a batalha pela memória
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Análise da memória dos militares sobre o movimento de 64, com base na Coleção História Oral do Exército.TRANSCRIPT
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Universidade Federal de So Carlos
Centro de Educao e Cincias Humanas Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais
Departamento de Cincias Sociais
A Batalha pela Memria: Os Militares e o Golpe de 1964
Aline Prado Atassio
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Villa
Dissertao apresentada ao PPGCSo - DCSo da UFSCar para obteno do ttulo de mestre.
So Carlos, 2007
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Aline Prado Atassio
A Batalha pela Memria: Os Militares e o Golpe de 1964
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Cincias Sociais da
Universidade Federal de So Carlos para
obteno do ttulo de mestre.
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Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar
A862bp
Atassio, Aline Prado. A batalha pela memria : os militares e o golpe de 1964 / Aline Prado Atassio. -- So Carlos : UFSCar, 2009. 184 f. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2007. 1. Organizao militar (Foras armadas). 2. Militares. 3. Brasil - histria - revoluo, 1964. 4. Memria. I. Ttulo. CDD: 322.5 (20a)
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BANCA EXAMINADORA DA DISSERTAO DE MESTRADO DE
Prof. Dr. Marco Antonio Villa Orientador e Presidente
Universidade Federal de So CarlosIUFSCar
Prof. Dr. Piero de Camargo Leirner Universidade Federal de So CarloslUFSCar
Prof. Dr. Celso Corra Pinto de Castro Fundao Getlio Vargas (FGV)
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Dedico ao meu av Bernardo Prado (in memorian)
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Agradecimentos:
Muitas so as pessoas que contriburam de alguma forma para que eu realizasse esse
trabalho. Algumas estiveram presentes desde o principio, quando este projeto no passava de
vaga idia, outras vieram contribuir quando eu j escrevia a dissertao. Entretanto, todas
desempenharam papel fundamental.
Primeiramente agradeo meus pais, Lucia e Carlos e ao meu irmo Marcel, sem os
quais esta empreitada seria impraticvel. Carinho, compreenso, amor e muita pacincia....
impossvel definir tudo o que fizeram e me deram a fim de tornar minha jornada menos rdua.
Dizer obrigada aos amigos muito pouco; no existem palavras para expressar o quo
grata e feliz sou pela contribuio: Alexandre (Delega), Amanda, Dani (Farah e Petrilli),
Erika, Moacir, Ndia, tio Nelson, Netto, Reinaldo e Victor Hugo contriburam de forma
direta, seja dando suporte emocional imprescindvel, ou ainda desprendendo tempo para ler
e sugerir alteraes no trabalho.
Sou grata ao meu orientador, Marco Antonio Villa, no apenas pela orientao formal
- sempre solcito respondendo imediatamente meus e-mails e emprestando livros que de outra
forma seriam inacessveis, mas especialmente pelo estmulo e pacincia; banca agradeo a
presena e tambm a contribuio em minha formao nas Cincias Sociais, onde Piero
Leirner foi figura presente, pois meu professor desde o 1 ano de graduao, e Celso Castro,
pelas obras que tanto influenciaram meus estudos. Ao PPGCSo agradeo por me acolher e
permitir que um sonho se realizasse; a Larissa Granato agradeo pela correo gramatical.
Por fim agradeo Fapesp pelo apoio que possibilitou minha integral dedicao ao
trabalho.
So Carlos, fevereiro de 2007
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So conhecidas as artimanhas da memria. Imersa no presente,
preocupada com o futuro, quando suscitada, a memria sempre
seletiva. Provocada, revela, mas tambm silencia. No raro,
arbitrria, oculta evidncias relevantes, e se compraz em alterar e
modificar acontecimentos e fatos cruciais. Acuada, dissimula,
manhosa, ou engana, traioeira. No se trata de afirmar que h
memrias autnticas ou mentirosas. s vezes, certo, possvel
flagrar um propsito consciente de falsificar o passado, mas mesmo
neste caso, o exerccio no perde o valor porque a falsificao pode
oferecer interessantes pistas de compreenso do narrador, de sua
trajetria e do objeto recordado. Por outro lado, e mais freqente,
embora querendo ser sincera, a memria, de modo solerte, ou
inconsciente, desliza, se faz e se refaz em virtude de novas
interpelaes, ou inquietaes e vivncias, novos achados e ngulos de
abordagem1
1 Reis, Daniel Aaro. Ditadura e Sociedade: As Reconstrues da Memria. In: 1964-2004. 40 anos do golpe. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p.119.
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Resumo
Esta dissertao busca realizar uma anlise da memria dos militares
sobre o golpe de 1964, tendo como objeto a publicao editada pela Biblioteca do
Exrcito Editora, em 2003, Coleo Histria Oral do Exrcito. 1964: 31 de
Maro O Movimento Revolucionrio e sua Histria. A relevncia deste
trabalho est no fato de conferir oportunidade aos vencidos na batalha pela
memria de expor as motivaes e os desejos que os levaram a participar do
golpe militar.
Atravs desta anlise, conclumos que os militares, enquanto grupo social,
procuraram, atravs das entrevistas, legitimar a interveno da qual fizeram parte,
alm de garantir o lugar da memria institucional sobre o evento, em resposta s
verses predominantes na literatura sobre o tema.
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Sumrio: Introduo................................................................................................................... 8
A Coleo Histria Oral do Exrcito 1964: 31 de maro O Movimento
Revolucionrio e sua Histria...........................................................................11
A literatura........................................................................................................14
Metodologia: Histria Oral e Estudos da Memria..........................................17
Captulo I
Participao do Exrcito na Poltica Nacional: A Construo do Imaginrio
Militar..............................................................................................................................22
Ia-Guerra do Paraguai, Abolio e Repblica......................................................23
Ib-Novos atores, novos cenrios, novas reivindicaes.......................................33
Captulo II
Memrias Sobre os Antecedentes do Golpe: O Governo Joo Goulart.....................47
Captulo III
Os Militares Avanam: O Golpe de 1964 ........................................................................89
IIIa - Apoio ao Golpe: EUA, Classe Mdia, Igreja e Mdia....................................120
Captulo IV
Olhares sobre o tempo: Avaliaes Castrenses Sobre o Perodo Militar.................... 133
IVa- Governo Castello Branco......................................................................................135 IVb- Governo Costa e Silva..........................................................................................140 IVc- Governo Mdici....................................................................................................146 IVd- Governo Geisel.....................................................................................................150 IVe-Governo Figueiredo...............................................................................................154 IVf- As Arbitrariedades do Perodo Militar: Memrias sobre a Represso.................158 Concluso.....................................................................................................................170 Bibliografia..................................................................................................................180
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Introduo
A histria no um simples quadro de
acontecimentos; mais, o verbo feito livro.
Machado de Assis
Esta dissertao produto de uma inquietao que surgiu com a leitura de
memrias militares para um trabalho anterior, onde pude notar que os militares
procuravam construir uma histria prpria da instituio militar, em especial do
Exrcito, - Fora na qual concentram-se meus estudos negando ou
desacreditando a literatura sobre diversos temas, em especial sobre as
intervenes militares na vida pblica nacional.
Em 2003 a Bibliex (Biblioteca do Exrcito Editora), dando continuidade
ao Projeto Histria Oral do Exrcito2, publicou uma Coleo denominada 1964:
31 de Maro. O Movimento Revolucionrio e sua Histria, onde os militares
contavam sob suas ticas a histria do golpe de Estado responsvel por mergulhar
o Brasil em mais de 20 anos de ditadura militar. Com a leitura do primeiro
volume, pude constatar que as narrativas repetiam-se, apresentando uma
singularidade incomum, se levarmos em conta que cada depoente ocupava uma
patente distinta, da mesma forma que servia em regio militar diferente dos
colegas entrevistados, sugerindo que, mais do que mostrar a viso daqueles que
de alguma forma participaram do movimento de 1964, a inteno da Coleo era
responder s inmeras publicaes sobre o perodo militar escritas por civis, alm
de produzir a histria oficial do Exrcito sobre os ocorridos, o que fica explcito
na apresentao Coleo, escrita pelo seu coordenador geral, general Aricildes
de Moraes Motta. Desta forma, foi-me sugerida pelo prof. Dr. Joo Roberto
Martins Filho a utilizao desta Coleo como objeto de estudo para o mestrado,
que iniciaria no ano de 2005, oportunidade que vislumbrei como nica, dado que
por ser muito recente, no havia ainda estudos sobre a referida publicao da
Bibliex3.
2 A primeira coleo editada pela Bibliex aquela em que o objeto a rotina da FEB Segunda Guerra sob a tica dos pracinhas. Intitulada Segunda Guerra Mundial, a coleo conta com 182 entrevistas distribudas em 8 tomos. 3 Uma resenha sobre esta Coleo foi publicada em janeiro de 2005 por Amanda Pinheiro Mancuso na Revista Teoria & Pesquisa no 46, publicao do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da UFSCar.
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O interesse fundamental deste estudo foi de captar, atravs de relatos
individuais, o grupo, a sociedade de que o indivduo faz parte e representa;
buscar encontrar a coletividade a partir do indivduo4 e desta forma,
compreender o imaginrio militar5, a memria dos oficiais do Exrcito respeito
do golpe, bem como as divises existentes no campo simblico de uma mesma
corporao, o que essencial para encontrar respostas s decises tomadas pelos
militares nos anos 60.
A hiptese principal deste trabalho a de que, valendo-se das memrias,
os militares buscaram legitimar a interveno poltica da qual foram
protagonistas. Por isso, no raro seus depoimentos buscaram construir uma
histria favorvel ao golpe, adaptando os fatos, as premissas e as concluses.
Acredito ainda que as dissonncias, as contradies, os conflitos e as
divergncias entre as narrativas dos militares sintetizam o delicado momento no
qual as Foras Armadas estavam inseridas, quando da deposio de Goulart. A
tomada de poder teria sido resultado do processo de anomia que estava instalado
nas Foras Armadas. Desde os anos 30, as Foras Armadas enfrentavam o
crescimento de tenses internas relativas s posies polticas de seus membros,
que se acirraram no governo Joo Goulart. Entretanto, a ameaa de guerra civil,
expressa na quebra da hierarquia militar por ocasio da revolta dos marinheiros6,
acabou por reforar momentaneamente a unidade militar, o que possibilitou o
golpe de 1964.
