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Sumário INTRODUÇÃO 9 I DA TRANSIÇÃO PARA O SOCIALISMO E PARA QUE SOCIALISMO 12 O alfa e o ômega das sociedades de classe 12 Da democracia burguesa ao Estado de direito 16 Tempos de perplexidade 18 Os modelos de revolução do século XX e seus equívocos 20 As democracias populares e o seu socialismo anticapitalista 31 O binômio Estado de direito/Estado fascista 33 O Estado de direito e a emergência da transição ao socialismo 37 II A CRISE DA VANGUARDA 47 A emancipação do proletariado 54 Emancipação e vida material 60 Emancipação e vida espiritual 61

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Sumário

INTRODUÇÃO 9

I DA TRANSIÇÃO PARA O SOCIALISMO E PARA QUE SOCIALISMO 12

O alfa e o ômega das sociedades de classe 12

Da democracia burguesa ao Estado de direito 16

Tempos de perplexidade 18

Os modelos de revolução do século XX e seus equívocos 20

As democracias populares e o seu socialismo anticapitalista 31

O binômio Estado de direito/Estado fascista 33

O Estado de direito e a emergência da transição ao socialismo 37

II A CRISE DA VANGUARDA 47

A emancipação do proletariado 54

Emancipação e vida material 60

Emancipação e vida espiritual 61

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Emancipação e vida política 63

Incompletude e deformidade do processo emancipatório 65

III CIDADANIA E ESTADO DE DIREITO 68

Ameaças ao Estado de direito 69

Estado de direito, fim do Estado e Estado cidadão 78

Democracia política, Gemeinde e Estado cidadão 80

A tecnoburocracia estatal 89

Burguesia e proletariado 91

A questão nacional 96

A dinâmica que democratiza e desestatiza o Estado de direito 97

IV O SOCIALISMO CIDADÃO 101

Socialismo pós-capitalista ou Socialismo Cidadão 104

Elementos de economia 105

Da propriedade dos meios de produção 105

Lucro, herança e uso social 107

O Estado 109

A “democracia realizada” como a produção da Gemeinde e

do Estado cidadão 109

A democracia realizada como o fim do binômio

Estado de direito/Estado fascista 113

Cidadania e política 115

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O socialismo como cidadania emancipada 115

Conquistas sociais e luta de classes 121

O socialismo como equidade social estratégica e plena 121

O socialismo como subordinação da burguesia 123

V UM “QUEM FAZ” E UM “O QUE FAZER” 125

Trabalhadores e cidadãos 125

A cidadania como o brotamento superestrutural

do proletariado 125

Comunistas, trabalhadores e cidadãos 131

Partidos Orgânicos e Partidos Ontogênicos 133

Para além do Partido Orgânico 133

Os valores espirituais da cidade futura 147

Ações de longo prazo, ações de inteligência e ações

solitárias: plantando para o amanhã 151

VI A REVOLUÇÃO PROGRESSIVA COMO UM NOVO MODELO DE TRANSIÇÃO AO SOCIALISMO 155

O papel revolucionário do proletariado no século XX 155

O Estado de direito como Estado de transição 157

Guerra de posição no Estado de direito e Estado

de direito na crise orgânica 159

A identidade do novo modelo de revolução frente aos anteriores 164

Conclusões 170

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Introdução

O mOvimentO sOcialista internaciOnal vive prOfunda crise. Até a queda do muro de Berlim, a existência física das democracias populares em todo o mundo cumpria, apesar dos muitos proble-mas existentes, um papel de elo histórico com a formulação de Marx, Engels e Lênin, atestando a atualidade do socialismo. Em escala global, reconfortavam a alma socialista que podia ten-tar enxergar naquele modelo tortuoso a expressão real de uma teoria mal-executada ou deformada pelas pressões externas. Os problemas podiam então ser entendidos como de natureza ope-racional, o que preservava a formulação dos fundadores. A der-rota histórica do mundo socialista foi um fenômeno devastador, não somente em virtude do seu alcance universal, mas, sobretu-do, por ter gerado uma dimensão espaço-temporal não prevista: o “day-after” do mundo socialista, motivado não por uma derro-ta militar, mas pela vontade coletiva de uma cidadania nascida e crescida sob o socialismo.

Deserdado e desarmado teoricamente por uma realidade que já não estava nos manuais, o movimento socialista entrou em colapso. Décadas depois, nos dias atuais, ainda não conse-guiu reerguer-se sequer no plano teórico.

A elaboração necessária a superar essa fase exigirá uma re-leitura do marxismo, e do legado de Lênin e de Gramsci, pois

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nenhuma formulação ou modelo de revolução escapou da derro-ta histórica. Haveria nos fundamentos erros ou lacunas capazes de nos conduzir ao ponto em que estamos? Ou estariam os pro-blemas concentrados na própria gestão da experiência?

Não responder a essas perguntas significaria perder a cone-xão com as raízes do movimento revolucionário dos séculos XIX e XX e esterilizar a rica experiência teórica e prática acumulada até aqui, que se tornaria então totalmente ininteligível para o futuro. Por sua vez, o não enfrentamento dos desafios teóricos que se impõem inviabilizaria por completo qualquer chance de ressurgimento de um movimento socialista renovado, pois não poderá ganhar vida nova sem que o enigma histórico do seu co-lapso seja elucidado. Ou o movimento se reencontra com o labor socialista das gerações passadas, ou terá chegado a um beco sem saída. Ou decifra o que ocorreu, ou a derrota terá sido definitiva.

O propósito deste livro é iniciar essa releitura e propor al-gumas novas respostas a velhas perguntas. Não pretendemos ser exaustivos nem excessivamente acadêmicos na vã tentativa de produzir um trabalho inquestionável; pretendemos, sim, sem menosprezar os fundamentos teóricos marxistas, mas trilhan-do caminhos originais, explorar alternativas onde antes só havia certezas.

Na releitura que propomos iniciaremos com uma reflexão sobre a natureza da transição do capitalismo para o socialismo com base em elementos presentes na formulação marxista so-bre a transição oposta, que marcou a entrada da humanidade na sociedade de classes. Por essa porta estreita – pois a elabo-ração marxista sobre o modo de produção asiático é esparsa e desencontrada – é que passaremos, apontando para a existência de uma surpreendente simetria inversa entre aquela época e a contemporânea, quando convergimos para o que denominamos socialismo pós-capitalista, de que faremos um singelo esboço.

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Introdução | 11

Defenderemos a tese de que o socialismo do século XX de-lineou-se como uma experiência anticapitalista, (e não pós-ca-pitalista), razão porque não poderia ter prosperado, pois per-maneceu ao longo de toda a sua existência como o antimodelo paralelo do capitalismo, dependente, no plano da sua legitimi-dade histórica, da existência opressora do Estado burguês sob a sua forma restrita.

Percorreremos diversos elementos que demonstram que o proletariado continua fazendo a história, embora não saiba que história faz e que persiste, nesta práxis atual marcada por pouca teoria, avançando de forma bastante constante tanto ao longo do século XX quanto no raiar do século XXI, tornando, aliás, o socialismo cada vez mais viável. Ao leitor sensato tal afirmação poderá parecer loucura. Tentaremos demonstrar que não.

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I Da transição para o socialismo e

para que socialismo

O alfa e o ômega das sociedades de classe

Os modelos de passagem das primeiras sociedade sem classes – o socialismo primitivo – para a sociedade de classes foram objeto do interesse de Marx e Engels em diversas publicações, embora não haja nenhum livro específico sobre este assunto. Para eles, essa transição ocorreu por meio do que denominaram modo de produção asiático. A entrada da humanidade na so-ciedade de classes oferece um panorama valioso para a reflexão sobre a transição atual por recolocar, num nível evidentemente mais complexo, problemas que terão de ser resolvidos num or-denamento invertido para que a transição ao socialismo possa efetivamente ser materializada.

