a cidade antiga - de fustel de coulanges a max weber e alem

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  • lA cidade antiga:de Fustel de Coulanges a

    Max Weber e alm*

    O mundo greco-romano de que vou tratar, com excluso doOriente Prximo pr-grego, era um mundo de cidades. -Mesrno_a po-pulao agrria, sempre majoritria, vivia, na maioria das vezes,em algum tipo de comunidade aldeias, vilarejos, pequenas cida:ds e no em propriedades rurais isoladas'. E razovel e defen-svel supor que, num perodo de quase mil anos, cada vez maishabitantes da Europa, frica do Norte e oeste da sia passarama viver em pequenas cidades, numa proporo que nos Estados Uni-dos, por exemplo, at a Guerra Civil no foi alcanada. (Reconhe-cidamente, s possvel uma suposio, desde que faltam estatsticasreferentes Antiguidade.) Os prprios antigos acreditavam firme-mente que a vida civilizada s poderia ser imaginvel em cidadese por causa delas. Da o crescimento das cidades como um acompa-nhamento regular e contnuo da disseminao da civilizao greco-romana em dirco ao leste depois das conquistas de Alexandre,at o Hindu Kush; para o oeste desde a frica at a Gr-Bretanha,com as conquistas dos romanos , at atingirem a cifra de milhares.

    O suporte urbano da civilizao parecia to evidente para osantigos, que eles raramente se dedicaram a uma sria anlise da ci-dade. Nem mesmo tentaram uma definio formal (exceo feitaa "definies" administrativas, s quais retornarei mais adiante).

    * Originalmente publicado no Comparative Studies in Society and History XIX(1977) 305-27 c reeditado com autorizao desse jornal.

  • 4 ECONOMIA E SOCIEDADE NA GRCIA ANTIGA

    Ao escrever um guia da Grcia no fim do sculo II a.C., Pausniasnegou a categoria de cidade a um pequeno povoado existente na Gr-cia central: "sem edifcios pblicos, sem teatro, sem praa pblica,sem gua encanada... o povo vive em cabanas semelhantes a barra-cas de montanha na borda de uma ravina" (10.4.1). Isso pelo me-nos aponta para uma definio: uma cidade deve ser mais que ummero conglomerado de pessoas; h condies necessrias de arqui-tetura e bem-estar que, por sua vez, expressam certas condies so-ciais, culturais e polticas. Muitos sculos antes Aristteles japontara na mesma direo. O assentamento e planejamento de umacidade, escreve ele em Poltica (1330a34ss), envolve quatro conside-raes: sade, defesa, adequao atividade poltica e beleza.

    Pausnias, como se nota, no fez objeo pretenso do po-voado com base em seu pequeno tamanho. E Aristteles v a pe-quena dimenso como virtude, at mesmo como condio necessria:a Babilnia, da qual devia conhecer muito pouco, era para ele umepteto, um smbolo de elefantase, portanto a negao da verda-deira cidade (Poltica, 1265alOss). De fato, em sua poca provavel-mente no havia nenhuma cidade no mundo greco-romano compopulao acima de 125.000 ou 150.000 habitantes, e provavelmen-te nem meia dzia excedia os 40.000 ou os 50.000 (nmeros que po-dem ser dobrados se forem includos os habitantes da zona rural dacidade). Aps Aristteles houve uma tendncia para um crescimen-to substancial da populao urbana, mas se Rorna c possivelmenteCartago acabaram por chegar, talvez, a meio milho, a mdia esta-va mais prxima de Pompia, com uns 20.000 habitantes pocade sua destruio em 79 d.C.

    Tambm se nota que nem Aristteles nem Pausnias estavampreocupados com a "definio administrativa" de uma cidade, em-bora o primeiro estivesse escrevendo sobre a cidade-Estado autno-ma, a polis em grego, e o segundo sobre uma cidadezinha existenteem uma das provncias do Imprio romano. Qualquer estado terri-torial que tenha um certo nmero de conglomeraes dentro de seuslimites deve necessariamente definir e distinguir essas conglomera-es para fins de policiamento, taxao, manuteno de estradas etodas as outras exigncias e servios que a vida social apresenta. Umapesquisa sobre essas definies e distines por si s revelaria umasurpreendente variedade, porque essas so matrias tcnicas margi-nais a um estudo da cidade, e pretendo ignor-las amplamente.

    A expresso "cidade-Estado", que acabo de usar com refern-cia a Aristteles, uma conveno para traduzir a palavra grega po-lis. Essa conveno, assim como sua equivalente germnica,Stadtstaat, foi criada (no sei quando nem por quem) para pr fim

    A CIDADE ANTIGA ... s'. ' \ uma confuso terminolgica no grego antigo: a palavra polis era

    empregada na Antiguidade para "cidade" em sentido estrito e para"cidade-Estado" em sentido poltico. Quando Aristteles examinouas condies corretas para o assentamento de uma cidade, escreveupolis, palavra que usou centenas de vezes na Poltica para seu as-sunto principal, que era a cidade-Estado, no a cidade. No tinhamotivo para temer que seus leitores se equivocassem, como se per-mitem os historiadores modernos.

