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18/09/2015 A era dos extremos http://www.oolhodahistoria.ufba.br/o2vitor.html 1/7 In: Olho da História No. 2 Página Principal A Era dos Extremos: o breve século XX. Hobsbawm, Eric. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 598p. resenhado por Vito Letízia Talvez o maior mérito do livro A era dos extremos de Hobsbawm seja transmitir uma forte impressão do tamanho da catástrofe humana que foi o século XX. Catástrofe em relação às mortandades gigantescas, sem equiparação possível com qualquer período histórico anterior. Catástrofe em relação à desvalorização do indivíduo, ao qual, durante longos momentos do século, foram negados todos os direitos humanos e civis, que haviam sido arduamente conquistados durante o ‘longo século’ precedente: 17891914. Aliás, a impressão de catástrofe é forte justamente porque o período histórico anterior se marcara em todas as mentes como o século que colocara a idéia do progresso como inevitabilidade, não só em termos materiais, mas também em relação ao avanço das liberdades, apesar das monarquias e das forças conservadoras, que resistiam tenazmente desde a Revolução Francesa. Hobsbawm incita à colocação de uma pergunta, que seu livro não consegue responder: como foi possível chegar a isso? Como foi possível descer tanto na escala da civilização, apesar de uma vitória tão gigantesca para as forças progressistas como a Revolução Russa de 1917? Hobsbawm não pretendia mesmo responder a tudo. Mas incitar o leitor a se fazer perguntas dolorosas já é um mérito inestimável. As deficiências do livro estão mais no enfoque adotado na abordagem de alguns temas importantes. O ano de 1917, explica Hobsbawm, pretendia ser o início da revolução mundial. E, desse modo, foi visto por milhões de pessoas, mesmo em países longínquos. Apesar disso, Hobsbawm acha que o mundo não estava maduro para uma revolução proletária naquele momento. É possível que seja uma suposição válida; e não é fácil provar o contrário. Mas cabe perguntar: será que algum dia haverá uma revolução que atinja imediatamente os principais países do mundo? Talvez o problema a resolver não seja por que a Revolução de 1917 não se espalhou imediatamente pelo mundo, mas antes por que a chama da revolução proletária pôde ser tão rapidamente submergida por uma vaga reacionária mundial. Vaga que Hobsbawm mostra detalhadamente ser mais ampla que os movimentos baseados explicitamente no modelo italiano ou alemão de fascismo. Em todo o caso, verificouse concretamente que os bolcheviques ficaram isolados e encurralados numa revolução nacional, cuja preocupação passou a ser logo a simples sobrevivência. Fato consumado. Mas o problema aqui é que Hobsbawm faz uma ligação direta entre a sobrevivência da Revolução Russa e a sobrevivência de uma unidade política abrangendo todo o antigo Império Russo. Essa ligação só teria sentido na perspectiva de uma "revolução socialista num só país", caso em que o tamanho do país é uma questão vital. Hobsbawm, porém, parece não acreditar na viabilidade da revolução socialista só na Rússia. Então seria o caso de fazer a distinção necessária: revolução mundial e sobrevivência da unidade do Império exczarista eram coisas diferentes e mesmo contrárias. Aliás, o governo bolchevique, em sua primeira fase, não pretendia imporse sobre todo o exImpério. Nessa fase é que foram concedidas, sem conflito, as independências da Finlândia, da Polônia e dos Estados Bálticos, todos anteriormente províncias do Império Russo. Nenhum desses

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18/09/2015 A era dos extremos

http://www.oolhodahistoria.ufba.br/o2vitor.html 1/7

In: Olho da História No. 2 Página Principal

A Era dos Extremos:o breve século XX.

Hobsbawm, Eric.São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 598p.

resenhado por Vito Letízia

Talvez o maior mérito do livro A era dos extremos de Hobsbawm seja transmitir uma forte impressãodo tamanho da catástrofe humana que foi o século XX. Catástrofe em relação às mortandadesgigantescas, sem equiparação possível com qualquer período histórico anterior. Catástrofe em relaçãoà desvalorização do indivíduo, ao qual, durante longos momentos do século, foram negados todos osdireitos humanos e civis, que haviam sido arduamente conquistados durante o ‘longo século’precedente: 1789­1914.