O modo de produção asiático se desenvolveu em sociedades que realizaram grandes trabalhos de irrigação para a agricultura e seus vestígios podem ainda ser encontrados no Egito, Índia ou nas regiões onde prosperaram as civilizações indígenas das Américas. Ele foi atravessado em sua evolução interna pela cli-

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vagem entre o socialismo primitivo e a primeira sociedade de classes, razão porque pode ser entendido como sendo ao mesmo tempo a última sociedade sem classes e a primeira sociedade de classes. Engels põe o fenômeno numa perspectiva cronológica atribuindo ao modo de produção asiático uma fase inferior de-mocrática e não classista (ainda influenciada pela sociedade não dividida em classes sociais, a que denomina “Comunidade” ou Gemeinde), e uma fase superior dita despótica e classista1. Veja-mos o que diz Engels:

No seio de cada uma destas coletividades existem, desde o primeiro momento, determinados interesses comuns, cuja defesa se entrega a determinados indivíduos, embora sob o controle da coletividade, como seja: administração da justiça, repressão de atos ilegítimos, inspeção do regi-me de águas, principalmente nos países tropicais, e, fi-nalmente, toda uma série de funções religiosas, derivadas do primitivismo selvagem destas sociedades. Tais fenô-menos de distribuição de competências se encontram nas coletividades naturais de todas as épocas, como já ocor-ria na sociedade antiquíssima dos marks alemães e como ainda hoje se observa na Índia. Trazem consigo, como é lógico, uma certa amplitude de poderes e representam as origens do Estado. Pouco a pouco, as forças produti-vas se vão intensificando, a densidade cada vez maior de população cria interesses ora comuns, ora formados entre as distintas coletividades, de modo que, agrupan-do-se num todo superior, fazem nascer uma nova divisão do trabalho, criando os órgãos necessários para cuidar dos interesses harmônicos e para defender-se contra os interesses hostis. Tais órgãos, que ocupam já, como re-presentantes dos interesses comuns de todo o grupo, uma posição especial frente a cada coletividade particular, até mesmo inclusive inimiga, vão adquirindo dia a dia maior

1.  ENGELS, F. Anti-Dühring (1877). Edição eletrônica com base em arquivos cedidos pelo gru-po Acrpopolis em The Marxists Internet Archive, p. 92. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/index.htm>.

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independência, devido, em parte, ao caráter hereditário de suas funções, caráter quase evidente num mundo em que tudo se desenvolve de um modo elementar, e, em par-te, à proporção em que se vão tornando indispensáveis pela multiplicação dos conflitos com outros grupos. Não é necessário que examinemos aqui o modo como esta in-dependência da função social frente à sociedade foi con-vertendo-se, com o correr dos tempos, numa verdadeira hegemonia sobre a própria sociedade, o modo como os primitivos servidores da sociedade, nos lugares onde as circunstâncias lhes foram propícias, foram-se erigindo paulatinamente em senhores dela própria e, finalmente, o modo como, de acordo com o ambiente, esses mesmos senhores se instauraram, no Oriente, como déspotas ou sátrapas, na Grécia, como príncipes de linhagem, entre os celtas, como chefes de clã, e assim por diante.2

O conceito de “coletividade” utilizado por Engels quando se refere à fase inferior do modo de produção asiático diz respeito ao protagonismo social de um ente, a comunidade, que promove uma gestão democrática dos recursos naturais e das instituições. Ou seja, a formulação alude a uma administração não estatal e não comprometida com a subordinação de uma classe por outra, embora reconheça, no mesmo texto, que essa divisão do trabalho deu origem à dominação do homem pelo homem, isto é, ao pró-prio Estado, conforme a sua formulação marxista.

Naturalmente, as condições que deram origem ao Estado e à sociedade de classes na pré-história da humanidade foram in-comparavelmente mais simples do que as que hoje nos desafiam quando o capitalismo está organizado em nível planetário. Mes-mo assim, estamos no extremo oposto do processo que dividiu

2. ENGELS, F. Anti-Dühring (1877). Edição eletrônica com base em arquivos cedidos pelo gru-po Acrpopolis em The Marxists Internet Archive, p. 92. Disponível em <http://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/index.htm>.

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a humanidade entre dominantes e dominados, fato que torna, desde Marx e Engels, a visita ao modo de produção asiático es-pecialmente interessante.

Ao observarmos a evolução histórica da sociedade sob o modo de produção capitalista vamos admitir a hipótese da existência de simetrias entre alguns elementos também pre-sentes na transição da sociedade sem classes para a socieda-de de classes no modo de produção asiático. Tal simetria deve manifestar-se de forma invertida na ordem da ocorrência do fenômeno expresso pela análise de Engels no Anti-Dühring, que atribui a) à fase inferior do modo de produção asiático um caráter democrático, caracterizado pela gestão coletiva da administração, e b) à fase superior subsequente um caráter despótico, no qual a gestão da coisa pública se vê apropriada por uma classe dominante surgida da divisão do trabalho e das novas funções sociais.

Seria esperável, caso o processo histórico de saída da socie-dade de classes estivesse em andamento nos dias atuais, que o Estado na sociedade capitalista conhecesse um processo inverso ao que Engels vislumbrou no modo de produção asiático. No capitalismo, o gradiente de evolução, para confirmar a hipótese em análise, deveria ter, (movido pelas lutas dos trabalhadores e pela intensificação das forças produtivas), uma direção vetorial apontada para a democratização da vida política e para o incre-mento do controle da coletividade sobre as funções públicas. Se isso estiver acontecendo seria justo validar a hipótese de que a tran-sição para a sociedade sem classes estaria em andamento. Vamos admitir também que o processo vem ocorrendo às cegas, pois o proletariado faz essa História “sem saber que história faz”, e está mergulhado, dada a pobreza da formulação teórica socia-lista contemporânea, numa ignorância política que inviabiliza inteiramente a realização do fenômeno de forma mais robusta e consciente.

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Consideramos que o processo a que assistimos, ao longo do século XX, é compatível com a ampliação do controle coletivo sobre coisa pública em escala planetária e que há, no modo de produção capitalista, à semelhança do que ocorreu no modo de produção asiático, mas em ordem inversa, uma fase inferior des-pótica, marcada pela presença de Estados restritos, limitados à Sociedade Política, (as democracias burguesas, ou o Estado bur-guês), e uma fase superior democrática, marcada pela emergência e fortalecimento da Sociedade Civil que funda Estados de direito.

O ordenamento cronológico do surgimento de Estados am-pliados com Sociedade Civil mais forte como sucedâneos de Es-tados restritos e o fato de que o fenômeno conhece amplitude planetária atestam, para horror dos conservadores, que a histó-ria continua se movendo.

Da democracia burguesa ao Estado de direito

O século XX assistiu a um processo complexo de evolução so-cial, pois foi atravessado por uma transição interna ao próprio capitalismo, que transitou de sua fase inferior para a sua fase superior, ao mesmo tempo que emergiam repúblicas socialistas em reação à brutal democracia burguesa.

A complexidade dessa fase da história tornou a sua com-preensão teórica extremamente difícil. Nenhum dos grandes pensadores do socialismo vislumbrou a transição interna do Estado capitalista e dela pôde, obviamente, tirar lições para a política, nem dimensionar as consequências para o Socialismo Real. Gramsci aproximou-se disso, abrindo caminhos e produ-zindo conceitos para análises que só hoje são possíveis, quando alguns fenômenos, como o da implosão do Socialismo Real, se mostraram por completo.

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Estamos denominando “fase inferior” do capitalismo aqui-lo a que Marx e Engels denominaram democracia burguesa ou Estado burguês, cujo governo funcionava como o Comitê Gestor dos interesses do capital.3 Ilustra o mesmo fenômeno o Estado russo anterior a 1917, conforme Gramsci,4 de Sociedade Civil gelatinosa e governado eminentemente pela força.

O Estado burguês de fase inferior foi comumente marcado pelo voto do cidadão ativo (qualificado pela propriedade), pela restrição ao voto feminino, pelo racismo oficial, pela proibição do direito de greve e de opinião ou pelas muitas outras restrições ao exercício da liberdade em prejuízo dos trabalhadores e da cidadania, caracterizando-o como um Estado abertamente au-toritário, no qual a ordem se apoiava, sem muitos subterfúgios, sobre as baionetas.

O Estado burguês, que prosperou, sobretudo na Europa e nos EUA, entre a Revolução Industrial e a Segunda Grande Guerra, foi capaz de uma violência antipopular ricamente re-gistrada pela história. São emblemáticos dessa fase os Estados francês e inglês de fins do século XIX e início do século XX, cuja violência no trato com os trabalhadores deixou memória inapagável na história retratada em romances, crônicas de época e em fotos de massacres. Na França, essa democracia burguesa encerra o seu reinado ao enviar para o extermínio milhares de cidadãos franceses de origem judaica, comunistas, e deficientes físicos e mentais.

Por outro lado, estamos denominando “fase superior” o que comumente é denominado Estado de direito, forma de Estado

3  MARX, K. O Manifesto do Partido Comunista (1848), Publicado de acordo com o texto da edição soviética em espanhol de 1951, traduzida da edição alemã de 1848. p. 2. Disponível em: <www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_fontes/acer_marx/tme_07.pdf>.

4  GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Tradução de Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira, Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. v. 3, p. 282.

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dotado de uma Sociedade Civil mais robusta e que evolui a de-pender das conquistas e da força política da cidadania, para um exercício potencialmente mais democrático do poder, com al-cance para um controle cada vez maior da coletividade sobre a coisa pública.

Vemos, portanto, que no capitalismo ocorreu, ao longo do século XX, o trânsito entre Estado burguês, típico da sua fase inferior, para o Estado de direito, típico da fase superior.

Essa transição não viria sem consequências, já que os mode-los de revolução então vigentes – a saber: o leninista, focado na tomada do Estado restrito, (a guerra de movimento), e o grams-ciano, focado na disputa da hegemonia política da Sociedade Civil (guerra de posição), mas “dependente” da circunstância da Crise Orgânica5 para a emergência de um “novo” qualitati-vamente superior6 – desconheceram a importância e as implica-ções do fenômeno para o movimento revolucionário, fato que, como veremos, contribuiu para explicar a crise a que assistimos.

