a abordagem evolutiva no estudo do comportamento animal e humano

34
A abordagem evolutiva no estudo do comportamento animal e humano Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro Departamento de Zoologia Instituto de Biologia - UnB 70910-900 Brasília, DF - BRASIL [email protected] (disponível on line até a publicação)

Upload: lydia

Post on 23-Jul-2015

519 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

A abordagem evolutiva no estudo do comportamento animal e humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro

Departamento de Zoologia

Instituto de Biologia - UnB

70910-900 Brasília, DF - BRASIL

[email protected]

(disponível on line até a publicação)

Page 2: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

2

O estudo do comportamento

A afirmação de que um organismo se comporta de uma determinada

maneira porque “seus genes estão lhe ordenando que ele assim o faça” pode

parecer um tanto fantasiosa e, no caso dos seres humanos, até mesmo ofensiva.

Entretanto, quando consideramos a evolução de um comportamento, podemos

chegar a conclusões como estas. O intuito deste capítulo não é demonstrar a

veracidade desta afirmação, mas introduzir o leitor no pensamento evolutivo e na

maneira pela qual ele tem sido aplicado ao estudo do comportamento em geral,

seja ele animal ou humano.

Quando desejamos investigar as causas de um determinado

comportamento, que pode ser definido como o conjunto de atitudes e reações dos

organismos, duas categorias de perguntas podem surgir em nossas mentes. A

primeira refere-se às causas próximas (ou imediatas) do comportamento, de como

ele é realizado ou que mecanismos operam, dentro do animal, para que ele possa

comportar-se daquela maneira. A segunda refere-se às suas causas remotas, que

tentam explicar por que aquele determinado comportamento evoluiu numa dada

espécie animal. Estas causas, também conhecidas como causas evolutivas, são

as causas que procuramos desvendar quando estudamos a evolução de um

comportamento, e constituem o objeto desta revisão.

Causas próximas e remotas do comportamento não são antagônicas, mas

complementares, e ambas compõem (ou deveriam compor) o conteúdo

programático da maioria dos cursos universitários de comportamento animal.

Entretanto, elas diferem substancialmente nas suas origens históricas.

Estudos que versam sobre as causas próximas do comportamento são de

fato mais antigos e têm suas origens no estudo da anatomia e da fisiologia animal,

da psicologia e da filosofia. Ilustres estudiosos do comportamento animal, como

Page 3: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

3

Konrad Lorenz, Niko Timbergen e Karl von Frish, conhecidos como os fundadores

da etologia, ficaram famosos por sua pesquisa sobre as causas próximas do

comportamento, tendo até mesmo recebido pelo conjunto de suas obras o prêmio

Nobel de medicina de 1973.

As causas evolutivas do comportamento, entretanto, só puderam ser

investigadas a partir da “teoria da evolução através de seleção natural” de Charles

Darwin (1859), que nos abriu as portas do pensamento evolutivo. O

desenvolvimento pleno do pensamento evolutivo, entretanto, só veio a ocorrer nas

últimas décadas do século XX, período em que também se desenvolveram duas

áreas da biologia, a genética e a ecologia, que agora formam os pilares do

pensamento evolutivo. Por estas razões, este capítulo inicia-se com uma breve

revisão da teoria de Darwin, a nossa grande herança do século XIX, e em seguida

são apresentados alguns de seus desdobramentos no estudo do comportamento

animal e humano durante o século XX.

Conforme veremos, a aplicação da abordagem evolutiva ao

comportamento, especialmente ao comportamento social e a temas como o

egoísmo e o altruísmo, culminou por deflagrar a última grande revolução no

próprio pensamento evolutivo: a substituição do indivíduo (ou dos organismos

propriamente ditos) pelo gene (ou grupos de genes) como as unidades de seleção

relevantes. Para encerrar o capítulo, algumas críticas relativas à influência dos

genes no comportamento (especialmente no comportamento humano) são

apresentadas e discutidas, juntamente com algumas perspectivas de estudos

futuros sobre as causas evolutivas do comportamento.

A herança do século XIX para o estudo do comportamento: as teorias

de Darwin

Page 4: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

4

A teoria de Darwin é mais facilmente compreendida quando desmembrada

em uma série de teorias interligadas (veja E. Mayr, 1982. “The Growth of

Biological Thought”, Harvard Univ. Press, para uma revisão detalhada de cada

uma destas teorias). Nosso interesse obviamente recai sobre a teoria da seleção

natural, mas para que possamos melhor entendê-la e relacioná-la às demais,

façamos uma breve menção destas teorias, que incluem: (1) a própria idéia da

evolução, da transformação dos organismos ao longo do tempo, que já havia sido

aventada por vários pesquisadores pré-Darwinianos (como Erasmus Darwin, o avô

de Charles, e Lamarck, que propôs sua teoria em 1809, ano em que Charles

nasceu), mas à qual Darwin forneceu uma série de evidências e adicionou a idéia

de transformação horizontal ou da diversificação das espécies no espaço; (2) a

evolução através de descendência comum, onde Darwin postulou que todos os

organismos atuais descendem de ancestrais comuns e se diversificaram através

dos tempos, o que explica, por um lado, a grande diversidade de espécies atuais

e, por outro lado, restringe a vida a uma origem comum, um evento único talvez (o

que também permite uma investigação mais objetiva); (3) a evolução como um

processo gradual, confrontando assim a visão essencialista (ou tipológica) da

espécie então predominante entre os naturalistas, e as teorias saltacionistas que,

ao postularem uma grande descontinuidade entre espécies, previam que novas

espécies só poderiam surgir através de grandes saltos evolutivos; (4) a seleção

natural propriamente dita, que explica como a evolução realmente ocorre; e (5) a

especiação, ou o processo de formação de novas espécies, que é colocado como

uma conseqüência do processo de seleção natural.

De forma simplificada (e também por uma questão de espaço) a teoria da

seleção natural baseia-se em três características freqüentemente observadas na

grande maioria das espécies:

1. Variação: indivíduos de uma mesma espécie podem diferir em muitas

características (morfológicas, fisiológicas, do comportamento, etc.);

2. Hereditariedade: os pais podem passar suas características individuais para

a sua prole;

Page 5: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

5

3. Reprodução diferencial: devido às suas características especiais herdadas,

alguns indivíduos deixam mais descendentes que outros.

Darwin percebeu que a evolução é o processo resultante quando estas três

condições ocorrem em uma espécie. Assim, quando certos indivíduos se

reproduzem mais que outros, e quando sua prole herda as características

(incluindo as características ligadas ao comportamento) que permitiram a seus

pais se reproduzirem com maior êxito, estas características se espalharão pela

população. Por outro lado, se alguns indivíduos se reproduzem menos que outros,

e sua prole herda as características que impossibilitaram a seus pais se

reproduzirem com maior sucesso, estas características tenderão a desaparecer da

população ao longo de várias gerações.

Um aspecto fundamental da teoria da seleção natural é que o indivíduo é

claramente colocado como o objeto ou a unidade de seleção relevante. É o

indivíduo que se comporta e que interage com seu ambiente físico e biológico. É o

indivíduo que se reproduz. A seleção natural é apenas o processo resultante da

reprodução diferencial dos indivíduos.

Já o comportamento em si, que é visto pelo biólogo como qualquer outra

característica morfológica ou fisiológica observável no fenótipo dos indivíduos,

poderá então evoluir ou não à medida que produza indivíduos mais ou menos bem

adaptados. Esta melhor adaptação, em última análise, se refletirá no seu sucesso

reprodutivo ou, como costumamos dizer, na sua aptidão, que pode ser enfim

medida através do número de descendentes diretos (filhos, netos, bisnetos) que

um indivíduo deixa nas gerações seguintes.