Aliás, a impressão de catástrofe é forte justamente porque o período histórico anterior se marcara emtodas as mentes como o século que colocara a idéia do progresso como inevitabilidade, não só emtermos materiais, mas também em relação ao avanço das liberdades, apesar das monarquias e dasforças conservadoras, que resistiam tenazmente desde a Revolução Francesa.

Hobsbawm incita à colocação de uma pergunta, que seu livro não consegue responder: como foipossível chegar a isso? Como foi possível descer tanto na escala da civilização, apesar de uma vitóriatão gigantesca para as forças progressistas como a Revolução Russa de 1917? Hobsbawm nãopretendia mesmo responder a tudo. Mas incitar o leitor a se fazer perguntas dolorosas já é um méritoinestimável. As deficiências do livro estão mais no enfoque adotado na abordagem de alguns temasimportantes.

O ano de 1917, explica Hobsbawm, pretendia ser o início da revolução mundial. E, desse modo, foivisto por milhões de pessoas, mesmo em países longínquos. Apesar disso, Hobsbawm acha que omundo não estava maduro para uma revolução proletária naquele momento. É possível que seja umasuposição válida; e não é fácil provar o contrário. Mas cabe perguntar: será que algum dia haveráuma revolução que atinja imediatamente os principais países do mundo? Talvez o problema aresolver não seja por que a Revolução de 1917 não se espalhou imediatamente pelo mundo, masantes por que a chama da revolução proletária pôde ser tão rapidamente submergida por uma vagareacionária mundial. Vaga que Hobsbawm mostra detalhadamente ser mais ampla que osmovimentos baseados explicitamente no modelo italiano ou alemão de fascismo.

Em todo o caso, verificou­se concretamente que os bolcheviques ficaram isolados e encurraladosnuma revolução nacional, cuja preocupação passou a ser logo a simples sobrevivência. Fatoconsumado. Mas o problema aqui é que Hobsbawm faz uma ligação direta entre a sobrevivência daRevolução Russa e a sobrevivência de uma unidade política abrangendo todo o antigo ImpérioRusso. Essa ligação só teria sentido na perspectiva de uma "revolução socialista num só país", casoem que o tamanho do país é uma questão vital. Hobsbawm, porém, parece não acreditar naviabilidade da revolução socialista só na Rússia. Então seria o caso de fazer a distinção necessária:revolução mundial e sobrevivência da unidade do Império ex­czarista eram coisas diferentes emesmo contrárias. Aliás, o governo bolchevique, em sua primeira fase, não pretendia impor­se sobretodo o ex­Império. Nessa fase é que foram concedidas, sem conflito, as independências da Finlândia,da Polônia e dos Estados Bálticos, todos anteriormente províncias do Império Russo. Nenhum desses

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novos países declarou­se socialista. Nem por isso, o governo bolchevique se achou na obrigação deimpedir sua independência.

Não perceber a contradição entre revolução e império faz Hobsbwam valorizar a disciplinabolchevique de modo acrítico, misturando disciplina consciente e arregimentação cega, além deatribuir aos bolcheviques, objetivos que estes não se davam antes de 1921. Manter o Império haviasido objetivo central do czar e da impotente burguesia russa (impotente em parte porque se submetiaao czar e por amor ao Império), não era objetivo dos revolucionários .

Sem perceber isso, não dá para entender como foi possível que, após uma revolução da importânciada de 1917, que despertou na humanidade as imensas esperanças descritas por Hobsbawm nocapítulo doze, tenha sido imediatamente seguida do mais profundo retrocesso político do século.Apenas a não­extensão da Revolução Russa não é suficiente para explicar isso. A RevoluçãoFrancesa terminou militarmente derrotada. Nem por isso deixou de exercer influências libertárias queas próprias monarquias contra­revolucionárias tiveram que levar em conta para sobreviver. Já nocaso da Revolução de 1917, ocorre o contrário. Cerca de dez anos depois desce a mais negra noite detodos os tempos: é "meia­noite do século", disse Victor Serge, sem que o partido que dirigira aRevolução Russa tivesse perdido o poder. Alguma coisa de muito essencial deve ter deixado defuncionar, sob a máscara de uma falsa continuidade política. E deve ter sido uma reviravolta muitomais grave e profunda que o Thermidor da Revolução Francesa.