    Para Aristteles, como para Plato antes dele, a polis nasceudevido incapacidade das duas formas anteriores de associao hu-mana, a famlia e o agrupamento de parentesco maior, para satisfa-zer todas as necessidades legtimas de seus membros. A at-su-ficincia, a autarquia^ era o objetivo, e uma polis adequadamen-te estruturada e constituda devia ser capaz de atingir essa meta,exceto quanto inevitvel ausncia de recursos naturais essenciais;para isso (e s para isso) o comrcio exterior era admissvel2. b-vio que a autarquia uma ideia absurda para uma cidade. Platoe Aristteles no escreviam absurdos: consideraram o urbnl[orural, a cidade e o campo, como uma unidade, no como variveisdistintas em competio ou conflito, efetivo ou potencial. Mesmoos agricultores que viviam fora da cidade estavam integrados na polis.O que se chama comumente de "luta de classes" invariavelmenteum conflito entre "ricos" e "pobres", no entre proprietrios deterras e industriais, ou entre trabalho e capital, ou entre senhorese escravos. As discusses da propriedade c da posse da propriedades giravam em torno da terra. Embora fizessem uma distino en-tre fazendeiros-fidalgos, que viviam na cidade, e fazendeiros-lavradores, que trabalhavam no campo, era uma distino entre .ho-mens de lazer que s desfrutavam a boa vida e homens.que-traba-Ihavam para seu sustento: mais uma vez, n^o era uma distino entrecidade e campo. O fazendeiro-lavrador ocupava uma posio maisalta na escala social que o arteso, mas isso era uma questo de mo-ralidade.

    A cidade antiga perderia logo sua autonomia. O processo co-meouJqgp_dep_ois da morte de Aristteles, com a criao das mo-narquias helensticas, e terminou quando os romanos incorporaram munUpTielnico, e muito mais, a seu Imprio. Contudo, mesmodpisT e at o fim da Antiguidade, cada cidade inclua normlmrPte um^reTural de certa extenso, muitas vezes bastante conside-rvel, em seu territrio reconhecido. Uma cidade sem territrio eraum fenmeno raro, restringindo-se, em grande parte, a comunida-des costeiras de um tipo peculiar. O que mais importante para nossopropsito, a unidade tradicional de cidade e campo poltica, ju-

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    cos, em famosa polmica que comeou no fim do ltimo sculo econtinuou durante as primeiras dcadas do nosso, sustentavam queas diferenas entre a cidade antiga e a cidade moderna so mera-mente quantitativas: pequena populao, menor comrcio, menorindstria. A auctorias de Eduard Meyer, Julius Beloch e, mais re-centemente, Rostovtzef f calou a oposio e mesmo a discusso, pe-lo menos entre os historiadores da Antiguidade9.

    Considerando-se que desde que Gordon Childe descobriu a "re-voluo urbana" houve o crescimento de uma literatura cada vezmais sofisticada sobre o comeo do urbanismo na Amrica Central,Mesopotmia e China antiga10, e considerando-se a incessante lite-ratura do incio do sculo XIX sobre o "nascimento das cidades"(rtulo que, curiosamente, j tinha sido adotado para o nascimentoda cidade medieval), os mil anos intermedirios aparecem como umvcuo, ou talvez se devesse dizer como um espao proibido. H umnmero considervel de publicaes sobre o que s vezes pompo-samente chamado de "planejamento da cidade antiga", e ningumdiscutir que isso seja parte da histria urbana, como o so a demo-grafia, os esgotos e o saneamento11. Mas uma cidade mais queo simples total aritmtico de seu traado, esgotos e habitantes, e digno de nota que a cidade antiga qua cidade tenha despertado topouco interesse. Se ela no tivesse "desaparecido" no fim da Anti-guidade, no teria que "nascer" outra vez: essa simples lgica, so-zinha, deveria ter chamado ateno para o ponto.

    Houve excecs, naturalmente, e talvez mais cxcees aparen-tes. Momigliano escreveu recentemente: "Quando se fala da cidadeantiga (citt) como uma cidade na qual atuavam instituies e cir-culavam ideias, o primeiro historiador moderno cujo nome nos vem memria Fustel de Coulanges."12 A cidade antiga de Fustel foipublicada em 1864 e causou um tremendo impacto em certos crcu-los. Escrevendo em 1891, W. J. Ashley observou que "especialmentena Inglaterra... alinhou-se com toda essa corrente de pensamentoque, ento, estava comeando a se voltar na direo da evoluosocial, poltica comparativa, e outras semelhantes. Durante um anoaproximadamente, o conselho mais importante que os professoresdavam para quem ia concorrer a uma bolsa de estudos nas universi-dades era que lesse A cidade antiga" ^ . A traduo de Willard Smallfoi publicada nos Estados Unidos em 1873, e o meu exemplar, da-tado de 1894, j faz parte da oitava edio. No mundo acadmico,por outro lado, o interesse restringia-se aos historiadores francesese aparentemente aos advogados romanos na Itlia14.

    Agora, a primeira coisa que deve ser dita sobre A cidade antiga e a mais importante sob todos os aspectos que seu tema

    A CIDADE ANTIGA ... 9

    a cidade-Estado, no a cidade. Os franceses e os italianos no ado-taram a conveno "cidade-Estado". Assim, cite (ou citt), comopolis, pode significar ville, um centro urbano, ou, segundo o dicio-nrio da Acadmie, "Ia Constitution de PEtat". Fustel decidida-mente no se ateve ao sentido de ville. Seu tema foi a origem dapropriedade privada, a origem do Estado e as "revolues" dentrodo Estado antigo, e seu livro tem uma tese em que insiste repetida-mente. Eis uma passagem tpica: "H trs coisas que, desde os tem-pos mais_antigqs, encontramos consolidadas e estabelecidas nessassociedades gregas e italianas: a religio domstica, famlia b di-reito de propriedade-trs coisas que tinham no comeo uma rela-o manifesta e parecem ter sido inseparveis. . ideia de proprie-dade privada existia na prpria religio. Toda famlia tinha seu lare seus antepassados. Esses deuses s podiam ser adorados pelaj[a-mlia e s protegiam-a-ela. Eram _sua.propriedade."15