A maneira pela qual o comportamento se originou e as condições

ambientais que permitiram ou favoreceram a sua evolução, espalhando-se entre

os indivíduos e mantendo-se (ou não) nas populações, provavelmente nunca

serão conhecidas. Teríamos, pois, que voltar no tempo e na história evolutiva da

espécie em questão para conhecermos com precisão estes aspectos. Mesmo com

a ajuda de um vasto registro fóssil, pouco saberíamos sobre a evolução do

comportamento dos organismos, pois o comportamento em si, ou grande parte

Page 6: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

6

dele, não é passível de fossilização (pegadas, marcas, utensílios e outros objetos

podem também indicar certos comportamentos dos organismos, mas apenas no

caso de algumas poucas espécies, como a nossa).

Por outro lado, temos os organismos que ainda vivem, e que podem nos

fornecer comparações relevantes e necessárias (o leitor há de concordar comigo

que seria praticamente impossível conhecermos com profundidade qualquer

aspecto de nossa própria evolução se estivéssemos sozinhos neste planeta), e

temos a teoria da seleção natural que, baseada na capacidade de adaptação dos

organismos, pode nos ajudar a formular hipóteses testáveis sobre a evolução do

comportamento (hipóteses geram predições que, por sua vez, podem ser

cientificamente testadas). Estas são, de fato, as armas de que dispomos para

investigarmos a evolução do comportamento na atualidade.

Por muitos anos, entretanto, a teoria da seleção natural foi simplesmente

ignorada pela grande maioria dos estudiosos do comportamento e somente no

século XX, quando o trabalho dos etologistas nos anos sessenta e setenta

passou a ser mais conhecido (e a etologia passou a ser incluída como uma

disciplina formal dos currículos de biologia e história natural de várias

universidades do mundo, inclusive no Brasil), que ocorreram enfim algumas

tentativas de incorporar o pensamento evolutivo ao estudo do comportamento.

Estas primeiras tentativas, entretanto, estavam repletas de erros de interpretação

da teoria da seleção natural, conforme veremos a seguir.

Os desdobramentos da teoria da seleção natural no século XX:

I. O problema do “bem da espécie”

Talvez devido ao fato de Charles Darwin ter colocado a especiação como

uma conseqüência do processo de seleção natural, vários estudiosos do

Page 7: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

7

comportamento dos anos cinqüenta, sessenta e setenta, que tentaram de alguma

maneira incorporar o pensamento evolutivo ao estudo do comportamento,

passaram a utilizar a espécie, e não o indivíduo, como o objeto ou a unidade de

seleção natural.

Não importava a estes estudiosos se os indivíduos variavam entre si em

uma série de comportamentos, ou se estes comportamentos podiam fazer com

que eles deixassem mais ou menos descendentes nas gerações futuras. O que

realmente importava, ou o que parecia implícito em sua argumentação, é que pelo

menos alguns indivíduos sobrevivessem e se reproduzissem para que a espécie,

como um todo, pudesse então ser preservada. A conseqüência deste raciocínio foi

uma aceitação crescente, entre os estudiosos da época, de que o comportamento

dos indivíduos estava primariamente voltado para o benefício da espécie à qual

pertenciam.

Um dos exemplos mais ilustrativos deste modo de pensar nos é fornecido

por Konrad Lorenz (1966), que numa de suas raras tentativas de explicar as

causas remotas do comportamento, discute a possível evolução do

comportamento agressivo no homem e nos animais totalmente baseada nas suas

“funções de preservação da espécie”, mas o exemplo mais extremo até agora

conhecido é o de Wynne-Edwards (1962, 1986), que propôs uma teoria segundo a

qual as espécies atuais teriam evoluído mecanismos de auto regulação

populacional, com o objetivo final de evitar a super exploração dos recursos

necessários à sua sobrevivência e a possível extinção de todo o grupo.

Tomando como ilustração os diversos tipos de agregações que muitos

mamíferos, aves, peixes e répteis em geral apresentam, Wynne-Edwards sugeriu

que estas agregações permitiriam aos animais de alguma maneira estimar o

tamanho da população e investir com maior ou menor intensidade na produção de

novos indivíduos (na reprodução), de forma a manter os tamanhos populacionais

compatíveis com os recursos disponíveis. Esta teoria, atualmente mais conhecida

através da expressão “seleção de grupo”, tem levado vários autores a

desenvolverem ou simularem modelos de seleção natural onde grupos de

indivíduos ou populações inteiras pudessem tornar-se unidades de seleção. O

Page 8: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

8

efeito de grupo pode até mesmo ser medido em populações naturais. Entretanto,

segundo G.C. Williams (1966), a seleção natural agindo sobre as variações entre

indivíduos teria sempre um efeito muito mais forte na formação do patrimônio

gênico das gerações seguintes do que as diferenças entre grupos ou populações.

Esta questão, na realidade, encontra-se ainda hoje aberta a novas discussões. O

problema, entretanto, está em como interpretar corretamente o comportamento

dos indivíduos. Sob a perspectiva da teoria de seleção natural, espera-se que os

indivíduos se comportem “egoisticamente”, ou seja, visando o aumento do seu

próprio sucesso reprodutivo, de sua própria aptidão. Sob a perspectiva da seleção

de grupo, espera-se que os indivíduos se comportem “altruisticamente”, ou seja,

visando o benefício da espécie à qual pertencem (ou dos demais indivíduos do

seu grupo ou população), chegando mesmo a abrir mão de seu próprio sucesso

reprodutivo!

Esta teoria tem é claro um certo atrativo, uma vez que coloca os indivíduos

da população todos a serviço do bem comum e da coletividade. Uma “verdadeira

sociedade de altruístas” que poderia servir como modelo para a nossa própria

sociedade. Entretanto, conforme veremos a seguir, os exemplos de altruísmo

reprodutivo são relativamente raros no reino animal e estão restritos a alguns

grupos taxonômicos cuja biologia difere substancialmente das demais espécies

animais.

Além de focar de maneira errada a unidade de seleção, o que a “teoria do

bem da espécie” realmente não consegue explicar pode ser captado no seguinte

argumento, desenvolvido por Alcock (1993): Imaginemos que, numa população de

altruístas, surgisse um indivíduo que (talvez devido a uma mutação) passasse a

comportar-se de maneira egoísta em relação aos outros indivíduos do grupo,

investindo seu tempo e energia na criação de seus próprios filhos. Qual entre os

dois tipos de indivíduos, o egoísta e o altruísta, deixaria uma prole mais numerosa

e estaria mais representado nas gerações seguintes?

Caso o leitor ainda não esteja convencido, imaginemos a coisa pelo outro

lado. Digamos que, numa população de egoístas, onde todos só quisessem saber

de reproduzir-se e cuidar dos seus próprios filhos, surgisse um altruísta que

Page 9: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

9

dedicasse boa parte de seu tempo e energia para o benefício (ou para o sucesso

reprodutivo) dos outros indivíduos da população. Que chances teria este indivíduo

em deixar descendentes nas gerações futuras? De que maneira o altruísmo se

espalharia pela população?

O modelo de seleção de grupo apregoado pelos partidários do “bem da

espécie” mostrou-se desde o início inadequado para a interpretação do

comportamento, mas forçou os biólogos deste período a examinarem com maior

profundidade a evolução do comportamento social. Afinal de contas, se os

indivíduos tendem a comportar-se apenas egoisticamente, de que maneira o

comportamento social, que exige um certo nível de cooperação entre os membros

de um grupo, poderia ter evoluído através de seleção natural em tantos animais

diferentes, inclusive na nossa própria espécie?

II. A evolução do comportamento social e os limites da teoria da

seleção natural

Viver em grupo pode acarretar sérias complicações para um indivíduo.

Certas doenças parasitárias, por exemplo, podem se espalhar mais rapidamente

quando os indivíduos estão de alguma forma agrupados. A competição por

recursos alimentares, ou por territórios, ou por locais de nidificação, ou até mesmo

por parceiros sexuais (se considerarmos o sexo oposto como um recurso, o que

não é muito convencional) também pode ser muito mais intensa nestas condições.

