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A cidadania alternativa... - Alves A cidadania alternativa e a constituição da luta das juventudes: uma experiência de pesquisa d.o.i. 10.13115/2236-1499.2015v1n1p126 Adjair Alves 1 Resumo: Definindo-se como uma filosofia da não-violência, o hip-hop se afirma como um processo de luta encampada pelo jovem negro do gueto, em defesa do direito à diferença cultural, e a distribuição econômica. Essas diferenças culturais estão presentes no contexto social urbano, não deixando de expressar um discurso contestatório, com certa agressividade que é confundida por muitos, como estímulo à violência. Com o presente artigo empreendemos uma discursão sobre a participação juvenil na luta por uma cidadania alternativa. Jovens negros inseridos em movimentos de cultura de rua como são definida por eles mesmos as atividades desenvolvidas no cenário do hip-hop. Nosso ponto de partida é a experiências dos jovens em uma comunidade pobre da periferia de Caruaru- Pernambuco, mas nosso ponto de chegada e a luta de todo jovem de periferia urbana no Brasil e sua luta por tornar efetivas as demandas por uma cidadania. Palavras Chave: Juvens. Cultura. Cidadania. Movimento. Abstract Being defined as a philosophy of nonviolence, the hip-hop is affirmed as a process of struggle taken over by young black of the ghetto, in defense of the right to the cultural difference, and the economic distribution. These cultural differences are present in the urban social context, without letting of express a contestatory 1 Filósofo e Antropólogo. Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco, Líder de Grupo de pesquisa com registro no CNPq - (ARGILEA - Antropologia, Religiosidade, Gênero, Interculturalidade, Linguagens e Educação Ambiental), atuando como pesquisador, nos temas: (Mudança Social, Religiosidade no meio Urbano e Rural, Gênero, Etnicidade, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável). CV: http://lattes.cnpq.br/1871456580669507 Revista Diálogos – N.° 1 4 – Ago./Set. 2015 126

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A cidadania alternativa... - Alves

A cidadania alternativa e a constituição da luta das juventudes: uma experiência de pesquisa

d.o.i. 10.13115/2236-1499.2015v1n1p126 Adjair Alves 1

Resumo: Definindo-se como uma filosofia da não-violência, o hip-hop se afirma como um processo de luta encampada pelo jovem negro do gueto, em defesa do direito à diferença cultural, e a distribuição econômica. Essas diferenças culturais estão presentes no contexto social urbano, não deixando de expressar um discurso contestatório, com certa agressividade que é confundida por muitos, como estímulo à violência. Com o presente artigo empreendemos uma discursão sobre a participação juvenil na luta por uma cidadania alternativa. Jovens negros inseridos em movimentos de cultura de rua como são definida por eles mesmos as atividades desenvolvidas no cenário do hip-hop. Nosso ponto de partida é a experiências dos jovens em uma comunidade pobre da periferia de Caruaru- Pernambuco, mas nosso ponto de chegada e a luta de todo jovem de periferia urbana no Brasil e sua luta por tornar efetivas as demandas por uma cidadania. Palavras Chave: Juvens. Cultura. Cidadania. Movimento. Abstract Being defined as a philosophy of nonviolence, the hip-hop is affirmed as a process of struggle taken over by young black of the ghetto, in defense of the right to the cultural difference, and the economic distribution. These cultural differences are present in the urban social context, without letting of express a contestatory 1 Filósofo e Antropólogo. Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco, Líder de Grupo de pesquisa com registro no CNPq - (ARGILEA - Antropologia, Religiosidade, Gênero, Interculturalidade, Linguagens e Educação Ambiental), atuando como pesquisador, nos temas: (Mudança Social, Religiosidade no meio Urbano e Rural, Gênero, Etnicidade, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável). CV: http://lattes.cnpq.br/1871456580669507

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speech, with some aggressiveness that is mistaken by many, as encouraging for violence. With the present article we undertake a discussion about the youth participation in the fight for an alternative citizenship. Young black inserted in street culture movements as they are defined by themselves as activities developed in the hip hop scene. Our starting point is the experiences of the young people in a poor community on the outskirts of Caruaru-Pernambuco, but our point of arrival and the battle of all young people of the urban outskirts of Brazil is their struggle to make effective the demands for a citizenship. Key-Work: Young. Culture. Citizenship. Movements.

1. Cultura e política: uma breve história do hip-hop.

O hip-hop é um movimento originário de uma época em que proliferam grandes discussões sobre direitos humanos e, na ordem dos fatos, os marginalizados nos guetos norte americanos se articulavam para fazer valer o espírito da luta social que se estabelece naquele contexto; a luta por reconhecimento. Sua trajetória inicial remonta os anos de 1960, Estados Unidos, 2 especificamente 1968 e encontra-se marcada por confrontos sociais que se dão no interior dos bairros nova-iorquinos do Harlem, época de maior efervescência das questões sociais, sobretudo, no campo das relações inter-raciais. 3 Esse período se destaca pelos embates sociais em defesa da cidadania e o surgimento de lideranças expressivas do movimento negro

2 Informações coletadas do site: <http://newhiphop.8m.com/about.html> (acessado em 05/12/2001). 3 Parte da crítica que os hoppers têm recebido, aqui, no Brasil, sobretudo quanto à questão cultural, deve-se ao fato de este movimento manter aspectos de suas origens americanas. Nesse caso, os hoppers são acusados de estarem a serviço da invasão cultural norte-americana. Crítica que consideramos improcedente, pois basta um olhar criterioso para percebermos o quanto de localismo o movimento apresenta; o que o faz está muito ligado a realidade social das periferias brasileiras.

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internacional, tais como: Martin Luther King, Malcom X e grupos como os “Panteras Negras”. São os Djs, Afrika Banbaataa, e Grand Master Flash, que inspirados em duas movimentações cíclicas da cultura negra no gueto, criam o termo hip-hop, que quer dizer qualquer coisa como "saltar", "andar" ou mesmo "pôr-se à milhas".

Com o termo objetivam sinalizar para um conjunto de manifestações artísticas e culturais construídas nos embates sociais juvenis a partir dos conflitos presentes no gueto.4 Uma delas, representada pela forma como se transmitia a cultura; outra, justamente na expressão da dança mais popular da época, ou seja, saltar (hop) movimentando os quadris (hip). A cultura constitui um instrumento de luta, pela afirmação social, numa sociedade que procura, por todos os meios, negar a identidade do povo submetido a um processo de homogeneização e dominação social. Reconhecer suas origens culturais constituía, por assim dizer, o primeiro ato para afirmação da identidade, como sujeitos históricos.

O hip-hop, desde sua nascente, a geração de Afrika Banbaataa, surge como expressão cultural de rua; uma forma de pacificação das guerras de gangues que assolavam o bairro nova-iorquino e o bairro negro do Bronx. As condições sociais e econômicas dos guetos americanos, como nas periferias de todo o mundo, ensejavam um processo de reprodução das disputas sociais pela dominação do espaço público urbano, território onde se realizam as trocas sociais, levando a conflitos de natureza física, entre grupos de jovens, rivais. Uma “apartheid” social, estimulando relações tumultuadas por violência, do qual ninguém podia escapar. A geração “Banbaataa” teve a ideia de transformar os embates corporais violentos, resultantes desse estado social, em confrontos artísticos que possibilitassem uma nova leitura da realidade social, combinando representações sociais e realidade. 4 O que é hip-hop? <http://newhiphop.8m.com/about.html> (acessado em 05/12/2001). RAÇA BRASIL - Revista dos negros brasileiros. Ano, 1, n� 3 – Editora Símbolo.