    O elo inextricvef famlia-religio-propriedade foi depois trans-portado para uma unidade de parentesco maior, a gens, e, por fim,para o Estado mais primitivo. Para Fustel, a sucesso_famlia-geAj.s-Estado era claramente uma sucesso histrica, no simpiesmentFcoh-ceifual. At esse ponto ele estava seguindo Aristteles, que, toda-via, nunca imaginou que o culto dos antepassados e o culto do fogo(lar) fossem a origem da propriedade privada. Nenhum autor anti-go compartilhou, nem poderia, da filiao de Fustel doutrina arianarecm-inventada: ele inclua os indianos do Rigveda e (devido a umerro comum naquela poca) os etruscos com os gregos e italianosem seu esquema de evoluo. Esse foi o alcance e o limite do famo-so papel pioneiro de Fustel, como comparativista, nesse livro.

    Para um historiador que, como eu, sente grande admirao pelaobra subsequente de Fustel, como seu estudo fundamental sobre afase final da colonizao romana ou seu trabalho sobre a Franae a Alemanha medievais, A cidade antiga no fcil de aceitar. Seudesdobramento do conhecimento macio das fontes gregas e latinas acompanhado por uma quase incrvel ausncia de crtica a essasfontes. Apesar da deliberada recusa em mencionar um nico nomede autor moderno, o livro polemicamente ideolgico de um modosutil e complexo; assim foi sua recepo, como Ashley observou;assim tambm, como Ashley explicou com pesar, foi a fria recep-o das obras medievais posteriores de Fustel. Nelas, a amplitudede sua interpretao emerge em cada pgina, seu tratamento das fon-tes impecvel, a fundamental fora criadora da religio vai desa-parecendo, mas a insistncia de que desde os primeiros vestgios dassociedades civilizadas houve propriedade privada, no a posse co-munitria, permanece como tema central.

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    Contudo, A cidade antiga no deixou, de modo algum, de cau-sar um notvel impacto acadmico em certo sentido. Em primeirolugar, o livro tornou-se decisivo para o desenvolvimento da escolade Durkheim1^. Em segundo, Fustel, junto com Maine e Morgan,trabalhando os trs independentemente nos dias calmos do evolu-cionismo social, atriburam consanguinidade o papel central queela detm at hoje na antropologia social. E terceiro, atravs de PaulGuiraud e mais ainda de Gustave Glotz, o livro deixou sua marcaestampada nos historiadores franceses da Antiguidade. No clssicode Glotz La cite grecque (A cidade grega), publicado em 1928, e quetambm um trabalho sobre a cidade-Estado, no sobre a cidade,as pginas iniciais so dedicadas a Fustel. "A grandiosa construode Fustel de Coulanges", diz ele, "inspira admirao... No obs-tante, hoje em dia impossvel aceitar todas as suas concluses"(um veredito que ecoa na apresentao de Henri Berr). E quais eramas reservas de Glotz? "A histria no nos permite um caminho reti-lneo":,alm da famlia e da cidade, preciso que se considere oindivduo.

    "Na poca em que A cidade antiga foi publicada", continuaGlotz, "ningum, desde o tempo de Montesquieu, tinha emprega-do [o mtodo comparativo] com tal maestria." No consigo expli-car um julgamento to desinformado da parte de um historiadordessa importncia; nem mesmo a explcita recusa de Glotz em em-pregar o mtodo comparativo serve de explicao. O "mtodo com-parativo" de A cidade antiga uma iluso, em sua maior parte, vistoque Fustel sustentava estar revelando um padro de evoluo aria-no nico. Uma afirmao tpica : "A religio dos mortos pareceser a mais antiga que existiu entre essa raa de homens"17; e, dequalquer modo, no sculo seguinte ao de Montesquieu, o volumede estudos comparativos genunos tinha aumentado enormemente.Contudo, como Durkheim observou, por ignorar a evidncia etno-grfica disponvel, Fustel chegou a um falso conceito da gensromana18. No obstante, podemos concordar corn Evans-Pritchardsobre o fato de que A cidade antiga marcou "a linha divisria entreos tratados especulativos e dogmticos de escritores como Turgot,Condorcet, Saint-Simon c Comte, de um lado" e a "anlise deta-lhada" e o "tratamento erudito" que caracterizam o trabalho deDurkheim, tubert e Mauss19. Tambm podemos concordar queFustel fez uma contribuio considervel para chamar a ateno so-bre algo quase esquecido, que era a persistncia das instituies deparentesco na antiga cidade-Estado. Todavia, a histria da cidade(seja cidade, seja cidade-Estado) antiga, medieval ou moderna nopode ser suficientemente analisada em termos de culto dos ances-

    A CIDADE ANTIGA .. 11

    trais, culto do fogo e conflito entre o grupo de parentesco e o indi-vduo no Estado desenvolvido.

    A mais notvel das teorias da evoluo social surgida, com ba-se nos estudos comparativos, no sculo entre Montesquieu e Marxfoi a teoria das quatro fases da_caa,_dp pastoreio, da_agricultu-ra^e do comrcio atravs das quais o homem~primTivo evoluiu.Seus principais defensores encontravam:se na Esccia e na Frana,e com John Millar temos o que Meek chamou agora de "efetiva-mente" "uma concepo materialista da histria". Na apresenta-o de suas Observations Concerning he Disinction of Ranks inSociety (Observaes referentes distino de classes na socieda-de), publicadas pela primeira vez em 1771, Millar relacionou ejitre"as causas daqueles sistemas peculiares de lei e governo qu&apare-ceram no mundo" as seguintes: "a fertilidade ou a pobreza do-so-Ip, a natureza de seus produtos [do pas], as espcies de trabalhosnecessrios para prover subsistncia, o nmero de indivduos reu-nidos em uma comunidade, sua habilidade nas artes, as vantagensque desfrutam por entrar em transaes mtuas e manter uma cor-respondncia ntima"20.