Talvez por estas razões, nem todos os organismos chegaram a evoluir qualquer

forma de comportamento social. Em outras palavras (e utilizando uma

argumentação puramente econômica, muito em prática na ecologia) há muitas

condições ecológicas nas quais os custos (para os indivíduos, medidos através de

seu sucesso reprodutivo) podem exceder os benefícios (medidos da mesma

forma) de se viver em grupo.

Page 10: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

10

Entretanto, sob certas circunstâncias, os benefícios podem tornar-se

maiores e o comportamento social tem enfim alguma chance de evoluir.

Imaginemos algumas situações. Um casal de aves ou de mamíferos, por exemplo,

pode cuidar melhor de seus filhotes do que um dos pais apenas poderia, caso

estivesse sozinho. Certos mamíferos carnívoros, como um grupo de leoas, por

exemplo, podem se juntar para defender territórios e para desenvolverem técnicas

de caça coletivas, mais eficientes que as técnicas individuais, conseguindo assim

subjugar presas talvez muito maiores ou que, de outro modo, não estariam no

cardápio principal do dia. De forma semelhante, mamíferos herbívoros podem

formar grandes rebanhos para se defenderem de predadores, aumentando o

número de “vigias” e desenvolvendo diferentes tipos de “sinais de alerta” que

permitiriam aos animais fugirem quando os predadores se aproximassem, ou

ainda, poderiam simplesmente dividir com outros indivíduos, tão apetitosos ou

mais do que eles, as mesmas chances de serem atacados por um determinado

predador (Hamilton, 1971, apresenta um modelo de seleção bem mais realista

para a evolução deste comportamento em certos grupos de presas - os chamados

“rebanhos egoístas”). Em todos estes casos, que denominamos comportamentos

de cooperação (ou mutualismo, no caso de cooperação entre indivíduos de

espécies diferentes) há um benefício líquido (ou um aumento na aptidão) para

cada um dos indivíduos envolvidos (comparando com suas aptidões caso

estivessem sozinhos), o que torna a sua evolução perfeitamente viável através de

seleção natural. A teoria da seleção natural não é, portanto, incompatível com a

evolução do comportamento social (Williams, 1966).

O que a seleção natural clássica, baseada no indivíduo como a unidade de

seleção, realmente não consegue explicar, é quando a ajuda beneficia apenas um

dos membros da relação. É o que podemos chamar do verdadeiro altruísmo

reprodutivo, onde o altruísta sofre uma perda real em sua aptidão, enquanto

“recipiente” da ação acaba por beneficiar-se.

Evidentemente, quando os indivíduos envolvidos são pais e filhos, não

podemos interpretar este comportamento como altruísta, uma vez que um pai ou

uma mãe estaria simplesmente investindo em sua própria aptidão ao ajudar os

Page 11: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

11

filhos. Estes comportamentos de ajuda de pais em relação aos filhos, que

denominamos cuidados parentais, são também totalmente viáveis quando

analisamos a sua evolução através de seleção natural. Poderíamos até mesmo

esperar que, sob certas circunstâncias, um pai ou uma mãe chegasse a se matar

para salvar a vida de um filho ou uma filha. Mas quando o comportamento de

ajuda não envolve os descendentes diretos do indivíduo altruísta, somos então

obrigados a rever alguns aspectos da teoria de seleção natural.

Uma alternativa para este problema foi apresentado por Robert Trivers

(1971), que propôs um mecanismo denominado “altruísmo recíproco”, no qual o

indivíduo altruísta sofre inicialmente uma perda relativamente pequena como

conseqüência de sua boa ação, mas recebe no futuro, do próprio “recipiente” da

ação, um benefício maior que a perda inicial. Obviamente, um sistema como este

estaria sujeito a fracassar tão logo os indivíduos inicialmente ajudados

simplesmente se negassem a retribuir, com juros, os benefícios recebidos.

Entretanto, sob certas circunstâncias, especialmente quando os indivíduos

envolvidos podem se encontrar e interagir repetidamente, o altruísmo recíproco

poderia evoluir ou, como preferem alguns, poderia tornar-se uma estratégia

evolutiva estável.

O altruísmo recíproco, entretanto, só consegue explicar um altruísmo mais

brando, onde as perdas iniciais são relativamente pequenas. Há exemplos,

entretanto, em que o altruísta simplesmente não parece ser recompensado de

forma alguma, sofrendo perdas aparentemente irreparáveis em sua aptidão. Estes

exemplos são para nós do maior interesse, pois parecem confrontar-se

diretamente com a teoria da seleção natural de Charles Darwin. Mas que

exemplos são estes, afinal?

Em diversas famílias de aves a presença de ajudantes não reprodutivos nos

ninhos não é um fenômeno raro. Além do macho e da fêmea que formam o casal,

encontramos nestes ninhos outras aves que auxiliam na sua construção, na coleta

de alimentos e na alimentação dos pais e dos filhotes. Em vários casos, os

ajudantes montam guarda e protegem os filhotes de seus predadores, enquanto

os verdadeiros pais estão fora do ninho. Para o ajudante, estas atividades

Page 12: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

12

poderiam ser consideradas um verdadeiro desperdício de tempo e energia, que

poderiam estar sendo investidos em seu próprio benefício, em sua própria aptidão.

Como então explicar este comportamento?

Outro exemplo clássico é aquele que envolve a evolução de castas não

reprodutivas nas abelhas e em outros insetos sociais. Façamos uma breve visita a

uma colmeia. Lá encontraremos uma rainha que se dedica quase integralmente à

reprodução, enquanto suas irmãs, as operárias, se ocupam dos cuidados com o

ninho, de sua construção, da coleta de alimentos e da alimentação da própria

rainha e de sua prole. Ao invés de um aparelho reprodutivo, as operárias

desenvolveram em seu lugar um poderoso ferrão, que não hesitam em utilizar

como arma contra qualquer intruso que se aproxime perigosamente da colmeia,

ato este que as levará irremediavelmente à morte. Não seria mesmo um absurdo

imaginar que elas se suicidam para defender as castas reprodutivas e sua prole.

Como então um indivíduo, como esta operária, poderia abdicar de seu próprio

sucesso reprodutivo para claramente beneficiar (ou colaborar com o sucesso

reprodutivo) de um outro indivíduo, como a rainha?

Comportamentos altruísticos como o desta operária podem ser encontrados

numa grande variedade de insetos denominados por Edward Wilson (1975) como

eusociais, que incluem, além das abelhas, as vespas, as formigas, os cupins e

alguns afídeos onde castas, morfologicamente diferenciadas ou não, dividem entre

si o trabalho geral da colônia e a tarefa de produzir ou não descendentes. Mais

recentemente foi descoberto na África até mesmo um mamífero eusocial, um

roedor, o Naked mole rat, que vive em colônias subterrâneas onde os indivíduos

se alimentam de certas raízes. Tal como em muitos insetos eusociais, a colônia é

dominada por uma rainha, uma fêmea reprodutiva maior que os outros membros

da colônia, com poucos pêlos, dentes enormes e aspecto geral horripilante. Esta

rainha se acasala exclusivamente com apenas dois ou três machos da colônia,

enquanto os outros indivíduos, os não reprodutivos (= altruístas), dedicam-se

unicamente à tarefa de abrir túneis e coletar raízes.

