8 de março dia internacional das mulheres

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Boletim Informativo do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência 8 de Março | 2014 em foco E sta edição especial do Conade In- forma celebra o Dia Internacional da Mulher e, mais do que um apa- nhado de notícias, traz conteúdo exclusivo elaborado por acadêmicas e ati- vistas de renome na área. Na continuação do I Seminário Nacional de políticas públicas e Mulheres com Defici- ência em novembro de 2013 em Brasília, 1 o momento parece propício para a ampliação do debate acerca das necessidades e desafios específicos às mulheres com deficiência. En- tretanto, ainda é possível verificar um des- compasso entre o número de mulheres com deficiência e a reflexão sobre gênero neste setor. Enquanto o censo de 2010 revela que o número de mulheres com deficiência é 5,3 pontos percentuais maior que o de homens (26,5% versus 21,2% de mulheres), 2 apenas 0,5% das propostas da III Conferência Na- cional dos Direitos da Pessoa com Deficiên- cia tinham esse público como alvo. O tópico da violência perpassa mais de um texto desta edição por ser um assunto de par- ticular relevância para as mulheres. De acor- do com o relatório da International Network of Women with Disabilities sobre violência, elaborado em 2011, “os dados disponíveis, apesar de escassos, [...] mostram que o índice de violência contra mulheres com deficiência é mais alto do que contra homens com defi- ciência.” 3 Além disso, outras pesquisas acadê- micas mostram que a taxa de abuso sexual e físico entre mulheres com deficiência chega a ser duas vezes maior que entre as mulheres sem deficiência. Esta edição também reconhece e celebra o protagonismo das conselheiras do Conade e o papel fundamental que desempenham nas dis- cussões e trabalhos deste espaço de controle so- cial. Atualmente, 47% dos conselheiros titulares da parte do Governo são mulheres e, da parte da sociedade civil, 37% (9 e 7 de 19, respectivamen- te). Com um total de 42% de mulheres titulares, este Conselho segue, então, com um índice de participação feminina superior à maioria dos se- tores da sociedade em geral. São atualmente con- selheiras titulares da sociedade civil no Conade: Carmen Lúcia Lopes Fogaça (Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos – ONEDEF), Cláudia Barata Ribeiro Blanco Bar- roso (Academia Brasileira de Neurologia), Ester Alves Pacheco Henriques (Federação Nacional das Associações Pestalozzi e Vice-Presidente do Conade), Gecy Maria Fritsch Klauck (Federa- ção Brasileira das Associações de Síndrome de Down), Naira Rodrigues Gaspar (Conselhos Municipais) 5 , Rosângela da Silva Santos (Fe- deração Nacional de Renais e Transplantados do Brasil – FARBRA), Sheila Alexandre Cassin (Federação Nacional das Avapes – FENAVA- PE) e Telma Maria Viga de Albuquerque (As- sociação Brasileira de Autismo – ABRA). 1) Fonte: http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/node/802. 2) Veja a cartilha completa em http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/publicacoes/ cartilha-do-censo-2010-pessoas-com-deficiencia. 3) Fonte: http://www.bengalalegal.com/violencia-mulheres-com-deficiencia. 4) Segundo estudo realizado no Canadá em 1995. Fonte: http://www.independentliving.org/docs1/iglesiasetal1998.html#note2. 5) Parte do setor governamental, mas a conselheira tem origem na sociedade civil. O Censo de 2010 revela que o número de mulheres com deficiência é 5,3 pontos percentuais maior que o de homens Com um total de 42% de mulheres titulares, este Conselho tem um índice de participação feminina superior à maioria dos setores da sociedade em geral 8 de março Dia Internacional das Mulheres Artigo 6 | Mulheres com deficiência 1. Os Estados Partes reconhecem que as mulheres e meninas com deficiência estão sujeitas a múltiplas formas de discriminação e, portanto, tomarão medidas para as- segurar às mulheres e meninas com deficiência o pleno e igual exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. 2. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar o pleno desenvolvimento, o avanço e o empoderamento das mulheres, a fim de garantir- lhes o exercício e o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais estabe- lecidos na presente Convenção.