Tempos de perplexidade

A incompreensão teórica de momento histórico particularmente complexo, marcado pela eclosão de revoluções anticapitalistas no Leste Europeu, na Ásia e na África, e pela transição interna do capitalismo para a sua fase superior, produziu forte impac-to na linha política adotada pelo Partido Comunista Italiano (PCI), cuja influência e prestígio no Ocidente só não eram maio-res do que os do Partido Comunista da União Soviética.

5  A Crise Orgânica em Gramsci é ao mesmo tempo estrutural e superestrutural, e de-corre seja de uma perda de autoridade das classes dominantes, seja de iniciativas das classes subalternas, produzindo um ambiente no qual vários desfechos são possíveis, dentre os quais a revolução socialista (GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Tradução de Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio No-gueira, Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. v. 3, p. 60).

6  GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Tradução de Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira, Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. v. 3, p. 184.

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Já no imediato pós-guerra, sob a liderança de Togliatti, o PCI proclamou uma “Via Italiana ao Socialismo”, que, embora premiada com o aumento expressivo da popularidade do PCI até os anos 1980, veio a revelar-se, mais tarde, o ponto de cliva-gem a partir do qual se operou um retorno à social-democracia. Na Via Italiana, o legado de Gramsci, em lugar de ter sido re-contextualizado num nível de compreensão mais alto, que per-mitisse uma reinterpretação mais fiel ao socialismo, se perdeu, convertendo-se tão somente num discurso de legitimação e de mistificação do Estado de direito.

Os atenuantes para o naufrágio do PCI nos recifes da social-democracia são inúmeros, como o fato de que provavelmente os anos 1940 e 1950 não permitiam uma perspectiva mais longa ca-paz de dissipar a perplexidade e de fundar um modelo novo de transição ao socialismo. O PCI teve ao menos mérito de inves-tir-se de coragem num caminho novo, mas mostrou-se despre-parado para completar o desafio teórico, cujo primeiro capítulo poderia ter sido a Via Italiana.

Enquanto a velha social-democracia trocou, desde fins do século XIX, o socialismo pelo bem-estar social, mistificando o Welfare State, o PCI o fez pelo “bem-estar político”, conver-tendo o Estado de direito numa espécie de fim da história. Em ambos os casos, o modelo social-democrata permitiu aos parti-dos que a ele aderiram lograr excelente convivência com as suas burguesias nacionais, oferecendo-lhes revigorada legitimidade.

Lançado num diálogo de surdos, o movimento comunista dividiu-se entre leninistas e eurocomunistas, tendo sido ambos derrotados historicamente. Mais atualmente, no pós-crise de 2008, até mesmo a social-democracia vem sendo fragilizada pela leitura conservadora da crise econômica, entendida como decorrente das conquistas sociais dos trabalhadores e do Wel-fare State.

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Em síntese, desconhecendo a natureza profunda do Estado de direito como Estado de fase superior do capitalismo, o movi-mento socialista exprimiu frente a ele três grandes respostas: a) tratou-o como se fosse a velha democracia burguesa e sucumbiu (variante leninista); b) compreendeu-o, mas não teve tempo de formular efetivamente novos modelos de revolução e de partido e sucumbiu (variante gramsciana); e c) capitulou, mistificando o Estado de direito (Via Italiana) ou o de Bem-Estar Social (so-cial-democracia tradicional) e vem sendo vergastado.

Nenhuma das três vertentes conseguiu recolocar o movi-mento socialista nos trilhos novamente.

Apesar da notável exceção da América Latina – região em que vem ocorrendo verdadeiro rejuvenescimento de uma cultura que ousaríamos denominar “social-democrata de esquerda”, sob marcante influência da variante brasileira, liderada pelo Partido dos Trabalhadores (que padece, entretanto, para tornar-se patri-mônio universal, de uma formulação teórica mais robusta sobre os modelos de transição) –, o movimento socialista está hoje sob o manto da perplexidade, movendo-se às cegas.

Os modelos de revolução do século XX e seus equívocos

Em Marx e Engels, a revolução socialista é entendida como um processo de tomada do poder por um partido operário que, ato contínuo, coletiviza os meios de produção. A primeira revolução socialista, a Comuna de Paris de 1871, veio a corroborar esse modelo de revolução, dando-lhe uma comprovação científica objetiva e exterior à intervenção dirigente de um Partido Co-munista. A Comuna de Paris funcionou como uma espécie de “fenômeno natural” que provou uma teoria científica.

Entretanto, a comuna foi dramaticamente derrotada e es-magada. O terror que afligiu os revolucionários de Paris e que

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nos chega até hoje em fotos de época obrigou o movimento inter-nacionalmente a avaliar as suas estratégias, consolidar os acer-tos e corrigir os erros.

O modelo leninista de revolução, com um partido comunis-ta monolítico à frente, retoma os fundamentos teóricos de Marx e Engels e a prática da Comuna, e os aperfeiçoa. Os êxitos da revolução de outubro estão na releitura dos erros da Comuna e das naturais insuficiências de Marx, que não podia antever a revolução vitoriosa na periferia do capitalismo.7

Diferentemente de Marx, Lênin funda um Partido Comu-nista centralizado e disciplinado, capaz de ser a ponta de lança do movimento revolucionário e a ferramenta estratégica do pro-letariado para a tomada do poder. O modelo leninista de partido e de revolução seria exportado para o mundo inteiro por Stalin como parte da tentativa de satelitizar a “revolução mundial” aos interesses da revolução russa.

Poucos partidos comunistas conseguiram manter uma for-mulação teórica própria em meio às pressões oriundas de Mos-cou. Um desses partidos foi o PCI, com a produção intelectual de Antonio Gramsci, apartado que estava, no auge da sua me-lhor elaboração, tanto da vida partidária quanto das pressões da Internacional Socialista. A prisão submeteu Gramsci a uma condição de observador incomum da vida política italiana e in-ternacional, dando-lhe surpreendente liberdade de elaboração que inexistiria se não estivesse preso.

A genialidade de Antonio Gramsci permitiu-lhe, durante a sua prisão, o estudo das peculiaridades da revolução socialista no Ocidente desde os anos 20 e 30 do século passado, escassos

7.  LÊNIN, V. I. O imperialismo: etapa superior do capitalismo. Apresentação Plínio de Arruda Sampaio Júnior. Campinas, SP: Navegando publicações, 2011. 270 p. Disponível em: <http://eventohistedbr.com.br/editora/wp-content/uploads/2011/07/lenin_imperialismo_navegando_ebook.pdf>.

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anos depois da eclosão da Revolução Russa, cuja força gravita-cional alinhava de forma absoluta a elaboração dos comunistas no mundo inteiro.

Preso por Mussolini, Gramsci foi poupado de destino pos-sivelmente mais trágico se tivesse recorrido ao exílio na Rússia stalinista, como ocorreu com diversos outros intelectuais comu-nistas à mesma época.

Gramsci produziu rica reflexão sobre o Estado, entendido como Sociedade Política + Sociedade Civil ou como Ditadu-ra + Hegemonia e estudou os caminhos da revolução na Itália adequando o marxismo-leninismo a uma concepção que deveria considerar, na tomada do poder, o processo de acúmulo “mole-cular” de influência do proletariado no componente estratégico do Estado no Ocidente: a Sociedade Civil, sede operacional da hegemonia política.

Apesar disso, e sem estabelecer qualquer mistificação da violência como forma isolada de chegada ao poder, Gramsci nunca cedeu à ideia de que a transição ao socialismo poderia ser obtida por via parlamentar, assim como nunca enunciou a ideia de transição pacífica. Sobre o desfecho da crise de he-gemonia, diz Gramsci: “Pode-se dizer, portanto, que todos es-tes elementos são a manifestação concreta das flutuações de conjuntura do conjunto das relações sociais de força, para cul-minar na relação militar decisiva”.8 O seu modelo, portanto, compreende que os avanços políticos do proletariado são de natureza preparatória a uma tomada do poder, cuja eclosão se dá na Crise Orgânica, oportunidade em que emerge como uma das saídas possíveis, fundando uma nova ordem diferente da anterior. O processo de acúmulo é longo e evolui de fases subterrâneas e moleculares ganhando velocidade e amplitude

8.  GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere: Maquiavel: notas sobre o Estado e a Política, Edição Carlos Nelson Coutinho com marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques, Editora Civili-zação Brasileira, 2011. p. 45.

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à medida que vai sendo consolidada a hegemonia do proleta-riado na sociedade.

A “guerra de posição” a que o proletariado no Ocidente está obrigado, por força da presença maciça da Sociedade Civil no aparelho estatal, se opõe à “guerra de movimento”, mais apro-priada aos Estados restritos, como a Rússia de 1917.