Mas há ainda alguns outros exemplos envolvendo outros tipos de

organismos. Uma “caravela portuguesa” (Physalia; Cnidaria) pode apresentar

Page 13: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

13

muitas semelhanças a uma colônia de formigas. Alguns indivíduos, os

gastrozóides, se especializaram na coleta de alimentos (= operárias), outros, os

dactilozóides, na defesa da colônia (= soldados) e ainda outros, os gonozóides, na

reprodução (= rainhas). A diferença fundamental é que, enquanto operárias,

soldados e rainhas podem se movimentar livremente, gastrozóides, dactilozóides

e gonozóides estão unidos em um mesmo corpo, do qual partilham um intestino

comum e um flutuador (uma câmara de gás) que permite à caravela flutuar sobre

as águas oceânicas.

O próprio Charles Darwin sentiu que sua teoria estava seriamente

ameaçada ao analisar a evolução das castas não reprodutivas nos insetos

eusociais. Entretanto, ele conseguiu perceber que a seleção natural poderia estar

operando num outro plano diferente do indivíduo, como a família inteira (o que

equivaleria à colônia). O altruísmo reprodutivo dos insetos sociais e de outros

animais, entretanto, só passou mesmo a ser mais bem compreendido quando

analisado sob o ponto de vista dos genes, o que só veio a acontecer na segunda

metade do século XX quando William Hamilton, numa série de artigos publicados

(1964a,b; 1970; 1971; 1972), propôs que os genes seriam a unidade de seleção

relevante. Antes de entrarmos na evolução do altruísmo reprodutivo, entretanto,

vejamos como os genes poderiam ser considerados as unidades de seleção

natural.

III. Os genes como as unidades de seleção

Darwin (1809-1882) obviamente não tinha conhecimento do conceito de

gene e de seu papel na hereditariedade. Este conceito só passou mesmo a ser

mais conhecido e divulgado a partir de 1920, quando vieram a público os

experimentos de Mendel e de outros naturalistas que realizaram experimentos de

cruzamento em plantas. Tal como Darwin, Mendel não estava a par da

Page 14: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

14

composição química dos genes, que hoje sabemos constituir-se de DNA, ou de

sua estrutura em forma de “dupla hélice” (descoberta por Watson e Crick em

1953), mas foi capaz de estudá-los e identificá-los através de sua expressão no

fenótipo dos indivíduos, como a cor (verde ou amarela) e a forma (lisa ou rugosa)

das sementes de ervilhas que ele estudou. Talvez mais importante do que os

conceitos de dominância, recessividade e das próprias “leis de Mendel”, a

contribuição mais significativa deste autor foi na própria concepção do significado

do gene e, especialmente, na sua natureza particulada (genes se segregam

independentemente durante a meiose), que expôs enfim o gene aos olhos da

ciência.

Atualmente nós sabemos que os genes estão presentes em cada uma das

células de um organismo (que podem chegar a mais de um trilhão no corpo

humano). Dentro das células, os genes codificam a síntese de proteínas, os

blocos de construção dos seres vivos, e especialmente, de enzimas (também um

tipo de proteína) que controlam o metabolismo celular. Entretanto, a característica

mais extraordinária dos genes (e mais relevante para o nosso estudo) é a sua

capacidade de produzir réplicas de si mesmos. Segundo Richard Dawkins (1989),

nós os indivíduos, nascemos, crescemos, nos reproduzimos (reproduzimos os

genes) e morremos. Mas os genes, ao produzirem réplicas de si mesmos, podem

tornar-se potencialmente imortais.

Para produzirem suas réplicas, entretanto, os genes precisam fabricar os

indivíduos, sejam eles seres solitários ou coloniais, que competirão e/ou

colaborarão entre si para deixar seus descendentes (os novos portadores das

réplicas de genes) nas gerações seguintes. Com estas informações em mente,

podemos então imaginar a teoria da seleção natural operando ao nível dos genes

de modo análogo ao que Darwin imaginou para os indivíduos, como proposto por

Alcock (1993):

1. Variação genética: genes ocorrem em duas ou mais formas alternativas, os

alelos, dentro de uma espécie. Diferentes alelos levam à produção de

formas relativamente diferentes da mesma proteína.

Page 15: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

15

2. Hereditariedade: alelos podem ser transmitidos de pais para filhos.

3. Reprodução diferencial: alelos produzem efeitos que permitem aos seus

portadores produzirem mais réplicas de si mesmos do que indivíduos com

alelos alternativos do gene em questão.

A idéia do gene como a unidade de seleção se constitui na última grande

revolução da história do pensamento evolutivo. Ela nos leva a pensar que os

indivíduos não se comportam para o benefício de outros indivíduos de sua espécie

ou população (= seleção de grupo) e nem para o seu próprio benefício, (=

seleção individual clássica), mas em benefício de seus genes. Nesta nova

perspectiva, o que podemos esperar dos indivíduos é que eles se comportem no

sentido de aumentar a sua aptidão inclusiva, um conceito desenvolvido na

próxima seção que é a chave para a compreensão do altruísmo reprodutivo.

IV. O conceito de aptidão inclusiva e a evolução do altruísmo

reprodutivo

Em vista do que foi exposto na seção anterior, podemos concluir que a

produção de réplicas de um alelo (ou de um grupo de alelos) se constitui no

grande projeto de vida dos indivíduos, estas “máquinas de sobrevivência” que

funcionam como “veículos” para a replicação dos genes (Dawkins, 1989).

Obviamente, o caminho mais direto para se realizar este projeto é o investimento

em sua própria reprodução ou, como vimos anteriormente, em sua própria aptidão.

Mas há também um caminho alternativo para os indivíduos produzirem réplicas de

seus genes, descoberto por William Hamilton (1964b): ajudando indivíduos

aparentados (como irmãos, primos, sobrinhos, etc.), e que também podem possuir

a mesma réplica do alelo, a sobreviverem e a produzirem os seus filhos. É o que

pode ser chamado de aptidão indireta que, juntamente com a aptidão direta (via

Page 16: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

16

reprodução pessoal) compõem o que Hamilton chamou de aptidão inclusiva, um

termo que pode ser aplicado tanto ao indivíduo como ao próprio gene ou um de

seus alelos.

Utilizando o coeficiente de parentesco (ver tabela abaixo) como a

probabilidade de dois indivíduos partilharem de uma mesma réplica de um alelo,

Hamilton propôs uma regra para se estabelecer como um alelo raro qualquer,

como aquele que promove o altruísmo em seu portador, poderia espalhar-se numa

população. Esta regra pode ser expressa através da seguinte fórmula:

Br – C > 0

Onde r = coeficiente de parentesco (ver tabela abaixo); B = benefício (ou o número

adicional de parentes cuja existência se deve à ação do altruísta) e C = custo na

aptidão direta do altruísta.

Page 17: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

17

Tabela 1. Coeficiente de parentesco (r) entre diferentes tipos de parentes.

(r)

Clones ou gêmeos idênticos 1.0

Pais/mães e filhos/filhas 0.5

Irmãos (ãs) 0.5

Meio irmãos (ãs) 0.25

Avô/avó e neto/neta 0.25

Tio/tia e sobrinho/sobrinha 0.25

Primos (as) 0.125

. A regra de Hamilton diz de forma simples que, para que um alelo se

espalhe, ou para que o altruísmo possa evoluir numa população, os custos diretos

para o indivíduo altruísta (= C) precisam ser menores do que os benefícios

indiretos (= B). Os custos são, obviamente, o número de descendentes diretos

(filhos e filhas) que o altruísta deixou de produzir, e os benefícios são o número

adicional de parentes (não descendentes diretos), cuja sobrevivência se deve

exclusivamente à ação do altruísta (e não o número total de parentes do altruísta,

como aparece numa grande maioria de livros didáticos), multiplicado pelo

coeficiente de parentesco entre o altruísta e o (s) “recipiente” (s) da ação.