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Page 1: 8 de março Dia Internacional das Mulheres

Boletim Informativo do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência

8 de Março | 2014

e m f o c o

Esta edição especial do Conade In-forma celebra o Dia Internacional da Mulher e, mais do que um apa-nhado de notícias, traz conteúdo

exclusivo elaborado por acadêmicas e ati-vistas de renome na área.

Na continuação do I Seminário Nacional de políticas públicas e Mulheres com Defici-ência em novembro de 2013 em Brasília,1 o momento parece propício para a ampliação do debate acerca das necessidades e desafios específicos às mulheres com deficiência. En-tretanto, ainda é possível verificar um des-compasso entre o número de mulheres com deficiência e a reflexão sobre gênero neste setor. Enquanto o censo de 2010 revela que o número de mulheres com deficiência é 5,3 pontos percentuais maior que o de homens (26,5% versus 21,2% de mulheres),2 apenas 0,5% das propostas da III Conferência Na-cional dos Direitos da Pessoa com Deficiên-cia tinham esse público como alvo.

O tópico da violência perpassa mais de um texto desta edição por ser um assunto de par-ticular relevância para as mulheres. De acor-

do com o relatório da International Network of Women with Disabilities sobre violência, elaborado em 2011, “os dados disponíveis, apesar de escassos, [...] mostram que o índice de violência contra mulheres com deficiência é mais alto do que contra homens com defi-ciência.”3 Além disso, outras pesquisas acadê-micas mostram que a taxa de abuso sexual e físico entre mulheres com deficiência chega a ser duas vezes maior que entre as mulheres sem deficiência.

Esta edição também reconhece e celebra o protagonismo das conselheiras do Conade e o papel fundamental que desempenham nas dis-cussões e trabalhos deste espaço de controle so-cial. Atualmente, 47% dos conselheiros titulares da parte do Governo são mulheres e, da parte da sociedade civil, 37% (9 e 7 de 19, respectivamen-te). Com um total de 42% de mulheres titulares,

este Conselho segue, então, com um índice de participação feminina superior à maioria dos se-tores da sociedade em geral. São atualmente con-selheiras titulares da sociedade civil no Conade:

Carmen Lúcia Lopes Fogaça (Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos – ONEDEF), Cláudia Barata Ribeiro Blanco Bar-roso (Academia Brasileira de Neurologia), Ester Alves Pacheco Henriques (Federação Nacional das Associações Pestalozzi e Vice-Presidente do Conade), Gecy Maria Fritsch Klauck (Federa-ção Brasileira das Associações de Síndrome de Down), Naira Rodrigues Gaspar (Conselhos Municipais)5, Rosângela da Silva Santos (Fe-deração Nacional de Renais e Transplantados do Brasil – FARBRA), Sheila Alexandre Cassin (Federação Nacional das Avapes – FENAVA-PE) e Telma Maria Viga de Albuquerque (As-sociação Brasileira de Autismo – ABRA).

1) Fonte: http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/node/802. 2) Veja a cartilha completa em http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/publicacoes/cartilha-do-censo-2010-pessoas-com-deficiencia. 3) Fonte: http://www.bengalalegal.com/violencia-mulheres-com-deficiencia. 4) Segundo estudo realizado no Canadá em 1995. Fonte: http://www.independentliving.org/docs1/iglesiasetal1998.html#note2. 5) Parte do setor governamental, mas a conselheira tem origem na sociedade civil.

“O Censo de 2010 revela que

o número de mulheres

com deficiência é 5,3 pontos

percentuais maior que o de homens”

“Com um total de 42% de

mulheres titulares, este Conselho

tem um índice de participação

feminina superior à maioria dos

setores da sociedade em geral”

8 de março Dia Internacional das MulheresArtigo 6 | Mulheres com deficiência1. Os Estados Partes reconhecem que as mulheres e meninas com deficiência estão

sujeitas a múltiplas formas de discriminação e, portanto, tomarão medidas para as-segurar às mulheres e meninas com deficiência o pleno e igual exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

2. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar o pleno desenvolvimento, o avanço e o empoderamento das mulheres, a fim de garantir-lhes o exercício e o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais estabe-lecidos na presente Convenção.