A luta pela conquista da hegemonia na Sociedade Civil, pre-visivelmente longa, deveria ser conduzida no interior do próprio Estado capitalista, permitindo um acúmulo de energias e um amadurecimento do proletariado para o exercício de um poder político alcançável apenas pela via revolucionária, entendida, tal como em Lênin, como a tomada do poder na qual o Partido Comunista, coeso e disciplinado, teria papel dirigente.

As três maiores diferenças entre Lênin e Gramsci se encon-tram, em primeiro lugar, na abordagem do “tempo” de exercício da política antes da revolução, mais longo no Ocidente; em se-gundo lugar, no conceito operacional da conquista da hegemo-nia sobre a Sociedade Civil como condição prévia para a tomada da Sociedade Política; e, em terceiro lugar, na percepção de que a hegemonia do proletariado sobre a Sociedade Civil produziria um governo democrático, fundamentado numa vontade coleti-va produzida pelo consenso, diferentemente do que ocorria na Rússia, onde a hegemonia sobre a Sociedade Política definia um poder exercido pela força.

A percepção da necessidade da tomada do poder por parte dos trabalhadores e da necessidade de um Estado de Transição não aparecem, portanto, como diferença entre Gramsci e Lênin, razão pela qual devemos entender o “Estado gendarme guarda-noturno” – “a organização coercitiva que protegerá os elementos de Sociedade Regulada em contínuo incremento”9 –, que prece-de a Sociedade Regulada, como similar à Ditadura do Proleta-

9.  GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere: Maquiavel: notas sobreo Estado e a Politica, Edição Carlos Nelson Coutinho com marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques, Editora Civili-zação Brasileira, 2011. p.245

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riado, que precede o fim do Estado, considerando a diferença geológica de que o exercício do poder, neste caso, está funda-mentado na Sociedade Civil e no consenso, não na Sociedade Política e na força, e que em Gramsci os aspectos autoritários são claramente estabelecidos como declinantes.

As duas variantes, entretanto, conheceram destinos diversos no que toca aos seus resultados concretos ao longo do século XX. Enquanto o modelo leninista logrou êxito em diversos países do mundo e expandiu as fronteiras do Socialismo Real, o modelo gramsciano nunca foi confirmado, ao contrário – os seus suce-dâneos italianos regrediram a padrões políticos social-democra-tas. Por seu turno, após um extraordinário sucesso político, o modelo leninista sucumbiu completamente, tornando-se hoje um fenômeno de natureza arqueológica. O modelo gramsciano, entretanto, continua motivando variada produção teórica de na-tureza acadêmica e permanece politicamente vivo, inspirando intensa ação política num campo da esquerda que ultrapassa os partidos comunistas.

Feridas por um sentimento de anacronismo, a ideia da to-mada do poder por um partido comunista subsequentemente à consolidação da hegemonia na Sociedade Civil, no contexto da Crise Orgânica (que funda um Estado gendarme, protetor dos avanços sociais),10 assim como a ideia de uma hegemonia do pro-letariado encimada pelo partido comunista vêm perdendo prio-ridade e substância nas arenas políticas contemporâneas. Isso significa que os pontos comuns entre a formulação de Gramsci e de Lênin vêm sendo progressivamente postos de lado.

Gramsci faz-se atual não pelos desfechos leninistas que en-xerga no longo prazo da transição para o socialismo, mas pelo imenso campo aberto pela ideia da guerra de posição e pela construção da hegemonia do proletariado na Sociedade Civil,

10.  GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere: Maquiavel: notas sobreo Estado e a Politica, Edição Carlos Nelson Coutinho com marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques, Editora Civili-zação Brasileira, 2011.p245

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que fazem o âmago da atuação política da esquerda contempo-rânea para além dos partidos comunistas. Gramsci inspira assim a esquerda naquilo que tem de não leninista.

O que isso esconde?

O fim do século XIX e início do século XX foram extrema-mente complexos do ponto de vista da diversidade de fases em que se encontravam sociedades ainda relativamente estanques no plano da sua história e evolução, mas que compartilhavam uma mesma contemporaneidade. Essa peculiaridade histórica produziu um desencontro único entre conceitos e realidades, o que tornou extremamente problemática a possibilidade de que todos os atores estivessem compreendendo os conceitos sociopo-líticos da mesma forma ou falando das mesmas coisas.

O maior problema no modelo leninista de revolução, por exemplo, foi o fato de que os seus protagonistas acreditavam estar construindo o socialismo pós-capitalista, quando cons-truíam um socialismo anticapitalista, um antimodelo do Esta-do burguês e não conseguiram produzir uma transição interna sob o socialismo que incorporasse uma Sociedade Civil capaz de inaugurar um Estado de direito de hegemonia proletária, à semelhança do que ocorria no mundo burguês.

Tal convicção não permitiu a percepção do desenvolvimento do capitalismo para uma etapa superior de organização do Esta-do. Presos, pela História, por insuficiência teórica e pela razão de Estado à condição congênita de antimodelo de Estados bur-gueses declinantes (substituídos progressivamente por Estados de direito), foram se tornando as democracias populares lite-ralmente um eco do passado. Quando algumas delas tentaram introduzir organizadamente o Estado de direito, já era tarde demais. Fracassou a Glasnost na Rússia e foram sufocadas as tentativas democratizantes de alguns países do Leste Europeu como a Tchecoslováquia.

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Rapidamente o antimodelo tornou-se tão anacrônico quan-to o Estado burguês da época de Marx e Engels. O mérito das de-mocracias populares no plano histórico foi o de mostrar a viabi-lidade de modelos de sociedade concebidos pelo homem e o fato de que indiscutivelmente contribuíram para apressar a adoção do Estado de direito na Europa e, posteriormente, em diversas partes do mundo, como forma de responder às demandas sociais que já haviam encontrado respostas no mundo socialista.

O modelo gramsciano, por sua vez, errou ao acreditar que estava lidando na Itália apenas com um Estado burguês mais complexo, ou ocidental, cercado de forte linha de trincheiras, a Sociedade Civil, não estabelecendo uma relação “cronológica” entre o Estado restrito e o Estado ampliado como representan-tes de duas fases do desenvolvimento do Estado no capitalismo. Gramsci percebeu que a tomada do poder nos termos em que ocorrera na Rússia seria impossível na Itália e no Ocidente, mas não pôde entender, dada a novidade dos fenômenos estudados, que estava diante de uma necessária transição interna do capita-lismo com poder letal tanto sobre os Estados burgueses quanto sobre os Estados proletários (ambos restritos) por inaugurar, no capitalismo (fonte da legitimidade última das duas variantes de Estado), a exaustão histórica do exercício do poder a partir da Sociedade Política. Não era possível, obviamente, que ele pu-desse ter entendido, nos anos 1930, que as mesmas razões pelas quais não era possível tomar o poder na Itália e no Ocidente te-riam poder suficiente para derrubar o poder dos partidos comu-nistas na quase totalidade das democracias populares nos dis-tantes anos 1980: a emergência irrefreável do Estado ampliado.

Como veremos, a tarefa foi ainda mais difícil pelo fato de que esse Estado de fase superior consolidou-se na Itália sob a sua forma bestial, o fascismo. Não podendo historicamen-te compreender que lidava com um novo tipo de Estado, viu

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na degeneração fascista não uma doença da própria Sociedade Civil, mas uma regressão do exercício do poder à Sociedade Política decorrente do equilíbrio de forças entre a burguesia e o proletariado.

Por tudo isso, Gramsci se alinhou a um modelo leninista adaptado em que a disputa pela hegemonia e pela construção de um novo bloco histórico popular precederia a tomada de um poder, apesar de tudo, entendido como centralizado – sujeito, portanto, a ser objeto de uma tomada em momento crítico. Man-teve no plano teórico: a) o modelo leninista de partido; b) o seu comando, tanto sobre as lutas pela hegemonia do proletariado na Sociedade Civil quanto sobre a tomada do poder na Crise Orgânica; e c) a sua governança, precedendo e protegendo o ad-vento de uma Sociedade Regulada (qualitativamente diferente do Estado de direito), ainda que de forma democrática.1112

A percepção da existência da Sociedade Civil não se dobrou em Gramsci do entendimento de que o próprio poder político centralizado, a ser tomado, já não existia mais nos termos do passado, pois, como num fenômeno de vasos comunicantes, o fortalecimento da Sociedade Civil se acompanhara de um pro-porcional enfraquecimento do poder centralizado nas mãos da Sociedade Política (e, por extensão, nas do governo).