    No h vestgios da teoria das quatro fases em A cidade anti-ga. Todavia, Fustel no s conhecia a teoria, pelo menos em suasverses francesas, como a aceitava at certo ponto. No pargrafoinicial de sua The Origin ofPropery in Land (A origem da proprie-dade da terra) (publicada pela primeira vez em 1827), escreve emresposta s crticas: " bvio que quando os homens ainda esta-vam na fase da caa ou do pastoreio, e no tinham chegado ideiada agricultura, no lhes ocorria tomar um pedao de terra para ca-da um. A teoria de que falo aplica-sc a sociedades estabelecidas cagrcolas."21 Mas depois ele se afasta radicalmente, como se afas-tou de Aristteles, substituindo o modo de subsistncia pela religio,como o foco da ateno e a chave para a formao e a mudanadas instituies. Ashley observou corretamente que mesmo em seutrabalho sobre o colonato Fustel falhou cm no dar a devida consi-derao "ao econmico, bem como ao constitucional ou legal"22.

    Pelo que sei, o primeiro homem a insistir e a formular um~"tO-ria econmica da formao da cidade (Stdtebildungy, "da rela-o necessria entre o fenmeno da cidade e o sistema econmicodominante", foi Werner Sombart em Der moderne Kapilalismus (Ocapitalismo moderno), publicado pela primeira vez em 1902, emLeipzig23. Nesse trabalho ele apresentou uma srie de modelos, co-meando com o bvio trabalho de definio: "Uma cidade umassentamento de homens que, para sua manuteno, confiam nosprodutos do trabalho agrcola estrangeiro (ou alheio)."24 Na segun-

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  • 14 ECONOMIA E SOCIEDADE NA GRCIA ANTIGA

    Bucher, em suma, sabia perfeitamente bem que a clula fami-liar fechada no era a formao econmica nica ou universal naAntiguidade greco-romana. O fato de ter discutido as cidades greco-romanas superficialmente outro assunto seus captulos sobreSiadwirtschaft tratavam da Idade Mdia , mas ele incorporou acidade antiga em seu esquema de evoluo atravs da nfase aplica-da mudana das relaes cidade-campo: "O grego e o romano queresidiam na cidade eram os possuidores e exploradores da terra, mes-mo que deixassem o trabalho ser feito por escravos ou arrendat-rios... Isso no acontecia com os habitantes de nossas cidadesmedievais... Cidade c campo tinham se separado cm relao ativi-dade econmica." A cidade medieval "no era um mero centro deconsumo, como as cidades dos gregos e dos romanos"38. Sombart,ento, elaborou e apurou a noo: "Com o termo cidade de consu-mo refiro-me quela que paga por sua manuteno (Lebensunter-halt)... no com seus prprios produtos, porque no precisa. Suamanuteno deriva, mais precisamente, de uma exigncia legal(Rechtstitet), como impostos ou rendas, sem ter que resgatar valo-res de restituio." A seguir, acrescentou uma observao: "Os cria-dores originais, primeiros, da cidade eram consumidores, ossubsequentes (segundos, terceiros, etc.), eram produtores", e os l-timos eram um elemento dependente, "cuja existncia estava sujei-ta cota do fundo de consumo que lhes era concedida pela classeconsumidora"39.

    E isso nos traz afinal a Max Wcber. A relao intelectual exis-tente entre Webcr c Sombart era muito prxima: foram co-editorcsdo renovado Archiv ftir Sozictlwissenshaft und Sozialpolitik,primeiro40. Bucher no era membro do crculo de Weber, mas oAgrarverhaltnisse de Wcber iniciado com uma calorosa defesa, em-bora no com uma aceitao incondicional, do Entstehung der Volks-wirtschaft de Bucher41. Minha preocupao em mostrar que otrabalho de Weber sobre a cidade, infinitamente mais conhecido,teve importantes precursores e, em certo sentido, colaboradores, vaialm da mera curiosidade por meu assunto. Precisamos de Sombarte de Bucher para ajudar-nos a preencher o quadro, pois a chamadaanlise da cidade de Wcber um ensaio pstumo, sem anotaes,do tamanho de um livro, posteriormente includo em um contextoque muitas vezes posto de lado em seu Wirtschaft und Gesellschaft.Este ltimo no apenas uma obra pstuma na qual ele trabalhoupor mais de uma dcada (e portanto com mudanas de estilo e obje-tivos), mas uma obra que Weber deixou sem sequer indicar a se-quncia de suas partes42. E, deve-se acrescentar, o estilo de Weberem seus ltimos trabalhos, como sua linha de pensamento, era ex-

    A CIDADE ANTIGA 15

    traordinariamente denso e complexo; nos dois trabalhos que me in-teressam essas caractersticas so to marcantes que as traduesinglesas existentes, na melhor das hipteses, no so confiveis e,na pior, apresentam erros graves.