As conseqüências disso se fizeram sentir antes, durante e no fim da Segunda Guerra Mundial.Hobsbawn descreve os sofrimentos causados pela Guerra como mero resultado das própriasoperações militares. Mas nem tudo foi resultado inevitável do simples uso do poder destrutivodisponível na época. Na Primeira Guerra Mundial não se havia visto ato tão sanguinário como omassacre de quatro mil prisioneiros poloneses, por ordem de Stalin, em 1940. A Paz de 1945 repetiuas barbaridades da Paz de Versalhes com aumento, apesar da participação da potência ‘socialista’entre os vencedores de 1945. A maior parte dos deslocamentos de povos no fim da última guerra foipuro revanchismo, com caráter explícito de limpeza étnica. Por incrível que pareça, no fim daPrimeira Guerra Mundial foi possível ver um presidente burguês: Woodrow Wilson, dos EUA —ridicularizado por Lenin —, pregar uma paz sem anexações. No fim da Segunda Guerra Mundial,não houve voz contra o revanchismo. Treze milhões de alemães foram expulsos da Europa oriental ecentral, com o único objetivo de aumentar o lebensraum eslavo. Foram expulsos simplesmente pelofato de serem alemães. É de Stalin a frase: "Um alemão só é bom, morto". Não disse um nazista.Assim, o que W. Wilson não havia conseguido em 1919 — ser levado a sério como campeão dademocracia da autodeterminação dos povos — foi conseguido por Roosevelt e Truman sem muitoesforço. Porque estes tinham em frente, como termo de comparação, a URSS, não mais a Rússiarevolucionária dos tempos de Wilson.

Hobsbawm dá uma grande importância à depressão dos anos 30 como determinante dos rumospolíticos da época. A depressão teria tido um papel decisivo em fazer da democracia "uma plantafrágil", em muitos países. Isso até tem um fundo de verdade. Mas não é possível entendercompletamente a fragilidade da democracia no entreguerras sem lembrar o progressivo afastamentoentre luta por liberdades democráticas e luta pelo socialismo, praticado pela III Internacional desde ocomeço. Essa prática — depois teorizada para justificar o despotismo stalinista — fez que osegmento importante do movimento operário deixasse de ser um baluarte contra os movimentosrestauracionistas da ordem social, gerados pelo capitalismo em crise. Antes de 1914, ‘todo’ omovimento socialista fora também um movimento libertário. Além disso, para Hobsbawm, o impactoda depressão teria sido a grande força renovadora das idéias econômicas da época, porque adepressão teria desacreditado o pensamento econômico clássico, abrindo espaço para as políticas deregulação do capitalismo posteriores. Especialmente em razão desse descrédito da ortodoxiaeconômica, no segundo pós­guerra, os "formuladores de decisões", como diz Hobsbawm, passaram ater preocupações centrais: obter uma distribuição de renda mais igualitária do que a normalmenteensejada pelo capitalismo ‘puro’ e evitar grandes níveis de desemprego.

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Hobsbawm se deixa levar muito facilmente pela crença na racionalidade dos "formuladores dedecisões" capitalistas. Ele chega a ponto de chamar de reforma do capitalismo" a adoção das políticasde pleno emprego e bem­estar social no segundo pós­guerra. Tal ‘reforma’ é definida por ele como"essencialmente uma espécie de casamento entre liberalismo econômico e democracia social". Umpouco de resguardo seria melhor.

Em situações de grande perigo social, os "formuladores de decisões" instalados no poder tendemfortemente a dividir­se entre dois tipos básicos de saída, conforme suas inclinações pessoais: partirpara o enfrentamento com os movimentos reivindicatórios ou partir para concessões. Ora, no fim daSegunda Guerra Mundial, o perigo para o capitalismo era uma realidade assustadora. Diferentementedo que ocorrera na vez anterior, nenhum país em guerra da Europa ocidental, exceto a Grã­Bretanha,conseguira manter de pé o aparelho de Estado capitalista. Todos os demais países beligerantesemergiram da Guerra com aparelhos de Estado improvisados, em que se misturavam instituiçõescriadas pela resistência antifascista e instituições de emergência criadas pelos exércitos de ocupação.Em várias regiões, houve ‘zonas liberadas’ por partisans antes da chegada dos exércitos regulares.Tentar impor soluções capitalistas ortodoxas naquela parte da Europa, naquela época, seria realmentedemência suicidária. Razão pela qual todos os economistas com a tarefa de se dirigir ao grandepúblico viraram subitamente humanistas sensíveis. Para explicar suas mudanças de opinião,economistas antes conhecidos como empedernidos mastigadores de ‘fatores de produção’, passarama falar nas tristes recordações da Grande Depressão. Mas as tristes recordações não explicavam tudo.