Levanto, ainda, hipteses subsidirias segundo as quais os militares
resolveram assumir o poder devido descrena na eficcia da associao entre
democracia poltica e desenvolvimento econmico. Sendo assim, o perodo de
governo militar seria visto por eles como um necessrio momento de diminuio
da soberania popular em prol do desenvolvimento econmico nacional, mas,
supostamente, no significaria desapreo dos militares pela democracia.
Metodologicamente, a opo foi pela pesquisa bibliogrfica, pois dado o
exguo tempo e a abundncia de material, no haveria como realizar novas
4 Queiroz, Maria Isaura Pereira de. Relatos orais: do indizvel ao dizvel. IN: Cincia e Cultura. So Paulo: maro/1987, p.278. 5 Neste trabalho imaginrio compreendido como o conjunto de signos, smbolos, idias, mitos e cones resultantes de discursos e prticas sociais. Imaginao um dos modos pelos quais a conscincia apreende o mundo e o elabora, sendo que ela dispe de diferentes graus de imagem sua disposio (Durand. In: Sintoni, 1999). 6 Ver Silva, Hlio. Golpe ou Contragolpe . Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1975.
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entrevistas. Primeiramente, realizei uma anlise objetiva do processo histrico,
uma vez que a memria no deve ser utilizada como fonte nica, pois no
fornece bases empricas suficientes para levantar inferncias; deve ser sempre
completa do material coletado de outra maneira7. Como forma de abarcar a
ampla realidade estudada, utilizei documentos, livros de historiografia e anlise
histrica, o que conferiu novas dimenses e maior profundidade pesquisa.
Passada esta primeira fase, iniciei a leitura de todas as entrevistas e a anlise
deste material. A metodologia escolhida foi a da histria oral e a da memria,
sempre amparadas pelo respaldo terico da sociologia, poltica ou antropologia.
O primeiro captulo difere substancialmente do restante, pois nele que
fao um retrocesso histrico a fim de expor a formao do imaginrio militar
construdo desde a formao do Exrcito e responsvel pelas suas representaes
de mundo e suas conseqentes prticas sociais e polticas. Nos captulos
seguintes, a ateno se volta exclusivamente para os temas tratados na Coleo,
sendo que o segundo abarca o perodo do governo Goulart, o terceiro enfoca
especificamente o momento do golpe at a posse de Castello e o quarto preocupa-
se com as anlises dos militares sobre os governos do perodo 1964-1985.
Questes como represso, censura e tortura encontram-se neste captulo. O quinto
captulo a concluso, onde busco aprofundar as reflexes sobre as memrias.
Por sugesto de especialistas na rea8 e seguindo as normas da Associao
Brasileira de Normas Tcnicas (ABNT), utilizei a forma entre parnteses para me
referir citaes diretas, com o objetivo de facilitar a leitura do texto, evitando
que o leitor seja obrigado a recorrer s notas de rodap a cada citao. Contudo
quando a questo for referncias ou citaes indiretas a opo foi pela nota de
rodap, para equilibrar o texto e atalhar a procura da referncia por aqueles que
estiverem lendo o texto. Quando utilizar a palavra militares estarei, na
realidade, me referindo quela parcela composta por oficiais do Exrcito, pois so
maioria entre os depoentes da Coleo. A colocao da posio hierrquica do
entrevistado no momento do golpe foi colocada em todas as citaes. Todavia,
em alguns trechos no farei meno esta posio pois, principalmente anos que
antecedem o golpe, os entrevistados no declararam suas patentes. Por fim, optei
7 Queiroz, op.cit. p.278. 8 Foram consultadas bibliotecrias da Biblioteca Comunitria da Universidade Federal, cuja funo , entre outras, realizar a correo das referncias bibliogrficas de trabalho de alunos da referida universidade.
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por denominar o movimento de 1964 de golpe, acreditando ser esta a expresso
que melhor define o ocorrido no Brasil9, porm por vezes, a expresso
revoluo foi utilizada, por reproduzir a forma de dizer dos entrevistados.
A Coleo Histria Oral do Exrcito 1964: 31 de maro O Movimento
Revolucionrio e sua Histria
O assunto parecia esgotado; depois de muita discusso, alguns livros e
inmeros debates, acreditava-se que poucos eram os que ainda se preocupavam
em rememorar o perodo compreendido entre os anos de 1964 at 1985 -
conhecido entre os militares como os anos da revoluo - quando
surpreendentemente eles resolveram falar. E falaram bastante; expuseram todas
as suas indignaes, a saudades, as avaliaes e as verses sobre tantos fatos,
histrias e personagens. Os militares voltavam a cena em 2003 - um ano antes do
golpe completar seus 40 anos - com a publicao pela Biblioteca do Exrcito
Editora (Bibliex), de uma coleo composta por 14 volumes e 220 entrevistas10,
realizadas no perodo de 2000 a 2002.
Era uma resposta esquerda, oposio civil e principalmente, ao que
eles denominaram revanchismo. Era a oportunidade de mostrar a todos a verso
daqueles que participaram de alguma forma da revoluo, independente da
patente ou regio em que serviam quando o movimento eclodiu. Nas palavras do
prprio organizador da coleo, o que se pretendia era mostrar o outro lado da
colina11.
De leitura difcil, exaustiva, no apenas em funo da extenso da coleo
mas, sobretudo pela repetitividade das idias, as entrevistas mostraram-se
excelentes fontes para compreendermos a imagem que a instituio construiu
acerca do perodo militar brasileiro.
O objetivo da Coleo, colocado por seu coordenador geral tornar mais
conhecido o processo revolucionrio, especialmente pelas palavras daqueles que
9 Ver verbetes revoluo e golpe de Estado em Bobbio, Norbert. Dicionrio de Poltica. Braslia: UNB, 1993. 10 Entre os depoentes encontramos 25 generais-de-exrcito, 18 generais-de-diviso, 34 generais-de-brigada, 71 coronis, 23 tenentes-coronis, 3 majores, 3 capites, 2 primeiros-tenentes, 1 contra-almirante, 1 vice-almirante, 2 brigadeiros-do-ar, 2 majores-brigadeiroos-do ar, 1 tenente-brigadeiro-do-ar, 1 coronel-aviador e 1 tenente-coronel-aviador. Os civis depoentes foram 35, distribudos entre as profisses de jornalistas, professores, desembargadores, ministros, engenheiros e doutores. 11 Motta, Aricildes de Moraes (org). 1964: 31 de Maro. Rio de Janeiro: Bibliex, 2003
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agora ganharam oportunidade de expor suas motivaes, identificar seus
propsitos e narrar suas aes (MOTTA, 2003:9). A motivao primeira para
que tal coleo fosse realizada, segundo este general, ocorreu quando alguns
setores da sociedade civil, como a mdia, os intelectuais e os polticos, tornaram-
se insistentes falsificadores da verdade sobre os acontecidos na histria recente,
em especial ps anos 50, em nome de motivaes ideolgicas e da promoo do
que os militares chamam de revanchismo. Segundo o general Motta, nestes
setores da sociedade todos so cativos da ignorncia ou da m-f, no intuito de
impedir que as novas geraes possam pesquisar, estudar, ler e encontrar a
verdade. [...]. Pela palavra e pela pena, indisfaravelmente, reescrevem a histria,
falsificada a seu talante. E destacam-se neste mister, posto que utilizam artifcios
e tcnicas hbil e sutilmente preparados (idem, p.10). Assim, fazia-se
necessrio, aos olhos das Foras Armadas, dar oportunidade queles que
participaram direta ou indiretamente daquele perodo histrico, civis ou militares,
e encontravam-se no lado direito do espectro poltico, de expor suas histrias
sobre esses mesmos acontecimentos, para que os leitores tivessem assim
oportunidades de utilizarem suas prprias formas de avaliao e juzo dos fatos.
Ainda de acordo com a introduo do general Motta, foroso reconhecer que
os fatos devem ser analisados de forma justa, limpa e honesta, e que, ao menos,
se ofeream, aos jovens estudiosos, pesquisadores e interessados pelo
conhecimento desses episdios de nossa histria recente, as informaes
provenientes de todas as partes envolvidas (ibidem, p.10).
Os questionamentos sobre o procedimento metodolgico utilizado na realizao
das entrevistas que compem a Coleo so muitos e podemos comear citando a
escolha dos entrevistados e entrevistadores. No h dados concretos que nos
explique como e porqu foram estes os nomes escolhidos; o que nos colocado
nas consideraes metodolgicas da Coleo afirma que a colnia12 foi
formada por militares e civis que participaram do evento a ser estudado e a rede
foi baseada em parmetros estabelecidos pelos Coordenadores Regionais, com
base na Ordem de Servio nmero 015-SG3, da Secretaria Geral do Exrcito, de
12 Colnia: grupo de pessoas ligadas por traos comuns dentro da qual sero escolhidos os entrevistados. Essa parcela da colnia escolhida conhecida como Rede.
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29 de outubro de 1999 e no Plano Geral de Projetos, do Coordenador Geral, de 3
de janeiro de 200013.
Outra questo importante refere-se interao entrevistador-entrevistado.
Um dos maiores pecados daqueles que trabalham com entrevistas no resistir a
tentao de interferir incessantemente, de discordar da opinio do entrevistado e,
principalmente, de no conseguir ficar calado escutando o entrevistado14. Todos
esses erros foram cometidos pelos entrevistadores15, comprometendo de alguma
forma as respostas, pois exerciam precisa coero sobre os entrevistados a fim de
que eles encaixassem seus depoimentos naquilo que era considerado pelo
entrevistador como a verdade dos fatos. Em alguns momentos, a impresso a de
que a relao se invertia e no era o entrevistado quem tinha o que dizer e sim o
entrevistador, o esprito de aprendizado por parte do entrevistador da Coleo
parecia deixar de existir e este tomava a dianteira da entrevista, ditando os rumos
das respostas. Obviamente estes erros no esto presentes em todos os
depoimentos, h aqueles onde a interveno do entrevistador sutil, ficando
imperceptvel. Acredito que a principal varivel neste caso a intimidade do
entrevistador com o entrevistado pois quanto mais prximos aparentavam ser
mais interferncias ocorriam. Por outro lado, o fato das entrevistas terem sido
realizadas por militares contribuiu para que se estabelecesse um clima de
confiana e respeito mtuo; o conhecimento profunda das prticas e
terminologias tpicas dos militares, bem como o sentimento de grupo foram
outros fatores facilitadores das entrevistas. Por fim, devo ressaltar que a escolha
das questes obedeceu a critrios que atendiam os interesses das Foras Armadas
em defender a instituio, justificar a interveno e responder oposio16.