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Ditou-se o cenário em que as disputas pelo espaço público nas Metrópoles, objetivando a demarcação de territórios acentuada pelos confrontos de rua entre gangues, tornaram-se expressões artísticas reconstituídas nos movimentos corporais da dança, o “street-dance”. Surgiram, aí, os breakers com suas coreografias, 5 que são embaladas por longas narrativas rítmicas e cujos conteúdos retratavam cenas do cotidiano da vida no gueto. Mais tarde isso ficou conhecido como “rap”, ou seja, “rythm and poetry.” 6 Os breakers, majoritariamente de origem negra e hispânica, 7 em suas coreografias, encenavam movimentos que refletiam o corpo, debilitado pelas lutas sociais. Associa-se a estas manifestações o protesto às condições sociais no gueto, bem como ao envio de soldados à guerra do Vietnã. Percebeu-se que a dança seria uma forma eficiente e pacífica de expressar um posicionamento face à exclusão social, uma maneira de diminuir as brigas de gangues do gueto e, consequentemente, o clima de violência urbana.

O “rap”, enquanto elemento musical no hip-hop, teve um papel fundamental,

Porque oferecia aos jovens de Nova York a chance de se expressarem livremente (...), era uma forma de arte acessível a qualquer um. Você não precisa de um monte de dinheiro ou de equipamentos sofisticados para rimar. Nem precisa fazer um curso. (...) O rap também se tornou popular porque oferecia desafios ilimitados. Não havia regras, exceto ser original e rimar na batida da música. Tudo era

5 Nessa disputa, seria considerado vencedor aquele grupo que permanecesse maior tempo dançando e com maior número de coreografias. Id. 6 O rap é construído a partir das descobertas realizadas por um jovem negro jamaicano, um DJ chamado Kool Herc em suas viagens entre a América Central e a África do Sul, observou os cantos falados das tribos africanas, que foram logo assimilados e introduzidos nos bailes negros no gueto. 7 Da América espanhola.

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possível. Fazer um rap sobre o homem na lua ou sobre quão bom um DJ é. 8

Seus precursores, ao que tudo indica, parecem ter sido os

griots, contadores de história que carregavam na memória toda a tradição das tribos africanas, preservaram suas técnicas em versos, passados de pai para filho. Eles eram possuidores das técnicas rítmicas absolvidas pelos rappers, que as adaptaram ao construírem suas narrativas do cotidiano. Assim como, no nordeste do Brasil, os repentistas, emboladores, cantadores e todas as outras categorias de poetas populares tiveram como precursores os romancistas medievais, conhecidos, ainda hoje, pela sua influência na literatura e costumes populares dos nordestinos. No gueto americano, essas tradições se expressam no “signifying” ou nas dozens (espécie de “desafio” em rima). São versos conhecidos até hoje, que usam a gíria dos bairros negros e impossibilitam a compreensão dos brancos. Contam histórias de prostitutas, cafetões, brigas, tiroteios e tudo o que envolve o mundo marginal, isto é, que se encontra à margem. 9

Definindo-se como uma filosofia da não-violência, o hip-hop se afirma como um processo de luta encampada pelo jovem negro do gueto, em defesa do direito à diferença cultural, e a distribuição econômica. Essas diferenças culturais estão presentes no contexto social urbano, não deixando de expressar um discurso contestatório, com certa agressividade que é confundida por muitos, como estímulo à violência. É o paradoxo da linguagem no hip-hop, que se soma a tantos outros. Tendo como proposta conter a violência praticada no e contra o gueto, o hip-hop toma como meios de expressão a própria linguagem daquilo que combate, como forma de contestação. É uma forma de posicionar-se em face à violência social urbana. É a cultura organizando-se em movimento político e se estabelecendo como instrumento de mudança social. É a pontuação de um processo de 8 Disponível em on-line. <www.daveyd.com.>. Acessado em 05/12/2001. 9 O hip-hop nos Estados Unidos. Site citado.

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motivação, autoafirmação de sua existência, como forma de enfrentamento às dificuldades que os desafiam no cotidiano do gueto.

À década de 1980, o movimento nos Estados Unidos presenciou a segunda geração do hip-hop com o “Públic Enemy”. Aquela geração do hip-hop americano foi influenciada pelas lutas desenvolvidas pelos movimentos sociais que se evidenciavam, naquele momento nos Estados Unidos, pelos embates quanto às questões raciais: “eles traziam na sua poesia referências baseadas nas atitudes de líderes negros como Martin Luther King e Malcom X.” (ROCHA , DOMENICH, CASSEANO. Op. Cit. p. 36). A identidade negra, (diferente, mas não inferior), é o marco decisório da luta dos hoppers, porque entende que a afirmação cultural contra a tendência à massificação produzida pelo sistema se constitui elemento essencial no processo de libertação. Entender-se como povo livre, com identidade própria e com uma tradição rica, é o primeiro passo fundamental ao enfrentamento das condições de opressão.

Os protestos inseridos em seus “rythm and poetry”, importante elemento cultural, são já uma demarcação do sentido de um Movimento Social “juvenil”. É o hip-hop marcando seu lugar “político” como território de luta social. Configura-se aí, como consequência do desenvolvimento de suas habilidades político-culturais, o cultivo da autoestima do jovem e a assunção do espaço-território. Deste modo o hip-hop representa a continuidade de um processo social que teve seu início com as lutas sociais que se davam nos guetos americanos. E, mais recentemente, anos 60, o contexto de lutas e movimentos radicais contra as políticas de dominação em todo o mundo, principalmente no que diz respeito à segregação sociocultural, em defesa dos direitos humanos e das minorias sociais. Os negros, mas não apenas eles reclamam o direito de poder construir suas vidas sem depender da autorização da elite branca nem de seu paternalismo burguês.

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A Organização Black Panthers exercia forte influência entre os jovens negros, indicando-lhes a necessidade da organização grupal, da dedicação aos estudos e do conhecimento das leis jurídicas. Boa parte destes valores foi resgatada pelos membros do hip-hop, principalmente no Brasil, para combater os abusos de poder exercido pela instituição policial contra os negros. (ANDRADE. 1996)

Enfraquecidos com a progressiva repressão policial, os Black Panthers tiveram a continuidade de sua luta nos movimentos culturais, sobretudo musical, sendo o hip-hop uma espécie de irmão mais novo desse movimento. O depoimento do breaker Crazy Legs, um dos fundadores da “Rock Steady Crew”, gangue de break pioneira, quando em visita a São Paulo em maio de 1999, rememorando os primórdios do hip-hop em Nova York, revelou que muitos dos primeiros b.boys, rappers e grafiteiros eram os irmãos mais novos dos Black Panthers. 10 O ambiente cultural, criado pelos “Black Panthers”, influenciou os hoppers, principalmente artistas como Isaac Hayes, que fazia os habitantes do gueto dançar ao som do rap. As mensagens contidas no rap eram informativas, de alto teor político-social.

Pensado pelos seus líderes (muitos deles ex-membros de gangs, 11 como foi o caso do DJ Afrika Bambaata, considerado o porta-voz do movimento), como uma afirmação cultural underground, o hip-hop levou pouco tempo até a ultrapassar as fronteiras do Bronx, da comunidade negra americana e de toda América. Assim, em meados dos anos 1980, o hip-hop já havia se tornado uma das correntes musicais mais fortes e lucrativas da indústria discográfica. É com o “Rap”, expressão musical do hip-hop, que esse movimento sociocultural adquire um caráter mais acentuado, pois é, por intermédio do (rap), que o jovem é iniciado em sua apreensão e verbalização do mundo cotidiano. Mas o hip- 10 O hip-hop nos Estados Unidos. Site citado. 11 Nome atribuído a grupos de jovens que se enfrentavam em lutas para marcar terreno nos guetos americanos.

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hop não deve ser visto como um estilo musical. Ao contrário do que muitos possam pensar, ele é, acima de tudo, um estilo de vida. Daí o seu sentido cultural: “um sintoma da existência para onde refluem os problemas com os quais uma sociedade está em dívida, sem saber como tratá-los” (CERTEAU, 1995: 199), com uma capacidade de ação, não apenas como resposta aos conflitos sociais e determinações econômicas, mas como construção mesma da realidade existencial.