Hobsbawn observa, pertinentemente, que os resultados da Segunda Guerra Mundial retiraram aextrema­direita do cenário político por um bom tempo. No fim da Guerra, só os "formuladores dedecisões" dispostos a fazer concessões tinham voz e audiência. É isso que mais explica por que foitão fácil fabricar um pacto aceitável para trabalhadores e patrões, então alçados à categoria nova de‘parceiros sociais’. Chamar essas concessões de "reformas do capitalismo" exagera seu alcance eobjetivos. As políticas de bem­estar social e pleno emprego do segundo pós­guerra foram umaresposta adequada a uma situação política em que o sistema capitalista se encontrava extremamentefragilizado na Europa ocidental, ao passo que a oriental estava ocupada pela URSS. Mas mesmo nosEUA, cujo governo do Partido Democrata terminara a Guerra prestigiado, não havia condições deignorar as esperanças da enorme massa mobilizada para a Guerra e que retornava buscando o ‘mundomelhor’ que a propaganda oficial prometera durante todo o conflito. Por outro lado, em termoseconômicos, na Europa, partia­se de infra­estruturas destruídas, com os trabalhadores e toda a classemédia, baixa e alta, reduzidos às rações alimentares distribuídas pelo Exército dos EUA. Quer dizer:as possibilidades de investimento eram aparentemente infinitas, com grande espaço para umadistribuição mais igualitária de rendimentos, sem renúncia a lucros.

Hoje se pode ver que aquilo não era exatamente uma reforma do capitalismo porque assim queaquelas condições anormais deixaram de existir, o estado de bem­estar começou a ser atacado. E jános anos 80, todos os economistas com clientes importantes voltaram aos mesmos cacoetes clássicosdos anos 20 e 30. Eles simplesmente voltaram a seu estado normal. Porque os Estados capitalistasestão agora firmes; e os "formuladores de decisões", no momento, não estão conseguindo enxergar amenor nuvem negra no horizonte à esquerda.

Talvez o pecado mais grave do livro seja a falta de conclusões convincentes sobre o "socialismo real"e o colapso da URSS. Sem dúvida, é bastante boa a comparação que Hobsbawm faz entre a URSS eChina, assim como sua percepção de que o Estado burocrático chinês se mantém porque lançou suasreformas sobre uma população majoritariamente camponesa. Mesmo assim, não é o caso de deixarpassar sem retoque a opinião da mídia, impressionada com a aparente estabilidade do regime chinês.E quanto às reformas de Gorbachev, a conclusão de que: "A URSS sob Gorbachev caiu nesse poçoem expansão entre a glasnost e a perestroika", é muito pouco para explicar um colapso fragorosoque, por incrível que pareça, apenas cinco anos antes estava fora de qualquer previsão, mesmo porparte de seus mais ferrenhos adversários.

Não há como fugir a impressão de que, a respeito da URSS, viveu­se um equívoco universal durante

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decênios. Seria preciso pelo menos tentar uma explicação que começasse a abordar esse equívoco,partilhado pela direita e pela esquerda, quanto ao caráter e, sobretudo, à viabilidade do "socialismoreal".

Em certo ponto do livro, Hobsbawm parece reconhecer que o regime soviético era inviável:

A tentativa de construir o socialismo produziu conquistas notáveis — não menos acapacidade de derrotar a Alemanha na Segunda Guerra Mundial —, mas a um custoenorme e inteiramente intolerável, e daquilo que acabou se revelando uma economia semsaída.