    Weber foi, naturalmente, o socilogo mais profundamente his-trico. Comeou sua carreira como historiador das leis, particular-mente interessado em dois grandes temas, a histria da organizaoda explorao da terra (com suas implicaes polticas e sociais ouconsequncias) e o desenvolvimento das prticas e instituies co-merciais. Nesse primeiro perodo escreveu Rmische Agrargeschichte(1891), uma pea brilhante de pesquisa histrica ainda dentro de umaestrutura reconhecvel como a de uma disciplina acadmica estabe-lecida. Depois disso, seu nico trabalho substancial sobre a Anti-guidade foi um tour de force, um extenso livro escrito em quatromeses, em 1908, e publicado no ano seguinte na enciclopdia queo encarregou do assunto e responsvel pelo ttulo enganoso, DieAgrarverhaltnisse ds Altertums (ainda pior no ttulo ingls escolhi-do para a traduo recentemente lanada: The Agrarian SociologyofAncient Civilizations [A sociologia agrria das civilizaes anti-gas]). Sua viva qualificou-o, acertadamente, como "uma espciede sociologia da Antiguidade" prefaciada por "uma teoria econ-mica do mundo dos Estados antigos"43, entre os quais ele incluiuno s a Grcia e Roma, mas tambm o Oriente Prximo (Egito,Mesopotmia e Judia). Considerando-se a preocupao de Webercom as dinmicas das instituies sociais e das inter-relaes socio-culturais, o Agrarverhaltnisse no nem uma histria da agricultu-ra antiga, nem da sociedade antiga. Wcber tinha deixado de escreversobre histria. Menos historiogrfico ainda seu livro, um poucomais tardio, sobre a cidade, embora os dados sobre a Antiguidadetenham sido tirados em grande parte do Agrarverhaltnisse. E muitosignificativo que cada seo do estudo posterior comece ou com con-ceitos gerais ou com assuntos medievais, antes que o mundo antigoseja apresentado para fins de esclarecimento ou contraste.

    Em suma, Weber nunca publicou um estudo da cidade antiga,e suas opinies sobre esse assunto, como sobre outros aspectos domundo antigo, devem ser extradas, com esforo (inclusive o quecusta para decifr-lo), de sua obra total e no apenas de seus escri-tos que tratam abertamente da Antiguidade, tendo-se um cuidadoconstante com as nuanas do seu pensamento44. Alguns dos con-ceitos centrais tm uma proximidade ntida com os de Bucher e Som-bart. Ele tambm comea com uma definio econmica que acabasendo uma declarao refinada e elaborada da de Sombart: uma ci-dade um lugar no qual "a populao residente satisfaz uma parte

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    ecofio/filcafnenle essencial de suas necessidades dirias n mercadolocal, e isso, em grande parte, por meio de produtos que os residen-tes e os habitantes das proximidades produziram ou adquiriram pa-ra vender no mercado". Quando a receita dos grandes consumidoresorigina-se de algum tipo de renda, a cidade uma cidade-consumidora, como na Antiguidade, pois, "se hoje em dia imagina-se o homem urbano tpico como algum que no obtm seu susten-to de sua prpria terra, originalmente o oposto era verdade em rela-o massa das cidades tpicas (poleis) da Antiguidade"45.

    Duas palavras da citao acima requerem uma ateno espe-cial: "originalmente" e "tpicas". Originalmente^alidade antiga nas-ceu em volta da cidade residencial dos grandes proprietrios de terra,mas, conforme ia crescendo, diminua cada vez mais o nmero deproprietrios de terra, pequenos ou grandes. Contudo, ela continuavasendo uma cidade de consumo: mesmo em sua ltima fase, "demo-crtica", os conflitos sociais na cidade antiga eclodiram devido sdemandas dos "interesses dos devedores, essencialmente, portanto,dos interesses do consumidor", diferentes dos interesses dos "pro-dutores" que serviram de base para conflitos similares na IdadeMdia.

    Para explicar essa diferena fundamental no desenvolvimento, necessrio introduzir uma varivel independente na anlise, aescravido46. O uso generalizado de escravos na agricultura e na ma-nufatura restringiu severamente o campo do trabalho livre e bloqueoua expanso do mercado, especialmente o dos produtos manufatura-

    _dos de grande consumo.Tambm retardou e impediu efetivamentea crescente racionalizao da produo: devido incerteza do mer-cado e flutuao dos custos dos escravos (tanto de aquisio quantode manuteno), o proprietrio de escravos tinha que ser livre paradispor de uma parte de sua mo-de-obra escrava a qualquer momen-to, ou para explor-la de modos diferentes de seu emprego diretona produo. Uma ampla diviso do trabalho e outras formas deracionalizao teriam destrudo a flexibilidade do proprietrio. Emresumo, o proprietrio de escravos da Antiguidade, como o proprie-trio de terras e o "proprietrio de dinheiro", vivia de rendas, noera um empresrio47. O contraste com o desenvolvimento da ma-nufatura na Idade Mdia fala por si s.

    Dessas distines originaram-se, igualmente, ntidas diferenasna polftica, e agora deve ser introduzida uma nova varivel. Na se-o inicial de seu ltimo trabalho Weber comea com a definio"econmica" da cidade, como j mencionei, mas apressa-se em di-zer que no uma definio completa. "Uma simples aglomeraoresidencial de comerciantes e de interesses industriais e a satisfao

    A CIDADE ANTIGA ... 17

    regular das necessidades dirias do mercado no esgotam por si sso conceito de 'cidade'." tambm "uma associao reguladora daeconomia" abrangendo "os objetos caractersticos da regulamen-tao da poltica econmica no interesse da associao e uma ma-triz de medidas caractersticas"48. O enfoque j era diferente daqueledo Agrarverhltnisse, embora grande parte desse ltimo trabalhopossa ser percebida no que o antecedeu. ;,,

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    cincia (quando esse era o caso) dos Anstze para vencer e even-tualmente dominar.