O ganho de poder pela Sociedade Civil, “em detrimento” do governo, inviabilizou conceitualmente a ideia de uma revolução em duas fases – a primeira, de disputa da hegemonia; e a segun-da, de tomada e exercício do poder pelos trabalhadores, uma vez que este poder não tem mais peso gravitacional suficiente para dar cumprimento à agenda da revolução. Esse fato material tem

11.  GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere: Maquiavel: notas sobre o Estado e a Politica, Edição Carlos Nelson Coutinho com marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques, Editora Civili-zação Brasileira, 2011.p.245

12.  MACCIOCCHI, M.A. Pour Gramsci, Paris, Editions du Seuil, 318p

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condicionado as insurreições populares ora a fundar Estados de direito em regiões em que não existiam previamente, como ilustra a Primavera Árabe, ora a retornar a ele após períodos de fascismo. Essa é a razão pela qual o Estado proletário nunca foi implantado a partir de um Estado de direito, mas sempre a partir de Estados burgueses ou de outros Estados ainda mais primitivos.

O “eterno retorno” ao Estado de direito, que revela apenas a presença e a força da Sociedade Civil, cuja presença impõe o exercício do governo pela via do Consenso, cria a ilusão de que seria o Estado finalis, encarnando o risível mito do fim da história.

Entretanto, há de se considerar que, alcançado o Estado de direito, toda tomada do poder tornou-se a tomada de um go-verno fraco, devedor de uma legitimidade para o seu exercício, advinda da aquiescência da maioria expressa pelo voto univer-sal e pelas numerosas formas de construção do Consenso. Tais governos fracos, comparativamente aos dos Estados do passado, não têm densidade para serem capazes de desempenhar o poder político necessário à implementação das gigantescas transfor-mações sociais previstas na agenda revolucionária de inspiração marxista-leninista.

No Estado de direito, a Sociedade Civil, titular de direitos, é capaz de bloquear atos do Poder Executivo com total amparo le-gal, e nenhuma revolução democrática e socialista poderia cogi-tar silenciá-la. No plano morfológico, Gramsci já sabia que a So-ciedade Civil e o Estado eram uma coisa só, mas não teve tempo de entender que, além da morfologia inseparável, as duas esferas estavam unidas também por uma fisiologia. Por ela, poderia ter compreendido o fato de que o ganho de poder da Sociedade Ci-vil se justificava pelo enfraquecimento do poder do governo e da própria Sociedade Política. A redução de magnitude do poder exercido pelos governos tornara, além de inexequível, também potencialmente inócua a sua derrubada.

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Poderíamos em socorro à posição de Gramsci argumentar que tudo se justifica pelo fato de que a conquista da hegemonia na Sociedade Civil precede (apesar da interação dialética entre as duas esferas) à da Sociedade Política, cuja tomada consolida-ria o governo proletário edificador da Sociedade Regulada. Essa compreensão, na verdade, esconde um sofisma, pois frente ao poder existe, entre a Sociedade Civil e o governo, uma diferença de densidade, mas não de natureza. De fato, ao avançar na con-quista de maior influência na Sociedade Civil, o proletariado já estará conquistando parcelas crescentes do poder político real, o que converte guerra de posição prévia, seguida de uma guerra de movimento (duas fases), no topo da Crise Orgânica (uma espé-cie de leninismo último na segunda fase), numa ilusão.13

Tal ilusão não se deve ao fato de que o proletariado não deva assumir o poder na Crise Orgânica – o que pode ser impositivo frente a riscos maiores como o fascismo –, mas se deve ao fato de que, em lugar de fundar a Ditadura do Proletariado ou o Estado gendarme, o proletariado emerge como a única força política ca-paz de assegurar a continuidade do Estado de direito que, sob a sua hegemonia, se veria libertado dos limitantes impostos pela burguesia, acedendo a graus superiores de plenitude democráti-ca, fato que tornaria desnecessária a constituição de um Estado de transição de natureza diversa da do Estado de direito para a edificação da Sociedade Regulada.

Tais fatos impõem uma revisão completa da fundamenta-ção teórica que sustenta as táticas e estratégias de hegemonia do proletariado na Sociedade Civil, incluindo o modelo leni-

13.  A própria Sociedade Política vai sendo permeada pelo ordenamento democrático no que toca ao preenchimento dos seus postos de comando e à definição dos seus limites legais em decorrência do fortalecimento da Sociedade Civil e da cidadania, o que abre surpreendentes espaços para a disputa da sua hegemonia por parte das posições legalistas. Assistimos, portanto, mas desde já, o que previu Gramsci: a absorção da Sociedade Política pela Sociedade Civil com base na legalidade democrática.

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nista de partido, desenhado para o assalto à Sociedade Política, que distorce o próprio modelo de transição ao socialismo no Estado ampliado e o mito do partido único no comando da transição, incompatível com o conjunto de liberdades de asso-ciação e de organização que o próprio proletariado vai irrever-sivelmente impondo ao ampliar os seus espaços de influência na Sociedade Civil.

A incompreensão dos fenômenos explicitados acima nos permite também o entendimento da gênese do erro oposto – este cometido não por Gramsci, mas por seus sucessores no PCI e na esquerda italiana: o de considerar, pela inevitabili-dade do Estado de direito, que a ele não haveria alternativa, erro, aliás, de gravíssimas consequências. Nesse caso, a im-possibilidade de entender, como veremos mais adiante, o que se esconde para além do Estado de direito e de, em função disto, propor um novo modelo de revolução, traduziu-se his-toricamente pela regressão da esquerda italiana aos padrões social-democratas hoje bem conhecidos. Em síntese, a insus-tentabilidade teórica da revolução em duas etapas deixou a esquerda italiana rendida ao ideário social-democrata, onde inexiste qualquer revolução.

Podemos dizer que, por razões diferentes, o Estado de direi-to tanto derrotou as experiências leninistas como fez retroceder, no Ocidente, a melhor formulação até então desenvolvida (a de Gramsci) a uma condição inofensiva ao capitalismo.

Explicitaremos no Capítulo VI um modelo de transição ao socialismo compatível com a superação do Estado de direito, ca-paz de ultrapassá-lo e de concluir o ciclo estatal da história, sem romper com a sua natureza. Por ora, analisaremos as relações existentes entre as democracias populares do século XX e o pro-cesso de transição interna do capitalismo, do Estado burguês ao Estado de direito.

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As democracias populares e o seu socialismo anticapitalista

As democracias populares foram vias alternativas de transição para o Estado de direito. Por razões diversas (dentre as quais a in-suficiência teórica), nenhuma dessas sociedades logrou alcançá-lo num processo endógeno que poderia ter produzido algum Estado de direito de hegemonia proletária por meio de uma Assembleia Constituinte soberana, convocada pelos poderes constituídos num momento anterior às crises políticas que as liquidaram.

Para compreender o fenômeno é necessário contextualizar a ascensão e queda das revoluções socialistas do século XX e a emergência dos Estados de direito surgidos do processo interno de transição do capitalismo – de sua fase inferior para a sua fase superior. Sabemos que essa transição interna mostrou-se de tal magnitude que teve um impacto devastador sobre o destino tan-to das democracias populares quanto das democracias burgue-sas, enviando umas e outras aos livros de história.

Por que motivo as democracias populares mostraram-se tão vulneráveis ao Estado de direito? Já sabemos que as revoluções socialistas do século XX se ergueram como antimodelos das de-mocracias burguesas, movimentos reativos que criaram Estados proletários paralelos aos Estados burgueses não dando origem, contrariamente ao que acreditaram Marx, Engels ou Lênin, à sociedade que sucederia o capitalismo.

O “Socialismo Real” foi um fenômeno de reação em larga escala ao Estado burguês, uma longa jornada espartaquista. A experiência do Socialismo Real foi certamente proletária e socialista, mas não materializou a sociedade que, segundo os clássicos, estaria destinada a emancipar a humanidade. Cons-tituiu-se num antimodelo autoritário erguido contra o modelo incomparavelmente mais tirânico da burguesia, ambos com go-vernos assentados sobre a Sociedade Política.

Em comum com o Estado burguês, os Estados proletários, embora exercendo o poder em nome da maioria, caracterizaram-

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se também por uma minoria governando a maioria: neste caso, o partido comunista assumiu funções de “comitê gestor dos inte-resses do proletariado”.

Governando as “massas” a partir dos aparelhos repressivos, por temor de sua subserviência ideológica aos regimes depostos, as democracias populares incorporaram um forte autoritarismo, embora nunca comparável em brutalidade ao das democracias burguesas que a história ricamente ilustrou. Feita essa ressalva, seria justo admitir que tais Estados anticapitalistas fundamen-taram o ordenamento de suas sociedades sobre a força.

É interessante observar que quanto mais o capitalismo avançou para o Estado de direito menos energia alimentava o movimento revolucionário internacional e menor era o núme-ro de revoluções socialistas pelo mundo; da mesma forma, é também interessante observar o quanto os Estados socialistas foram vulneráveis à transição da democracia burguesa para o Estado de direito, que encontrou naqueles países uma população verdadeiramente ávida por incorporar os ganhos deste último e inteiramente alheia às conquistas sociais realizadas pelas próprias democracias populares. Destacamos que nenhuma revolução socialista se operou contra Estados de direito, mas sempre contra Estados burgueses (dotados de Sociedade Civil gelatinosa), contra seus representantes coloniais, ou por ocasião da Segunda Grande Guerra, como ocorreu no Leste da Europa.