As "conquistas notáveis", no caso, estão todas ligadas à industrialização da URSS, que chegou aalçar­se à condição de segunda potência industrial do mundo, partindo praticamente do zero no fimda Guerra Civil, em 1920. Entretanto, o fato de que essa industrialização terminou num beco semsaída recoloca o problema do valor do método escolhido ou de algum equívoco fundamental quedeve ter havido em suas origens; ou surgido em algum ponto de sua edificação.

Para tentar uma primeira resposta, poder­se­ia inquirir se uma industrialização obtida a chicote podeter vida longa. O senso comum já é suficiente para suspeitar que o chicote não é bom instrumentopara desenvolver a criatividade. O chicote pôde fazer a URSS alcançar momentaneamente oOcidente, mas não ultrapassá­lo. A coerção desmesurada já continha os germens da estagnaçãotecnológica que levaria a URSS ao impasse mais tarde. Isso pode ser afirmado, mesmo que se queiraaceitar o chicote como "motor" válido para a construção de algum "socialismo" monástico de baixoconsumo. De qualquer maneira, no caso da URSS real, interessa ressaltar que o resultado alcançadofoi provisório. Sua industrialização avançava inexoravelmente para um beco sem saída.

No entanto, apesar de reconhecer que o resultado final da industrialização stalinista foi a "economiasem saída", Hobsbawm mantém­se apegado à idéia de que a URSS não teria outro caminho a seguirnos anos 20­30:

Qualquer política rápida de modernização da URSS, nas circunstâncias da época, tinhaque ser implacável e, porque imposta contra o grosso do povo, impondo­lhe sériossacrifícios, coercitiva em certa medida.

A própria frase — "política (...) coercitiva em certa medida"— deixa no ar uma questão: em quemedida? Aquela medida de coerção foi correta? Mais lógico, à luz do que Hobsbawm sabe hoje, seriadizer que talvez alguma coerção fosse inevitável "nas circunstâncias da época", porém a coerçãostalinista provou ser incompatível com uma industrialização inovadora e sustentável a longo prazo.Ou, até mesmo, poderia continuar achando que, em 1929, não houvesse um caminho muito diferenteà disposição de Stalin, mas para ser coerente com sua própria conclusão final sobre a economiasoviética, Hobsbawm deveria também lembrar que o governo da URSS tinha que encontrar um meiode dispensar a coerção "contra o grosso do povo", o mais cedo possível, se quisesse manter aeconomia viável .

Sobra a impressão de que, a respeito da URSS, o arrazoado de Hobsbawm é, em parte, emotivo. Issotransparece mais fortemente na convalidação implícita das palavras de Oskar Lange em seu leito demorte:

Havia uma alternativa para a corrida indiscriminada, brutal, basicamente nãoplanejada, ao primeiro plano qüinqüenal?. Gostaria de dizer que havia, mas não posso.

Hobsbawm parece não se dar conta que Oskar Lange, um defensor da economia planificada, morreuem 1965, ou seja, morreu a tempo de levar consigo suas convicções intactas. Os que morreram ouvieram a morrer depois de 1991 não têm mais esse privilégio, a não ser que, de 1989 em diante,tenham passado a circular de olhos vendados.

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Além do mais, já antes do desabamento da URSS, surgiram novas informações sobre os anos 30, queO. Lange não chegou a conhecer. Informações que Hobsbawm mostra ter, ao sugerir veladamenteque, somente para o Segundo Plano Qüinqüenal (1933­1937), poder­se­ia fazer uma estimativa de16,7 milhões de mortos, vítimas da fome e da repressão. Isso é inferido da constatação do decréscimoda população da URSS no período do plano; informação classificada como secreta em 1938. Querdizer: Stalin proibiu a divulgação das estatísticas demográficas do Segundo Plano Qüinqüenal porqueestas depunham contra sua "vitória econômica".

