a África fantasma

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UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina CFH - Centro de Filosofia e Ciências Humanas - Dept. de Antropologia ANT7202: Introdução à Etnografia Semestre: 2011/1 Professor: Vânia Z. Cardoso - [email protected] Acadêmico: Jefferson Virgílio - [email protected] Créditos: 4 16 de junho, 2011 Resenha: A África fantasma Michel Leiris O relato de Leiris possui características bastante singulares e favoráveis a organização da informação coletada durante as expedições. Possui algumas características de diário de viagem (a utilização de datas, a objetividade, relatos curtos e sucintos, etc) e algumas características etnográficas (as descrições e comparações de eventos, locais, pessoas e hábitos). O uso de datas torna o descrito em algo que remete a um diário de viagem, é interessante ao leitor pois permite um acompanhamento e uma percepção temporais dos relatos. A objetividade e a utilização de relatos curtos é válida (mas nem sempre presente), e importante, do contrário o livro de quase 700 páginas necessitaria de pelo menos outras 7000 páginas. As descrições pseudo-etnográficas são brevemente detalhistas e sofrem de um mal desgostoso: são interrompidas, algumas dão a impressão de estarem até mesmo incompletas. Determinadas informações descritas são pouco necessárias à mensagem e poderiam ser descartadas, a obra tende a ganhar valor artístico com a inserção das mesmas e perder valor etnográfico. Por fim, o autor ainda encontra espaço para o implante de fantasias e sonhos em alguns de seus relatos. Leiris é adepto de descrições curtas, diretas e objetivas. Em determinadas passagens as descrições são pouco contextualizadas, aparentemente recortadas e selecionadas, podendo (da maneira como estão organizadas e expostas) até mesmo confundir o leitor e/ou distrair este do relato propriamente dito, poderia-se até mesmo afirmar que beira (ou se afunda) no surrealismo. Ora descreve o evento observado, ora transporta o raciocínio para algo fora da linha de lógica óbvia. Inicia por exemplo um relato sobre o hábito de combater a febre com inserções anais de pimenta e termina o relato comentando sobre a utilização de proibição de importação de álcool em dados pontos africanos como forma de combate ao alcoolismo. A conexão entre os dois momentos, seria interessante, válida e bem-vinda, mas é inexistente, resumida a um “também nos

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Resenha simples do livro A África Fantasma de Michel Leiris.

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Page 1: A África Fantasma

UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina CFH - Centro de Filosofia e Ciências Humanas - Dept. de Antropologia ANT7202: Introdução à Etnografia Semestre: 2011/1 Professor: Vânia Z. Cardoso - [email protected] Acadêmico: Jefferson Virgílio - [email protected]

Créditos: 4 16 de junho, 2011

Resenha: A África fantasma

Michel Leiris

O relato de Leiris possui características bastante singulares e favoráveis a organização da

informação coletada durante as expedições. Possui algumas características de diário de viagem (a

utilização de datas, a objetividade, relatos curtos e sucintos, etc) e algumas características

etnográficas (as descrições e comparações de eventos, locais, pessoas e hábitos). O uso de datas

torna o descrito em algo que remete a um diário de viagem, é interessante ao leitor pois permite

um acompanhamento e uma percepção temporais dos relatos. A objetividade e a utilização de

relatos curtos é válida (mas nem sempre presente), e importante, do contrário o livro de quase

700 páginas necessitaria de pelo menos outras 7000 páginas. As descrições pseudo-etnográficas

são brevemente detalhistas e sofrem de um mal desgostoso: são interrompidas, algumas dão a

impressão de estarem até mesmo incompletas. Determinadas informações descritas são pouco

necessárias à mensagem e poderiam ser descartadas, a obra tende a ganhar valor artístico com a

inserção das mesmas e perder valor etnográfico. Por fim, o autor ainda encontra espaço para o

implante de fantasias e sonhos em alguns de seus relatos.

Leiris é adepto de descrições curtas, diretas e objetivas. Em determinadas passagens as

descrições são pouco contextualizadas, aparentemente recortadas e selecionadas, podendo (da

maneira como estão organizadas e expostas) até mesmo confundir o leitor e/ou distrair este do

relato propriamente dito, poderia-se até mesmo afirmar que beira (ou se afunda) no surrealismo.

Ora descreve o evento observado, ora transporta o raciocínio para algo fora da linha de lógica

óbvia. Inicia por exemplo um relato sobre o hábito de combater a febre com inserções anais de

pimenta e termina o relato comentando sobre a utilização de proibição de importação de álcool

em dados pontos africanos como forma de combate ao alcoolismo. A conexão entre os dois

momentos, seria interessante, válida e bem-vinda, mas é inexistente, resumida a um “também nos

Page 2: A África Fantasma

disse” (LEIRIS, p. 61, 2007). O autor realiza tal atitude em uma quantidade considerável de

relatos, em alguns destes a leitura se transforma em algo desagrádavel aqueles que não são

adeptos de tal desencontro pois remetem a ‘trechos de texto arremessados ao vento’ que possuem

o mesmo problema supra-citado: é praticamente um desafio contextualizar citações tão

desconexas. É um texto descritivo e etnográfico, o mínimo de coerência entre os parágrafos não

deveria ser considerado como problema.

Leiris também utiliza o recurso comparativo como facilitador de demonstrar o observado

perante o imaginado: “Las Palmas: esplêndida miséria hispano-mediterrânea que por vezes

lembra a Alexandria ou o Pireu. Os habitantes tem quase todo o tipo espanhol. Pouquíssimos tem

o tipo berbere.”. É evidente o desejo de tornar próximo, reconhecível e familiar ao possível leitor

(europeu, em teoria) o que está sendo observado e descrito.

Por fim, fica claro que o objetivo do autor com este relato foi pura e simplesmente a

demonstração do real, do verdadeiro. Não há novas teses ou teorias sendo apresentadas, não há

pontos a serem defendidos, se não outro que a preocupação em descrever o observado como este

o é. O autor vive e demonstra a extrema dificuldade que está incrustada na tentativa de traduzir e

transcrever a experiência observada e vivida de modo realmente sincero, real e sem distorções ou

espectativas anteriores impostas como realidade.

REFERÊNCIAS BRUMANA, Fernando Giobellina. Resenhas. In: Revista Caderno de Campo USP. Vol. 17, 2008. LEIRIS, Michel. A África fantasma. Trad. André Pinto Pacheco, apresentação Fernanda Arêas Peixoto. São Paulo: CosacNaify, 2007. ROCHA, Marcele; VAL, Cecília do. Uma viagem iniciática à África. Disponível em <http://www.cosacnaify.com.br/releases/a_africa_fantasma.pdf>. Acesso em 16 de junho de 2011. SOBRAL, Luís Felipe. O pensamento selvagem de Michel Leiris. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002008000300013> Acesso em 16 de junho de 2011.