Mais interessante ainda é o fato de que, ao longo da segunda metade do século XX, os Estados totalitários, (aquilo que comu-mente denominamos ditaduras ou fascismo), foram sendo con-vertidos a Estados de direito, como atestam as transições para a democracia ocorridas na Alemanha e na Itália do pós-guerra, mas também na Espanha, Portugal e em toda a América Latina. Contra eles também não ocorreram revoluções socialistas.

Consideramos que devido à natureza diversa dos dois fe-nômenos a reação aos totalitarismos e fascismos foi democrá-tica, enquanto a reação ao Estado burguês foi ocasionalmente

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anticapitalista. Essa diferença decorre do fato, como veremos, de que o Estado totalitário é uma variante do Estado de direito, sendo ele também uma forma de Estado típica da fase superior do capitalismo.

O binômio Estado de direito/Estado fascista

No que toca ao binômio Estado de direito/Estado fascista, con-sideramos o que segue:

a) o Estado burguês (a democracia burguesa clássica da época de Marx ou o Estado russo de 1917) se caracterizou por uma hegemonia burguesa assentada na Sociedade Política e por uma governabilidade fundada na força;

b) o Estado proletário (as democracias populares), com o modelo do partido único leninista governando as “massas”, também se caracterizou por uma hegemonia assentada na Sociedade Política e por uma governabilidade fundada na força;

c) o Estado de direito, próprio da fase superior do capitalismo, se caracteriza por uma hegemonia burguesa assentada na Socie-dade Civil (e na Sociedade Política); nele a minoria tem direi-tos inalienáveis e a governabilidade se dá então pelo Consenso;

d) o Estado fascista ou totalitário é uma variante do Estado de direito. Sua emergência decorre de situações nas quais uma maioria dada (não classista) tem a sua Soberania14* sobre o ente estatal ameaçada e governa por Consenso com uma he-gemonia centrada numa Sociedade Civil polarizada por uma ideologia identitária de circunstância e numa Sociedade Po-lítica moldada à circunstância por um consenso obrigatório.

14 A Soberania é a ideia da supremacia dos valores identitários da maioria nacional no Self do “seu” Estado nação. O Self do Estado é o elemento que permite a identificação da con-tinuidade histórica daquele ente estatal em diferentes modos de produção e que define, entre outras coisas, uma personalidade jurídica definida, a propriedade de bens materiais e imateriais em nome da nação, uma responsabilidade sucessória frente aos Estados pre-cedentes e uma identidade específica frente aos outros Estados e que se constitui de um sistema ideológico complexo.

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Nele a minoria, também de circunstância (ora judeus, ora árabes, ora comunistas, ora muçulmanos, ora negros, ora cristãos...), não tem direitos e é esmagada pela maioria mol-dada à circunstância e que encarna o Self.15 A identidade dessa maioria é difusa e se prende com frequência mais a elementos de caráter nacional do que classistas e a outros de natureza conjuntural que cumprem papel legitimador (a derrota, a crise, a miséria, o caos etc.). O Estado totalitário marca o momento em que a proposta de universalidade da maioria entra em colapso, fazendo-a retroceder às suas es-pecificidades identitárias e a abandonar a sua própria “pro-posta” de universalidade. A teocracia iraniana, o nazismo alemão e o fascismo italiano são exemplos de fascismo er-guidos sobre valores identitários distintos uns dos outros,

todos assentados sobre Estados capitalistas de fase superior.

A análise histórica mostra que diversos movimentos revo-lucionários ou insurrecionais no ocidente “optaram” por fun-dar Estados de direito como contraponto ao totalitarismo, o que influenciou, ao menos em parte, a elaboração de Gramsci, que entendeu bem cedo que o poder no Ocidente não poderia ser to-mado de forma explosiva. Essa “opção” dos movimentos insur-recionais, originários da resistência ao nazifascismo na Europa, decorreu da ilegitimidade política e do anacronismo histórico de fundar um Estado proletário, de hegemonia centrada na So-ciedade Política, em uma Europa na qual a presença maciça de uma cidadania politicamente protagonista constituía uma base incoercível da Sociedade Civil.

A cidadania italiana não podia mais ser a base passiva da sustentação política do Estado proletário, pois havia acumulado

15 O Self fascista é apenas o Self nacional do Estado ampliado, cuja capacidade de vetorizar a Sociedade Civil é inversamente proporcional ao grau de emancipação do proletariado. A classe social que hegemoniza o Estado (Sociedade Política + Sociedade Civil) se subordina a um Self tão onipresente quanto intangível e a ele deverá demonstrar um respeito e venera-ção definidos numa liturgia mais perene do que as próprias classes sociais. O Self poderia ser assimilado ao Espírito de Hegel devolvido aos seus próprios pés. 

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uma liberdade e uma cultura que faziam dela a única fonte legí-tima, aos seus próprios olhos, do poder político que se edificava com o Estado de direito na Itália.

Saídas do Estado fascista, “as massas” na Itália estavam ávi-das por experimentar e exercer um poder (que descobriram ter no fascismo) em seu próprio benefício. Convergir para o Estado proletário representaria retroceder a um modelo de Estado en-tão incompatível com o nível de emancipação a que havia che-gado o próprio proletariado italiano.

Nessa quadra da história, o movimento comunista foi cin-dido entre o discurso democratizante do Ocidente e a prática autoritária do Socialismo Real. Bem cedo a teoria e a prática se tornaram completamente irreconciliáveis, o que sinalizou a senilidade do Socialismo Real e o declínio e descrédito do mo-vimento comunista em todo o mundo, que parecia dar um elo-quente testemunho público de mentir sobre o seu compromisso com a democracia.

O Estado proletário evoluiu para o Estado de direito pelo mesmo fenômeno que varreu no mundo capitalista a velha de-mocracia das baionetas – viva, aliás, na Europa, até os anos 1940, o do fortalecimento da Sociedade Civil pela via da emancipação de um proletariado tornado cidadão. Tendo sido palco dessa emancipação em escala populacional, sem mais contar com a fonte legitimadora externa, dado o declínio da democracia bur-guesa clássica, os Estados proletários foram acometidos de uma obsolescência completa, tornaram-se verdadeiros estorvos para a revolução mundial e finalmente se diluíram completamente. A transição das democracias burguesas para o Estado de direito matou de inanição os Estados socialistas, eliminando de forma devastadora a sua legitimidade histórica. Morto o modelo, pere-ceu também o antimodelo.

O mundo do Socialismo Real contribuiu politicamente para a ampliação dos direitos sociais e da qualidade de vida dos tra-balhadores, sobretudo da vizinha Europa Ocidental, acelerando

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e consolidando o próprio processo de transição interna do ca-pitalismo para a sua fase superior. Lamentavelmente, nenhum país socialista logrou aceder de maneira autêntica ao Estado de direito, o que poderia ter produzido experiências sociais impor-tantes como repertório para as lutas políticas atuais. As duas tentativas mais marcantes de democratização do Estado a partir do Socialismo Real, a Primavera de Praga e a Glasnost, foram esmagadas – a primeira pelas tropas russas e a segunda por um brutal processo interno de autofagia. O Estado de direito atual é, apesar disso, sucedâneo tanto das democracias burguesas quan-to das democracias populares, mas persiste no imaginário cole-tivo como uma benesse da burguesia que não o compara à sua própria fase tirânica, como se a democracia tivesse sempre sido o par inseparável do capitalismo.

A generalização da implantação do Estado de direito não é, portanto, uma vitória da burguesia sobre o proletariado, mas uma mudança de fase do modo de produção capitalista em con-sonância com a existência de forças sociais que vieram a tornar a democracia burguesa e as democracias populares anacrônicas. Esse anacronismo é diretamente proporcional aos níveis cres-centes de emancipação do proletariado refletidos no fortaleci-mento da Sociedade Civil e da democracia, entendida esta últi-ma quer sob o conceito Gramsciano16 de exercício do poder com base no consenso, quer sob o conceito de Engels,17 o de controle coletivo sobre a coisa pública.

No plano da dinâmica política que o gerou é, ao contrário, o resultado da emancipação da classe trabalhadora em níveis irre-

16.  GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere: Maquiavel: notas sobreo Estado e a Politica, Edição Carlos Nelson Coutinho com marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques, Editora Civili-zação Brasileira, 2011.428p

17.  ENGELS, F. Anti-Dühring (1877). Edição eletrônica com base em arquivos cedidos pelo grupo Acrpopolis em The Marxists Internet Archive. p92. Disponível em http://www.marxis-ts.org/portugues/marx/1877/antiduhring/index.htm

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versíveis de cidadania. De fato, o motor dessa transição interna para a fase superior do capitalismo é a existência cada vez mais numerosa de uma Cidadania interessada em ampliar os seus di-reitos e a sua qualidade de vida. Tal Cidadania é um componen-te historicamente dado e torna a Sociedade Civil inteiramente incoercível e definitiva. A Cidadania é a numerosa infantaria do proletariado na Sociedade Civil.