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Especial Mulheres | 8 de Março | 2014 Boletim Informativo do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência

por Laíssa da Costa Ferreira

A percepção de que a luta pelos direitos humanos só pode ter efetividade com a união das pau-tas, bandeiras e movimentos tem

norteado a atuação da Secretaria de Direitos Humanos. Além disso, a visão ainda marca-da de que as pessoas com deficiência são um coletivo homogêneo e uniforme nos desafia diariamente a apontarmos o quão diverso é esse segmento e o quanto ele diz respeito a todas as políticas do governo, em intersecção com os mais diferentes públicos.

Pode parecer estranho, mas a herança ain-da presente do modelo médico da deficiência, em que as pessoas com deficiência eram vistas como público-alvo da saúde e não como su-jeitos de direitos, faz com que não se enxer-gue que elas são crianças, adolescentes, idosas, LGBT, população em situação de rua, pessoas em privação de liberdade, com toda diversida-de que a condição de pessoa nos traz.

Com relação à pauta de gênero não é di-ferente. As mulheres com deficiência que no Brasil somam 25.800.681 ou 26,5% de nossa população, são freqüentemente vistas em sua condição de deficiência, quase sempre disso-ciadas da sua condição de mulher. Como se a deficiência se sobrepusesse ao gênero, como se o “ser mulher” entrasse como um porme-nor naquele “corpo diferente”.

Essa realidade pode ser facilmente consta-tada quando nos deparamos com a falta de

Por uma prática de Direitos Humanos que considere critérios universais e que respeite as diferenças plurais de pessoas e grupos

diálogo entre os movimentos feministas e os movimentos de pessoas com deficiência. A completa invisibilidade das mulheres com defi-ciência e suas condições de opressão, subjugo e violência dentro dos movimentos de mulheres e a ausência de recorte de gênero presente nos movimentos de pessoas com deficiência preci-savam ser enfrentados e urgentemente revistos.

Frente a esse desafio a Secretaria de Direi-tos Humanos, por meio da SNPD e do Cona-de, vem avançando em diálogo, desenho de políticas públicas, e na realização de eventos que dêem conta da necessária transversalida-de entre gênero e deficiência. Os resultados já começam a ser sentidos tanto em âmbito do governo como da sociedade civil. O efeito multiplicador que essas ações têm gerado em estados e municípios, e o empoderamento das mulheres com deficiência nas lutas fe-ministas só reforçam nosso estímulo e dever para com esse público.

Precisamos, governo e sociedade civil, cada vez mais, empreender esforços para sairmos das caixinhas em que fomos colocados ou que deliberadamente entramos. O esforço para nos diferenciar e fazer valer como direitos as nossas especificidades não pode ser confun-dido com luta isolada ou dissociada das ques-tões que nos unem enquanto movimentos de direitos humanos, o enfrentamento a pobreza e a exclusão, ao preconceito e isolamento, a violência e a opressão, e a luta pela ascensão a patamares dignos de vida daqueles que são marginalizados e oprimidos.

Laíssa da Costa Ferreira: jornalista, feminista, Chefe de Gabinete da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Conselheira do Conade.

Tatiana Rolim: psicóloga, psicopedagoga e neuropsicóloga, militante da causa das pessoas com deficiência

foto Artur Custódio

foto Kicade Castro

Não há feminismo sem enfrentamento às violências que vivem as mulheres com defici-ência, não há movimento de direitos humanos sem que haja recorte racial, não há luta por condições de equidade sem o reconhecimento da pauta dos indígenas ou quilombolas, não se pode enfrentar o preconceito contra as pesso-as com deficiência sem recorte de orientação sexual. Não há uns de nós sem os outros.

LITERATURA | Apresentando Tatiana Rolim, escritora, palestrante, consultora e diretora na Trinclusão

Meu Andar sobre Rodas, primeiro livro de Tatiana Rolim, aborda de uma maneira simples, objetiva e emocionante a trajetó-ria de uma adolescente de 17 anos que  foi atropelada por um caminhão na cidade de interior de SP, relata a luta da sobrevivência e a dura fase de reabilitação. O reencontro consigo mesma entre marcas, cicatrizes e a certeza de nunca mais poder andar, de nunca mais jogar vôlei pela cidade, deixar de desfilar como fazia  e assim reconstrói com o apoio da família, amigos e namora-do da época novos objetivos e sonhos a serem traçados. E de sonho em sonho, res-gata-se como menina, mulher, redescobre a sexualidade, retoma estudos, e segue a vida no novo andar sobre rodas.