As informações que se têm hoje sobre os anos 30 são arrasadoras. Mesmo continuando a aceitar quea URSS não poderia dispensar a imposição de sacrifícios ao povo naquela época, sobra base mais quesuficiente para afirmar, em 1990, que aquela coerção foi de eficácia imediata altamente duvidosa,além de comprovadamente nefasta para o desenvolvimento futuro da URSS. Nessa questão dasuposta necessidade histórica do stalinismo, talvez melhor seja deixar falar Moshe Lewin que, já em1965, escreveu um artigo para a revista Soviet Studies, na qualonde, após descrever detalhadamente aenorme perda de energia humana e de meios materiais gerada pelos zigue­zagues desastrosos deStalin durante a coletivização da agricultura, conclui:

Se é certo que a industrialização devia acarretar mudanças profundas no campo, é falso,a nosso ver, imaginar que tais mudanças só poderiam ser feitas através daquelacoletivização que a Rússia experimentou. Por que fazer do kolkhoz a única forma deexploração coletiva, quando as estruturas aldeãs sugeriam outras soluções? (...)Pretender que a liquidação da esquerda, adepta entusiasta da coletivização e da políticaantikulak fosse uma pré­condição capital da industrialização futura e que essaliquidação devesse ser feita por um Stalin que, nessa época (1928­1929), sequer refletirasobre o que seria uma política futura, significa sustentar uma teoria bem estranha. Só épossível subscrevê­la aceitando outra teoria igualmente bizarra, que consiste emapresentar Stalin como um "deus ex­machina", como o único homem no Partido capaz detransformar a Rússia em país industrial.

Paralelamente a sua apreciação sobre a economia da URSS, Hobsbawm vai passando uma idéia,igualmente afetada por seus sentimentos pessoais, sobre a legitimidade dos Estados erguidos emnome do "socialismo real". Os acontecimentos espetaculares do fim dos anos 80 e início dos 90 naEuropa oriental e na URSS dão larga margem a um questionamento da própria legitimidade dosregimes instaurados nessa parte do mundo.

A respeito da Europa oriental, Hobsbawm nota que as burocracias desses países procuraram retirar­sedo poder discretamente (exceto na Romênia) "porque tinham visivelmente perdido a justificativa quemantivera seus quadros comunistas no passado". A justificativa, no caso, era o "socialismo real", quesó funcionava sob a tutela da URSS. Quando esta acabou, deu uma epidemia de amnésia na Europaoriental. De repente, seus governantes não se lembravam mais de como tinham ido parar ali.

Para a URSS, a opinião de Hobsbawm é diferente:

Ao contrário de muitos estrangeiros, todos os russos sabiam bastante bem quantosofrimento lhes coubera e ainda lhes cabia (em 1953). Contudo, em certo sentido, pelosimples fato de ser um governante forte e legítimo das terras russas e delas ummodernizador, ele (Stalin) representava alguma coisa deles próprios.

Depois de confundir sobrevivência da revolução com sobrevivência do Império Russo, Hobsbawm sópodia confundir conformismo do povo com legitimidade de Estado stalinista.

A legitimidade do Estado soviético nasceu e ficou ligada até o fim a seus laços com a Revolução deOutubro. Esses laços deixaram de ter realidade efetiva já nos anos 20, porém todos os burocratas queliquidaram as esperanças de Outubro tinham consciência de que a legitimidade de sua dominaçãodependia daqueles laços. Por isso, mantiveram a farsa do "socialismo" enquanto puderam. Quandonão puderam mais, foi um salve­se quem puder. Diante de todos os acontecimentos dos anos 80 e 90,pode­se afirmar que a brutalidade aparentemente absurda de Stalin decorria, em parte, de sua

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legitimidade precária. Só partindo dessa premissa se pode começar uma discussão séria sobre ashecatombes de Stalin, superando a mera lamentação humanitária, assim como o conformismo com asuposta inevitabilidade de um regime "implacável" naquela época e lugar.

Somente um regime de legitimidade precária pode desabar da noite para o dia sem que se manifestemforças sociais significativas em sua defesa. O grande argumento histórico pró­Stalin (lembrado porHobsbawm) foi sua vitória sobre Hitler. De fato, foi a vitória sobre os nazistas que deu à burocraciado Kremlin a autoridade que lhe permitiu prolongar seu regime até o fim dos anos 80. Entretanto,uma olhada mais detalhada nos grandes fatos históricos é indispensável, para quem não quer secontentar com panegíricos.