Evidentemente que esta ligação com o gueto norte-americano, as favelas brasileiras, com os oprimidos e/ou desvalidos sociais, fez com que o discurso social em defesa do reconhecimento fosse absolvido e identificado como um discurso em defesa da racialidade. Daí a razão dos jovens do Morro Bom Jesus em Caruaru, mas não apenas eles, visto que esse é um traço presente em toda manifestação do hip-hop espalhado no território brasileiro, identificarem-se, essencialmente, como um movimento em defesa das questões culturais, raciais. O discurso sobre a raça constitui-se a política do movimento e, a raça, uma construção cultural e política, que marca a luta pelo reconhecimento social. Evidentemente que esta tendência no movimento não significa que o hip-hop seja constituído apenas por jovens negros, embora eles sejam a maioria. Negro, nos parece ser, muito mais, uma construção política para denominar o sentido da luta, em oposição às representações que foram forjadas por anos de escravidão dos oprimidos, o povo pobre das periferias urbanas.

“Negritude sem etnicidade” como assinala Sansone, (2004). Trata-se de um dos sintomas da globalização, que possibilita a disseminação mundial de símbolos que estão associados a diversas identidades locais e características individuais. Esses símbolos sugerem que vale a pena ser etnicamente diferente, porém criam um grau mais intenso de homogeneidade nos grupos sociais. Assim pode-se falar em identidade negra sem que se pertença necessariamente a uma etnia, separada e reconhecível, tal como no hip-hop se fala em identidade negra, sem que, necessariamente se seja negro. Os

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efeitos dos meios de comunicação de massa são significativos na medida em que modificam não apenas o grau, mas também as formas pelas quais se vêm usando as ideias de etnicidade e ‘raça’. Segundo Sansone (Idem), ainda, no uso popular, a distinção criteriosa que os cientistas sociais vêm tentando estabelecer entre cultura, etnia e ‘raça’ desaparece por completo.

No movimento hip-hop, o discurso racial é produzido nestas duas direções: de um lado, traz consigo a herança da origem, por ter sido um movimento que surgiu no gueto, e num contexto de luta pela afirmação da identidade étnica no gueto nova-iorquino, mas no Brasil, tem se afirmado não apenas como luta pelo reconhecimento social, mas, também, como luta pela distribuição econômica, dado que esta; marca a sobrevivência dos jovens fora do circuito do crime. Assim, negro é, signo da apropriação de uma luta contra a opressão, associado à construção da cidadania plena, que compreende o reconhecimento social e a distribuição econômica. Temos aí, uma sinonímia, significando luta contra a pobreza, a fome, a exploração e a segregação racial. Trata-se de uma construção social que se forja na luta pela sobrevivência. Possivelmente, como se pode observar, esta identificação se dá pela relação que é perceptível, entre pobreza e raça. Mais adiante o leitor poderá verificar que os jovens da pesquisa retratam essa realidade.

2. Juventude, cultura e linguagem – construindo a pesquisa.

Toda pesquisa, no campo próprio das ciências sociais,

sugere um problema social e político, não fosse, a investigação científica, um modo específico de inserção e participação dos investigadores sociais na sociedade. Questões sociais são problemas que emergem de uma realidade material e social (real-social), para cuja solução é forçoso pensá-la de forma distinta. No

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presente caso, a investigação tem a ver com as construções das diferentes linguagens e performances juvenis no interior do Movimento Hip-hop. O que buscávamos com a pesquisa era investigar as dissidências, no campo da linguagem, no interior do Coletivo juvenil, seus antagonismos e cumplicidades com a vida cotidiana, estabelecidas como campo de luta por reconhecimento. Fora tomado como campo de análise a vivência construída pelos jovens do Morro Bom Jesus e Bairro Centenário em Caruaru/PE., junto ao Coletivo Hip-hop, para a partir daí poder inferir a linguagem dos jovens das periferias urbanas, no que concerne a sua proximidade com o crime. Parti do pressuposto de que há um sentido ambivalente que marca o existir dos jovens periféricos: “visibilidade/ invisibilidade”. O sentido das linguagens no cotidiano desses jovens encontra aí, sua força e expressão.

Nesse processo as performances juvenis, dado a inacessibilidade de suas significações no conjunto da estrutura social, acabam por ser vista como envolvidas em um jogo de legalidade/ilegalidade, mesmo quando o “conflito” com a lei não esteja acentuado, visto que tais ações se encontram possuídas de uma significação que vai além do que aparentam (GEERTZ, 1989).

A investigação científica, enquanto forma de problematizar a linguagem da qual esses jovens se apropriam, para falar da realidade social, dirige seu foco de atenção, essencialmente, às interrogações sobre as relações que essas linguagens mantêm com o contexto social. Buscar compreendê-las do ponto de vista relacional (BOURDIEU, 1996), significa desvelar o sentido de que elas se constituem; como estão problematizadas; e, ainda, por que falar em ‘cumplicidade com o crime’ quando se referem às produções culturais. Em suma, o que se quer saber é: qual o sentido que os jovens das periferias imprimem as suas performances quando se apropriam de linguagens, que espelham a violência do crime, para retratar as relações com o sistema social? Pode-se falar em homogeneidade

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de sentidos, quando se trata das linguagens e das performances dos jovens das periferias?

Nossa convivência com os jovens do Morro Bom Jesus, em Caruaru-PE., nos possibilitaram perceber não ser possível tratar a linguagem, naquele contexto, como um fato social estável, tão pouco, homogêneo. Observamos existir dissidências entre eles, que vão desde o campo das ações à linguagem. Assim era necessário verificar o sentido dessas dissidências e como elas se revelam ao nível da linguagem com que retratam a vida. Estas são questões de natureza teórica, que contribuem para a relativa negação de um dado real, porque o cria como dimensão problemática, numa construção artificial que se reduz a qualquer finalidade prática.

Como problemática científica, um objeto de estudo passa a ser uma construção teórica, e como tal; objetiva estabelecer rupturas com as representações correntes sobre a realidade; no presente caso – a “doxa” hegemônica sobre juventude, cultura e linguagem – buscando desenvolver em relação à realidade socialmente construída – que são as performances e linguagens dos jovens – outra “doxa”, mais sólida que a espontânea, sem que esta hesite em tornar-se “paradoxa”.

Que as teorias científicas são efeitos de manipulação, isto é fato. A juventude é uma categoria socialmente manipulada (BOURDIEU, 1983:112-21). Esse é o sentido paradoxal das teorizações sobre essa categoria científica, como assinala José Machado Paes (1993: 22):

Nas representações correntes da juventude, os jovens são tomados como fazendo parte de uma cultura juvenil ‘unitária’. No entanto, questão que se coloca à Sociologia da Juventude é a de explorar não apenas as possíveis ou relativas similaridades entre jovens ou grupos de jovens (em termos de situações, expectativas, aspirações, consumos culturais, por exemplo), mas também – e

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principalmente – as diferenças sociais que entre eles existem.

O que a Sociologia da juventude, segundo Paes (Idem. p. 23) tem procurado, por um lado, como pertencente a uma “fase da vida”, é encontrar aspectos uniformes e homogêneos que caracterizam essa fase da vida. Aspectos que fariam parte de uma ‘cultura juvenil’ específica, portanto, de uma geração definida em termos etários; e por outro, tomando a juventude como diversidade, tem perfilado diferentes culturas juvenis em função de diferentes pertenças de classes, situações econômicas, parcelas de poder, interesses, oportunidades ocupacionais, etc. Segundo Paes, seja por um lado ou por outro, é possível encontrar os “paradoxos da juventude”.