Após as redescobertas da vida, enfren-tamento das imposições dos preconceitos sociais, Tatiana ousa ainda mais e seus so-nhos seguem para a constituição de uma família. Assim nasce o segundo livro: Maria de Rodas: Delícias e Desafios na Materni-

dade de Mulheres Cadeirantes. De um es-boço de conversa com uma amiga gestan-te, mas não cadeirante, o texto evolui para trocas de e-mails entre mais mulheres cadeirantes e mães. Desta forma, conso-lidou um relato coletivo das experiências de mães cadeirantes, informando e emo-cionando os leitores sobre a temática da maternidade de mulheres cadeirantes.

Tatiana atualmente mantém registros sobre a fase do desenvolvimento da filha e suas percepções sobre o mundo da inclu-são, anunciando em breve novo  livro. Por atuar na área médica e reconhecer as difi-culdades da equipe médica no atendimen-to da mulher com deficiência, apresentou projeto de “orientações ao atendimento á gestante de risco/lesão medular” a médi-cos e encaminhou à Deputada Rosinha da Adefal proposta de Projeto de Lei sugerin-do a inclusão de um médico fisiatra para compor equipe médica na rede pública para acompanhar gestações de risco.

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www.facebook.com/ConadeBR Especial Mulheres | 8 de Março | 2014

Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade)Composição da Comissão de Comunicação Social Academia Brasileira de Neurologia; Associação Brasileira de Autismo (ABRA); Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência dos Funcionários do Banco do Brasil e a Comunidade (APABB); Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC); Ministério da Cultura; Ministério das Cidades; Ministério das Comunicações e Ministério do Turismo.

Comitê Editorial CCS e Coordenação Geral do Conade • fotografias Jéssica Mendes • projeto gráfico e diagramação Daniel DinoSecretaria Executiva do Conade (SE/Conade) • Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD)

Setor Comercial Sul • Quadra 9 • Lote “C” • Torre “A” • 8º andar • Ed. Parque Cidade Corporate • CEP: 70308-200 • Brasília-DF • Telefones: (61) 2025-9219 2025-3673 • Fax: (61) 2025-9967 • E-mail: [email protected] • www.pessoacomdeficiencia.gov.br

e x p e d i e n t e

Nas violências contra

mulheres com

deficiência, a questão

da independência

financeira fica em

segundo plano, pois

a primeira pergunta

que emerge é: “Quem

vai cuidar de mim?”

por Anahi Guedes de Mello

E m uma pesquisa envolvendo as per-cepções da opinião pública em rela-ção aos direitos humanos das pesso-as com deficiência no Brasil, Debora

Diniz e Livia Barbosa afirmam que “embora as pessoas reconheçam a discriminação existente contra indivíduos com deficiência, não a tradu-zem sob a forma de violência ou maus-tratos”2. Prosseguem as autoras alertando que “em uma lista com oito tipos de violência, apenas 5% das pessoas responderam que a violência contra pessoas com deficiência deveria ser combatida em primeiro lugar”. Duas hipóteses explicam esse resultado: “ou esse fenômeno inexiste na vida cotidiana das pessoas deficientes e de suas cuidadoras, ou a subnotificação impõe uma re-gra perversa de silêncio. O fato é que inexistem dados sobre a magnitude da violência contra deficientes no Brasil”3. Sustentam que uma pos-

sível explicação para a pouca relevância dada a pesquisas sobre esse tema no Brasil se deve ao fato do debate público e midiático da agenda da deficiência se concentrar nas necessidades de saúde, transporte e trabalho. Para elas, as vio-lências contra pessoas com deficiência se man-têm na esfera privada, não sendo percebidas como uma questão de direitos humanos. E os poucos estudos localizados apontam a violên-cia doméstica como o tipo mais frequente de violência praticada contra esse segmento.