Imaginemos, como ilustração, que um indivíduo altruísta deixou de produzir

três filhos como conseqüência de sua ação. Em uma espécie diplóide qualquer,

que se reproduz sexuadamente, um filho herda metade de seus genes de seu pai

e outra metade de sua mãe. O custo para o altruísta será, portanto, de 0.5 (= r

entre pai e filho) x 3 (= número de filhos) = 1.5 unidades genéticas. Entretanto,

devido à sua boa ação, sete sobrinhos foram capazes de sobreviver e se

reproduzir, o que resulta num benefício de 0.25 (= r entre tio e sobrinho) x 7 (=

número de sobrinhos) = 1.75 unidades genéticas. Há, portanto, um ganho líquido

de 0.25 unidades genéticas para o altruísta, o que elevará a freqüência do alelo

que promove o altruísmo na população.

Page 18: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

18

Este é, obviamente, apenas um exemplo hipotético. Na prática tem sido

bastante difícil não apenas conhecermos com precisão as verdadeiras relações de

parentesco entre os indivíduos de uma população animal qualquer vivendo em

condições naturais, como também estimarmos com precisão as possíveis perdas

na aptidão direta dos indivíduos altruístas. Já existem, entretanto, alguns estudos

reveladores. Num estudo realizado com um passarinho australiano, a “cambaxirra

de duas cores”, Austad & Rabenold (1985; Behavioral Ecology and Sociobiology

17:19-27) descobriram que quando os pais estão sozinhos no ninho, a média de

filhotes obtida por ano é de apenas 0.4, mas quando um ajudante está presente, e

sua principal tarefa parece ser a de defender o ninho contra predadores quando os

pais estão fora, esta média sobe para 1.3 filhos por casal/ano. Em média, um

único ajudante aumenta as chances de sobrevivência dos filhotes (seus irmãos e

irmãs) em 0.9 filhos/ano (B = 1.3 x 0.5 = 0.65; C = 0.4 x 0.5 = 0.2; B > C).

Hamilton (1964b; 1972) foi também o primeiro a perceber que o sistema

haplodiplóide, que determina os sexos nas vespas, formigas e abelhas, propicia

uma maneira diferente de se estimar o coeficiente de parentesco entre indivíduos

de uma colônia. Neste sistema, os machos são haplóides (originam-se de um

óvulo não fertilizado), enquanto as fêmeas são diplóides (originam-se de um

óvulo fertilizado por um espermatozóide). Se calcularmos então o coeficiente de

parentesco (r) entre uma operária e sua irmã, a rainha, veremos que ambas

possuem uma cópia idêntica de genes (oriunda de seu pai haplóide, o zangão) e

probabilísticamente, mais uma das duas cópias possíveis presentes em sua mãe,

a rainha que lhes deu origem. Assim, elas partilham 0.5 + 0.25 = 0.75 de seus

genes. De fato, elas não são irmãs como costumamos entendê-las, mas “super

irmãs” (compare com r entre irmãos diplóides na tabela acima). Se, por outro lado,

esta operária pudesse ter tido a opção de produzir os seus próprios filhos (se, ao

invés de um ferrão, tivesse desenvolvido um aparelho reprodutivo funcional),

poderíamos também verificar que seu coeficiente de parentesco com sua filha

(rainha ou operária) seria de apenas 0.5. Dedicar-se então à tarefa de ajudar a

rainha a cuidar de seus filhos pode ser, para esta operária, mais vantajoso para a

produção de réplicas de seus alelos do que investir na sua própria reprodução.

Page 19: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

19

Este raciocínio é, na realidade, uma simplificação, pois teríamos que incluir

nestes cálculos o número total de filhos e filhas produzidos pela rainha e pela

operária (se isto fosse possível; ou considerá-lo de fato nulo), bem como o número

total de operárias e rainhas com as quais o benefício é dividido. Mas o simples

fato de um altíssimo coeficiente de parentesco estar envolvido já é um indicativo

bem forte de que ajudar parentes pode ser mesmo um investimento nos próprios

genes de um indivíduo.

Um coeficiente de parentesco bastante elevado foi também encontrado no

caso dos cupins e do naked mole rat, mas, contrariamente às abelhas, vespas e

formigas, os machos e fêmeas destes insetos e deste roedor são ambos

diplóides. Nestes casos, o que se tem observado é que existe um alto grau de

endocruzamento (ou cruzamento entre parentes) nestas colônias, o que, por sua

vez, também pode ampliar em muito o coeficiente de parentesco entre os

indivíduos.

Talvez por não apresentarmos um coeficiente de parentesco tão elevado

como os exemplos citados acima, nós e muitos outros organismos onde o

altruísmo reprodutivo pode ser encontrado (como aquelas aves em que ocorre a

presença de ajudantes), não evoluímos em direção a eusocialidade, mas em

direção a comportamentos sociais alternativos. Nosso sistema de determinação

dos sexos é bastante diferente do sistema haplodiplóide das abelhas, vespas e

formigas, e o endocruzamento praticado pelos cupins e pelo naked mole rat é

uma prática claramente evitada na nossa sociedade e, na realidade, na grande

maioria dos animais que se reproduzem sexuadamente (veja na próxima seção

uma breve discussão sobre o incesto). Entretanto, seja a espécie em questão

eusocial ou não, o altruísmo reprodutivo só tem mesmo sido observado quando

os beneficiários da ação são parentes (mesmo que muito distantes) do altruísta.

Neste momento de nossa discussão, chegamos então a um ponto bastante

revelador sobre o altruísmo reprodutivo. Ele só pode ser concebido ou imaginado

do ponto de vista dos indivíduos. Do ponto de vista dos genes, não há altruísmo

algum, apenas genes investindo egoísticamente em seu próprio benefício, em sua

própria reprodução e, somente por esta razão, o comportamento altruísta pôde

Page 20: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

20

evoluir nos indivíduos de várias espécies, inclusive a nossa (sim, nós temos

inúmeros exemplos de altruísmo reprodutivo na nossa espécie, e apesar de não

sermos eusociais, temos também as nossas “castas não reprodutivas”).

Esta nova forma de se conceber a seleção natural operando ao nível dos

genes não invalida o pensamento clássico de Darwin que, como vimos,

permanece basicamente o mesmo quando transposto do indivíduo para o gene.

Entretanto, ele certamente o torna mais amplo, possibilitando-o incorporar

comportamentos até então considerados contraditórios com a teoria da seleção

natural, como o altruísmo reprodutivo. Da mesma forma, esta nova visão da

seleção natural não necessariamente invalida os vários estudos previamente

realizados que utilizaram estimativas de aptidão baseadas apenas no número de

descendentes diretos de um indivíduo, e não na sua aptidão inclusiva (que

incorpora a aptidão direta e indireta). Para o propósito destes estudos, estas

estimativas continuam válidas e, na maioria dos casos, elas podem mesmo

eqüivaler-se à verdadeira aptidão inclusiva, uma vez que a aptidão indireta só

parece ser importante num número limitado de espécies (creio tratar-se do nosso

caso). Num certo sentido (não muito correto, pois estaríamos colocando os

indivíduos e os genes ao mesmo tempo como as unidades de seleção),

poderíamos até pensar que o “interesse do indivíduo” e o “interesse de seus

genes” são grandemente coincidentes. Talvez por esta razão, passamos tanto

tempo sem perceber o papel dos genes no comportamento. Na próxima seção, eu

apresento algumas críticas ao pensamento evolutivo baseado no gene como a

unidade de seleção, bem como algumas perspectivas de estudos futuros nesta

área do comportamento.

As críticas à abordagem evolutiva do comportamento no final do

século XX e algumas perspectivas de estudos futuros

Page 21: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

21

Desde que lançada a público, a idéia de que os genes podem de algum

modo determinar o comportamento dos animais e dos homens tem provocado um

grande debate em nossa sociedade. Uma das críticas mais comuns a esta nova

abordagem do estudo do comportamento é a de que a influência dos genes no

comportamento dos indivíduos ainda não foi devidamente demonstrada,

especialmente no caso de nossa própria espécie. Antes de responder a esta

crítica, entretanto, precisamos considerar algumas características dos genes e de

seu papel no comportamento dos organismos.