A expressão “cultura juvenil”, nesse sentido, refere-se a uma construção social que existe, mais como representações sociais do que como realidade. Daí porque alguns jovens vão se situar nesta ou naquela representação social. Como, ainda assinala o pesquisador português (Idem, p 52), o conceito de cultura associado ao de juventude pode ser compreendido sob dois ângulos da sociologia da juventude. Nas correntes ‘geracionais’ e ‘classistas’ o conceito de culturas juvenis “são uma forma de ‘resistência’ à cultura de ‘classe dominante’”. Quando não, a sua expressão linear, as culturas juvenis são conceituadas como comportamentos desviantes, como incapacidade dos jovens ajustarem-se às normas de comportamentos dominantes, aqui representado pelo adulto.

A juventude é um mito ou quase mito que os próprios medias ajudam a difundir e as notícias que estes veiculam a propósito da cultura juvenil ou de aspectos fragmentados dessa cultura (manifestações, modas, delinquências, etc.) encontram-se afetadas

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pela forma como tal cultura é socialmente definida. 12

A juventude, quando relacionada a um processo que se

desenvolve numa referida fase da vida, isto é, que se inscreve em determinado período histórico é uma descoberta que envolve uma convergência de fatores culturais.

Geralmente, são os indivíduos quem, no dia a dia, tomam consciência de determinadas características específicas a um período da sua vida. Se estas características afetam um universo considerável de indivíduos pertencentes a uma geração, elas são culturalmente incorporadas em determinados modos de vida. Se essas características, específicas a um determinado período de vida se apresentam como expressão de determinados ‘problemas’ sociais, atraem a atenção dos poderes públicos, podendo surgir medidas legislativas ou de ‘terapêutica’ social – que por via institucional, consigam dar resolução parcial a esses problemas. Estas medidas interferem, por sua vez, na vida quotidiana dos indivíduos podendo influenciar o timing das transições de uma para outra fase da vida. 13

É, a partir dessas considerações que afirmamos, que

enquanto categoria sociológica, a juventude constitui-se de uma complexidade que lhe é própria, de modo que, compreendê-la implicaria, em primeiro lugar, despojar-se de qualquer “pré-noção”, para apreendê-la num dado contexto, isto é, na realidade social e histórica (BOURDIEU, 1996: 46-81). Muito do que se tem produzido sobre a juventude tem mostrado sua fragilidade, sobretudo, por se pautar mais pelas influências de uma “doxa” comum, que pelo esforço de superação das dificuldades no campo

12 José machado PAES, Op. Cit. p 27. 13 Idem, p29.

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próprio de sua complexidade. O senso comum pode ser muito útil como revelador de determinadas nuanças que a realidade possua, mas ele deve ser apenas um ponto de partida, jamais o fim da investigação científica.

Como assinala Alvim (2001: 189 – 203), “essa é uma influência que necessita ser cuidada com maior atenção, para se evitar precipitações”. Desse modo, o que se pretende aqui é refletir sobre as possibilidades de se analisar as juventudes, como tem sido abordada pelas ciências sociais, para se poder então construir um caminho que possibilite entender o fenômeno da juventude situada em um campo específico das ciências sociais, procurando superar toda doxa comum.

O desígnio de um grupo, sua luta por existir, traduz-se por uma constelação de referências, muitas vezes ocultas, não reconhecidas exteriormente, uma espécie de acordos tácitos. São espécies de crenças que permitem uma elaboração comum. Uma linguagem, uma vez falada – a condição de ser suportável –, implica pontos de referência, fontes, uma história, uma iconografia, em suma uma articulação de ‘autoridades’. O gesto que desmistifica poderes e ideologias cria heróis, profetas e mitos. Não há uma manifestação ‘sócio-cultural’ que não esteja fundamentada em signos críveis, referências que permitem seu comércio, não necessariamente exteriorizados. CERTEAU (1995: 34).

Características diversas na nomeação da juventude podem ser encontradas no curso da história. No início do séc. XX, a juventude é percebida como um sujeito social específico, com experiências, questões e formulações particulares, dadas pela sua condição etária e “gerencial”. No

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entre - guerras, a juventude é marcada por um niilismo. 14 Mas também é identificada como vanguardista. Outras tendências na abordagem da categoria juventude têm estado preocupadas com os processos de transmissão de normas comportamentais, atitudes de grupos que fogem a padrões considerados “normais” não factíveis de controle social: aparições excêntricas, grupos de delinquência ou contestadores, uma vida “autônoma e inventiva” em que se cria um processo de autoeducação. A visibilidade da juventude e sua tematização como problema constrói-se, também, pela acentuação da ‘anormalidade’ como comportamento de grupos de jovens reconhecidos como “delinquentes, excêntricos, ou contestadores”, implicando todos, embora de formas diferentes, um contraste com os padrões vigentes (ABRAMO, 1994).

São, no entanto, os argumentos de “rebeldia ao sistema”, à contraposição aos padrões dominantes incorporados por grupos considerados “delinquentes” ou ligados à criminalidade, na contemporaneidade, atribuída também, a jovens participantes das culturas de rua, que mais tem sido utilizado como ilustração aos estudos atuais como características dominantes da categoria juventude.

Essa tendência a ver o jovem como perigo, está mais associada a um imaginário estereotipado, cujo fundamento é um etnocentrismo oriundo tanto da forma como a mídia tem tratado as questões ligadas ao mundo da juventude, dando destaque a aspectos especificamente negativos, quanto do processo educacional, seja escolar, seja familiar, que tem olhado as produções culturais dos jovens, sobretudo do gueto, como subcultura, posta aqui com um

14 Posição cultural marcada por um sentimento de perda dos valores, ou a crença neles. Do ponto de vista filosófico isto significa uma reviravolta na forma de pensar a realidade, uma trans-valoração dos valores, o fim das grandes narrativas e seu poder explicativo da realidade.

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sentido negativo, associando o comportamento juvenil à delinquência. (ALVIM, 2001)

ALVIM (2002), seguindo a perspectiva teórica de Pierre BOURDIEU, tem se posicionado contrária a esta tendência/insistência de grande parte dos estudos culturais em destacar, em primeiro lugar, apenas aspectos negativos da juventude e, em segundo lugar, de uniformizar o discurso. Essa pesquisadora tem insistido em que a categoria juventude não pode ser pensada senão a partir de uma pluralidade, uma “polissemia dos conceitos”. Diz ela:

Tratar a categoria juventude utilizando-se do critério ‘unívoco’ como forma classificatória significa anular qualquer diferença nas formas de manifestação do fenômeno da juventude. Erigida e nomeada a partir daí, tal realidade impede que se construam sujeitos sociais historicamente diversos, com trajetórias diferenciadas, como grupos e indivíduos que participam da delimitação de um campo como protagonistas em movimento. (ALVIM, 2000: 9).

Daí se depreende que a juventude não pode ser pensada como um grupo homogêneo, marcado por uma classificação etária, ou uma adjetivação, positiva ou negativa; não, pelo menos, como atores histórico-sociais. “É impossível pensar a categoria juventude sem se considerar o campo no qual ela se situa, ou seja, quem são os jovens de que falamos e ‘assistimos’? Trata-se do conjunto de jovens da sociedade ou são os jovens pobres?” (ALVIM, 2002: 10). A juventude é uma construção histórico-social, portanto, gestada num processo social e histórico. Deste modo, é necessário distinguir de que jovem ou juventude está se falando; jovens burgueses, operários, estudantes, trabalhadores, galeras, patricinhas e mauricinhos, entre outros. Ou, ainda, retornando a Paes (Op. Cit. p. 27), que os ver como um mito fruto

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da construção midiática. Os jovens, de quem trato no presente texto, identificados como hoppers, 15 bem como suas performances culturais e linguagens constituem uma categoria no quadro de análise cujas características simbólicas e de ação os diferenciam, mas também os aproximam dos demais, sem que qualquer forma usada como descrição signifique, contudo, simplificá-los a uma única representação.