13 Motta, op.cit. Por diversas vezes busquei, atravs de e-mails, contato com os responsveis pela Coleo, com o objetivo de esclarecer quais eram os critrios, como foram definidos e por fim, pedi que liberassem o meu acesso referida Ordem de Servio, bem como ao Plano Geral de Projetos, no entanto, jamais obtive resposta. 14 Becker, Howard S. Mtodo de Pesquisa em Cincias Sociais. So Paulo: Hucitec, 1997. 15 Os entrevistadores foram: Joo Carlos Rotta (RS), Ilo Francisco Marques de Barros Barreto (PE), Geraldo Luiz Nery da Silva (RJ e MG), Trcio dos Santos Vieira (CE), Ivan Ferreira Neiva e Roosevelt Wilson SantAna (DF) e Jos Gustavo Petito (SP). In: Motta, op.cit. 16 A Coleo possui uma parte destinada descrio da metodologia utilizada que est presente logo aps a introduo em todos os tomos. Para mais informaes ver Motta, op.cit.
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A literatura
Como dito acima, a Coleo Histria Oral do Exrcito: 1964, 31 de
maro surgiu como resposta dos oficiais do Exrcito que infelizes com a nova
onde de publicaes de militantes de esquerda sobre suas experincias nos pores
da ditadura ou ainda com os trabalhos acadmicos sobre a poltica e a economia
dos perodos militares, que ento resolveram expor suas verses sobre esses
temas, numa tentativa de aplacar o revanchismo17 da esquerda. Desta maneira,
conclui ser por bem realizar uma breve reviso desta bibliografia a fim de que o
leitor conhea os principais interlocutores dos entrevistados e assim, compreenda
o tom das entrevistas realizadas pela Coleo.
A produo bibliogrfica sobre o regime militar extensa e variada;
encontramos relatos autobibliogrficos, romances biogrficos, entrevistas, dossis
e teses acadmicas que exploram sob vrios ngulos o perodo militar.
Tendo como tema as questes polticas que envolveram a queda de
Goulart, h o livro de R. Dreyfuss18, publicado em 1981, sob abordagem
estrutural onde a influncia norte-americana compreendida como definitiva para
o golpe de 1964, opinio que foi corroborada pela anlise de Moniz Bandeira19
alguns anos mais tarde. A queda de Jango tambm foi analisada sob outras
perspectivas por Argelina Figueiredo20 e por Wanderley Guilherme dos Santos21,
onde a influncia norte-americana foi relativizada e a incapacidade de Goulart ao
poder surgiu como fator principal no desencadear do retrocesso poltico nacional.
Mais recentemente, outros livros foram lanados na tentativa salutar de sanar
algumas lacunas histricas e biogrficas, dentre os quais encontramos as obras do
jornalista Elio Gaspari22 e do historiador Marco Antonio Villa23.
17 Para os militares o revanchismo seria a atitude de hostilidade daqueles que derrotados pelas armas tornaram-se vitoriosos na luta pela memria relativa ao movimento de 1964 derrotados pelas armas, so vitoriosos pela verso que destri os fatos [...]. Passarinho, Jarbas. A Desculpa dos Vencedores. In: Motta, op. cit. 18 Dreyfuss, Ren Armand. A conquista do Estado: ao poltica, poder e golpe de classe. Petrpolis: Vozes, 1981. 19 Bandeira, Luiz Alberto Moniz. O Governo Joo Goulart: as lutas sociais no Brasil: 1961-1964. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997. 20 Figueiredo, Argelina Cheibub. Democracia ou reformas: alternativas democrticas crise poltica (1961-1964). So Paulo: Paz e Terra, 1993. 21 Santos, Wanderley Guilherme. Sessenta e Quatro: anatomia da crise. So Paulo: Vrtice, 1986. 22 Gaspari, Elio. A ditadura Envergonhada. So Paulo: Cia das Letras, 2002a. 23 Villa, Marco Antonio. Jango: Um Perfil. So Paulo: Globo, 2003.
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Sobre o regime militar, existem publicaes nas diversas reas das
cincias humanas. Thomas Skidmore24 foi um dos primeiros historiadores a
escrever algo acerca dos primeiros governos militares, e foi seguido por Maria
Helena Moreira Alves25, Edmundo Campos Coelho26 e Ronaldo Costa Couto27.
Sobre a poltica externa do perodo ditatorial, temos o livro de Paulo Fagundes
Vizentini28 e posteriormente, livros que tratam de perodos especficos, como o
caso de Joo Roberto Martins Filho, Suzeley Mathias, Elizer Risso de Oliveira,
Alfred Stepan entre outros29. Uma outra modalidade de trabalho a entrevista -
foi inaugurada com o projeto do CPDOC, garantindo novos parmetros de
anlise. Tanto a trilogia A memria militar quanto o Dossi Geisel so marcos na
produo acadmica sobre o perodo militar.
Com relao aos temas menos caros aos militares represso e tortura, as
autobiografias, os romances e os dossis foram destaques. O primeiro relato foi
escrito por Renato Tapajs30 durante o perodo de distenso do governo Geisel, e
consistia em uma denncia das sevicias sofridas pelos presos polticos por rgos
de represso da ditadura. Inicialmente proibido pelo governo, o livro foi liberado
em 1979, mas dado o tom denso da narrativa no alcanou sucesso como o
conquistado por Fernando Gabeira31 , em 1979, que se tornou tema de filme
aclamado pelo pblico mais de uma dcada depois do livro ter sido publicado.
Em 1981, Frei Betto32 publicou sua verso sobre a morte do dirigente esquerdista
Carlos Marighela. Tambm o livro editado sob responsabilidade do Cardeal
Paulo Evaristo Arns,33 em 1985, bem como o de Jacob Gorender34, em 1987,
24 Skidmore, Thomas E. Brasil: De Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989 25 Alves, Maria Helena Moreira. Estado e oposio no Brasil (1964-1984). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1984. 26 Coelho, Edmundo Campos. Em busca da identidade: o exrcito e a poltica na sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Record, 1990. 27 Couto, Ronaldo Costa. Histria Indiscreta da ditadura e da abertura Brasil:1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1999. 28 Vizentini, Paulo Fagundes. A poltica externa do regime militar brasileiro. Porto Alegre: Edufrgs, 1998. 29 Martins Filho, Joo Roberto. O Palcio e a Caserna: a dinmica militar das crises polticas na ditadura (1964-1969). So Paulo: Edufscar, 1995; Mathias, Suzeley Kalil. Distenso no Brasil: o projeto militar (1973-1979). Capinas: Papirus, 1995; Oliveira, Elizer Rizzo de. De Geisel a Collor: Foras Armadas, transio e democracia. Capinas. Papirus, 1997; Stepan, Alfred. Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Couto, Ronaldo Costa. Histria Indiscreta da ditadura e da abertura Brasil:1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1999. 30 Tapajs, Renato. Em Cmara Lenta. So Paulo: Alfa-mega, 1977. 31 Gabeira, Fernando. O que isso companheiro? So Paulo, Cia das Letras, {1979}2001. 32 Frei Betto. Batismo de Sangue Os dominicanos e a morte de Carlos Marighela. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1981. 33 Arns, Paulo Evaristo. Brasil Nunca Mais. Petrpolis: Vozes, 1985 34 Gorender, Jacob. Combate nas Trevas. So Paulo: tica, 1985.
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seguiram o ritmo de Gabeira e alcanaram vendagens excepcionais para o
mercado literrio nacional.
Todavia, os militares no permaneceram no anonimato total; muitos
publicaram suas memrias ou mesmo livros com ambies histricas sobre o
golpe e o perodo militar. Em 1970 o Marechal Poppe de Figueiredo escreveu A
Revoluo de 1964: um depoimento para a histria ptria35, cujo subttulo revela
as pretenses do autor. Em seguida, 1976, foi a vez do Coronel Hernani
DAguiar36 comentar a revoluo por dentro, e do General Hugo de Abreu, em
1979. A publicao de entrevistas e de livros de memria como do general
Cordeiro de Farias37 e do General Mouro Filho38 so outros exemplos. Por fim,
no ano de 2006 foi publicado o bombstico livro de Sylvio Frota39, um dos
protagonistas mais ativos do perodo ditatorial.
Com relao s leituras de esquerda, nos anos 90 as publicaes
continuaram; os dossis de mortos e desaparecidos polticos40 ganharam
expressiva representatividade graas ao trabalho de familiares, ex-militantes de
esquerda e acadmicos. Desta forma, muitas outras foram as publicaes que
tinham como tema o calvrio vivido pelos opositores do regime militar41.
Entretanto, este no era o nico foco, fazia-se necessria uma reavaliao dos
anos militares e pensando nisso abundaram pesquisas universitrias sobre o tema.
No ano de 2002 Elio Gaspari iniciou a publicao de seus quatro livros sobre a
ditadura, onde esmia as questes internas do poder, a formao dos grupos
militares, a oposio e a luta armada, a represso, chegando at o processo de
abertura. De leitura agradvel capaz de prender o leitor, alm de crticos e
perspicazes, os livros de Gaspari foram sucessos e tornaram-se referncias nos
35 Editado pela APEC Editora S. A. 36 DAguiar, Hernani. A Revoluo por Dentro. Rio de Janeiro: Artenova, 1976. 37 Camargo, Aspsia & Ges, Walter de. Meio Sculo de Combate: Dilogo com Cordeiro de Farias.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 38 Mouro Filho, Olympio. Memrias A verdade de um revolucionrio. Rio de Janeiro: Record, 1993. 39 Frota, Sylvio. Ideais Trados. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. 40 Projeto Brasil: Nunca Mais. So Paulo: Arquidiocese de so Paulo, 1985, 6 tomos; Dossis dos mortos e desaparecidos polticos a partir de 1964. Preparado pela Comisso de Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos, Instituto de Estudos da Violncia do Estado (IEVE). Recife: Grupo Tortura Nunca Mais/ Companhia da Editora de Pernambuco/ Governo do Estado de Pernambuco, 1995; Mortos e Desaparecidos Polticos: Reparao ou Impunidade? Janaina Teles (org), so Paulo: Humanitas/ FFLCH/ USP, 2000. 41 Alguns destes livros foram: Caldas, lvaro. Tirando o Capuz. Rio de Janeiro: Codecri, 1981; Konder, Rodolfo. Cadeira para os mortos. So Paulo: Alfa-mega, 1977; Patarra, Judith. Iara. Reportagem biogrfica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992; Syrkis, Alfredo. Os Carbonrios. Memrias da guerrilha perdida. So Paulo: Global, 1980.