Entretanto, do ponto de vista da interse-ção entre gênero, deficiência e violência, os poucos estudos nacionais, amparados por re-ferências internacionais, evidenciam o argu-mento da maior vulnerabilidade de mulheres com deficiência a sofrer violências na esfera doméstica e familiar. Os dados analisados comprovam a tese de que são essas mulheres as mais vulneráveis a sofrer abusos, maus-tratos, lesões, abandono e negligências por parte de familiares e agentes estatais.

Contrariamente ao apontado na mídia e em publicações feministas sobre violência do-méstica contra a mulher no âmbito conjugal, em que a dependência financeira e emocional são os principais motivos pelos quais as mu-lheres desistem de denunciar seus agressores, a maioria homens, nas violências contra mu-lheres com deficiência, a questão da indepen-dência financeira fica em segundo plano, pois a primeira pergunta que emerge é: “Quem vai cuidar de mim?”. Essa “rede de cuidados” geralmente inclui pessoas de sua rede de pa-rentesco, majoritariamente mães, pais, irmãos, irmãs, filhos e filhas que, em maior ou menor grau, cuidam ou deveriam cuidar da/do sua/seu filha/filho, irmã/irmão e mãe/pai com deficiência. Também podem envolver a par-ticipação de profissionais das áreas de saúde

ligadas ao cuidado (principalmente Enferma-gem, Mastologia e Ginecologia). Desse modo, as violências contra mulheres com deficiência não ocorrem majoritariamente no contexto das relações conjugais (por exemplo, marido contra mulher em uma relação heterossexual), mas têm mais proximidade com os debates en-volvendo a violência doméstica contra pessoas idosas, justamente porque ambas canalizam o contorno dos corpos com impedimentos que necessitam da assistência de longa dura-ção para desenvolver, potencializar ou manter suas capacidades básicas.

O Dia Internacional da Mulher: algumas considerações sobre violências contra mulheres com deficiência1

Anahi Guedes de Mello: antropóloga, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora vinculada ao Núcl-eo de Identidades de Gênero e Subjetividades e ao Núcleo de Estudos sobre Deficiência (NIGS/NED/UFSC). Tem experiência em Estudos sobre Deficiência, desenvolvendo pesquisas sobre gênero e deficiência, sexualidades, violências contra mulheres com deficiência, acessibilidade e tecnologia assistiva.

foto Divulgação

1) O presente texto se baseia em minha dissertação de mestrado em Antropologia Social pela UFSC, defendida em fevereiro de 2014 sob o título “Gênero, Deficiência, Cuidado e Capacitismo: uma análise antropológica sobre experiências, observações e narrativas sobre violências contra mulheres com deficiência”. 2) DINIZ, D.; BARBOSA, L. Pessoas com Deficiência e Direitos Humanos no Brasil. In.: VENTURI, G. (Org.). Direitos Humanos: percepções da opinião pública – análises de pesquisa nacional. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010. p. 211. 3) Diniz e Barbosa, loc. cit.

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Especial Mulheres | 8 de Março | 2014 Boletim Informativo do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência

por Stella Maris Nicolau

E m minha tese de doutorado, defen-dida em 2012 e orientada pela Profa Lilia Blima Schraiber, do Departa-mento de Medicina Preventiva da

Faculdade de Medicina da USP, busquei com-preender a partir de entrevistas com 39 profis-sionais de saúde e 15 usuárias com deficiências na idade reprodutiva, como três serviços de atenção básica de saúde de uma determinada região da cidade de São Paulo identificam e respondem às necessidades dessas mulheres. É sabido que historicamente os postos de saúde privilegiam a clientela feminina nas ações de saúde materno-infantil, mas reconhecem pou-co os direitos sexuais e reprodutivos, além da dupla vulnerabilidade das mulheres com defi-ciência. Essa última foi enfatizada nos estudos feministas sobre a deficiência e reitera que ser mulher e ter uma deficiência constituem duas desvantagens na vida social.