3. Juventude, cultura e cidadania: construindo o campo da pesquisa.

A decisão de estudar o coletivo juvenil no Morro Bom

Jesus e bairro Centenário em Caruaru-PE., teria sido tomada num momento em que encontrava-me no campo de pesquisa acompanhando os jovens do coletivo hip-hop, a “Família MBJ”. Assim eles se tornaram os sujeitos centrais deste estudo. Em nossa caminhada fui testemunha dos embates travados por aqueles jovens, bem como da forma criativa com que eles têm procurado enfrentar seus conflitos e adversidades. E foi em função das tomadas de decisão apresentadas por eles no enfrentamento das questões cotidianas, que fui compreendendo o sentido de uma cidadania alternativa, como proposta pelo hip-hop.

Assim, observando as estratégias sociais daqueles jovens na construção de um campo de luta pela cidadania, fui percebendo que a ação cultural, neste caso, se constituía uma forma de afirmação política capaz de mudar o quadro social que se instalara naquele espaço social urbano, a favela. O hip-hop se constituía no diferencial à construção de identidade juvenil naquele contexto. É a história escrita pelo corpo, cujos

15 Integrantes do movimento hip-hop. Um movimento cultural juvenil, que integram a música (rap), grafite, dança, discotecagem (DJ) e o cultivo pelo conhecimento como quinto elemento.

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significados lhes são reconhecidos. Resgatam-se regras de civilidade e de reciprocidade ao reconhecer como detentores de direitos legítimos os novos interlocutores: grupo de jovens favelados, dispostos a transformarem suas vidas e a comunidade.

Percebi aí, que a cidadania, naquele contexto, situava-se na relação entre o econômico, o político e o cultural, estabelecida, sobretudo, na ação que os seus protagonistas realizam na periferia da cidade, destaca-se aí a reconstituição da história do cotidiano, “discursos que ligam a realidade ao desejo” (CERTEAU. Op. Cit. p. 46), transformando-a em matéria prima na construção da identidade cultural. Para os hoppers, a condição de marginalizados em que se encontram é decorrente do modo como o econômico, o cultural e o político, estão imbricados socialmente.

Analisando a situação de boxeadores negros no gueto americano, Loïc Wacquant (2002: 60), 16 afirma que estes estratos sociais são capazes de construir ações, mediante as quais “se reconciliam com a ferocidade da exploração de uma maneira que lhes permitem preservar um senso de integridade pessoal e finalidade moral”. Estas ações passam pela assimilação da exploração como elemento constitutivo dos “jogos sociais”. A vida é para os indivíduos, neste contexto social, um risco constante, o que os leva a um processo de ressignificação em que as relações sociais passam a ser o alimento de suas atividades culturais e artísticas. No caso dos hoppers, a profissionalização como Dj, rappers, grafiteiros ou b.boys, promove um engajamento social que lhes possibilita a construção de um capital cultural artístico a ser vendido no mercado de bens culturais (BOURDIEU. 1999: 99), e eles contam para este fim, com a cumplicidade de seus pares, jovens da periferia, os manos

16 Loïc WACQUANT. Putas, escravos e garanhões: linguagens de exploração e de acomodação entre boxeadores profissionais. Mimeo.

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do Brasil, 17 dispostos a comprarem suas produções artísticas. Aí reside o sentido da distribuição social.

Evidentemente, que se trata de uma produção cultural artística que, num contexto externo à favela, território de afirmação destes jovens, é estereotipada, quando não, tem seu valor negado enquanto representação cultural, provocando entre eles um processo incessante de luta pela afirmação no cenário artístico-cultural, enquanto produtores de cultura. A designação de “cultura de rua” atribuída as suas produções, é uma forma de classificação, estabelecida por eles, com objetivo claro de fixar o reconhecimento de suas ações.

Analisando o desenvolvimento da vida intelectual e artística das sociedades capitalistas, Bourdieu (Op. Cit.) destaca o processo de transformações da função do sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura desses bens. Sinaliza para a constituição de uma autonomização progressiva do sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos. À medida que se constitui um campo intelectual e artístico, definindo-se em oposição ao campo econômico, ao campo político e ao campo religioso, tendem cada vez mais a se tornar o princípio unificador e gerador dos diferentes sistemas de tomadas de posições culturais e, também, o princípio de sua transformação no curso do tempo. Essa autonomia, no entanto, é relativizada visto que, a legitimidade cultural da produção simbólica é, ainda, influenciada pelo mercado, pelos processos de racionalização e profissionalização, que faz com que passem a reconhecer, exclusivamente, certo tipo de determinação. São mecanismos de controle da produção de bens simbólicos que não deixam de estar presente na sociedade capitalista, isto é, a sociedade de mercado.

Os hoppers se veem pressionados por essas instâncias, que fixam as condições para o reconhecimento de suas atividades culturais. Em virtude das condições, mais severas para eles, uma 17 Em “Sobrevivendo no Inferno”, Mano Brown afirma que seu rap é sustentado por mais de cinquenta mil manos. Esta frase é constantemente repetida pelos rappers como a anunciar que não precisam da burguesia.

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vez que suas produções simbólicas sobre o mundo social são antagônicas às dos grupos sociais dominantes, assim necessitam adaptar toda a produção simbólica oriunda de seu cotidiano, transformando protesto em mercadorias, como forma de se inserir na lógica do sistema, a fim de garantir aí seu status econômico. Neste jogo de poder, são lançados a um dilema que os consomem: abdicar do direito de exprimir os valores e a cosmovisão própria de seu mundo sociocultural para não suscitar o conflito, ou assumi-lo, mas, neste caso, se limitar ao mundo da favela. Este dilema não se circunscreve ao mundo dos hoppers em Caruaru, ele está presente no hip-hop brasileiro, como assinala Novaes. (1999:69 – 72) “É uma tensão que não pode ser abolida. Se abolida levaria consigo a alma do movimento que – para manter sua marca identitária – não pode ficar fora do mercado, pois assim estaria restringindo o alcance da ‘mensagem’ e impedindo o reconhecimento artístico ‘dos manos’”. É o preço que têm que pagar para se afirmarem e escaparem a lógica perversa do sistema; torna-se um pária para o sistema social e para o crime.

Como assinala Santos (2003:38), As reivindicações de justiça, de reconhecimento da diferença ou de cidadania serão inteligíveis apenas na linguagem do Estado moderno e da cidadania moderna, independente dos sujeitos coletivos que as formulam. A resistência e as alternativas terão possibilidades de sucesso apenas na medida em que sejam capazes de alcançar esse reconhecimento e essa legitimidade por parte do Estado.

Para os jovens da periferia, a cidadania tem sua eficácia, na medida em que promove a inclusão na economia de bens simbólicos, sobretudo no mercado de bens culturais, já que eles sonham em ganhar a vida, como produtores culturais; ato que se concretiza em sua profissionalização como artistas da periferia. Assim eles vislumbram a possibilidade de superação de sua

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condição socioeconômica. Mas ela também se afirma no fortalecimento dos laços e vínculos sociais, e ainda, por ser acolhedora do culturalmente diverso. Segundo Quiroga (2002:178), a construção da cidadania como processo social mais amplo implica, entre outras, “acolher as diferenças sociais, culturais e subjetivas pelo que elas representam de diversidade, de dinamismo e de riqueza social. Incorporar a tolerância como elemento fundamental no equacionamento das diferenças e no enfrentamento das discriminações que impedem o exercício da cidadania”. Neste sentido, a própria afirmação dos modos de vida das populações e seus grupos internos, passaram, segundo aquela pesquisadora, a constituir-se em forma de manifestação política, portanto de cidadania.

Como pode ser observado, o hip-hop procura jogar com as tensões entre diferenças e igualdade, entre a exigência de reconhecimento da diferença e a realização da sobrevivência econômica. Os hoppers estão preocupados em construir uma cidadania que seja cosmopolita, mas ao mesmo tempo, localismo. Daí o enfrentamento dos conflitos cotidianos da favela. É o ‘local’ interferindo nas representações que eles constroem da existência social.