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estudos sobre o perodo militar. Essa exploso de publicaes suscitou o
sentimento corporativista dos militares que sentiram-se impelidos contra-
argumentar com estas bibliografias, de forma que a publicao da Coleo pela
Bibliex adquiriu aos olhos destes uma importncia crucial, pois garantiu que
viessem tona as palavras daqueles que foram compelidos a agir em favor da
sociedade ameaada, em conjuntura to delicada para nosso pas (MOTTA,
2003).
Metodologia: histria oral e os estudos da memria
Esta metodologia de pesquisa denominada histria oral possui uma trajetria no
muito diferente de outras tantas metodologias hoje utilizadas com prestigio. Nos
anos 50 a histria oral era marginalizada pelo meio acadmico, ficando sua
utilizao restrita a grupos particulares. Posteriormente, a histria oral passou a
ser vista como forma de compilar material para historiadores futuros, sem que
fossem realizadas reflexes terico-metodolgicas acerca do material colhido.
Uma nova gerao de estudiosos, notadamente de socilogos, cientistas polticos
e antroplogos, passou a dar mais ateno histria oral por entend-la como
uma forma eficaz de reconstruir a cultura popular, imergir dentro de grupos
fechados e pouco estudados como os militares, elites ou instituies e ainda para
dar voz aos povos sem histria, iletrados, que valoriza os vencidos, os marginais
e as diversas minorias, operrios, negros, mulheres42. No obstante este rpido
avano, fois em meados dos anos 70 que a histria oral progridiu e passou a ser
vista com respeito pelo meio acadmico43. Atualmente, a utilizao de histria
oral legitimada por conceituados acadmicos como Pierre Bourdieu, J. J.
Becker entre outros.
Se levarmos em conta que a histria sempre uma construo44, um
amlgama entre fato e representaes, entidades distintas mas s percebidas
como tal quando se encontram em conjunto, as representaes se utilizam dos
42 Joutard, Philippe. Histria ora: balano da metodologia e da produo nos ltimos 25 anos. In: Usos & abusos da histria oral/ Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira (orgs.). Rio de Janeiro: Fundao Getulio Vargas, 1998. 43 No Brasil, 1975 foi o ano de criao na Fundao Getlio Vargas do primeiro programa de histria oral cujo objetivo era colher depoimentos de lderes polticos desde 1920. Joutard, op.cit. 44 Usos & abusos da histria oral/ Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira (orgs.). Rio de Janeiro: Fundao Getulio Vargas, 1998.
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fatos e alegam que so fatos; os fatos so reconhecidos e organizados de acordo
com as representaes[..], afirmou Alessandro Portelli45, restaria-nos a pergunta:
onde seria a rea de atuao da histria oral? De acordo com o mesmo autor, seu
lugar seria no ponto de convergncia entre fato e representao, ou seja, na
subjetividade dos seres humanos. Desta forma, o que buscamos com a juno
entre histria oral e teorias sociolgicas nos leva a entender essa subjetividade
que por fim remete s representaes que os militares, enquanto grupo, realizam
do processo poltico em que estiveram, como indivduos e instituio, inseridos.
A histria oral nesta dissertao compreendida como uma metodologia
apta a suscitar questes, mas incapaz de respond-las, por no compreender
alguns comportamentos despertados entre os entrevistados, como a divergncia
sobre a real data de algum evento importante ou a supervalorizao de elementos
praticamente inexpressivos do ponto de vista histrico, dentre tantos outros que
so reveladores do indivduo ou grupo estudado. Para solucionar estas questes
que so oriundas da prtica, foi necessrio a utilizao de teorias que se
dedicaram a pensar os conceitos de memria e as relaes entre esta e a histria.
Como o trabalho foi realizado no mbito das Cincias Sociais, os tericos
escolhidos foram aqueles cujas reflexes embasam-se na teoria sociolgica, como
Maurice Halbwachs, Pierre Bourdieu, Pierre Nora e Michel Pollack, em
detrimento dos trabalhos que tratam da questo da memria no seio da filosofia,
como Henri Bergson ou mesmo da psicanaltica, como Sigmund Freud. Tambm
no entraremos nas questes biolgicas ou psicolgicas que abarcam os estudos
da memria; o foco deste trabalho a memria como objeto de estudo as
Cincias Sociais, como fator de identificao coletiva. Sendo assim, foram as
teorias sociolgicas que deram o subsdio necessrio para a compreenso das
questes advindas com a leitura das entrevistas.
O objetivo da dissertao no apenas resumir o pensamento dos
entrevistados, mas tambm problematizar as respostas, o porqu das formas como
a memria militar reproduz o golpe de 1964, gerando uma reflexo acerca da
memria do grupo estudado. Sendo assim, devo antes integrar o leitor na questo
dos estudos da memria. 45 Portelli, Alessandro. O Massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, poltica, luto e senso comum. In: Usos & abusos da histria oral/ Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira (orgs.). Rio de Janeiro: Fundao Getulio Vargas, 1998.
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Em todo o mundo, os movimentos destinados formao da memria
coletiva das naes, em especial aps a Revoluo Francesa, ganharam destaque
e permanecem at hoje presentes. No Brasil, a temtica da memria tem sido
difundida como forma de preservao do passado, demonstrando claramente a
preocupao de socilogos e historiadores com a manuteno das identidades
sociais. De incio compreendida como fenmeno individual, a memria passou, a
partir dos anos 1920, com a interveno de Maurice Halbwachs, que defendia um
novo entendimento para o fenmeno da memria, a ser compreendida como
coletiva e social, ou seja, construda socialmente e, portanto sujeita a
transformaes constantes.
A fim de atender o objetivo deste trabalho, faz-se imprescindvel definir
como a memria aqui compreendida. Assim, ela o resultante da vivncia
individual e da forma como se processa a interiorizao dos significados que
constituem a rede de significaes sociais46. Esta tambm um elemento
essencial daquilo que habitualmente chamamos de identidade, seja esta individual
ou coletiva, e cuja busca uma das atividades fundamentais dos indivduos e das
sociedades atuais.
Relativamente memria coletiva, foco de nossa ateno neste trabalho,
podemos defini-la como o que fica do passado no vivido dos grupos ou o que os
grupos fazem do passado 47. Este tipo de memria s existe enquanto uma
organizao a mantm ou reconstitui, de forma que consciente desse fato, muito
comum que os grupos lutem para preservar suas memrias, escrevendo-as,
celebrando-as e passando-as s geraes futuras, o que um dos principais
objetivos da Coleo aqui estudada.
A memria coletiva importante forma de luta social pelo poder. Aquilo
que se lembra ou que se faz questo de esquecer revela pouco a pouco a
identidade do grupo. Segundo Jacques Le Goff: Tornarem-se senhores da
memria e do esquecimento uma das grandes preocupaes das classes, grupos,
indivduos que dominam as sociedades histricas. Os esquecimentos e os
46 Montenegro, Antonio Torres. Histria Oral, caminhos e descaminhos. In: Revista Brasileira de Histria, ANPUHMarco Zero, vol13, no 25-26, setembro 92- agosto 93. 47 Halbwachs, Maurice. A memria coletiva. Sapo Paulo: Edies Vrtice, 1990.
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silncios da histria so reveladores desses mecanismos de manipulao da
memria coletiva48
A memria no apenas aquilo que se viveu, mas tambm o que se
aprendeu, de forma que a histria passada s geraes futuras possui importante
papel na formao da memria do grupo e do seu imaginrio.
Os estudos da memria49 garantem que a fala individual pode com
preciso revelar o grupo, o imaginrio coletivo construdo pela instituio e
sedimentado nos seus membros e ainda seus esquemas de percepo. Podemos,
desta forma, compreender o discurso como algo socialmente produzido, ainda
que o texto, ou seja, a forma como o depoente organiza sua fala, seja individual.
Isso contudo, no significa que o individuo no seja dotado de autonomia de
pensamento, afinal por ser racional ele pode sempre questionar aquilo que tentar
lhe passar, mas neste caso produziria um discurso de oposio, fato que
pouqussimas vezes e apenas em assuntos especficos foi observado nos
depoimentos. Evidentemente isso pode ter sido propositalmente desejado pelo
organizador da Coleo, dado que seu objetivo no era polemizar mais ainda
sobre o tema e sim escrever discursos homogneos capazes de adquirirem, pela
repetio, colorao de verdade o que pode ter sido alcanado atravs da
escolha dedo dos depoentes. Conhecendo a posio do entrevistado sobre o
tema pode o entrevistador prever suas respostas.
Os estudos da memria nos dizem ainda que esta sofre variaes em
funo do momento em que ela articulada e em que est sendo expressa: as
preocupaes do momento constituem um elemento de estruturao da memria,
afirmou Pollak (1992). No caso da Coleo, onde as entrevistas foram realizadas
por equipe do Exrcito, o grupo buscou firmar sua memria como constituinte
importante para a histria do perodo analisado, no apenas para os militares, mas
para a sociedade como um todo, em um momento onde poucas pessoas prestavam
ateno ao que pensavam os militares sobre 1964.
Uma das caractersticas fundantes da memria a seletividade. A
memria no registra tudo o que vivido, ouvido, visto; ela seleciona alguns
48 Le Goff, Jacques. Memria e Histria. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1996, p.426. 49 Neste ponto os estudos de memria e a anlise do discurso convergem em suas opinies. No obstante o referencial terico deste trabalho ser pautado nos estudos de memria, acreditamos que recorrer anlise do discurso nesta passagem especfica no comprometeria a anlise, ao contrrio, traria maior densidade ao trabalho.
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eventos, locais, pessoas e os guarda, condenando o restante ao esquecimento. O
ambiente social, a cultura, o inconsciente, a histria individual e coletiva so os
fatores responsveis pela determinao daquilo que seria guardado na memria,
de forma que sua anlise pode nos revelar em que medida tais fatores influenciam
na forma de relao estabelecida entre sujeito (individual ou coletivo) e
acontecimentos histricos vividos50.