    Assim, a parte final de Agrarverhltnisse tenta explicar por queo Imprio romano e apax romana destruram, mais do que alimen-taram, os Anstze do capitalismo que ele tinha detectado na cidadeantiga. O argumento denso, mas pode ser razoavelmente resumi-do do seguinte modo. Apax romana ps um fim grande expansoterritorial e acumulao dos produtos das pilhagens e das grandesquantidades de prisioneiros de guerra processos essenciais ao cres-cimento e sade da economia greco-romana. A expanso prviaanexara ao Imprio, pela primeira vez, grandes pores de territ-rio interno, longe do mar, e, portanto, com acesso inadequado pa-ra rotas de comrcio e comunicao. Consequentemente, naspossesses do interior havia uma tendncia para o assentamento ru-ral em volta de uma vila onde os suprimentos bsicos do consumomacio eram produzidos, "desarmando-se" com isso a cidade, atra-vs da reduo de suas oportunidades de atividade lucrativa. O gol-pe decisivo foi desferido na esfera poltica: a monarquia absolutasubstituiu a administrao da cidade pelo "exrcito profissional di-nstico e a burocracia", terminando em um "Estado-liturgia" (umEstado que confia nos servios compulsrios). "Uma vez que o ca-pitalismo da Antiguidade estava politicamente ancorado e depen-dente da explorao privada das relaes polticas de dominao cmum Estado-cidade em expanso, ele ficou estagnado com o desapa-recimento dessa fonte de formao de capital... O sistema burocr-tico acabou com a iniciativa poltica de seus cidados, bem comocom a iniciativa econmica, para a qual faltavam oportunidades ade-quadas." E, ento, o final sem esperana: "Toda burocracia tema tendncia de conseguir o mesmo resultado por meio de sua auto-expanso (Umsichgreifen). A nossa tambm."54

    Para historiadores que so alrgicos a tipos ideais, aqui nadah para discutir; no h propostas que meream exame e crtica. Po-demos encontrar consolo e refgio suficientes na "descoberta" deque o conhecimento de Weber sobre o mundo grego era muitssimomenor e menos preciso que sobre o romano55, e na demonstraode que Weber agora pode ser apontado como errado por ter chama-do a equites romana de "uma classe capitalista nacional pura"56.Pode-se arguirf(legitimamente) o conceito de Weber sobre os ele-mentos feudais e capitalistas na Antiguidade, ou sua definio dacidade. Mas, depois de terminada a demolio, os fenmenos notero desaparecido silenciosamente. Continuar sendo verdade e pre-cisando de explicao: que o campons era um elemento integranteda cidade antiga, mas no da medieval; que a associao era um

    l ; > ' > ) f - . ' t \ CIDADE ANTIGA ..

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    elemento integrante da cidade medieval, mas no da antiga. Talvezme seja permitido repetir o que escrevi recentemente sobre o segun-do ponto: " normalmente esquecido que os escavadores de Tarsono encontraram nenhum Entreposto de troca de Tecidos, que ne-nhuma das cidades antigas tinha Sedes de Corporaes nem Bolsas,que, ao lado das catedrais, so at hoje as glrias arquitetnicas dasgrandes cidades medievais da Itlia, Frana, Flandres, as cidadeshanseticas ou da Inglaterra. Compare-se a agora ateniense com aGrande Place de Bruxelas."57 Alm disso, ainda continua sendo ver-dade e precisa de explicao o fato de o urbanismo antigo ter deca-do a ponto de ser necessrio um segundo "nascimento de cidades"na Idade Mdia. Se Weber no oferece explicaes satisfatrias, nemmesmo parcialmente, para onde nos voltamos?

    Para Karl Marx, talvez? Marx foi o fantasma que perseguiu We-ber (e naturalmente Sombart) a vida toda, muito mais do que se po-de deduzir dos raros e at speros comentrios sobre Marx e omarxismo que se encontram nos escritos de Weber58. No tenho in-teno de entrar nesse assunto, exceto para ressaltar que ele maiscomplexo do que alguns comentrios correntes, simplistas e dogm-ticos sugerem. A mera rejeio de Weber como um "idealista", cu-ja nfase no "esprito" e comrcio levou-o a ver "capitalismo" ondenunca existiu, uma caricatura, um jogo de palavras que no levaa nada. Em suas anotaes de 1857 Marx escreveu sobre "a influnciacivilizadora do comrcio externo", embora a princpio s um "co-mrcio passivo"59, em uma passagem que no pode deixar delembrar-nos nitidamente da tese de Wcbcr de que a mudana antigado comrcio passivo para o ativo foi o primeiro passo em direoao abismo entre a cidade oriental e a ocidental. Para Marx (e En-gcls) nunca houve dvida de que o "capital comercial", as "cida-des comerciais" e mesmo os "povos comerciais" (fencios ecartagineses) eram fenmenos antigos muito disseminados, e que emalguns casos, na antiga Corinto, por exemplo, o comrcio levou auma manufatura altamente desenvolvida60.

    Weber, como Marx, punha o fenmeno do capitalismo no cen-tro de seus interesses61. Que as duas anlises, afinal, divergem pro-fundamente a ponto de serem conflitantes, inegvel (sem falar noextremo desacordo sobre a ao poltica e as metas futuras). As teo-rias de Marx eram "absolutamente intragveis" para Weber "co-mo proposies ontolgicas^. Por outro lado, ele via "a inter-pretao de Marx sobre a histria, relacionada s vrias formasde produo, como uma hiptese extremamente til que pode aju-dar a atingir importantes percepes sobre o desenvolvimento dasociedade industrial moderna"62. Consequentemente, no que se r-

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    fere s eras pr-industriais e cidade antiga em particular, h umagrande rea de proximidade e acordo entre eles.