Há na realidade alguns estudos que mostram que um determinado

comportamento pode ser controlado por um único gene, obedecendo às leis mais

simples da genética mendeliana. Meu exemplo preferido é o de Rothenbuhler

(1964; American Zoologist 4:111-123), que realizou experimentos de cruzamento

entre duas linhagens de abelhas, as “higiênicas” e as “não higiênicas”. Para

entendermos este comportamento lembremo-nos que, entre as abelhas, existe

uma doença denominada American foulbrood que pode eventualmente atacar as

larvas e levá-las à morte. Para manter a limpeza dentro dos ninhos e evitar que a

doença se espalhe, algumas abelhas simplesmente abrem as “células” onde as

larvas mortas se encontram, e as removem para fora do ninho. Esta é a linhagem

“higiênica”. Em uma outra linhagem destas mesmas abelhas, a “não higiênica”, as

larvas não são removidas, permanecendo vedadas por uma tampa dentro destas

células, que se transformam assim em sua tumba mortífera. Quando Rothenbuhler

cruzou estas duas linhagens, obteve uma primeira geração totalmente não

higiênica, demonstrando assim que esta característica (e seu respectivo alelo) era

dominante em relação à linhagem higiênica. Entretanto, quando estes híbridos

foram cruzados com a linhagem higiênica original, encontrou-se o seguinte

resultado. Num total de 29 colônias obtidas, em 6 delas as células foram abertas

(a tampa foi retirada) e as larvas foram removidas; em 9 delas as células foram

abertas, mas as larvas não foram removidas; em outras 6 as células não foram

abertas pelas abelhas, mas depois que o pesquisador as abriu, as larvas foram

removidas; e em 8 delas, as células não foram abertas e as larvas não foram

removidas (mesmo depois que o pesquisador retirou as tampas). Estes resultados

Page 22: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

22

mostram, em primeiro lugar, que os comportamentos de “abrir ou não” a célula e

“remover ou não” a larva morta de seu interior são controlados por diferentes

genes e, em segundo lugar, que cada um destes comportamentos pode ser

explicado com base num único par de alelos!

Em outros estudos observou-se que o comportamento em questão era

controlado por dois ou mais genes, mas na grande maioria dos casos, o que se

tem mesmo observado é que um comportamento qualquer pode ser afetado por

um conjunto enorme de genes. Trata-se da chamada herança poligênica,

descoberta bem depois de Mendel e que nos permite explicar as variações

contínuas entre os indivíduos (variações quantitativas e não qualitativas). Se

pudéssemos então suprimir o efeito de cada gene no genótipo de um animal

qualquer, de tal maneira que um determinado comportamento se modificasse ou

passasse a não mais ser exibido pelo animal, poderíamos atingir uma porção

considerável de seu genótipo. Por esta razão, não tem mesmo sido fácil

demonstrar o efeito dos genes no comportamento (exceto talvez no caso de certas

doenças genéticas que produzem alterações drásticas no comportamento), mas

isto não significa de forma alguma que o efeito em si não exista.

É bastante provável que, com o desenvolvimento da biologia molecular,

genes que afetam direta ou indiretamente determinados comportamentos

humanos ou não humanos venham a ser descobertos no futuro próximo. Descobrir

genes para o comportamento, entretanto, não é a meta da abordagem evolutiva

do comportamento ou da sociobiologia. O aspecto fundamental nestas ciências é

descobrir se o comportamento em questão realmente evoluiu (e, neste caso, uma

base genética seria absolutamente imprescindível), e de que maneira ele poderia

ter se espalhado na população, contribuindo para a aptidão inclusiva dos

indivíduos que o exibiam, em relação a outros indivíduos que apresentavam

comportamentos alternativos. São estes aspectos do comportamento que nos

interessam, e que podem enfim nos ajudar a formular as hipóteses e as predições

necessárias para a sua investigação científica.

Outro argumento freqüentemente utilizado contra a influência dos genes no

comportamento é o de que a cultura, geralmente imaginada como uma

Page 23: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

23

característica exclusivamente humana, seria o principal fator na determinação do

nosso comportamento, e não os nossos genes. Esta argumentação, entretanto,

também carece de maiores esclarecimentos. Em primeiro lugar, se imaginarmos a

cultura (ou a “protocultura”, se preferirem) como sendo a transmissão de

informações e conhecimentos entre indivíduos e gerações, o que parece bastante

razoável, poderemos facilmente verificar que muitos animais de fato a praticam.

Mas mais importante do que isto é o fato de que, sob a luz da abordagem

evolutiva, não existe uma dicotomia verdadeira entre o que poderia ser

classificado como “genético” e “cultural”. Não há de fato sentido algum em se

afirmar que um determinado comportamento é “exclusivamente cultural”, pois a

cultura também é vista como uma manifestação genética dos animais, evoluída

dentro das populações e moldada por seleção natural de acordo com as

necessidades impostas pelo ambiente físico e biológico em que estes animais se

desenvolveram. Somos, portanto, seres culturais porque fomos moldados pela

seleção natural para sermos assim.

Nós podemos é claro afirmar que o fato de falarmos uma determinada

linguagem, por exemplo, depende da cultura na qual vivemos. Mas não podemos

nos esquecer que nossa habilidade geral para a fala, que inclui nosso aparato

vocal, nosso sistema nervoso, nossa capacidade de aprender e memorizar certos

símbolos e até mesmo a idade mais adequada para aprendermos com maior êxito

uma nova linguagem claramente dependem dos nossos genes e podem ser vistas

como adaptações biológicas à cultura. Atualmente acredita-se que há genes até

mesmo para a religiosidade humana e o principal argumento em favor desta idéia

é que, apesar da enorme diversidade étnica e cultural encontrada entre os

homens, ainda hoje não se descobriu qualquer povo ou civilização totalmente ateu

sobre o nosso planeta. Além disto, diversas funções adaptativas para a

religiosidade, envolvendo claros benefícios para os indivíduos que a praticam, têm

sido enunciados (Wilson, 1975,1978; Dawkins, 1989).

Um exemplo bastante ilustrativo da falsa dicotomia entre o “genético” e o

“cultural” pode ser encontrado no caso da chamada “repressão social ao incesto”.

Vimos na seção anterior que a grande maioria das espécies evitam as práticas

Page 24: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

24

que levam ao endocruzamento e a razão para este fato é que os indivíduos

assim produzidos podem apresentar sérios problemas de adaptação (alelos

recessivos, cuja expressão no fenótipo poderia ser suprimida se combinados com

alelos dominantes normais, poderiam se apresentar em dose dupla e manifestar

os seus efeitos deletérios no indivíduo). Entretanto, alguns pensadores

contemporâneos têm proclamado que a repressão ao incesto na nossa sociedade

é algo “exclusivamente cultural”, na prática, um simples tabu!

Vários estudos têm mostrado que os acasalamentos incestuosos,

especialmente entre pais e filhos ou entre irmãos (r = 0.5 em ambos) são

relativamente raros em condições naturais (menos de 2% nas aves e nos

mamíferos). Há na realidade duas maneiras principais pelas quais os animais

evitam cruzarem-se com parentes. Num conjunto de espécies, um dos sexos se

move para longe de sua área natal, antes de se acasalar. Num outro conjunto, os

animais permanecem próximos, mas desenvolvem uma aversão sexual pelos

parentes quando atingem a idade reprodutiva. Este é o caso dos seres humanos.