Nas trajetórias de vida e experiências com os serviços de saúde das usuárias entrevis-tadas revelam-se três aspectos da vulnera-bilidade. A vulnerabilidade individual aparece nas experiências de superproteção ou rejeição familiar, na falta de acesso a ser-viços de saúde e reabilitação, na privação de recursos materiais para adquirir equipamen-tos para sua maior autonomia, na falta de in-vestimento em sua educação e profissionali-zação, e na vivência em um ambiente familiar com atitudes hostis em relação às mulheres e às pessoas com deficiência. Neusa (50 anos, deficiência motora) e Miriam (39 anos, defi-

ciência intelectual) nasceram em área rural, nunca frequentaram serviços de reabilitação, cresceram em famílias com poucas infor-mações sobre a deficiência, em uma cultura tradicional de gênero e paternalista. Neusa recebeu sua primeira cadeira de rodas aos 13 anos, idade com a qual ingressou na escola, onde permaneceu por pouco tempo. Adriana (33 anos, deficiência motora) adquiriu artrite reumatoide aos 10 anos e abandonou a escola pela dificuldade de locomoção.

A vulnerabilidade social revela-se nas vivências em um meio que discrimina mulhe-res com deficiência e coloca obstáculos à sua participação social e política, à educação, saú-de, cultura, trabalho e justiça. Chama a aten-ção nos relatos o fato de que poucas entrevista-das entraram no mercado formal de trabalho, sobretudo aquelas com deficiência congênita. Todas encontravam-se sem emprego, algumas vivendo do benefício de prestação continuada do INSS e/ou realizando trabalho informal, tal como confecção de artesanato, venda de produtos, prestação de serviços. Outras de-pendiam financeiramente de seus familiares. Luciana, jornalista e única com curso uni-versitário, buscava emprego na sua área. Mas referiu que as editoras não estão dispostas a adaptar seu espaço físico para empregar cadei-rantes, e já foi empregada em funções aquém de sua qualificação profissional, e alocada em postos de trabalho nos quais ficava ‘escondida’, considerando isso um tipo de discriminação. Algumas mulheres enfrentam preconceitos para viver a sexualidade e a maternidade, na medida em que habitam um corpo que destoa

dos padrões estéticos vigen-tes, e enfrentam a descrença da sociedade de que possam corresponder às expectati-vas de gênero, como assu-mir os papéis de cuidadora, esposa e mãe.

Já a vulnerabilidade

pro gramática diz respeito à falta de políticas assisten-ciais que contemplem as es-pecificidades das mulheres com deficiência, e se revela na falta de acessibilidade física, comunicacional e em atitudes pouco recepti-vas nos serviços de saúde, onde os profissionais des-conhecem os direitos das mulheres com deficiência.

Tive uma experiência em relação à gine-cologia muito triste. Eu fui numa médica indicada pela família, na verdade eu fui le-vada, na verdade eu fui carregada, nem me falaram direito o que era. [Tinha] dezeno-ve anos [...] quando eu comecei a namorar um garoto com 18-19 anos, quando minha família ficou sabendo, ficaram desespera-dos, aí me levaram no médico e foi uma si-tuação horrível, porque a ginecologista co-locou um livro de anatomia na minha cara, olhou e falou, tá vendo isso daqui, você não pode usar! Falou assim: ‘olha, você tem tudo igual, você sabe o que é o aparelho reprodutor? Então você tem que saber que você não pode fazer nada com o seu corpo. Foram essas as palavras que ela usou.

Luciana, 33 anos, deficiência motora

Problematizar tais vulnerabilidades abre caminhos para a construção de práticas in-tegrais de saúde que incorporem a dimensão dos direitos humanos das mulheres com de-ficiência, que historicamente experimenta a violação dos mesmos.

Pesquisa: Mulheres com deficiênciae a dupla vulnerabilidade

foto Divulgação

Stella Maris Nicolau: terapeuta ocupacional, mestre em Psicologia Social e doutora em ciências pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. Docente da Universidade Federal de São Carlos e atua no campo da atenção básica em saúde, com foco na atenção territorial e comunitária junto às pessoas com deficiências.

EUCURTO

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www.facebook.com/ConadeBR Especial Mulheres | 8 de Março | 2014

por Márcia Gori

S empre tenho dito que estivemos no Movimento da PcD, presentes como líderes importantes, ajudamos a criar todas as nossas políticas públicas, le-

gislação, rodamos o mundo, porém ficamos tão envolvidas no todo que esquecemos do “NÓS”, do recorte do gênero, da feminilidade, da sexualidade, da maternidade, da saúde, etc.