Outra caracterstica importante a sua construo a posteriori, ou seja,
anos aps o acontecimento. A memria pode ser sobreposta ou transformada
involuntariamente em funo de acontecimentos posteriores, a fim de que
coincida com o que pensado anos mais tarde, ou ainda para justificar posies e
atitudes posteriores ao fato lembrado51. Todavia, isso no invalida sua utilizao;
quando utilizada em associao com outras fontes, essas construes podem
revelar muito do indivduo ou do grupo estudado.
So muitas outras as caractersticas da memria a flutuao, o enquadramento,
a reordenao voluntria ou no de alguns elementos - mas optei por no me
alongar demais na sua descrio e discorrer mais sobre este tema ao longo da
dissertao. Desta forma, passo ao primeiro captulo.
50 Montenegro, op.cit. 51 Becker, Jean-Jacques. O handicap do a posteriori. In: Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira (orgs.). Usos & Abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
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Captulo I Participao do Exrcito na Poltica Nacional: A Construo
do Imaginrio Militar
No basta mostrar a verdade, necessrio fazer com que o povo
a ame, necessrio apoderar-se da imaginao do povo.
Mirabeau52
O Exrcito foi muitas vezes ator principal de vrios movimentos polticos
no Brasil. Sua histria est ligada de maneira intrnseca histria do pas e, em
especial, histria da Repblica. Este captulo introdutrio tem por objetivo fazer
um breve resumo da histria do Exrcito brasileiro e a conseqente formao do
imaginrio militar, imprescindvel para a compreenso da memria dos militares,
objetivo maior desta dissertao. A viso que os membros da instituio possuem
desta e o processo de criao da imagem do Exrcito, inclusive da imagem
sedimentada dentro da instituio militar como sendo a salvaguarda nacional, o
representante legtimo do povo, sero aqui demonstrados como o grmen do
pensamento que, em 1964, culminou com o golpe militar.
A construo de um imaginrio parte intrnseca da legitimao de
algumas instituies como o Exrcito, que abrangem por completo a vida do
indivduo que dela faz parte, determinando seus hbitos, valores, vises de
mundo. Segundo Carvalho (1990), por meio do imaginrio que se podem
atingir no s a cabea, mas, de modo especial, o corao, isto , as aspiraes, os
medos e esperanas de um povo. nele que as sociedades definem suas
identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente
e futuro. A definio utilizada por Carvalho perfeitamente cabvel instituio
militar, ao grupo social que estes representam. Atravs da construo do
imaginrio, as instituies constroem tambm parcela do esprito militar 53 de
seus membros. Nesta dissertao, a opo foi pela utilizao do termo esprito
militar ao invs de identidade, por entender este conceito expressa de forma
52 Citado em Carvalho, Jos Murilo de. A Formao das Almas. O imaginrio da Repblica no Brasil.
So Paulo: Cia das Letras, 1990.p.11. 53 A construo da identidade social do militar, ou seja, do esprito militar, pode ser resumido como a resultante do processo de socializao profissional [vivido pelo cadete] durante o qual deve aprender valores, atitudes e comportamento apropriados vida militar. Castro, Celso. O Esprito Militar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. A identidade militar tambm foi estudada sob outro vis por Leirner. Ver: Leirner, Piero de Camargo. Meia-Volta, volver. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas Editora, 1997.
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mais acertada o que procuro definir. Alm disso, o esprito militar um
conceito amplamente utilizado pela literatura, e sua adoo evitou maiores
discusses tericas acerca do conceito de identidade, algo que no estava na
alada deste trabalho.
Sendo assim, este imaginrio, desenvolvido por anos dentro do Exrcito
e disseminado entre seus membros que pretendo expor, sucintamente, aqui neste
primeiro captulo.
A metodologia deste captulo foi necessariamente diferenciada da
utilizada em todo o restante do trabalho, j que nos apoiamos apenas na
historiografia. A importncia do captulo est em conferir acesso aos esquemas de
percepo de uma categoria diferenciada, com sistemas prprios de classificao
e organizao do mundo e, conseqentemente, da atividade poltica. Conceitos
como repblica, nacionalismo e democracia adquirem sentido totalmente diverso
do abordado pelos civis, contudo, esto citados em todas as entrevistas aqui
utilizadas e so usados, muitas vezes, como justificativa para o golpe. Sem
conhecermos este mundo particular dos militares, jamais conseguiremos
compreender seus motivos para a interveno poltica de 1964, e todas suas
explicaes nos parecero apenas desculpas para a tomada de poder e a
implementao de uma ditadura, seguindo a tendncia que se vivia na Amrica
Latina no perodo. Nosso objetivo no defender a viso dos militares, qualific-
la como certa ou no, queremos apenas mostrar com preciso como eles
coletivamente vem a histria da qual participaram.
Guerra do Paraguai, Abolio, Repblica
Quando falamos sobre a formao da identidade ou do esprito do
Exrcito, imprescindvel mencionar a Guerra do Paraguai. Este episdio, que se
estendeu de dezembro de 1864 a maro de 1870, foi conseqncia do processo de
construo dos Estados nacionais da regio do Rio da Prata, e exps a fragilidade
estrutural militar do Brasil, que no contava com armamento ou efetivo suficiente
para travar uma guerra, decorrncia no s da falta de profissionalismo e de
cuidado do governo para com a instituio, mas tambm da negatividade de que a
profisso era dotada. Neste perodo, o servio militar era extremamente mal
visto, sendo o Exrcito composto por indivduos considerados margem da
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sociedade. As pssimas condies de vida nos quartis contribuam para ampliar
ainda mais a viso negativa que a elite possua desta instituio.
Devido insuficincia de homens no Exrcito, o governo monrquico optou pela
utilizao da Guarda Nacional na guerra. Todavia, apesar de ter um efetivo maior
que o do Exrcito, a Guarda Nacional no desempenhava funo militar, mas sim
parapolicial, estando os seus homens despreparados para a guerra. Alm disso,
possua em seus efetivos membros da nobreza que relutavam em ir guerra. O
governo se viu, ento, obrigado a criar um sistema capaz de arregimentar
soldados para o Exrcito e, desta forma, surgiram os Voluntrios da Ptria,
programa de recrutamento destinado principalmente s classes baixas que se
alistavam devido os benefcios financeiros concedidos pelo governo. Isto fez com
que a maior parte dos soldados brasileiros no Paraguai fosse proveniente das
regies menos favorecidas do pas, o Norte e o Nordeste. Muitos escravos foram
enviados no lugar de seus proprietrios em troca da alforria, o que era permitido
por lei, assim como o recrutamento compulsrio.
Aps o surto de alistamentos do primeiro momento quando a populao
percebeu que a guerra duraria mais tempo que o previsto - o governo viu-se
novamente as voltas com a falta de homens para combate. O Imprio decidiu
comprar escravos para servirem como soldados e os latifundirios, mesmo a
contragosto, aceitaram as ofertas da Coroa. Desta forma, os negros passaram a ser
cada vez mais presentes no Exrcito, o que no significa que a presena de
escravos fosse bem vista pelos chefes militares. O preconceito existia e era forte
dentro da instituio militar. Freqentemente, o efetivo negro era acusado de mau
desempenho militar, causado principalmente pela falta de disciplina e pelos
hbitos dos ex-escravos, tidos como bbados e baderneiros.
A guerra foi marcada pela brutalidade e pelas discrdias entre a cpula
militar e o governo imperial. Aps o final da Guerra, foi crescente a dissociao
entre o Exrcito e a monarquia, a ponto de, em 1889, ele ser o instrumento dos
republicanos para dar o golpe de Estado que deps D. Pedro II e criou a
Repblica brasileira (DORATIOTO, 2002, p. 484).
Durante a Guerra do Paraguai, os estudantes militares no participaram
das atividades polticas, pois a Escola Militar havia permanecido fechada.
Contudo, aps o trmino da guerra e o retorno s atividades acadmicas, os
problemas voltaram a rondar os militares: salrios insuficientes, promoes
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demoradas, pssimas condies de vida e ausncia de penses para as vivas e os
invlidos de guerra. Esses eram os aspectos que mobilizavam com fora maior os
militares mais antigos, conhecidos por tarimbeiros. Todavia, uma pequena,
porm expressiva parcela da juventude militar, na dcada de 1870, despertou para
poltica e passou a fazer forte oposio ao regime escravocrata e monarquia.
Consideravam que era o momento ideal para mobilizar os militares em defesa de
suas reivindicaes.
Parte do Exrcito, principalmente os generais, por estarem na instituio
h tempos, era dotado do sentimento de fidelidade ao imperador e por isso
avessas s agitaes republicanas, o que tornou a causa extremamente impopular
entre os tarimbeiros, mas muito difundida entre a mocidade militar. J o
abolicionismo conseguiu a adeso de maior nmero de oficiais, que acreditavam
que o pas precisava seguir o exemplo dos pases europeus e modernizar-se,
sendo que, para tanto, era necessria a utilizao de mo-de-obra livre e, se
possvel, do imigrante branco. A ineficincia econmica do trabalho servil, muito
mais do que qualquer outra questo, foi fator fundamental para o apoio dos
militares abolio.
Aps 1850, o Exrcito vinha sofrendo um processo de burocratizao e
profissionalizao. As promoes deixaram de ocorrer atravs de indicaes
polticas e pessoais; a ascenso ao oficialato daria-se segundo mrito profissional.
Dentro deste quadro, a Escola Militar ganhou destaque como reduto do saber
cientfico e da meritocracia. Contudo, criou-se uma diviso entre os militares
tarimbeiros, aqueles que no cursaram Escola Militar, normalmente mais velhos e
que haviam participado da Guerra do Paraguai, e os que cursaram, conhecidos
como cientificistas. Segundo Castro (1995), a gestao do movimento que
desencadeou a queda do regime monrquico e a proclamao da Repblica, tem
origem neste pequeno extrato dentro do grupo militar, chamado por este de
mocidade militar, que era composta por jovens com menos de 30 anos, em sua
maioria vindos do norte do pas, que haviam estudado na Escola Militar da Praia
Vermelha e no haviam participado da Guerra do Paraguai.