    Marx, naturalmente, nunca fez uma investigao sistemtica so-bre o mundo antigo em geral, ou sobre a cidade antiga em particu-lar. Sobre esta ltima, todos os seus escassos e dispersos comentriosemanam da proposta; que citei antes, de A ideologia alem, repeti-da no primeiro volume de O capital: "O fundamento de toda divi-so de trabalho que alcanou certo grau de desenvolvimento e foiocasionada pela troca de mercadorias a separao da cidade docampo. Poder-se-ia dizer que toda a histria econmica da socieda-de est resumida no movimento dessas antteses. Todavia, por ora,no entraremos nesse assunto."63

    No apenas "por ora", posso acrescentar: em toda a obra deMarx, nada mais encontrado sobre a cidade antiga alm de decla-raes ocasionais, propostas sobre tipos ideais, frequentemente umtanto weberianas em sua essncia64. Assim, lemos em Grundrisse:"No mundo da Antiguidade, a cidade com seu territrio a totali-dade econmica... A cidadania urbana resolve-se economicamentena simples frmula de que o agricultor um residente da cidade."65

    Este no o local para uma extensa anlise dos paralelos (oudas divergncias), porm mais dois exemplos podem ser teis. "Oproletariado moderno, como classe, no existia. Pois a cultura an-tiga ou se apoiava na escravido em seu centro de gravidade (comona Roma republicana tardia) ou, onde o trabalho 'livre' predomi-nava no sentido do direito privado (no mundo helenstico e no Im-prio romano), ele ainda era permeado pela escravido at um grauque nunca existiu na Europa medieval." Isso Weber66, mas pou-cos historiadores marxistas poderiam discordar, razoavelmente, ex-ceto talvez para transferir os primeiros dois sculos do Imprioromano ocidental para a primeira das alternativas. "O poder mili-tar estava mais intimamente ligado ao crescimento econmico que,possivelmente, a qualquer outro modo de produo, antes ou de-pois, porque a nica origem principal do trabalho escravo eram osprisioneiros de guerra habitualmente capturados, enquanto o cres-cimento das tropas urbanas para a guerra dependia da manutenoda produo, em casa, pelos escravos." Isso Perry Anderson, emum recente e sutil estudo marxista67, e sua similaridade com We-ber evidente a part ir do resumo que j apresentei sobre o pontode vista weberiano referente ao impacto da pax romana.

    Suponhamos que algum acredite que essas proposies, e ou-tras que tirei de minha pesquisa da histria das teorias da cidadeantiga, sejam, pelo menos, suficientemente interessantes para me-recer um exame detalhado dos dados literrios, epigrficos e arqueo-

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    lgicos disponveis,, Quais sero as implicaes para uma investigaohistrica ulterior? Nem mesmo o historiador de mentalidade maisvoltada para a sociologia est disposto a parar com a formulaode tipos ideais. As variaes dentro de cada tipo, as mudanas e de-senvolvimentos, as implicaes no alcance total do pensamento eda ao humana exigem uma exposio detalhada e concreta umaexposio que seria ao mesmo tempo um teste para o tipo ideal68.Tal estudo sobre a cidade antiga ainda no existe. Para ser exato,existe um nmero crescente de "histrias" de cidades individuais,gregas e romanas, desde a Idade Arcaica at o fim da Antiguidade.Todavia, com poucas excees, elas no tm um foco ou um esque-ma conceituai: tudo que se sabe sobre o local que est sendo exami-nado parece ter a mesma importncia arquitetura, religio efilosofia, comrcio e cunhagem de moedas, administrao e "rela-coes internacionais". A cidade qua cidade levada de roldo.^abordagem usualmente descritiva e positivista, "coletando evidn-cias e interrogando-as com mente aberta"69: as suposies no ex-pressas sobre a economia geralmente so "modernizantes". Nosubestimo a contribuio que esses estudos representaram para o co-nhecimento, nem as dificuldades inerentes ao empreendimento, tam-pouco os avanos conceituais como os que houve nos ltimos dezou vinte anos70. Mas acontece que as consideraes que levantei, osresultados apresentados por Marx, Bcher, Sombart e Weber, soperifricos, na melhor das hipteses, ao estudo corrente da cidadeantiga71.

    Finalmente, creio que a histria das cidades antigas individuais um cul-de-sac, dados os limites da documentao disponvel (e po-tencial) e a condio inaltervel do estudo da histria antiga. No inteiramente mau ver vantagem na fraqueza. H uma crtica cres-cente, feita histria urbana contempornea, por permitir queum dilvio de dados obscurea as questes necessrias e seupropsito72, perigo do qual o historiador urbano antigo, felizmen-te, est livre. Mas que perguntas desejamos fazer sobre a cidade an-tiga, quer possam ou no ser respondidas satisfatoriamente? Essa a primeira coisa a ser esclarecida antes que a evidncia seja coleta-da, para no dizer questionada. Se minha avaliao da situao atual clica, no porque eu no aprecie as perguntas que esto sendofeitas, mas porque usualmente no consigo descobrir outras pergun-tas alm das antigas de que tamanho? quantos? que monumen-tos? qual o grau de comrcio? que produtos?

    Para se entender o lugar da cidade como instituio central nomundo greco-romano e seu desenvolvimento, deve-se, sem dvida,partir de dois fatos. Primeiro, o mundo greco-romano era mais ur-

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    banizado que qualquer outra sociedade antes da era moderna.Segundo, a cidadc-Estado, a unidade intimamente ligada cidade-campo, continuou sendo o mdulo bsico mesmo depois que o com-ponente Estado da cidadc-Estado perdeu seu estrito sentido origi-nal^ Ela tambm continuou sendo uma "cidade-consumidora"?

