-no, aprendendo uma lngua africana, ensaiando uma coreografia de ritmosde origem africana.

    O candombl conserva uma faceta cultural muito densa, mesmo quan-do deixa de ser uma religio tnica para ser universal. Isso talvez constituauma contradio que dificulta a adeso de muitos e que refreia seu cresci-mento. A despeito de sua importncia cultural, o candombl e congneres

    constituem um segmento religioso de tamanho diminuto e crescimentomodesto, declinante na modalidade umbandista, ameaado de perto porigrejas pentecostais e neopentecostais, que demonizam seus orixs e guiasespirituais e lhes subtraem muitos seguidores, convertendo-os (Prandi,2005).

    Hoje religio de negros, brancos, pardos, amarelos, indistintamente, ocandombl visto como uma espcie de reserva tnica e tratado como umadas fontes tradicionais ativas da cultura brasileira tambm no mbito edu-

    cacional. Assim, por fora da Lei Federal 10.639 de 9 de janeiro de 2003 que torna obrigatrio o ensino de histria e cultura afro-brasileira nas esco-las de ensino fundamental e mdio, oficiais e particulares , a mitologia dosorixs, entre outros itens, ensinada nas escolas como cultura, tratando-seos orixs, os deuses do candombl, da mesma maneira que os deuses gregosou romanos, desprovidos de seu carter sagrado. A prpria cidade de Salva-dor, chamada de Roma Negra, bero do candombl, apresenta-se como acapital da cultura dos orixs, que ostenta seus traos na culinria, nos mer-

    cados, na msica e na paisagem. Basta uma visita ao dique do Toror, queexibe esttuas de grande porte dos orixs, para que o visitante se convenade que a cidade tem alguma coisa de muito diferente.

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    Em todo lugar, turistas e curiosos vo aos terreiros para apreciar as ceri-mnias como quem vai a um espetculo folclrico. O candombl no seincomoda com essa platia de propsitos no religiosos. Ao contrrio,

    quando h visitantes, capricha para que o espetculo seja mais bonito, maisodara. No final do culto, quando se serve o banquete comunitrio, aquelesque visitam pela primeira vez um terreiro se surpreendem com a comidaoferecida a todos e se do conta de que a culinria tpica baiana, que hoje secome nas diferentes regies do pas, em casa, em restaurantes e bancas derua, nada mais do que a comida sagrada dos deuses afro-brasileiros: oacaraj de Ians, os bolinhos de inhame de Oxal, o quiabo com camaro deXang, a brasileirssima feijoada de Ogum...

    E a presena protestante, onde est?Na cultura brasileira, que ao mesmotempo catlica e tem muito de religio afro-brasileira, falta o elementoevanglico. Se o candombl virou cultura com samba, carnaval, feijoada,acaraj, despacho, jogo de bzios , as sisudas denominaes evanglicasnunca foram capazes de produzir para o Brasil qualquer bem cultural im-portante, como chama a ateno Gedeon Alencar, em seu trabalho sobre ano-contribuio evanglica cultura brasileira (Alencar, 2005). At mes-mo a msica gospel, que a produo evanglica mais prxima do consumo

    esttico, limitada ao universo dos crentes, incapaz de se auto-incluir noplano geral das artes de mbito nacional, artes que o protestantismo brasi-leiro encara, de modo geral, com suspeio e recusa. Como exceo digna denota, a msica brasileira deve a formao de muitos msicos profissionais spentecostais Assemblia de Deus e Congregao Crist.

    O fato que as religies evanglicas esto muito distantes do catolicis-mo e das religies de origem africana, no caso do Brasil, como fontes deabastecimento da cultura no religiosa. Falta-lhes sobretudo a legitimidade

    social, difusa mas onipresente, conferida por segmentos intelectuais, artis-tas e formadores de opinio pblica que ocupam posies importantes naarbitragem do bom gosto e na definio das demandas refinadas do consu-mo de bens materiais e imateriais e de servios.