Num experimento realizado com crianças criadas conjuntamente nos Kibbutz

israelenses (Shepher, J. 1971. Archives of Sexual Behavior 1:293-307), verificou-

se que, num mesmo grupo de crianças, o casamento entre os seus membros

parece jamais ter sido observado. A experiência de terem sido criados juntos,

como “pseudo” irmãos e irmãs, parece simplesmente ter destruído a atração

sexual entre eles. Em condições naturais, os indivíduos criados juntos são mesmo

aparentados entre si e, em conseqüência, uma tendência genética para a aversão

sexual por parentes poderia ter evoluído através de seleção natural, como uma

adaptação para se evitar o endocruzamento e seus efeitos maléficos, o que

parece ter de fato ocorrido. Se dermos ouvidos aos partidários do tabu do incesto,

tudo que conseguiremos será a produção de uma prole mal adaptada e, se

sobrevivêssemos a isto, poderíamos ao longo de muitas gerações até mesmo nos

transformar numa espécie eusocial, como o Naked mole rat!

Outro exemplo de comportamento muitas vezes citado como devido

“exclusivamente à cultura” na nossa espécie refere-se à escolha de parceiros

sexuais. Entretanto, quando se investigou mais profundamente quais as

Page 25: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

25

características dos homens e das mulheres mais desejadas por pretendentes de

sexos opostos (Buss, D. M. 1989. Bahavioral and Brain Sciences 12:1-14),

observou-se que os homens priorizam (entre várias opções possíveis) certas

características relacionadas à idade (de fato as mulheres mais jovens) e a

determinados atributos físicos (os quais, também se acredita, sinalizam aos

machos sua aptidão física para produzirem filhos), enquanto as mulheres

priorizam características masculinas que indicam status social elevado e melhores

perspectivas de sucesso financeiro. Apesar de inesperado (e talvez “socialmente

injusto”) este resultado foi repetidamente obtido numa pesquisa envolvendo mais

de 10.000 pessoas em 37 diferentes culturas espalhadas em 5 continentes e em

cinco ilhas isoladas adicionais. Muitas pessoas obviamente duvidam que a

escolha de parceiros sexuais possa ter evoluído desta maneira na nossa espécie,

mas apesar da cultura e de sua enorme diversidade, podemos constatar que estas

preferências humanas são consistentes com o que seria esperado caso

quiséssemos mesmo aumentar a nossa aptidão inclusiva.

Outro argumento comumente apontado contra a influência dos genes no

comportamento humano é o de que esta abordagem despreza totalmente o papel

de nossa consciência no nosso comportamento. Esta é, na minha opinião, uma

afirmação verdadeira e com a qual concordo inteiramente. Mas perceba o leitor o

seguinte: para que nos comportemos de uma maneira adaptativa, ou visando

ganhos na nossa aptidão inclusiva, não é mesmo necessário que estejamos

conscientes do que estamos fazendo. Vejamos, como referência, os outros

animais com os quais partilhamos o nosso planeta. Nós freqüentemente

afirmamos e aceitamos o fato de que eles se comportam no sentido de aumentar a

sua aptidão inclusiva, mas sabemos que muitos deles não apresentam, ou não

parecem apresentar, qualquer forma de consciência ou de auto conhecimento

(deve haver algumas exceções a esta regra; pessoalmente, sempre quis saber a

opinião das baleias sobre a vida e sobre elas mesmas). Conforme nos lembra

John Alcock (1993), nossos mecanismos de “tomada de decisões” foram

moldados pela seleção natural para aumentarmos a nossa aptidão inclusiva, não

para monitorarmos conscientemente as conseqüências evolutivas ou os ganhos

Page 26: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

26

em aptidão de cada uma de nossas ações (de fato, acho que seríamos

chatíssimos e poderíamos até mesmo sofrer perdas irreparáveis na nossa aptidão

inclusiva se nos comportássemos desta maneira o tempo todo).

A consciência, portanto, não parece fundamental para que nos

comportemos de maneira adaptativa, mas isto não impede, por outro lado, que

possamos investigar as bases adaptativas da consciência na nossa espécie e nos

outros animais. Esta é, entretanto, uma questão totalmente diferente daquela

apresentada anteriormente, e que na prática tem se constituído numa das

investigações mais difíceis de serem realizadas, uma vez que ainda não dispomos

de maneiras adequadas para observarmos e medirmos diferentes níveis de

consciência nos diversos organismos vivos e até em nós mesmos. A simples

possibilidade de investigação científica da consciência humana e animal já é, por

si só, um grande desafio para os pesquisadores do comportamento no novo

milênio.

Outro exemplo de comportamento freqüentemente citado pelos críticos da

abordagem evolutiva do comportamento (e que realmente parece confrontar-se

com a teoria da seleção natural operando ao nível dos indivíduos ou dos genes) é

aquele que envolve a adoção de crianças na nossa espécie. Como este

comportamento poderia ter evoluído? Alguns estudos preliminares realizados em

países do ocidente vêm mostrando que a adoção de crianças por parentes

(mesmo que parentes distantes da criança adotada) ocorre numa proporção muito

maior do que a adoção de não parentes, o que permitiria a evolução deste

comportamento através de seleção natural, mas ainda precisamos saber se esta é

uma tendência geral na nossa espécie (o que ocorreria, por exemplo, entre as

populações indígenas da América do Sul e em outros povos de origens distintas

espalhados pelo nosso planeta? E o que ocorreria com outras espécies de

animais onde a adoção de jovens também já foi observada?).

Conforme podemos observar nos exemplos até agora apresentados, muitas

das críticas contrárias ao pensamento evolutivo na atualidade provêm da falta de

informações biológicas corretas e de erros de interpretação do pensamento

evolutivo por parte de um variado grupo de escritores e pensadores. Mas há

Page 27: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

27

evidentemente muitos outros problemas reais que permanecem não resolvidos e

para os quais poderíamos direcionar nossas investigações no futuro.

Um dos problemas mais incômodos que temos de lidar no momento é o fato

de que a única maneira que possuímos para estimar a probabilidade de dois

indivíduos quaisquer possuírem um mesmo alelo é através do coeficiente de

parentesco, tal como proposto por Willian Hamilton. Entretanto, indivíduos não

aparentados também poderiam compartilhar certos alelos (talvez numa proporção

menor do que os indivíduos aparentados) e, em decorrência disto, também

apresentar certos comportamentos de ajuda. Uma maneira visualizada por

Richard Dawkins (1989) para que um alelo presente num indivíduo fosse

reconhecido por outros indivíduos também portadores do alelo (mas não

necessariamente parentes) e recebesse deles algum tipo de ajuda, poderia

ocorrer caso o indivíduo sinalizasse a presença do alelo através de alguma

característica fenotípica bastante incomum (como, por exemplo, uma boca

enorme, uma orelha pontuda ou uma barba verde, o que originou a expressão

“green beard selection”, proposta por Dawkins para explicar a evolução destas

características). Apesar de algumas tentativas infrutíferas, entretanto, esta

possibilidade permanece não demonstrada.

A importância de sabermos como dois indivíduos não aparentados

poderiam partilhar um mesmo alelo é, na minha opinião, fundamental para

interpretarmos não apenas os comportamentos de ajuda entre os indivíduos, mas

também certos sentimentos associados ao ato de ajudar, como por exemplo, a

simples bondade, a simpatia, a amizade, a capacidade de entender e perdoar, e

outros. Creio que, se descobríssemos quais e quantos alelos afinal de contas

partilhamos, poderíamos talvez encontrar aí a origem da virtude humana, o que

me parece uma linha de investigação bastante interessante.

Poderíamos também, por outro lado, descobrir a origem da maldade

humana e dos sentimentos negativos (baseados talvez na baixa quantidade de

alelos em comum, ou em interações complexas entre diferentes alelos em

diferentes genes, ou ainda em certos alelos mutantes), o que já não me parece

uma linha de pesquisa das mais excitantes. Seja lá como for, para desvendarmos

Page 28: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

28

as virtudes e maldades da natureza humana, precisaremos conhecer um pouco

mais sobre os genes e, além disto, sermos capazes de formular hipóteses

adaptativas e predições testáveis sobre os indivíduos portadores destes genes, o

que nem sempre é uma tarefa trivial (qual a vantagem adaptativa em ser

bonzinho? Qual a vantagem adaptativa em ser ruim? Quem deixaria mais cópias

de seus alelos nas gerações seguintes?).