A identidade militar deste perodo foi construda com base no
cientificismo e no mrito profissional. Somado a isto, temos a doutrina positivista
e o evolucionismo.Esses elementos so de importncia vital e iro acompanhar a
histria do Exrcito por longo perodo, como veremos adiante. O positivismo,
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ainda de acordo com Castro (1995), no era doutrina hegemnica entre os
professores da Escola Militar, mas era muito disseminado entre os alunos. A
doutrina ingressou no Exrcito atravs de Benjamim Constant e pregava a
evoluo da humanidade atravs da lei dos trs estgios: o primeiro estgio seria
o teolgico, o segundo, o metafsico e o terceiro, o positivo54. No ltimo estgio
os homens passariam a compreender as leis que regem o universo, e o
conhecimento destas leis possibilitaria a previso do futuro. O desenvolvimento
tcnico possibilitado pelo estado positivo levaria o homem explorao e
dominao da natureza, o que Comte chamou de regime industrial. Outro ponto
da doutrina positivista o da reforma das instituies, que seria feita pela nova
elite cientfica e industrial, e seria efetivada atravs de uma reforma intelectual
dos homens.
O positivismo era tido como uma forma de emancipao mental, de
evoluo natural do pensamento humano, que seria acompanhado pela evoluo
poltica. O fascnio que esta doutrina exerceu sobre os alunos da Escola Militar
deveu-se primeiramente, importncia que a doutrina delegava matemtica e s
cincias em geral. Em segundo lugar, pela oposio tenaz ao esprito legista
encarnado idealmente pelos bacharis em direito caractersticos do estgio
metafsico a ser superado. Terceiro, pelo lugar de destaque reservado nova elite
cientfica no estgio positivo que se avizinhava (Castro, 1995, p.67).
O progresso era sem dvida um dos postulados principais da filosofia
comtiana, seguido da crena de que as cincias seriam as melhores orientadoras
da vida social. Desta forma, a teoria de que os movimentos polticos que agitaram
o Exrcito aps o trmino da Guerra do Paraguai no seriam reflexos dos ideais
de classe mdia ganha respaldo: o Exrcito era, desde ento, uma instituio com
valores prprios e que j se via como agente poltico capaz de modificar a ordem
social; e a Escola Militar era um lugar de modernidade em meio a uma sociedade
que teimava em se manter tradicional.
A Questo Militar55 foi um evento importante que muito contribuiu
para que os militares se sentissem como uma classe; foi a mola propulsora que
levou os militares a ao poltica propriamente dita. Em rpidas linhas podemos
54 Carvalho, op.cit. 55 Para mais informaes ver Castro, Celso. Os Militares e a Repblica: Um Estudo Sobre Cultura e
Ao Poltica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
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dizer que a Questo Militar iniciou-se com a punio de um oficial por haver se
pronunciado politicamente atravs de um rgo de imprensa, o que era proibido
por um aviso promulgado em 1859 e que ainda estava vigorando, e desdobrou-se
em vrias outras questes, transformando-se em questo de classe quando, pela
primeira vez, o esprito militar se sobreps s questes polticas e os militares se
colocavam como grupo de oposio ao governo. Marechal Deodoro, aps o
perodo de resistncia, toma a dianteira do problema e passa a ser o intrprete dos
oficiais ressentidos. Contudo, apesar da grande importncia dessa questo, que
explicitava o desentendimento entre governo civil e militares e o
descontentamento destes com o regime monrquico, essa classe militar sempre
foi minoritria dentro da instituio, como mostra este trecho de artigo de jornal:
A essa reunio compareceram os oficiais alunos, em nmero de 180, pouco
mais ou menos. Apenas 3 oficiais superiores sem comando de foras l foram.
Eis a verdade. O Marechal Deodoro bem viu com quem podia contar e
seguramente conheceu por uma ou outra adeso particular feita em sua casa,
que os generais, os comandantes e muitos dos que hoje o idolatram, lhe
faltaram (Corra, 1939. In: Castro, 1995, p.95).
A Questo Militar terminou quando o governo cedeu e atendeu o que
era requerido pelos militares, que passaram a ter o direito a livre expresso de
idias. Essa bem sucedida interveno dos militares na poltica serviu para
encoraj-los em suas aes, fazendo com que a partir de ento, outras bandeiras
polticas fossem levantadas com mais fora e poder.
Concomitantemente Questo Militar, havia entre os jovens estudantes um
movimento favorvel abolio. importante lembrar que pouca ligao h
entre esse apoio e o fato dos brasileiros haverem lutado junto aos negros na
Guerra do Paraguai, at porque os militares mobilizados no faziam parte dos
tarimbeiros, mas sim dos cientficos, da mocidade e estes no haviam participado
do referido episdio. Alm disso, havia um desconforto entre os que serviram no
Paraguai e at um movimento de censura incorporao dos negros ao Exrcito.
Seguindo os ideais positivistas, estes jovens pregavam o fim da escravido em
prol do desenvolvimento econmico e industrial do pas. Com a presena da mo-
de-obra escrava ficava invivel o crescimento industrial, pois esta no
possibilitava a criao de um centro consumidor e, desta forma, travava a
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economia do Brasil que, neste perodo, era baseada no cultivo e exportao do
caf. Foi o positivismo o grande responsvel pela adeso dos militares s causas
abolicionistas e no os ideais democrticos ou humanitrios. Havia, entretanto,
diferentemente do que ocorrera com a luta pela Repblica, militares tarimbeiros
simpticos abolio, como o caso de Marechal Deodoro, que declarou que a
fora armada tinha a obrigao de ser abolicionista (Castro, 1995, p.129).
Alm disso, o fim da escravido significava a conquista de uma batalha que
estava inserida numa guerra maior do que a mocidade militar desejava travar: a
queda da monarquia.
Entretanto, a forma pela qual a abolio foi feita acabou por criar um
problema para os militares, que se viram ento diante de uma populao de
libertos e populares que apoiavam o regime monrquico como se houvesse entre
eles uma dvida de gratido para com a princesa Isabel e a Coroa.
Com mais uma batalha vencida, o Exrcito ganhava fora e conhecia seu
poder dentro do quadro poltico. A insatisfao dos militares crescia e fez com
que os jovens estudantes se unissem e passassem a conspirar em prol da
repblica. A criao do Clube Militar56 aconteceu neste momento, quando os
militares sentiam-se margem da sociedade, rebaixados como categoria e como
cidado e pretendiam reunir nesta organizao os membros do Exrcito e da
Marinha, com a finalidade de discutir seus direitos e lutar, dentro da legalidade,
pelas posies que mereciam dentro da sociedade, concorrendo inclusive com as
demais classes no governo do pas.
importante atentarmos para o fato de que, apesar da organizao do
Clube ter partido de oficiais inferiores que desejavam maior politizao dos
militares, os oficiais superiores discordavam de seus subalternos neste ponto por
desejarem uma agremiao que se mantivesse dentro da legalidade. O apelo
legalidade, disciplina e hierarquia, como podemos notar, sempre foi utilizado
no Exrcito como tentativa de conter os levantes e as rebelies e ser repetido em
1964, gerando inclusive dois grupos opositores dentro da prpria corporao: os
legalistas e os duros.
56 O Clube Militar ser muito atuante nos anos de 1950 e incio de 1960, durante as conspiraes golpistas que culminaram com o movimento de 1964. O Clube teve sua ao poltica extinta, paradoxalmente, com o advento da ditadura que ele contribuiu para implantar.
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Desta forma, apesar do sentimento de descontentamento que
acompanhava os militares da gerao da guerra , como o defasado soldo ou a
demora nas promoes, foram os estudantes da Escola Militar que se rebelaram
contra o regime. Tambm necessrio dizer que o movimento no se iniciou nos
altos escales, alis, recebeu a pouco apoio, na figura de Benjamim Constant e,
em menor medida, de Marechal Deodoro. A maioria dos oficiais superiores era
monarquista e s aderiu ao republicanismo quando o regime j estava instaurado.
Definitivamente, o elemento que iniciou e deu movimento conspirao
favorvel Repblica dentro do Exrcito foi a mocidade militar, chamada
pejorativamente pelos militares tarimbeiros por bacharis de farda, devido
grande afinidade que tinham com as cincias e as letras, em detrimento do
treinamento militar. Segundo Castro, a juventude militar era republicana e, por
diversas vezes cantaria ou tentaria cantar o hino revolucionrio francs (Castro,
1995. p.79).
A Repblica era vista como uma forma cientfica de governo e, portanto, a
melhor e a nica condizente com o progresso e o desenvolvimento que os
militares cientficos almejavam. A questo republicana ganhava novo carter, em
comparao com a abolicionista, devido fora que o sprit de corps havia ganho
com o decorrer dos anos aps a Guerra do Paraguai e, especialmente, aps a
Questo Militar.
A juventude militar creditava a si a misso de contribuir com a sociedade
civil e, conseqentemente, com a poltica, devido aos seus conhecimentos
cientficos, e no ao militarismo, muitas vezes negado pela nova gerao de
militares, que almejavam a paz. No havia definido entre eles o tipo de repblica
a ser adotado, alis, este um assunto que parece no ter preocupado os
bacharis de farda; o que realmente desejavam era a queda da monarquia e o
estabelecimento da Repblica. Nas palavras de um aluno do perodo, no somos
partidrios emperrados do frreo regime militar; julgamo-lo mesmo decadente e
entendemos que ele ceder o seu lugar pacfica atividade da indstria nas
civilizaes mais adiantadas (Araripe, In: Castro, 1995, p. 141). Vemos aqui o
incio do sentimento de vanguardismo que surgiu em meio a um pequeno grupo e
disseminou-se com o passar dos anos, estando presente tanto nos discursos
militares de 1889 quanto nos de 1964. Sobre o pensamento da mocidade militar
em relao poltica, Castro (1995, p.142) afirma: H que se destacar a certeza
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absoluta de que os ideais democrticos dos republicanos so cientficos frmula
admiravelmente resumida na afirmao Forma-se um democrata como se faz um
gemetra.