    V

    Ainda que haja muitas referncias religiosas na cultura brasileira, como

    acontece na de outros pases, essa cultura tambm republicana e, nesse sen-tido, secularizada, o que possibilita a cada indivduo fazer a sua escolhapessoal e livre em termos de adeso a essa ou quela religio ou, se assim

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    preferir, no se filiar a nenhuma, ou mesmo se identificar como ateu. Essa uma caracterstica dos nossos dias, apesar de a Igreja catlica ainda insistirem ter uma presena mais ativa, desejosa de ressacralizar a cultura. Passados

    o surto secularizante e a preocupao pastoral com problemas comunitrios,que marcaram setores da Igreja identificados como progressistas, que flores-ceram nos pontificados de Joo XXIII e de Paulo VI, o Vaticano trava umabatalha inglria para recuperar seu poder de interferir, em nome de Deus, naintimidade no somente de seus fiis, mas de todos os humanos, religiososou no. A Igreja romana procura influir no processo instituinte de leis laicasque regulem os costumes em conformidade com seus modelos e rejeita mui-tas conquistas de movimentos que tm mudado radicalmente a cultura

    mundial em termos de direitos no mbito do gnero, da sexualidade, da fa-mlia, da reproduo humana e outros. Acaba perdendo, ficando para trs.Quando pases de formao cultural catlica legalizam o divrcio, o aborto,a unio homossexual, para citar trs temas contra os quais a Igreja catlica sebate sem se cansar, no se pode mais falar simplesmente em cultura catlica.

    Na dinmica das religies podemos enxergar as mudanas culturais comas quais elas se debatem, bem como suas estratgias.

    Durante dcadas e isso no faz muito tempo a Igreja no Brasil com-

    bateu a presena da mulher no mercado de trabalho urbano, onde compe-tia diretamente com o homem: trabalho fora de casa e no relacionado como servio domstico ou a educao de crianas representava o contato dire-to com a cultura masculina, embrutecedora e perigosa para a mulher. Per-deu, teve que aceitar, ajustou-se aos novos tempos. Foi contra o ensino doingls na escola, porque preferia o francs, mais condizente com os costu-mes de ento; contra o aprendizado do violo e do acordeo, instrumentosde artistas bomios, recomendava o clssico piano executado com recato na

    intimidade da famlia; contra o cinema americano, por sua falta de pudor;contra a moda e o uso de roupa masculina pela mulher, de maquiagem, desaia curta... Para no falar de sexo: jamais fora do casamento. Nesse terrenoem que costumava dar as cartas, sua influncia se anulou, e os valores reli-giosos que norteavam a conduta foram substitudos por outros, alheios religio. Parecem pequenas coisas, mas so exemplos bastante ilustrativosdo grau de interferncia da religio na vida dos fiis at os anos 1950 e desua oposio s mudanas culturais (Prandi, 1974).

    O pentecostalismo seguiu inicialmente esse rastro moralista de controledos costumes, depois atenuado por muitas de suas igrejas que se impuse-ram como modelos de um novo estilo de converso.

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    Reginaldo Prandi

    No perodo que vai de 1950 a 1970, o modelo ideal do religioso pente-costal era o crente trabalhador (homem ou mulher) comedido nos hbitos,submisso autoridade, modesto no vestir, avesso ao consumismo. Dinhei-

    ro era coisa do diabo, era perdio. Muito adequado a uma sociedade cujaeconomia remunerava mal o trabalhador. Em meados dos anos 1970 a eco-nomia comeou a mudar, e o setor produtivo industrial, que era o carro-chefe do desenvolvimento econmico da Amrica Latina, se viu ultrapassa-do pelo setor tercirio do comrcio e servios. O ideal do operrio queproduzia e se contentava com um salrio baixo foi substitudo, de modocrescente, pelo modelo do consumidor inserido num mercado cada vezmais globalizado, em que todos podem comprar muito, mesmo que seja as

    quinquilharias asiticas vendidas a preos irrisrios e artigos falsificadosmais baratos. O consumo generalizou-se apoiado num sistema de crditoao consumidor acessvel a todos. Nessa nova cultura consumista, o velhopentecostalismo passou a dizer pouco para muitos. J no final da dcada de1970, temos novidades marcantes: a chegada da teologia da prosperidade eo surgimento das igrejas do neopentecostalismo. E a nova religiodesdemonizou o dinheiro e o consumo: a Deus apraz que seus filhos gozemde conforto e do acesso aos bens de que dispe a humanidade (Mariano,

    1999). A religio mostra o caminho, estabelece pactos e trocas de favoresentre Deus e os homens. A igreja inverte os termos da fidelidade religiosa egarante: Deus fiel, conforme o dstico pregado em veculos, suposta-mente de evanglicos, que circulam pelas ruas e estradas do Brasil. Essareligio j , portanto, outra, adaptada aos novos tempos, em sintonia comnovas exigncias culturais.