Os hoppers compreendem a importância da cultura como instrumento de mobilização e luta social, por isso apostam aí com todas as suas forças e assim estão mudando a cara da periferia. No Morro Bom Jesus, eles têm ampliado essa luta nas diferentes frentes, seja como movimento social, seja como movimento cultural. O jovem da favela sonha um dia deixar o berço da miséria. A cultura adquire, neste contexto, uma expressão discursiva por onde o sonho aproxima-se da realidade. MC’s, graffers, Dj’s e b. boys, eles sabem que, nas favelas e cortiços, só há uma saída: a cultura. Aqui, o destino faz-se arte por onde o elemento cultural trafega operando a transformação da realidade social. O cenário não é o mais agradável, foge a qualquer modelo estético representativo da beleza, característico de uma sociedade em que a sedução dita a moda. Mas ainda assim, eles fascinam

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pela suas atitudes desafiadoras. O sentido cultural, no hip-hop, possui um poder catalisador da mudança. É capaz de criar mundos, transformando realidades em sonhos e sonhos em realidade. Os jovens hoppers veem no reconhecimento e distribuição, o sentido pleno da cidadania. A cultura hip-hop, desse modo, mantém a luta pelos direitos negados aos diferentes. É aí que se insere o discurso da raça.

O hip hop é um movimento de pretos, porque se identifica com a luta do povo preto da favela. Ele fala da discriminação que é desenvolvida contra o povo da favela. Esta luta é contra o que ocorre nos guetos do mundo inteiro. Negro quer dizer, oprimido, é como eu digo no rap ‘entre o passado e o presente’: a escravidão continua, muda apenas as formas usadas, o vocabulário da opressão. O “escravo hoje é peão, o tronco é a solidão da prisão, senzala, hoje é favela”. 18

Essas palavras têm tudo a ver com aquilo que os hoppers estão fazendo na periferia. Transformando a miséria, a fome, a dor, em arte e em cultura, para daí construir as energias, necessárias para transformarem aquela realidade social. Em cada ação um sonho, em cada sonho um desejo, em cada desejo uma saída e a força para vencer os desafios da vida contra as injustiças dos que querem tudo só para si. “O desafio hoje é construir caminhos novos para a mudança de mentalidade da ‘molecada’ na favela. Sobretudo, quanto ao papel da escola.” 19

Conclusão.

18 Black-out – Grupo Consciência Nordestina – MBJ. 19 Black-out refere-se aos meninos e meninas que acompanham os hoppers.

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Minha presença, por um longo tempo20, entre os hoppers no processo de pesquisa levou-me a perceber que, como em qualquer contexto social, o exemplo tem uma força extraordinária na reprodução social. Na favela o jovem se deixa influenciar pela proximidade do exemplo e o sucesso fácil. Daí os criminosos que têm prestígio na favela tornarem-se motivos de orgulho para muitos jovens. Pude observar que, naquela realidade, a referência para os jovens e adolescentes é muitas vezes marcada pelo sucesso no crime. Nem sempre o pai se constitui um exemplo positivo para o filho, seja pela ausência constante, seja pela incapacidade de apresentar-se como um modelo de sucesso para o filho. Daí ser possível perceber a importância da atuação dos hoppers naquele contexto. O sucesso alcançado pelos rappers, em nível nacional e internacional, se constitui força inspiradora para muito na favela, que alimenta o sonho de poder tirar os pés da lama. Cantando a trajetória da vida no crime, usando os exemplos da vida criminosa, sem dramatizar a vida, os hoppers alertam os seus pares sobre os riscos que a vida “bandida” lhes segreda, ao tempo que criam as condições de sobreviverem à vida do crime.

Os hoppers sabem que as ofertas de sucesso rápidas e fáceis advindas da vida no crime, atraem os seus pares, em função da proximidade, mas também pelas poucas possibilidades de existência que o jovem dispõe nesse contexto social, por isso eles estão o tempo todo os alertando quanto aos riscos da vida bandida. Neste contexto, o exemplo dado pelos hoppers, na forma como eles são vistos e se pensam, tem uma força positiva para a juventude da favela. Sua presença no palco, no dia-a-dia, seu discurso sobre a realidade, seus trajes, enfim, tudo é motivo de imitação. Uma ocasião, um jovem breaker confessou-me, com orgulho, o fato de os garotos de sua quebrada o imitar, repetindo os movimentos do break, toda vez que o viam caminhando pelas ruas e becos. Um sinal do reconhecimento da arte do b. boy.

20 Quatro anos consecutivos.

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Entendi o sentido de que; a realidade social possui uma estrutura organizada como um sistema de reproduções simbólicas (BOURDIEU, 1999). No campo fui percebendo que os estigmas atravessavam o contexto social da favela, também, numa direção contrária, isto é, a favela reproduzia formas simbólicas estigmatizadas com que tratavam aqueles que eles acusavam de ser preconceituosos contra eles, mas também tratavam os próprios jovens. Era comum ouvir pessoas, da própria comunidade, reproduzir discursos preconceituosos contra seus jovens. A própria denominação de “playboys” dirigida aos jovens de classe média era adotada de forma preconceituosa pelos jovens hoppers.

Estes discursos acabam sendo reproduzidos, como assinala Bourdieu (Op. Cit.), “no mercado de bens simbólicos”. Os hoppers conhecem esta realidade e não são hipócritas eles sabem que quem lucra com esta realidade, não mora na favela. Seus posicionamentos são, muitas vezes, dentro e fora da quebrada, confundidos com apologia à existência criminosa, daí porque constantemente, eles estão sendo alvos de ações violentas, tanto físicas como simbólicas. Eu tive a oportunidade de acompanhá-los dentro e fora da quebrada, durante o tempo em que convivi com eles, no trabalho de campo, pesquisando. Quase sempre me deparava com questões como: você não tem medo de está por aí andando com estes trombadinhas, não? Ou, você é muito corajoso, hem!

Como eu teria sido motivado, pelas minhas incursões no campo, a analisar como os hoppers se comportavam em relação aos estigmas com que são tratados nas relações de classes, mas também no próprio contexto social em que vivem, (isto porque, muitas vezes, na própria quebrada, eles são discriminados), era preciso acompanhá-los dentro e fora do contexto da periferia. Alguns jovens de classe média com os quais tivemos a oportunidade de conversar sobre os hoppers, deixavam transparecer um tipo de preconceito; eles sempre se referiam aos hoppers como alguém perigoso, criminoso, maconheiro. Naquele

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momento tomei a iniciativa de ouvir os jovens de classe média sobre o que eles tinham a dizer dos hoppers e suscitei uma aproximação entre eles.

Alguns jovens de classe média com os quais tivemos a oportunidade de conversar sobre os hoppers, deixavam transparecer um tipo de preconceito, visto que sempre se referiam aos hoppers como alguém perigoso, criminoso, maconheiro. Eu queria ouvir os jovens da classe média e procurei aproximá-los. As seguidas aparições dos hoppers na mídia (rádio e TV) como resultado da divulgação de minha pesquisa acabou por favorecer estes encontros. Fui procurado por alunos de escolas de classe média, alegando terem assistido apresentações dos hoppers na TV, e estarem curiosos, querendo conhecer o trabalho dos jovens do Morro. Mas ao mesmo tempo diziam ter medo de encontrá-los, pois o que eles sabiam a respeito dos jovens hoppers era muito negativo. Evidentemente fruto do preconceito muitas vezes da educação, tanto doméstica como escolar, 21 mas também da forma como a favela é mostrada na televisão, ou referida no rádio.