Chegamos neste momento a importante ponto da histria militar do Brasil:
o surgimento da democracia como valor que habitar, de agora em diante, o
imaginrio militar. Devemos atentar para o fato de que democracia para os
militares possua - e ainda possui - significado amplamente diferente do utilizado
pela Cincia Poltica e do difundido na sociedade. Para os militares, a democracia
seria um regime poltico que prezaria pelo interesse coletivo e pelas liberdades;
contudo apenas aqueles considerados competentes poderiam assumir funes
sociais57. Democracia, para os militares, significa liberdade com
responsabilidade. De acordo com marechal Poppe Figueiredo (1970, p.16), o
essencial de uma democracia, sua caracterstica mais marcante a participao
popular. Essa participao, porm, deve ser contida caso signifique ameaa
ordem pblica. Nas palavras do general-de-diviso Francisco Batista Torres de
Melo democracia no quer dizer anarquia. Democracia o regime do
cumprimento da lei (MOTTA, 2003, t.9, p.68). Em suma, a democracia
defendida pelos militares resume-se representativa, aos moldes
schumpeterianos58, jamais aproximada da democracia social defendida pela
esquerda.
A liberdade foi e ainda - tambm um valor relativo para os militares;
ela deveria ser cerceada pela disciplina e por valores morais. Alm disso, a
liberdade poderia ser suprimida se estiver comprometendo o bom funcionamento
da sociedade, gerando badernas, subverso da ordem ou se for uma ameaa ao
status quo. Desta forma, esses valores perduraram no imaginrio militar e foram
co-responsveis por aes como o prprio golpe militar de 1964 e o fatdico Ato
Institucional nmero 5.
Importante notarmos o fortalecimento do sentimento de nao dentro do
Exrcito, que surgiu com a campanha abolicionista e se tornou uma grande
bandeira da instituio em toda sua histria. At ento, o Exrcito imaginava-se
como defensor da Coroa e no de um povo. Com as transformaes sociais, o
57 A democracia defendida pelos militares encaixa-se em alguns pontos com o que a Cincia Poltica denominou de Teorias das Elites. Ver: BOBBIO, Norberto et alii (orgs.) Dicionrio de poltica. Braslia: Ed. UnB, 1993. 58 Ver: Schumpeter, J. A. Capitalismo Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
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crescimento populacional e econmico, a presena dos libertos e dos imigrantes e
o aparecimento daquilo que viria a se transformar na classe mdia, o servilismo
ao Imperador cede lugar aos interesses, classistas ou da sociedade como um todo.
A Repblica surgiria, assim, como uma nova sociedade, mais independente e
racionalizada, aberta ao progresso e industrializao.
Os militares, todavia, no constituam o nico grupo favorvel queda do
regime. So Paulo, provncia que crescia rapidamente e ganhava importncia
poltica, via o descontentamento dos latifundirios aumentar dia aps dia, seja
pela falta de atitude do governo perante o problema dos libertos, seja no que
concerne questo do imigrante. A agravante causada pelo afastamento de D.
Pedro II, em um primeiro momento, e a efetiva mudana de chefe de Estado,
agora Princesa Isabel e Conde DEu, foram fundamentais para que os
conservadores fazendeiros assumissem o risco to temido da desordem que a
Repblica poderia causar, tudo isso com o objetivo de alcanar as reformas
pretendidas. So Paulo era a nica provncia com partido republicano forte desde
antes da abolio e agora, decretado o fim da escravido, passava a contar com o
apoio da provncia do Rio de Janeiro.
Alm dos militares, uma parcela significativa da elite como advogados,
mdicos e jornalistas liderava o movimento republicano carioca. No Rio Grande
havia uma pequena, mas ativa organizao pr-repblica e esta contava com o
apoio do contingente militar que era o segundo maior do perodo, perdendo em
nmeros apenas para a capital59. Ainda assim, no possuam os republicanos
fora ou vontade suficientes para derrubar a monarquia. A ao teve que partir do
Exrcito, mas como nos afirma Schulz (1994, p.139): Embora a fora que
derrubou o Imprio fosse constituda exclusivamente por soldados, a imprensa e
elementos da elite haviam criado um clima adequado sem o qual no poderia ter
ocorrido a interveno militar.
Os civis passaram a apoiar a repblica efetivamente, s depois do golpe
dado. De acordo com Castro:
Republicanos civis freqentemente apoiaram os militares em suas questes
contra o governo. Apesar disso, uma aproximao efetiva s se deu tardiamente
59 Schulz, John. O Exrcito na Poltica: Origens da Interveno Militar. So Paulo: Edusp, 1994.
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[...]. O golpe foi militar em sua organizao e execuo. Polticos republicanos
civis tiveram um papel importante na organizao do novo regime; no antes
(1995, p.176).
Desta forma, os bacharis da poltica se uniram aos bacharis de farda.
Todavia, havia ainda muitos militares avessos Repblica e partidrios do
regime monrquico, diferentemente do que acredita o senso-comum. Devemos
lembrar que o golpe republicano foi dado por apenas uma parcela do Exrcito,
no pela instituio toda, e teve na populao pouco apoio. O envolvimento
tardio dos civis nas questes republicanas gerou entre os militares o sentimento
de responsabilidade perante a Repblica, sentimento este que ser difundido no
imaginrio militar com o apoio da historiografia que muitas vezes ir diminuir o
j pequeno papel dos civis, principalmente aps a proclamao da Repblica. A
conseqncia desta viso que colocou o Exrcito em posio herica foi a de que
os militares passaram a ter grande apreo a esse tipo de governo com o qual
colaboraram para a implantao e contriburam sobremaneira, segundo eles
prprios, em sua consolidao. Sentem-se, em grande medida, guardies da
Repblica e de todos os seus valores. Em 1964, com argumento de defesa desta
mesma Repblica pela qual eles haviam lutado, em nome da ordem e do
progresso, intensificaram-se as conspiraes contra o governo e uniram-se os
militares de mais alta patente pela defesa da repblica liberal e contra a ameaa
da repblica sindicalista, ameaa esta que, segundo os atores polticos principais
do momento, era real e fundamentada na poltica praticada at ento pelo
presidente de Joo Goulart.
Aps a proclamao e a unio dos militares aos civis, comeou um
processo de dissociao dos membros dentro da prpria mocidade militar. A falta
de consenso sobre as formas que deveria adquirir a Repblica gerou estes rachas.
As indelveis diferenas entre os militares tarimbeiros e a mocidade tambm
marcou os primeiros anos da Repblica, gerando caos e conflitos que terminaram
com a unio de uma elite de civis a fim de retirar os militares da cena poltica, o
que foi conseguido com a eleio de Prudente de Moraes.
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Novo Cenrio, Novos Atores, Novas Reivindicaes
Aps o fracasso do governo militar na primeira dcada do regime
republicano, os militares s voltaram ao cenrio poltico em meados de 1920,
com o tenentismo. O Exrcito havia passado por uma reforma que buscou torn-
lo menos bacharelesco e mais profissionalizante. Aqueles que haviam feito parte
da mocidade militar perderam seus espaos para a nova gerao de oficiais, no
menos radicais do que os da gerao de 1889.
Logo no incio da dcada de 20, um grupo de tenentes, descontentes com
o atraso econmico e social do pas, uniu-se a fim de interferir nos rumos da
poltica deste. Em um primeiro momento, conhecido como rebelde60, o
tenentismo no passou de um movimento que se ateve a atacar jurdica e
politicamente as oligarquias, sem definies polticas e ideolgicas precisas, mas
j militarista e dotado do embrio do autoritarismo que despontaria fortemente no
imaginrio da instituio em um futuro prximo. Segundo Fausto(s/d, p.58), os
tenentes se identificavam como responsveis pela salvao nacional, guardies
da pureza das instituies republicanas, em nome do povo inerme Contudo, o
movimento tenentista era tido pela dissidncia poltica como uma fora de
reserva a ser utilizada eventualmente e sem vnculos permanentes. O tenentismo
no estabeleceu vnculos com massas rurais e possua carter elitista, por no
acreditar na capacidade popular para eleger seus representantes.
Dentro do movimento tenentista surgiu uma dissidncia chamada por
Domingos Neto de grupo reformador. Esse grupo era constitudo por oficiais
menos radicais e adeptos aos valores da corporao, como a hierarquia e a
disciplina; compreendiam a necessidade da unio e da coeso das Foras
Armadas, do sprit de corps. Diferentemente do grupo liderado por Prestes, este
possua projetos para o desenvolvimento do pas e do Exrcito, e comeou sua
luta pela reformulao da imagem que a instituio possua perante a sociedade.
Foi esse o grupo que, em 1930, aceitou unir-se aos lderes polticos de oposio
ao governo e que conseguiu colocar em prtica os projetos concernentes s
instituies e ao pas. Os reformadores pregavam a maior unio dos Estados,
criticando severamente o que acreditavam ser uma excessiva autonomia destes, a
60 Ver: Fausto, Boris. A Revoluo de 1930. So Paulo, Brasiliense, s/d
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maior uniformizao das instituies, atravs da reviso constitucional, e o
equilbrio entre os trs poderes61. Entre os reformadores encontramos nomes
expressivos como Juarez Tvora e Ges Monteiro.
No me aterei explicao do movimento como um todo, pois h uma
extensa bibliografia para tal62; demos nfase aos aspectos ideolgicos dos
tenentes, especialmente do grupo reformador, pois encontramos neste o incio de
um tipo de pensamento que perdurar at o perodo militar e ser levado a cabo
com o advento da ditadura. O ideal nacionalista, que teve incio na dcada de
1880, foi retomado pelo tenentismo e ganhou fora aps os anos 30, sendo
incontestavelmente um dos pilares ideolgicos das Foras Armadas nas dcadas
de 50 a 70. O nacional-desenvolvimentismo e a industrializao foram tambm
bandeiras iniciadas pelo referido movimento e sero adotados, de maneiras
distintas, durante o perodo militar, assim como a mudana de ensino, menos
acadmica e mais tcnica, pretendida pelos tenentes e efetivada no governo dos
generais, com o advento do Senai, Senac, Sesi. Assim, podemos ver como as
estruturas de pensamento presentes nos militares golpistas de 1964 j estavam
sendo gestadas por estes mesmos militares na dcada de 1930.