Há alguns anos quando comecei a falar so-bre nossos direitos sexuais, pouco se falava, tudo era tímido, entre quatro paredes e ver-gonhoso, haja vista que a própria sociedade que nos infantiliza. Havia ainda a negação que éramos cidadãs que sentiam desejo, te-são, namoravam, casavam e tinham filhos, assim como no tema gênero, existiam algu-mas de nós que tinham grupos de e-mails, re-des sociais, reuniões, mas estava demorando para que o boom acontecesse. Fui conhecen-do essas mulheres maravilhosas com as quais muito aprendi e que são minhas mentoras, e cito o nome delas aqui em forma de home-nagem: Adriana Dias, Anahí Guedes, Deline de Lima. Assim fui introduzida neste mundo arrebatador, porém doloroso.

Um mundo sem planejamento, sem polí-ticas públicas, sem autoestima, sem direitos, um mundo de muita luta, com mulheres sem consciência do poder que carregavam, escra-vas da dor, da violência doméstica, entretanto com garra para modificar o mundo a sua vol-ta, como toda mulher de fibra.

A mulher com deficiência é citada no artigo 6 da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU, que preconiza que “Os Estados-Partes deverão tomar todas as medidas apropriadas para assegurar o pleno desenvolvimento, o avanço e o empoderamen-to das mulheres, a fim de garantir-lhes o exer-cício e o desfrute dos direitos humanos e liber-dades fundamentais estabelecidos na presente Convenção.” Porém o que tenho vivenciado como ativista do movimento social da PcD são atitudes ainda tímidas para efetivação de polí-ticas públicas para que essas mulheres venham obter todos os seus direitos garantidos.

Ainda temos mulheres com deficiência sofrendo todo tipo de violações e abando-nos físicos, morais e emocionais pela famí-lia, namorados, companheiros, enfim pela sociedade em geral, e simplesmente olhamos como se não fossem problemas sociais. Eles são encarados como problemas alheios, com ausências de denúncias, fortalecendo o agres-

Mulheres com Deficiência: Um Novo Segmento dentro do Velho Movimento da PcD

sor, porque não há como denunciar quem as auxiliam em suas atividades de vida diária.

Temos que proteger essas mulheres devido à vulnerabilidade existente em sua condi-ção, mas para que essa proteção seja efetiva, há necessidade de políticas públicas na área da educação com o olhar de valorização na questão do gênero, respeitando as diferen-ças, neutralizando as dificuldades com in-formações. Na saúde, um programa sério de orientação sobre sexualidade e reprodução humana, planejamento familiar com equipes multidisciplinares, promover o paradesporto feminino, o lazer mais preparado para rece-ber a turista com deficiência, enfim um olhar mais feminino e cheio de nuances.

Sentindo um vácuo nesse tema, fizemos uma pesquisa muito grande e não encontra-mos nenhuma ONG de Defesa dos Direitos da Mulher com Deficiência, que tivesse pro-postas claras para efetivar essas necessidades para nossas companheiras de luta. Unimos várias militantes de vários estados no Brasil, diversos profissionais e criamos a ONG Essas Mulheres. Com vontade e sonhos de mudan-ças, esse é um espaço de todas nós, com força para provocar discussões e reflexões impor-tantíssimas para o nosso meio social.

A inclusão tem que acontecer de forma jus-ta e igualitária, principalmente para nós, mu-lheres, meninas e adolescentes com deficiên-cia. É necessário que essa mudança aconteça de dentro para fora, para que não haja mais reversão e nem retrocesso. Travaremos mui-tas lutas, reflexões, teremos alegrias, tristezas,

dissabores, como também vitórias significa-tivas, entretanto, para que isso ocorra, preci-samos dar início à união de mulheres, meni-nas e adolescentes com deficiência para que sejamos vistas, lembradas e, principalmente, respeitadas em nossas opiniões e decisões.

E por falar em flores... Somos mulheres com “M” maiúsculo, basta acreditar e LUTAR!

foto Divulgação

Márcia Gori: bacharel em Direito-UNORP e Presidente-fundadora da ONG Essas Mulheres (www.essasmulheres.org). É ainda ex-presidente do Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa com Deficiência – CEAPcD/SP (2007/2009) e ex-presidente do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência de São José do Rio Preto/SP (2009/2012). Idealizou e realizou uma série de seminários e palestras sobre Sexualidade, Deficiência e Inclusão Social.