Propus então intermediar o encontro, o que ocorreu por várias ocasiões, tanto no Morro, como no próprio ambiente escolar. Colégio “Sagrado Coração de Jesus” onde os hoppers realizaram oficinas de dança e grafite, e Colégio Atual, onde puderam se apresentar numa Mostra Cultural, que se realizou no ‘espaço cultural’ Luiz Gonzaga. Os vários encontros entre eles, tão diferentes, mas ao mesmo tempo tão parecidos, foram muito valiosos e resultaram, num primeiro momento, na superação de barreiras, aproximando-os. Refletindo posteriormente com os hoppers sobre os “playboys”, ou quem era o playboy a quem eles se referiam em suas composições, eles começaram a fazer o

21 Alguns destes alunos acabaram por confessar que os seus próprios professores recomendavam evitar aqueles jovens do Morro Bom Jesus, por tratar-se de jovens perigosos. Uma aluna procurou-me, pois desejava conhecer os hoppers, mas, dizia ela, “tenho medo deles. Você me desculpe, mas é o que eu sinto.”

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discurso da diferença onde distinguiam aqueles jovens com práticas sociais preconceituosas daqueles jovens que tinham compromissos em mudar a realidade porque acreditava ser ela, na forma como estava estabelecida, injusta. Daqueles encontros resultou uma parceria entre os jovens de classe média e os hoppers que perdura ainda hoje como espaço de produção muito positivo para ambos os lados, se é que posso dizer assim.

Pude perceber daí que os estigmas marcam os olhares numa direção bilateral e que têm seus fundamentos em duas realidades: uma econômica, e a outra cultural. Esta, mais ligada à educação, tanto escolar como difusa, para quem, os meios de comunicação e a própria família, têm parcela de grande responsabilidade. Foi fundamental ouvir os dois lados antes e depois do encontro. Foi possível perceber o quanto o encontro pode revelar que não existem jovens bons e maus, o que há, são preconceitos alimentados por uma arrogância política, econômica, e cultural que são reproduzidos no mercado de capitais simbólicos.

Há uma correspondência, segundo Bourdieu (2005), entre formas culturais e classes sociais que não são percebidas pelos agentes sociais, que tenderiam a ver como hierarquias culturais, o que são, de fato, relações de dominações. Uma ocasião um jovem hoppers 22 falou-me da “ostentação da periferia”, ele se referia à reprodução de modelo de consumo de “ideias” vividas por muito jovens da periferia, e que segundo ele, aquela seria uma das causas do envolvimento destes jovens com a criminalidade. Estão aí, presentes, tanto a percepção desta relação de dominação cultural estabelecida através da reprodução do sistema simbólico, como a dissimulação do jovem que reproduz a estrutura por não perceber esta relação de dominação. Assim o jovem da periferia acaba por reproduzir os mesmos valores sociais, seja no plano simbólico, cultural, seja no plano do consumo de bens.

22 Recolhido em conversa com Black-out. Membro do grupo Consciência Nordestina – Morro Bom Jesus.

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O capital simbólico, advindo desta relação de poder, concentra-se em favor da dominação. As relações de exploração e exclusão por que passam são ratificadas e ampliadas de tal modo, pelo sistema mítico-ritual, a ponto de torná-lo o princípio de divisão de todo o universo não sendo mais, para citar Bourdieu, (2005:55), que a dessimetria fundamental, a do sujeito e do objeto, do agente e do instrumento, instaurada na relação que estes jovens têm com o sistema, a sociedade em geral, no terreno das trocas simbólicas, das relações de produção e reprodução do capital simbólico, cujo dispositivo central é o mercado da violência, que está na base de toda ordem social. Os estigmas são aí, reproduzidos, por vezes de forma inconsciente. Assim, o jovem da periferia não percebe que a forma estereotipada “playboy” com que trata os seus antagonistas, constitui, por si mesmo, uma forma de reprodução dessas relações. Não percebe que está reproduzindo formas de poder e de dominação, que eles próprios desejariam superar.

Segundo Bourdieu (2003), a experiência apreende o mundo social e suas arbitrárias divisões como naturais, evidentes, e adquire, assim todo reconhecimento de legitimação. É por não perceber os mecanismos profundos, tais como os que fundamentam a concordância entre as estruturas cognitivas e as estruturas sociais, e como tal, a experiência dóxica do mundo social, que os efeitos simbólicos de legitimação são imputados a fatores que decorrem da ordem da representação mais ou menos consciente e intencional, “ideologia”, “discurso”, etc.

Libertar-se desse jugo de dominação, não é apenas uma questão de consciência, uma vez que este depende, em muito, das estruturas objetivas da realidade. Portanto, reproduzir a estrutura torna-se quase um imperativo a estes jovens (BOURDIEU, 2003: 52 – 85) e aí é possível entender o jogo da violência social que é imputada a forma de linguagem com que expressa o cotidiano. A consciência não é um dado meramente descrito por um ‘viés’ intelectualista e escolástico, que nos leva a imaginar que a libertação ou transformação se dê por um “efeito automático” de

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uma tomada de consciência. É preciso considerar as estruturas do campo. “As disposições ‘hábitus’ são inseparáveis das estruturas que as produzem e as reproduzem e, em particular, de toda a estrutura das atividades técnico-rituais, que encontra seu fundamento último na estrutura de bens simbólicos”.

O capital simbólico ao (re) produzir os agentes, (re) produz as categorias que organizam o mundo social, (re) produz o jogo e seus lances, (re) produz as condições de acesso à reprodução social. Tanto dominados como dominadores contribuem para reproduzir a estrutura de dominação. Ambos são prisioneiros, sem se perceberem, vítimas da representação dominante. “A estrutura impõe suas pressões aos dois termos da relação de dominação, portanto aos próprios dominantes, que podem disto se beneficiar, por serem, como diz Marx ‘dominados por sua dominação” (Idem). Os atores sociais ao se verem inferiorizados pela dominação simbólica, sustentada pela estrutura social que a perpetua, estruturam reações à violência do sistema e seus agentes, isto é, àqueles que dão sustentação à dominação. Estas reações são, muitas vezes, reproduções das ações do sistema canalizadas, muitas vezes, em práticas delituosas contra o próprio sistema e seus agentes. Práticas que nem sempre são racionalizadas, isto é, elas não dependem do controle da consciência para serem superadas. O que não significa que não possa ser superada. Para Bourdieu (Idem), há espaço para resistência, que se dará mediante uma ruptura com o sistema.

Quando os dominados aplicam àquilo que os domina, esquemas que são produto da dominação ou, em outros termos, seus pensamentos e suas percepções estão estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão. Porém, por mais exata que seja a correspondência entre as realidades, ou os processos

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de mundo natural, e os princípios de visão e de divisão que lhes são aplicados, há sempre lugar para uma luta cognitiva a propósito do sentido das coisas do mundo... A indeterminação parcial de certos objetos autoriza, de fato, interpretações antagônicas, oferecendo aos dominados uma possibilidade de resistência contra o efeito de imposição simbólica.

Pude perceber daí que os estigmas marcam os olhares numa direção bilateral e que têm seus fundamentos em duas realidades: uma econômica, e a outra cultural, isto é, simbólica. Esta, mais especificamente, como resultado da educação tanto escolar como difusa; para quem os meios de comunicação e a própria família possuem parcela de grande responsabilidade. 23 Foi fundamental ouvir os dois lados antes e depois do encontro, foi possível perceber o quanto o encontro pode revelar que não existem jovens bons e maus, o que há, são preconceitos que são alimentados pela arrogância política, econômica, e cultural, socialmente desenvolvida. Foi possível perceber também como é possível, através da arte, romper barreiras econômicas, políticas e culturais.

O conhecimento é uma construção-ação intersubjetiva, em que os sujeitos reagem a situações mais diversas possíveis. Segundo Rivers (apud PEIRANO, Op. Cit. p. 37), 24 o campo exerce uma importância fundamental para a pesquisa etnográfica. Propunha ele que “as noções abstratas deveriam sempre ser atingidas por intermédio do concreto”. E ainda, que “o investigador de campo deveria reconhecer que o nativo também tem um ponto de vista, provavelmente bem mais interessante que o do pesquisador”. O que os jovens hoppers, têm a dizer sobre si mesmo e sobre seu cotidiano? E sobre essa associação com o crime e os estigmas que lhes são atribuídos, às vezes por eles próprios? Essas foram questões que buscamos em nossas

23 Esta é uma questão que pretendo aprofundar nos estudos futuros. 24 RIVERS. “Notaes and Queries de 1912.” In. Mariza PEIRANO. Op Cit. p. 37.