Em 1930, ano eleitoral, a poltica do caf com leite, na qual Minas Gerais
e So Paulo intercalavam seus candidatos na presidncia foi derrubada com o
apoio de Washington Luiz e Jlio Prestes, candidato paulista. O Rio Grande do
Sul, j cansado de permanecer alheio poltica nacional, lanou Getlio Vargas
como candidato presidncia, com o apoio de Minas Gerais. Contudo, as
eleies aconteceram e Jlio Prestes foi o vencedor. Devido s recorrentes
fraudes nas eleies, Vargas lanou um manifesto denunciando a ilegalidade na
vitria de Prestes. Jovens oposicionistas radicais da Aliana Liberal uniram-se ao
poltico gacho e passaram a conspirar em prol de uma rebelio armada, com a
participao do Exrcito, que teve nos tenentes os maiores entusiastas da
mudana poltica. Posteriormente, militares mais graduados aderiram a Vargas,
alegando que Washington Luiz estava afastado dos interesses populares.
61 Fausto, op.cit. 62 Ver: Carone, Edgard. A Primeira Repblica (1889-1930). Rio de Janeiro, Diefel, 1973; Fausto, op.cit.; Forjaz, Maria Ceclia Spina. Tenentismo e Poltica Tenentismo e Camadas Medias Urbanas na Crise da Primeira Repblica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; Santa Rosa, Virglio. O que foi o tenentismo? Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1963; Santa Rosa, Virgilio. 1905 O Sentido do Tenentismo. So Paulo, Alfa-mega, 1976.
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A coalizo militar foi marcada pelo carter nacionalista e semi-autoritrio.
Os tenentes que participaram da revoluo de 1930 desejavam a modernizao
das instituies polticas, contudo, no acreditavam na soluo democrtica para
atingir as modificaes sociais e econmicas pretendidas. Devemos lembrar que a
democracia no era um valor desprezado por todos os componentes da
instituio; apenas parte dos militares - os tenentes - no dava crdito
democracia como forma de alcanar mais justia social. O chefe do movimento
militar, todavia, no foi um tenente, mas sim o Coronel Ges Monteiro. Os
militares superiores haviam aderido conspirao por estarem ressentidos com os
governos civis, que jamais atendiam as reivindicaes do Exrcito, apesar de
sempre precisarem do seu apoio para manter-se no poder.
No dia 24 de outubro, os generais Tasso Fragoso e Mena Barreto
movimentaram-se a fim de destituir Washington Luiz da presidncia. Foi
formada uma junta militar que governou o pas por dez dias, antes de entregar o
poder a Vargas. Segundo Fragoso, os militares haviam decidido intervir
movidos pelo desejo de que os brasileiros no continuassem derramando seu
sangue pela vitria de uma causa que no era a da sua conscincia nacional (In:
SKIDMORE, 1982, p.25). O Exrcito assumiu, assim o papel de rbitro final na
poltica, papel que desempenhar por muito tempo ainda.
Durante os primeiros anos do governo Vargas, os tenentes conseguiram
impor sua influncia nas decises presidenciais. Eles esperavam surgir com muita
fora dentro do governo, contudo, com o passar do tempo, foram perdendo sua
influncia e s permaneceu dentro da estrutura do Estado os moderados, como
Juarez Tvora.
Durante a Revoluo Constitucionalista de 1932, o Exrcito manteve-se,
em sua maioria, fiel a Vargas. Os tenentes desejavam que o presidente fosse
mantido no poder por tempo indefinido, pois temiam que a volta das eleies
trouxessem as antigas elites ao poder novamente. Com a derrota de So Paulo na
Revoluo de 32, Vargas ganhava maior fora dentro do Exrcito, e o apoio ao
seu nome era quase um consenso.
A descrena no meio militar com relao viabilidade de uma poltica
aberta tomava conta do imaginrio da corporao. A ascenso da esquerda, em
meados da dcada de 30, e da direita, com o integralismo, alm da propaganda
anticomunista realizada pelo Estado, trouxe a questo da subverso para primeiro
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plano nas discusses polticas dentro do Exrcito, que passava no momento pela
tentativa de restabelecer a disciplina e a unidade que haviam sido minadas pelas
revoltas da dcada de 20, a revoluo de 30 e de 32, e no viam com bons olhos
uma nova disputa por poder. O desejo dos militares era o continusmo, que
garantiria um governo centralizado e totalitrio. A proximidade das eleies que
tirariam Vargas do poder fez com que militares superiores, principalmente os que
se encontravam dentro do governo, conspirassem a fim de um golpe que
mantivesse Vargas na presidncia. O contexto internacional favorecia as
tendncias autoritrias, tanto de esquerda quanto de direita, e apesar do exagero
na percepo da ameaa comunista, segundo Castro, essa no Brasil no era
apenas uma fantasmagoria: havia inteno real dos comunistas de chegar ao
poder por meios revolucionrios (2002, p.50).
Foi neste tenso clima poltico que, em novembro de 1935, surgiram nas
guarnies de Natal, Recife e Rio de Janeiro, vrias revoltas, apelidadas
pejorativamente de Intentona Comunista63. Liderado por Lus Carlos Prestes, o
movimento foi reprimido pelas tropas governistas, mas o saldo foi arrasador, com
vrios mortos e feridos. A suposta morte de soldados por companheiros de farda
enquanto dormiam, hoje em dia questionada pela historiografia, acirrou o
combate ao comunismo, transformando-o em inimigo visceral das Foras
Armadas. A imagem do comunista como traidor da ptria a servio de Moscou
foi cristalizada e manteve-se no imaginrio militar daqueles que conspiraram
contra Goulart e seu poder em 1964. A vitria da Intentona Comunista foi muito
comemorada pelo Exrcito, caindo em desuso aps o fim do regime militar64
A descoberta de um documento que propunha uma revoluo comunista,
chamado de Plano Cohen, foi o estopim para o golpe de Vargas. Hoje, sabe-se
que este documento foi forjado pelos militares integralistas com o intuito de
acelerar as decises de Vargas e garantir o apoio popular ao golpe de Estado.
interessante notarmos a participao neste episdio de Olmpio Mouro Filho, na
poca o capito que se responsabilizou pela entrega do documento a Ges
Monteiro. Este mesmo militar ir, em 1964, adiantar-se s negociaes da cpula
militar chefiada por Castello Branco e iniciar o movimento militar de 64, j com 63 Para mais informaes sobre a Intentona Comunista ver: Vianna, Marly de Almeida Gomes. Revolucionrios de 1935: sonho e realidade. So Paulo: USP, 1990 64 Para a inveno desta tradio ver: Castro, Celso. A Inveno do Exrcito Brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
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a patente de general. Com o discurso da subverso da ordem e da ameaa
bolchevista, o qual ser repetidamente utilizado pelos militares para justificar
suas interferncias na poltica nos anos posteriores, os golpistas angariaram o
apoio das classes mdias. Em 10 de novembro de 1937, tropas do Exrcito
fecharam o Congresso e uma nova Constituio foi aprovada, garantindo ao
presidente mais seis anos de poder. Os oficiais superiores do Exrcito
justificavam a reviravolta totalitria baseados em que a livre competio poltica
entrara em falncia, tornando-se mesmo perigosa para a unidade e a segurana
nacionais (SKIDMORE, 1982, p.51).
A idia de um autoritarismo temporrio, que serviria apenas como
instrumento para alcanar o desenvolvimento econmico do pas foi reforada
neste momento e estaria presente no imaginrio dos militares a partir de ento.
Este autoritarismo, inclusive, seria o aclamado em 64 com a idia da interveno
cirrgica, que acabou se estendendo por mais de 20 anos. Com o advento do
Estado Novo os ideais de nacionalismo econmico e bem-estar social seriam
perseguidos, porm, sob tutela autoritria. A criao da ESG e os estudos ali
efetuados apontavam desde ento a direo que iriam marchar os militares com o
intuito de desenvolver economicamente o pas. Essa articulao entre
nacionalismo e economia foi presena garantida no imaginrio militar e ditou a
poltica econmica dos anos seguintes ao golpe de 64.
O grupo hegemnico de militares que compunham o poder em 1932 teve
consolidadas suas posies em 1937. imprescindvel compreendermos que o
Exrcito no incitava seus membros a participarem individualmente da poltica.
Essa, alis, era a atitude combatida. O que a cpula militar desejava era o apoio
da corporao como um todo, para que fosse desenvolvida uma poltica do
Exrcito, o que seria muito diferente de transformar o Exrcito em centro de
disputa poltica que inevitavelmente abalaria sua coeso e possivelmente seus
pilares de sustentao: a hierarquia e a disciplina65. Esses dois valores esto
intrinsecamente ligados, afinal a hierarquia vista como o meio, enquanto a
disciplina, o fim. 65 A hierarquia neste trabalho compreendida como fato social total na vida dos militares; um valor que une os indivduos da corporao, no obstante ser um princpio segmentador. Organizacionalmente, a hierarquia possui a funo de garantir eficincia no corpo de combate. O livro de Leirner imprescindvel para a compreenso da hierarquia na constituio da identidade militar e foi usado como fonte para a definio deste conceito nesta dissertao. Ver: Leirner, Piero de Camargo. Meia volta, volver: um estudo antropolgico sobre a hierarquia militar. Rio de Janeiro: FGV, 1997.
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No plano simblico, os anos 30 significaram mudanas na mentalidade
militar66, implementadas principalmente por Jos Pessoa, comandante da Escola
Militar do Realengo a partir de 1931. Em seu discursos de posse, o novo
comandante deixou marcada as diretrizes que ditariam a educao dos novos
militares de ento e, por conseguinte, o imaginrio militar do perodo:
O Exrcito, como instituio democrtica por excelncia, como verdadeira
ossatura da nacionalidade , por sua natureza, a instituio que primeiro e mais
rapidamente se deve recompor, tanto verdade que a integridade da Ptria, mais
que a do regime, repousa em sua eficincia (In: CASTRO, 2002, p.39).
Esse mesmo comandante realizou, tambm nos anos 30, profundas
mudanas que grandes reflexos tiveram na educao militar, pois defendia a
criao de mentalidades homogneas, um novo estado psicolgico, que
eliminassem os personalismos e as distines polticas dentro do Exrcito67. A
viso do Exrcito como smbolo da unidade, firmeza e estabilidade do pas
tambm ganhou vulto neste perodo. Essas novas diretrizes agiram no plano
simblico, inserindo nos cadetes maior sentimento de pertencimento ao grupo e
influenciou a mentalidade militar daqueles, alunos, tenentes ou capites em 30,
tornaram-se os generais de 64.
Politicamente, inegvel a importncia das Foras Armadas no momento
da implantao do Estado Novo e, posteriormente, na manuteno do poder de
Vargas, que