    A nacionalizao (ou desregionalizao) do candombl a partir da d-cada de 1960 dependeu fortemente de dois fatores: primeiro, da produo

    de uma arte que valorizava elementos extrados dos ritos e mitos cultivadosnos terreiros, e que serviu para divulgar e legitimar socialmente uma reli-gio que sobrevivera sitiada pelo preconceito racial; e, segundo, do desen-volvimento no pas de uma cultura que cada vez mais afrouxava a impor-tncia das regulaes ticas, mais centrada no indivduo que agora vivianuma sociedade ps-tica (Prandi, 1991). Ao extravasar dos espaos ne-gros onde surgira para buscar a universalizao, o candombl teve sua ex-panso facilitada em grande medida pelo fato de ser constitutivamente afi-

    nado com aquelas transformaes em curso na cultura brasileira, uma vezque ele no se ocupa, nem se preocupa, com a distino que as religiescrists fazem do bem e do mal. O que importa a realizao pessoal e a fe-

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    licidade do homem e da mulher, garantidas pelas boas relaes do indiv-duo com o seu orix.

    VI

    A cultura muda. A religio muda. No mundo contemporneo, em seulado ocidental, se a religio no acompanha a cultura, fica para trs. Aindatem flego para interferir na cultura e na sociedade, sobretudo na normati-zao de aspectos da intimidade do indivduo especialmente pelo fato deserreligio , mas seu sucesso depende de sua capacidade de mostrar ao fielpotencial o que ela pode fazer por ele. Dotando-o, sobretudo, dos meios

    simblicos para que a vida possa fazer algum sentido e se tornar, subjetivaou objetivamente, mais fcil de ser vivida, sem que se tenha de abandonar oque de bom este mundo oferece.

    Suponhamos, por fim, que o crescimento das religies evanglicas asleve a suplantar o catolicismo em nmero de seguidores. O evangelicalismose tornaria a religio da maioria, o catolicismo, de uma minoria. Se issoacontecesse, a cultura brasileira se tornaria evanglica?Dificilmente. O evan-gelicalismo seria a religio de indivduos convertidos, um a um, e no a

    religio que funda uma nao e fornece elementos formadores de sua cultu-ra. O processo histrico dessa mudana seria diferente daquele que forjou acultura catlica na Amrica. Nesse futuro hipottico, cuja factibilidade noest aqui em discusso, a condio dada para que o protestantismo superas-se o catolicismo teria implicado, primeiro, a secularizao do Estado jcompletada no presente , e depois, a secularizao da cultura que seencontra em andamento. Porque com a secularizao que os indivduostornam-se livres para escolher uma religio diferente daquela em que nas-

    ceram. Ento, quando tudo isso estivesse se completando, por mais cheiasque estivessem igrejas, templos, terreiros, a cultura j se encontraria esva-ziada de religio. No haveria a substituio de uma religio por outra. Nolimite, por muitas outras, no apenas por uma.

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    Resumo

    Convert er ind ivduos, mudar cult ur as

    Religies diferentes concebem e tratam diversamente seus alvos: seus adeptos, antigos

    e novos. Procura-se neste texto analisar certas relaes que distintas correntes religiosas

    estabelecem com as culturas e os indivduos na Amrica Latina, especialmente no

    Brasil. As religies tm interpretaes distintas do que seja a cultura, e essas definiesajudam a moldar suas estratgias de converso e reao ao avano de religies oponen-

    tes. Para efeito de discusso, o artigo considera como um eixo hipottico um futuro

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    no distante em que a Amrica Latina teria uma maioria evanglica em sua populao,

    perguntando-se o que aconteceria com a suposta cultura catlica latino-americana se

    caso tal supremacia evanglica viesse de fato a se constituir.

    Pa la vra s-cha ve:

    Religio e cultura; Converso religiosa; Religies na Amrica Latina;Catolicismo; Evangelicalismo; Religies afro-brasileiras.

    Abstract

    Convert ing ind ividuals, changi ng cultu res

    Different religions conceive and treat their target public their followers, old and

    new in distinct ways. This text analyzes some of the relations established by differ-

    ent religious currents with cultures and individuals in Latin America, especially Bra-

    zil. Contemporary religions have diverging interpretations of what culture is defi-nitions which help shape their strategies for conversion and their responses to the

    advance of rival religions. For the purposes of debate, the article hypothesizes a not

    too distant future in which the majority of Latin Americas population is Evangelical

    and asks what would happen to the supposedly Catholic Latin America culture if this

    supremacy were indeed to become a reality.

    Keyw ords:Religion and Culture; Religious Conversion; Religions in Latin America;

    Catholicism; Evangelicalism; Afro-Brazilian Religions.

    Texto recebido e apro-vado em 8/8/2008.

    Reginaldo Prandi

    professor titular apo-sentado do Departa-

    mento de Sociologia daUSP. E-mail: [email protected].