Não se duvida hoje em dia que, tal como os sentimentos, as emoções

humanas (e dos animais em geral) também apresentem uma base genética.

Entretanto, ainda não sabemos muito bem sob que circunstâncias as emoções

poderiam influenciar na adaptação dos indivíduos. Descobrir enfim de que maneira

os sentimentos e emoções poderiam contribuir ou influenciar na adaptação dos

indivíduos é na realidade mais um desafio interessante para os pesquisadores do

novo milênio.

Mas além do comportamento humano, há também o estudo do

comportamento dos outros animais, que pode tornar-se tão interessante ou mais

do que o comportamento humano e que, em última instância, nos leva a uma

melhor compreensão da vida e do próprio homem. Na impossibilidade de listar

aqui todas as perspectivas de estudos futuros sobre a abordagem evolutiva do

comportamento dos animais, deixo ao leitor a tarefa de aprofundar-se no assunto

(as referências ao final do capítulo podem ajudar bastante), com a esperança de

que a leitura desta breve revisão possa ter contribuído para despertar seu

interesse para este tema tão fascinante do conhecimento humano.

Page 29: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

29

Fontes primárias

Alcock, J. 1993. Animal behavior: an evolutionary approach. 5ª ed. Sunderland,

Massachussetts: Sinauer.

Darwin, C. 1859. The Origen of Species. London: John Murray.

Dawkins, R. 1989*. The Selfish Gene. 2ª ed. Oxford: Oxford Univ. Press.

Hamilton, W. D. 1964a**. The genetical evolution of social behaviour, I. Journal of

Theoretical Biology 7:1-16.

Hamilton, W. D. 1964b**. The genetical evolution of social behaviour, II. Journal of

Theoretical Biology 7:17-52.

Hamilton, W. D. 1970**. Selfish and spiteful behaviour in an evolutionary model.

Nature 228:1218-1220.

Hamilton, W. D. 1971**. Geometry for the selfish herd. Journal of Theoretical

Biology 31:295-311.

Hamilton, W.D. 1972**. Altruism and related phenomena, mainly in social insects.

Annual Review of Ecology and Systematics 3:193-232.

Lorenz, K. Z. 1966. On Aggression. London: Methuen.

Page 30: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

30

Trivers, R. L. 1971. The evolution of reciprocal altruism. Quarterly Review of

Biology. 46:35-57.

Williams, G. C. 1966. Adaptation and Natural Selection. Princeton: Princeton Univ.

Press.

Wynne-Edwards, V. C. 1962. Animal Dispersion in Relation to Social Behaviour.

Edinburgh: Oliver and Boyd.

Wynne-Edwards, V. C. 1986. Evolution through group selection. Oxford: Blackwell

Scientific Publications.

Wilson, E. O. 1975. Sociobiology: The New Synthesis. Cambridge: Harvard

University Press.

Wilson, E. O. 1978***. On Human Nature. Cambridge: Harvard University Press.

________________________________________________________________

* .(traduzido pela Ed. Itatiaia, B.H.).

** Uma coletânea das publicações deste autor, considerado o biólogo teórico mais

importante da segunda metade do século XX, pode ser encontrada no livro

“Narrow Roads of Geneland”. 1996. Ed. Freeman, Oxford.

*** (traduzido pela EDUSP, SP).

Page 31: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

31

Glossário

Adaptação: uma característica ou atributo que confere maior aptidão inclusiva a

um indivíduo.

Alelo: uma das formas alternativas de um gene.

Altruísmo: comportamento de ajuda que aumenta a aptidão do “recipiente” (=

aquele que recebe a ajuda), enquanto diminui a do altruísta (aquele que pratica a

boa ação).

Aptidão: na abordagem clássica da seleção natural refere-se ao número de

descendentes diretos de um indivíduo. Numa abordagem ao nível dos genes

refere-se ao número de réplicas de um alelo (ou um grupo de alelos) na geração

seguinte.

Aptidão direta: genes contribuídos por um indivíduo para a geração seguinte,

obtidos através da reprodução do indivíduo.

Aptidão inclusiva: o somatório da aptidão direta e indireta de um indivíduo (ou

das réplicas de seus genes).

Aptidão indireta: genes contribuídos por um indivíduo para a geração seguinte

obtidos através da ajuda a indivíduos aparentados, e cuja sobrevivência e

reprodução seriam impossíveis sem a referida ajuda.

Diplóide: portador de dois conjuntos de genes (um originário do pai e outro da

mãe). Organismos diplóides produzem gametas (espermatozóides ou óvulos)

haplóides.

Egoísmo: comportamento que aumenta a aptidão inclusiva de um indivíduo em

decorrência da diminuição da aptidão inclusiva de outros indivíduos.

Endocruzamento: cruzamento entre indivíduos aparentados.

Especiação: processo de formação de novas espécies.

Page 32: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

32

Espécie: unidade básica da classificação biológica dos seres vivos. Dois

organismos podem ser considerados da mesma espécie quando (desde que

sexualmente maduros e de sexos opostos) podem cruzar-se e produzir uma prole

fértil em condições naturais.

Etologia: nome pelo qual ficou conhecido o estudo do comportamento animal nos

anos sessenta e setenta; também conhecido como o estudo das causas próximas

do comportamento.

Eusocial: nome dado a uma forma de organização social que envolve (1)

cooperação entre indivíduos nos cuidados com os jovens; (2) divisão de trabalho

em castas reprodutivas e não reprodutivas e (3) sobreposição de gerações.

Evolução: em termos gerais refere-se às mudanças graduais nos organismos; em

termos genéticos refere-se às alterações nas freqüências gênicas das populações

de uma espécie ao longo de sucessivas gerações.

Fenótipo: qualquer atributo ou característica mensurável de um indivíduo, que se

expressa devido à interação dos seus genes e do ambiente (físico ou biológico) no

qual se desenvolveu.

Genótipo: conjunto (ou subconjunto) dos genes de um indivíduo.

Haplodiploidia: sistema de determinação dos sexos das vespas, formigas e

abelhas onde os machos são haplóides (originam-se de ovos não fertilizados) e as

fêmeas diplóides (originam-se de ovos fertilizados).

Haplóide: portador de um único conjunto de genes (ver diplóide).

Meiose: as duas divisões sucessivas do núcleo que precedem a formação dos

gametas.

Mutação: alteração na forma de um gene, mais freqüentemente, um erro na

replicação do DNA cromossômico.

Patrimônio gênico: conjunto de genes de uma população.

População: conjunto de indivíduos de uma mesma espécie, que vivem num

mesmo local e ao mesmo tempo.

Seleção de grupo: processo de seleção que ocorre entre grupos de indivíduos.

Seleção de parentesco: nome utilizado por Maynard Smith para designar o que

atualmente se entende como seleção indireta. Wilson (1975), entretanto, coloca a

Page 33: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

33

seleção de parentesco como um tipo de seleção de grupo, o tem lhe valido muitas

críticas por parte de outros pensadores importantes.

Seleção indireta: processo que ocorre quando indivíduos diferem em sua

capacidade de ajudar indivíduos aparentados (excluindo-se os descendentes

diretos) e/ou com réplicas de seus genes, a sobreviver e a reproduzir-se.

Seleção natural: processo que ocorre quando indivíduos diferem na sua

capacidade de produzir descendentes, em virtude de suas características

herdadas. Também chamada seleção direta.

Sociobiologia: uma disciplina que usa a abordagem evolutiva no estudo do

comportamento social.

Page 34: A Abordagem Evolutiva No Estudo Do Comportamento Animal e Humano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]

Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL

34