No Estado de direito, a burguesia, embora hegemônica, já não está tão em casa quanto à época das baionetas.

O Estado de direito e a emergência da transição ao socialismo

A transição para o Estado de direito, da forma como vem se operando em todo o mundo desde a segunda metade do século XX, tem consistido inicialmente de avanços de significado con-ceitual em relação ao tipo de sociedade desejada pela cidada-nia. Por isso, os Estados de direito são fundados a partir de um escopo legal, normalmente estabelecido por uma Assembleia Constituinte. A aplicação executiva desse marco legal promove posteriormente conquistas materiais. Trata-se de um processo eminentemente superestrutural centrado na ampliação de direi-tos e garantias individuais e coletivas que sobrepujam os privi-légios econômicos e de função. Os primeiros exemplos desse fe-nômeno são as sociedades europeias ocidentais que emergiram do pós-guerra com constituições democráticas e “igualitaristas”.

O processo não é linear; nem todos os elementos caracterís-ticos do Estado de direito estão presentes em todas as socieda-des. Por esse enfoque poderíamos caracterizar o Estado chinês e o Estado americano como formas anômalas de Estado de direito; o primeiro pelas lacunas na área dos direitos e garantias indivi-duais, e o segundo pelas lacunas na área dos direitos coletivos.

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Essa realidade torna incontornável o uso da força pelos governos dos dois Estados como forma legítima de lidar com os desequi-líbrios produzidos pelas lacunas no campo dos direitos indivi-duais e coletivos não atendidos. Os Estados monárquicos euro-peus são também Estados de direito incompletos que permitem a convivência de conceitos de direito e igualdade incompatíveis com o significado ideológico do poder monárquico.

Os dois exemplos anteriores vêm funcionando como um velho Estado proletário (China) e como um velho Estado bur-guês (Estados Unidos), e operam na prática como Estados res-tritos arejados por conquistas sociais que são limitadas pela im-posição aos cidadãos de papéis sociopolíticos bem definidos sob o alinhamento de uma Sociedade Política capaz de agir por fora da lei para assegurar o poder político aos grupos dominantes. Nos dois casos é como se o velho Comitê Gestor dos interesses respectivamente do proletariado e da burguesia tivesse criado um aparato ideológico e repressor de tal ordem que este Estado de direito anômalo legitima um núcleo ditatorial muito resis-tente, que mantém as rédeas do governo e dita um modelo social obrigatório e inquestionável. Em termos gramscianos, é como se a hegemonia de cada uma das duas classes fundamentais nesses dois Estados estivesse assentada mais fortemente na Sociedade Política do que comumente ocorre nos Estados de direito mais completos. Tanto no caso chinês como no caso estadunidense, seria imperativo que a cidadania assegurasse no primeiro caso os seus direitos individuais e no segundo os seus direitos coleti-vos, e que em ambos os casos o governo fosse enquadrado pela lei. A presença de um autêntico Estado de direito na China e nos Estados Unidos seria, aliás, um fator de extraordinária impor-tância para a paz e o desenvolvimento no mundo.

A terceira exceção, os Estados monárquicos europeus, ainda que organizados sob a forma de Estados de direito, são exem-

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plo da convivência entre uma ideologia marcadamente elitista e medieval com outra que se move no sentido da igualdade de direitos e oportunidades. As duas lógicas são incompatíveis e irreconciliáveis, porém, se o monarca funciona, em geral, como um rei folclórico (e obtém desta humilhação parte da sua le-gitimidade) ele poderia converter-se (ao menos no imaginário coletivo das “massas”) num pai tirânico, caso a sociedade fosse além de certos limites. Morta historicamente, a monarquia se sustenta apenas de um bem-querer hipnótico dos súditos (que amam o monarca), enquanto vai envenenando a sociedade com a mensagem da desigualdade entre os homens, área em que, aí sim, efetivamente pode agredir a dignidade e prejudicar a pro-fundidade e o alcance do processo democrático no plano da vida espiritual dos cidadãos. A realização do Estado de direito exige, nesses países, a adoção da República.

Apesar de incompleto na China e nos EUA e da mácu-la monárquica na Europa, o Estado de direito é a face viva do processo histórico. Foi implantado, para além da Europa, em toda a América Latina, na África do Sul, na Índia, na Europa do Leste e mais recentemente aparece como possibilidade em alguns países do mundo árabe. As conquistas alcançadas sob a sua égide vêm apontando para elementos como o direito à vida, o voto universal, o voto feminino, o fim do racismo, a laicidade, a separação entre Estado e Religião, a liberdade de expressão, a liberdade de associação, o direito de greve, o primado do interes-se público, o direito à saúde, dentre outros.

Esse primeiro movimento de consolidação de direitos vem funcionando como o pressuposto para que, ato contínuo, a so-ciedade consolide outros direitos materiais tais como o seguro desemprego, a aposentadoria, a implantação de programas di-versos de renda mínima ou de acesso à saúde, à educação ou à cultura convertidos em direitos de cidadania. Dentre as várias sociedades onde o Estado de direito foi implantado, a Europa

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Ocidental, onde existe há mais tempo, foi palco das conquistas econômicas mais expressivas para os trabalhadores. No Brasil, um movimento dessa natureza vem também implantando diver-sos avanços econômicos relacionados à saúde e à renda mínima e milhões de cidadãos saíram da pobreza.

Atualmente, por força das lutas dos trabalhadores e da cida-dania, diversas sociedades vêm evoluindo para algum nível de re-dução “física” das assimetrias existentes entre as classes sociais no que toca ao acesso à contemporaneidade materializada em elementos como renda, saúde, educação, cultura, comunicação, formação profissional e lazer, embora as desigualdades persistam. Destacamos o fato de que não há elementos ideológicos no Estado de direito de identidade classista que possam refrear a amplia-ção dessas conquistas sob qualquer alegação de menor direito, como sempre ocorreu em todas as sociedades de classe anteriores e como ocorreu nas democracias burguesas primitivas. Não há li-mites inatos que separem os cidadãos por categorias ou castas e frente ao direito conquistou-se uma condição – ainda que incom-pleta e de difícil realização – de igualdade perante a lei.

O próximo passo, mais difícil e significativo que os anterio-res, dar-se-á sobre as próprias forças produtivas, cujo consen-so se constrói em torno da ideia da sustentabilidade estranha ao liberalismo burguês e que tem o papel histórico cada vez mais claro de assegurar a realimentação do processo produtivo para que as conquistas sociais possam ser asseguradas. Dois elementos compõem a ideia da sustentabilidade: a sustentabi-lidade ambiental, que pretende assegurar que a economia pos-sa utilizar recursos naturais renováveis, e a sustentabilidade econômica, que se ergue em favor de mecanismos regulatórios que possam refrear o liberalismo cada vez mais associado ao caos na economia.

É interessante observar que uma ética ambiental ressurge atualmente como poderíamos imaginar que viesse a ocorrer

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no ocaso da sociedade de classes, quando a relação do homem com a natureza deveria efetivamente recobrar prioridade. No socialismo primitivo a relação do homem com a natureza estava penetrada por uma ética ecológica ricamente documentada pelos exploradores europeus desde as grandes navegações.

À luz do que propomos, a engrenagem que se move para o socialismo tem até aqui três de quatro grandes componentes explicitados necessários. O primeiro componente, de natureza paradigmática, assegura por meio de lutas políticas direitos de igualdade e implanta o Estado de direito. O segundo compo-nente, de natureza ético-jurídica, de fato um brotamento do pri-meiro, estabelece, com base na igualdade de direitos e por força das lutas, as formas por meio das quais as classes trabalhadoras deverão beneficiar-se materialmente da mais-valia criada no processo produtivo, aperfeiçoando o acesso à renda, saúde, edu-cação, cultura, comunicação, formação profissional e ao lazer que passam a fazer parte de um conceito de equidade cada vez mais difícil de ser extirpado. Finalmente, o terceiro componen-te, de natureza econômica, deve regular a atividade produtiva para torná-la sustentável ambiental e economicamente, com o propósito de subordiná-la ao interesse da maioria, assegurando a realimentação das conquistas sociais e possibilitando de forma ambientalmente responsável a sua ampliação.

Em síntese, a sociedade futura vem sendo erguida sobre três colunas, de quatro necessárias: 1) o Estado de direito, 2) o acesso à contemporaneidade em escala populacional (renda e cultura) e 3) a regulação da economia para a sustentabilidade social e ambiental.

O elemento que toca a regulação da economia é, dentre os três, o mais recente e ainda o mais frágil, e depende, para su-bordinar a atividade produtiva aos interesses estratégicos das maiorias, de um quarto elemento que ainda não emergiu, é in-contornável e de muito difícil maturação: a hegemonia políti-

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ca minimamente consciente dos trabalhadores e da cidadania sobre a burguesia, processo que deve submetê-la politicamente possibilitando que a atividade produtiva possa ser posta maciça-mente a serviço das maiorias.