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observações de campo desvelar, foram intenções que estavam presentes, também, em nossas entrevistas. E, aqui, o conselho de Rivers (Idem) – combinar relatos nativos com observação etnográfica – nos foi, por assim dizer, fundamental. Peirano (Id. p. 38, 9) citando Stoking Jr., alerta para o fato de que “a pesquisa de campo pressupõe uma hierarquia: ou ela é aceita pelos nativos, ou não há pesquisa etnográfica”.

Em nossas incursões deixamos transparecer para ambos os seguimentos juvenis que eles eram ao mesmo tempo “caça e caçador”, isto é, se eram tratados por estigmas, também estigmatizavam e se desejassem vencer os estigmas, tinha que começar por eles mesmos. Esta era a nossa intenção ao promovermos o encontro com os diferentes seguimentos juvenis; da favela e os da classe média. O que eu pretendia era, por um lado, conduzir os jovens a compreenderem que a realidade se constitui de forma relacional (BOURDIEU, 1996) e, por outro, fazê-los pensar que os resultados da pesquisa não eram frutos de minha exclusiva interpretação daquilo que captara no campo, mas que eles eram sujeitos da pesquisa; os resultados da pesquisa eram frutos de ações coletivas, minhas e deles.

Evidentemente, isso nos leva a refletir sobre a ideia de “co-autoria” suscitada pelos pós-modernos que, segundo Peirano (Op. Cit. p. 41.), “não ocorre entre indivíduos empíricos concretos, mas teoricamente na produção etnográfica”. Fazendo-nos também relativizar o conceito de “co-autoria”. Os discursos dos jovens hoppers, presentes em nossa pesquisa, não chegam a ser, evidentemente, “transcrições objetivas” dos diálogos etnográficos ou de suas ações. Como já disse acima, nem tudo era muito claro na fala e ações dos jovens, e eles próprios me advertiam para este fato, pois a cultura, além de sua dinamicidade, é cheia de paradoxos. E aqui ainda temos as questões biográficas relativas ao pesquisador. Volto a Peirano (Op. Cit.), quando afirma sobre a obra de um antropólogo, que ela não se desenvolve “linearmente”, mas revela “nuanças etnográfico-teóricas” que resultam, segundo aquela pesquisadora,

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do tipo de escrita, mas também do momento específico da carreira de um pesquisador, em determinado contexto e a partir de peculiaridades biográficas.

E aqui se insere a importância da “observação participante” e da “relativização” assinalado por DaMatta (1987) e Oliveira (2000). A “relativização” proposta como uma atitude que possibilita ao pesquisador escapar da ameaça do etnocentrismo, permitindo o diálogo entre pesquisador e pesquisados. Por sua vez, a “observação participante” fixa o olhar e o ouvir como traços peculiares à pesquisa, por meio dos quais é possível compreender e interpretar a realidade do outro, em sua interioridade. Permitindo, ainda, ao pesquisador, no ato de escrever, estar atento às representações que o outro faz de seu objeto de pesquisa, possibilitando ao relatório uma dimensão polifônica. Fazia-se necessário, desse modo, está atento aos processos de interpretação que os atores sociais estudados utilizavam na relação com a sua realidade, pois é aí que reside a compreensão já realizada nas atividades mais corriqueiras da vida ordinária.

O mundo social é o mundo da vida cotidiana, vivida por pessoas que não têm interesse teórico, a priori, pela constituição do mundo. É um mundo, no entanto, intersubjetivo, onde as experiências privadas podem ser transcendidas em um mundo comum, mediante a troca de ponto de vista, bem como, a conformidade do sistema de pertinência das partes, isto é: as pessoas acreditam em objetivos comuns. Os atores de um fato social, por ocasião de suas interações, definem sempre as instituições em que vivem. (COULON, 1995: 11, 2)

Do ponto de vista antropológico, não existem seres humanos brutos como pedras, os quais necessitem ser talhados para se tornar alguém com condição de compreender sua realidade e de agir sobre ela.

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Todo ser humano tem uma concepção espontânea e imediata do mundo, que, consciente ou não, é a base de toda a ação. A cultura se estabelece à medida que uma determinada concepção de mundo toma corpo e vai estruturando-se como pensar comum e como bom senso. Toda cultura remete, necessariamente, a uma relação política que os sujeitos estabelecem com seu mundo. Para isso, faz-se necessária a constituição de um ambiente onde haja a liberdade, onde a consciência possa fluir. É nesse processo que o sujeito toma consciência de si enquanto realidade, assim como toma consciência da ideologia que lhe é imposta de fora. Descobrindo-se, descobre o mundo que oprime e constitui a contra-hegemonia. (GRAMSCI, 1986: 11)

Compreendo que a realidade social é um “processo” através do qual os traços da aparente estabilidade da organização social são continuamente criados. Daí a importância do contato social entre pesquisador e realidade pesquisada, dado a insistência no papel criativo desempenhado pelos atores na construção de sua vida cotidiana e pela sua atenção aos pormenores dessa construção. A interação é vista aqui como uma ordem negociada, temporária, frágil, permanentemente reconstruída, a fim de interpretar o mundo.

Evidentemente que, a experiência etnográfica é muito rica e proporcionadora de uma multiplicidade de fatos que carecem ser relevadas. O pesquisador necessita está atento ao movimento da realidade e não esquecer que nenhuma pesquisa constitui-se um ato inteiramente neutro. A neutralidade, neste caso, constituía para nós, um alvo à frente, como um método (meta+odo) isto é, caminho à frente. Um forte pressuposto metodológico adotado foi a conexão entre produção de conhecimento científico e ação social e política. Considerando o compromisso necessário na geração de dados e análises com o rigor científico, optam pela produção de informação e

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conhecimento na medida em que permite não apenas captar processos em andamento, mas também influenciar a construção de uma nova realidade comprometida com a radicalização da democracia e com a consolidação de uma cidadania ativa e participativa.

Nesse sentido, os pressupostos que nos ajudaram a olhar e analisar as realidades estudadas foram aqueles que permitiam produzir argumentos críticos e de qualidade na defesa das causas em que se encontram envolvidas os seguimentos analisados, valorizando conhecimentos, análises e experiências que surgem da prática efetiva da cidadania de movimentos sociais, grupos populares e setores da sociedade civil. Mas, também, questionando práticas e valores da sociedade que limitam a democracia em sua radicalidade. A geração de conhecimento encontra-se, portanto, articulada à ação política. Investigar a realidade associa-se, nesse sentido, à possibilidade de dar visibilidade a dados e análises gerados e aos impactos possíveis dos mesmos junto a atores estratégicos tais como população pesquisada, sociedade civil organizada, institutos de pesquisa, gestores governamentais etc. Referências ALVES, Adjair. (2003). Galeras e o movimento de cultura de rua, em Caruaru. In. CALADO, Alder Júlio Ferreira. (org.) Por uma cidadania alternativa: estudos nos campos político-partidários, do movimento de cultura popular, educativo, direitos humanos e do trabalho. p. 31 – 56. ___________. (2005). Cartografias culturais na periferia de Caruaru: hip-hop, construindo campos de luta pela cidadania. Recife. 124p. Dissert. Mestrado em Antropologia. CFCH. UFPE. __________. (2009). O Rap é uma guerra e eu sou gladiador: um estudo etnográfico sobre as práticas sociais dos jovens hoppers e suas representações sobre a violência e a criminalidade. Tese Dr. em Antropologia. CFCH/UFPE. Recife, PE. 260p.

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