Convenção sobre os Direitosdas Pessoas com Deficiência

VOCÊCONHECE?

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Especial Mulheres | 8 de Março | 2014 Boletim Informativo do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência

Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República

A Convenção dos Direitos da Pes-soa com Deficiência constitui um marco histórico na garantia e promoção dos direitos huma-

nos de todos os cidadãos, em particular das Pessoas com Deficiência, pois resultou de um consenso precedido de participação popular e da necessidade de garantir efetivamente o res-peito pela integridade, dignidade e liberdade individual das pessoas com deficiência, desta-cando que mulheres e meninas com deficiên-cia estão frequentemente expostas a maiores riscos, tanto no lar como fora dele, de sofrer violência, lesões ou abuso, descaso ou trata-mento negligente, maus-tratos ou exploração.

A dupla vulnerabilidade desse seg-mento – ao ser mulher e possuir alguma defi-ciência em uma sociedade machista, sexista, racista e capacitista – acumula uma série de opressões cotidianas que se estendem de vio-lências simbólicas, como a frequente deslegi-timação de seu protagonismo, às violências institucionais e domésticas.

Na tentativa de atingir as especificidades, o Estado brasileiro, ao elaborar a lei referen-te à violência doméstica contra as mulheres,

I Seminário Nacional de Políticas Públicas para Mulheres com Deficiência

a Lei Maria da Penha (11.340/2006), prevê adicional de um terço na punição ao agres-sor de mulheres com deficiência. Apesar de ser um importante marco, sabe-se que ações repressivas não são suficientes para garantir a totalidade dos direitos dessas mulheres, faz-se necessário, portanto, pensar estratégias e políticas públicas com foco transdisciplinar contemplando, inclusive, a resolução n.º 30 da III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (2011):

Incorporar as perspectivas étnico-raciais, geracionais, de orientação sexual e de pes-soas com deficiência à proteção de direitos das mulheres em situação de violência, pro-porcionando ações intersetoriais e integradas para a prevenção e o enfrentamento à violên-cia (CNPM, 2012).

O I Seminário Nacional de Políticas Pú-blicas para Mulheres com Deficiência, pro-movido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres e Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, no ano de 2013, teve por objetivo tirar da invisibilidade 26 milhões de mulheres com deficiência, repre-sentando um passo à frente na luta das mu-lheres com deficiência.

No evento foram discutidas, juntamente com mulheres da sociedade civil, propostas de políticas públicas capazes de assegurar in-clusão das mulheres com deficiência a partir da adequação do ambiente e formas de re-lações sociais que garantam a acessibilidade tanto física quanto comunicacional.

Foram expostas diversas questões que evi-denciam o quanto é necessário avançar em políticas públicas para esse público. Em de-poimentos durante o I Seminário, Carmen Fogaça, gerente de projetos da Associação Ni-teroiense dos Deficientes Físicos (ANDEF) e integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), aponta a necessidade de garantir os direitos sexuais das mulheres com deficiência, visto que elas são tratadas como pessoas assexuadas, o que li-mita sua livre expressão e favorece ocorrência de violências institucionais. Arenilda Duque, gestora da Secretaria de Mulher da prefeitura de Recife/PE, reafirma o problema supracita-do e acrescenta a necessidade de maior par-ticipação nas esferas de poder por parte das mulheres com deficiência, a fim de garantir a permanência dessa temática nas pautas do legislativo e em políticas públicas.

O fruto dos debates foi consolidado na Carta do I Seminário Nacional de Políticas Públicas e Mulheres com Deficiência em 41 pontos considerados prioritários para o for-talecimento das mulheres com deficiência e a efetividade dos direitos e políticas públicas desse segmento.

A carta pode ser lida na íntegra em: www.

pessoacomdeficiencia.gov.br/app/node/815 .

foto Divulgação

“26 milhões é o número de mulheres

com deficiência no Brasil”

“A Lei Maria da Penha

(11.340/2006), prevê adicional de

um terço na punição ao agressor de

mulheres com deficiência”