A agressão hitleriana mostrou, desde seu primeiro momento, uma face brutalmente racista eantieslava (não só anticomunista), que tornou impossível qualquer movimento de simpatia emrelação aos invasores por parte dos povos da Europa soviética, exceto de alguns, não­eslavos, da áreado Cáucaso. É inegável que o extremo reacionarismo do comando nazista foi um fator favorável aStalin; do mesmo modo que o extremo reacionarismo dos "brancos" na época da Guerra Civil (1918­1920) fora um fator favorável aos bolcheviques. O racismo antieslavo do comando nazista facilitou aaglutinação dos russos, ucranianos e bielo­russos em torno do único Estado que parecia capaz desalvá­los da aniquilação completa. Stalin mobilizou o povo fazendo apelo basicamente aopatriotismo. Os operários escreviam sobre os tanques, antes de remetê­los ao front: za rodinu (pelapátria). Se Stalin tivesse tentado mobilizar o povo pelo "socialismo" dos Planos Qüinqüenais,certamente ter­se­a desastrado. Não por acaso, o nome oficial da Segunda Guerra Mundial na URSSera ‘Grande Guerra Patriótica’. E assim a Guerra foi entendida pelo povo. Isso permite qualificar alegitimidade ganha pelo regime com a vitória sobre a agressão nazista. O regime legitimou­se comodefesa eficaz dos povos eslavos contra agressores externos. Quer dizer: obteve um novo tipo delegitimidade, mais restrito. Nem antes, nem durante, nem depois da Guerra, o "socialismo" de Stalinfoi sentido como aceitável e legítimo pelos povos da URSS, eslavos ou não.

O próprio Hobsbawm ressalta o apoliticismo extremo do povo nos países do "socialismo real". Ora, oapoliticismo na URSS tinha um significado especial. Era o único país do mundo que não podia terum povo apolítico. Porque era o único que tinha como meta oficial ‘elevar o nível de consciênciapolítica da população’, para isso restringindo a propaganda religiosa e instituindo um certo‘marxismo’ como matéria obrigatória em todos os níveis de ensino. Sob tal ordenamento da vidacultural, o profundo apoliticismo do povo soviético valia como uma rejeição maciça do regime.

Então, as conclusões devem ser tiradas: o Estado soviético conseguiu legitimar­se? Sim. Porém, emprimeiro lugar, conseguiu­o somente depois da Segunda Guerra Mundial e não para todos os povosda URSS; em segundo lugar, essa legitimidade parcial e diferente da pretendida originalmente nãodizia respeito ao "socialismo real".

Diga­se de passagem, mesmo pretendendo que o apoliticismo do povo soviético não seria evidênciasuficiente da legitimidade precária de seu Estado, as reações nacionalistas que se seguiram aodesmoronamento do regime não deixariam margem a dúvidas: ao primeiro abalo da capacidaderepressiva do Estado soviético (em particular a desarticulação da KGB, vitimada pela glasnost), a‘União’ entrou em rápida dissolução, inclusive a união ‘interna’ da Rússia.

No final do livro, Hobsbawm descreve a crise da própria economia capitalista. Ao lado de muitainformação importante, Hobsbawm tira algumas conclusões temerárias. Como, por exemplo: "Otriunfalismo neoliberal não sobreviveu aos reveses do início dos anos 90". É muito otimismo deHosbsbawm achar que o neoliberalismo se encontre abalado em virtude dos sofrimentos que estejacausando à humanidade a partir dos anos 80.

Infelizmente, a história não é um sistema de reflexos sociais perseguindo o caminho do menorsofrimento. Se fosse assim, não se teria conseguido descer aos abismos de repressão sanguináriaatingidos durante o ‘breve século XX’.

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Sem dúvida, é absolutamente verdadeira a exposição do que Hobsbawm considera uma depressãoeconômica comparável à dos anos 30, hoje se estendendo em graus diversos no mundo inteiro.Entretanto, Hobsbawm subestima a capacidade de cinismo dos economistas com acesso ao poder e àgrande mídia. Para eles, o que está ocorrendo é apenas um processo "inevitável" de adaptação à"globalização econômica". O sofrimento dos seres humanos não é parâmetro de avaliação dosresultados das políticas decididas pelos clientes desses economistas. E vai continuar sendo assim,enquanto reações sociais de grande envergadura não obriguem os "formuladores de decisões" areverem seus parâmetros.

Todas as ressalvas acima não impedem que o livro de Hobsbawm mereça ser lido com atenção. Valeum bom curso de História. Mas mesmo os melhores cursos de História têm lições que devem serrecebidas cum grano salis.

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