Caberá, portanto, aos trabalhadores e à cidadania, na cons-trução da transição para o socialismo, a longa tarefa de submeter politicamente uma burguesia que não poderá, dada a consolida-ção do Estado de direito e à sua resistência no plano da estrutura econômica, ser extirpada da sociedade como acreditaram e dese-jaram os nossos avós comunistas.

De fato existem, no mundo contemporâneo, para além das nossas vontades e possivelmente por força de fenômenos de de-sagregação das classes sociais decorrentes do próprio processo de superação da sociedade de classes (molecularmente em cur-so), grandes contingentes populacionais formados por cidadãos simultaneamente trabalhadores e proprietários. Tal ambivalên-cia é parte integrante do processo a que assistimos e revela o fato de que a burguesia e o proletariado vão se convertendo em classes sociais de contornos e limites imprecisos num cenário onde podemos distinguir perfeitamente quem é quem no plano macroscópico, mas já não enxergamos perfeitamente os limites no plano da microscopia. Tal ambivalência e capilaridade man-têm a burguesia viva e ideologicamente presente em círculos nos quais, aliás, nunca antes havia penetrado. Diferentemente do que previu Marx no Manifesto de 1848, a pequena burguesia não foi substituída por uma classe gerencial assalariada, pelo contrário, ampliou-se e capilarizou-se como nunca, atrelada ao fenômeno do crédito barato:

Nos países onde a civilização moderna está florescente for-ma-se uma nova classe de pequeno-burgueses, que oscila entre o proletariado e a burguesia; fração complementar

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da sociedade burguesa, ela se reconstitui incessantemente. Mas os indivíduos que a compõem se veem constantemen-te precipitados no proletariado, devido à concorrência; e, com a marcha progressiva da grande indústria, sentem aproximar-se o momento em que desaparecerão completa-mente como fração independente da sociedade moderna e em que serão substituídos no comércio, na manufatura, na agricultura, por capatazes e empregados.18

A acessibilidade do capital para as massas, ainda que sob a forma de microcréditos, edifica esta aparente populariza-ção e juventude da burguesia que, por assim dizer, emerge em toda parte. Esse importante fenômeno econômico esconde um fenômeno político maior, que é o da perda dos limites antes mais claros e intransponíveis entre a burguesia e o proletaria-do. Tais limites entre as classes fundamentais estavam e estão estabelecidos pelos altos custos do capital, que sempre exigiu uma acumulação prévia de volume naturalmente maior do que as míseras poupanças salariais proletárias jamais poderiam acumular, o que tornou até aqui inacessível o ingresso barato ao mundo burguês. A perda dos limites entre as classes sociais a que assistimos hoje, sustentada pelo “crédito universal” pro-duz dois fenômenos politicamente opostos: por um lado, torna o exercício da unilateralidade do poder burguês incompara-velmente mais difícil do que à época da democracia burgue-sa, o que consolida o Estado de direito e por outro pereniza a burguesia, o que também inviabiliza completamente saídas unilaterais explosivas à esquerda.

Ao mesmo tempo que esse cenário torna a burguesia histori-camente longeva, circunscreve cada vez mais a sua importância política, pois não há identidade possível entre a grande burgue-sia de boa estirpe e a microburguesia (egressa de um processo de

18  MARX, K. O Manifesto do Partido Comunista (1848), Publicado de acordo com o texto da edição soviética em espanhol de 1951, traduzida da edição alemã de 1848. p.15. Disponível em www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_fontes/acer_marx/tme_07.pdf

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acumulação primitiva advindo do submundo dos excedentes de renda salarial e do crédito barato), que permita a criação de um campo burguês capaz de assegurar privilégios exclusivos para si em detrimento dos trabalhadores.

Intimamente ligada ao mundo do trabalho, essa microbur-guesia prospera com o aumento da renda e da qualidade de vida das comunidades proletárias ou camponesas nas quais está mer-gulhada, fortemente concentrada na área de serviços e comér-cio. Naturalmente, não há qualquer impedimento no sentido de que o microburguês se torne um burguês “de verdade”, o que acontece a alguns e o que prova que é realmente burguesa a microburguesia. Na maior parte das vezes, entretanto, os limites tendem a continuar incertos e numerosas famílias são ao mesmo tempo microburguesas e proletárias.

O fenômeno descrito é conceitualmente incômodo, pois se uma classe pode se transformar na outra, não como exceção, mas como normalidade, então: a) vivemos tempos de desagregação da sociedade de classes, b) a burguesia e o proletariado são clas-ses sociais imperfeitas (um estranho binômio em que um pode parir o outro) ou c) os dois.

De fato, as sociedades de classe anteriores não permitiam facilmente a passagem de pessoas oriundas das classes sociais subalternas para as classes dominantes, exceto em situações excepcionais, regra que confirmava a inferioridade “inata” dos seres humanos dessas classes subalternas. Tal ordem contribuía para dar governabilidade ao Estado, facilitando a sua missão de subordinar continuamente os dominados. Onde estamos se este ordenamento elementar está capilarmente subvertido? Podería-mos imaginar que essa “flexibilidade” seria politicamente pro-posital, uma iniciativa planejada da burguesia financeira, com o propósito de propiciar algum tipo de legitimação ideológica do poder burguês pela universalidade, conferindo credibilidade à democracia política e, ao mesmo tempo, expandindo as bases da própria ideologia burguesa...

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Entretanto, o que parece estar historicamente em curso não é isso, mas o vasto movimento por meio do qual a burguesia não consegue reproduzir-se ideologicamente a contento a) por estar sob a mira e o risco da regulação econômica do Estado de direi-to; b) por estar cindida entre uma burguesia de cima e uma “sub-burguesia” de baixo; e c) por não contar mais com qualquer elemento ideológico que possa diferenciar os seus direitos inatos frente à plebe e recriar um “campo burguês”. Esses elementos contribuem para a produção histórica de algo que poderia ser entendido como a reprodução de uma “burguesia em si”, ou seja, a replicação de uma burguesia sem identidade de classe defini-da ou com uma identidade de classe incompleta.

Esse fenômeno é, para o proletariado, fartamente conhe-cido quando se analisa a dinâmica da sua dominação política, pois dada a sua condição inata de classe dominada, se reproduz “naturalmente” como uma classe em si, galgando a condição de classe para si quando se emancipa politicamente e se converte em classe revolucionária.19 Propomos que fenômeno semelhan-te e de sentido oposto esteja molecularmente ocorrendo com a burguesia pela ação de uma sociedade que já não aceita mais tacitamente a sua ideologia, que lhe opõe resistência e que pre-tende regulá-la economicamente. A subordinação política da burguesia, processo que está longe de ser consolidado, mas já mostra o seu rosto, significa a sua conversão, mais e mais, a uma condição de classe em si, centrada nos seus interesses econômi-cos e despojada o quanto possível, e por obsolescência histórica, de proposta política sistêmica para a sociedade.20

19  MARX, K. Misère de la philosophie (1847). Edição eletrônica Edição eletrônica a partir da tradução francesa de 1948, Editado pelo Prof. Jean-Marie Tremblay em colaboração com a Biblioteca Paul-Émile-Boulet do Québec, 85p. p.67 Disponível em http://classiques.uqac.ca/classiques/Marx_karl/misere_philo/Marx_Misere_philo.pdf

20  No 18 Brumário, ao analisar o fenômeno do apoio da burguesia às ditaduras, Marx alude a uma inclinação maior daquela pelo dinheiro do que pela política, (“a fim de salvar a bolsa, deve abrir mão da coroa”), interessante chave de leitura para a compreensão da tendência de longo prazo que enxergamos. (MARX, K. O 18 Brumário de Luis Bonaparte (1852). Edição eletrônica LCC, Editora Cultura Brasileira. p42-43. Disponível em http://www.culturabrasil.pro.br/zip/18brumario.pdf)

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A cidadania que vai sendo gerada no Estado de direito é egressa simultaneamente da emancipação do proletariado, que vai se convertendo à condição de classe para si, e da subordina-ção da burguesia, que vai sendo convertida à condição de classe em si. Os dois fenômenos libertam cidadãos e são geradores da cidadania política que reforça e consolida os alicerces do Estado de direito realimentando todo o processo.

A transição para o socialismo deve ser de natureza a ir ace-lerando o processo por meio do qual o trabalhador se converte em cidadão, se cultiva e assume a política; enquanto a burguesia se desagrega, se subordina e regride ao seu interesse especifica-mente econômico, no qual também deve se submeter a um sis-tema regulado. Por obsolescência histórica a ideologia burguesa vai sendo enfraquecida.

Por esse prisma, o socialismo poderia ser conceituado como o momento em que ocorre a subordinação definitiva da burgue-sia à cidadania e a sua conversão à condição de classe em si.