    Que houve tais cidades-consumidoras por toda a Antiguidade, indiscutvel. Em 1385 a.C., Esparta derrotou Mantinia na Arc-dia e imps como condio para a paz que a cidade fosse arrasadae seu povo voltasse para os quatro povoados nos quais vivia ante-riormente. "No comeo eles ficaram descontentes", comenta Xe-nofonte (Helnicas, 5.2.7), "porque tiveram que demolir suas casase construir outras. Mas, depois, quando os proprietrios j estavamvivendo perto de suas fazendas nos arredores dos povoados, tinhamuma aristocracia e estavam livres do peso dos demagogos, ficaramsatisfeitos com o estado de coisas." Os comentrios polticos de Xe-nofonte so irrelevantes para meus propsitos; a viabilidade das exi-gncias espartanas o que interessa. E, quando a cidade de Mantiniafoi finalmente restaurada, ela continuou, durante sculos, como umcentro para residentes proprietrios de terras, corno era quando osespartanos a destruram73.

    Mantinia foi um caso tpico? Cpua, segundo Ccero (Da leiagrria, 2.88), foi preservada pelos romanos vitoriosos no interessedos agricultores da Campnia, entre outras coisas, para que "quandocansados do cultivo da terra, pudessem usar as casas da cidade".O crescimento urbano no centro c no norte da Itlia durante a Re-pblica gerou cidades do mesmo tipo74. A mesma coisa fez a "roj.manizacolL-da, regio do Danbio incorporada provncia dePnra, sob o Imprio75. A prpria Roma, naturalmente, era oprottipo da cidade-consumidora, como o foi durante toda sua his-tria. Antioquia tambm, a quarta cidade do Imprio: no sculo IVestima-se sua populao entre 150.000 e 300.000; sua extenso ter-ritorial era pelo menos trezentas vezes maior que a rea existentedentro das muralhas, e a base de sua riqueza era a terra e a posiode liderana dentro do sistema administrativo imperial76.

    Nos distritos extra-urbanos havia muitos povoados, cada umcom produo local e distribuio atravs de feiras rurais. Em con-sequncia disso, explica Libnio (Oraes, 11.230), os habitantes dospovoados "tinham pouca necessidade da cidade, graas ao intercm-bio entre eles mesmos".

    As conotaes atuais da palavra "consumidor" no deveriamser misturadas para no originar confuso. Ningum est sugerin-do que as classes urbanas mais baixas eram um bando de mendigose pensionistas, embora tenha se tornado um passatempo erudito "re-

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    futar" essa suposio sobre a cidade de Roma; apesar, tambm, deno se dever subestimar a extenso da pobreza, do desemprego eda fome. A questo implcita na noo de cidade-consumidora a economia e as relaes de poder dentro da cidade baseavam-se nariqueza gerada pelas rendas e impostos que afluam para os habi-tantes e circulavam entre eles e at que ponto isso acontecia77. Mes-mo Roma, a cidade-consumidora por excelncia, necessitou deinmeros artesos e comerciantes para a produo e circulao intra-urbanas. Na medida em que estavam envolvidos na "produo demercadorias de pequeno valor", a produo de mercadorias, porartesos independentes, vendidas a varejo para o consumo local, noinvalida a noo de cidade-consumidora.

    Tambm no est sendo sugerido pelos meus exemplos al-guns entre os muitos casos existentes que todas as cidades eramiguais. Se acontece que, em certos aspectos, elas todas foram cidades-consumidoras, o passo seguinte na investigao examinar as va-riaes do tipo ideal (ou a partir dele), para estabelecer uma tipolo-gia de cidades antigas. Consideremos Czico no mar de Mrmara,uma cidade porturia identificada pelos historiadores como "umagrande cmara de compensao para o comrcio do Ponto Euxino(mar Negro)"78, famosa por suas moedas de "ouro branco" (elec-tro) de grande circulao. Em 319 a.C., no curso das guerras entreos sucessores de Alexandre, um ataque de surpresa do strapa daFrigia do Hclcsponto pegou a cidade desprevenida, com poucas pes-soas dentro de suas muralhas, enquanto a maioria encontrava-se fo-ra, nos campos. No h motivo para no acreditar no historiadorDiodoro (18.51.1-2) sobre esse fato. Ento, onde se coloca Czicona tipologia? A menos que nos contentemos com a trivial e inex-pressiva formulao em srie "a vida econmica" de Nrico"dependia da produo agrcola, do pastoreio, da minerao, daindstria (sobretudo da fundio de ferro e trabalho do metal) e docomrcio"79 , essencial a anlise adequada dos fatores. Estes,muitas vezes, podero no coincidir com os modernos, e as possibi-lidades de uma anlise genuinamente quantitativa e dinmica sopoucas c frustrantes; no obstante, o procedimento inevitvel.

    No minha inteno enumerar as variveis ou formular umatipologia neste ensaio. Muito do que eu deveria acrescentar est im-plcito, de alguma forma (e s vezes explcito), no que j disse a extenso (e, em raros casos, a ausncia) do territrio agrcola per-tencente cidade; o tamanho da cidade e sua populao; o acessos vias fluviais; a extenso e "localizao" da fora de trabalho es-crava; a auto-suficincia nas grandes propriedades; paz e guerra; amudana do papel do Estado com o desenvolvimento dos grandes

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    imprios territoriais. Essa no uma lista exaustiva, mas suficien-te para os propsitos presentes. Ela torna a apontar para as ques-tes que distinguem a teoria do amadorismo diletante.

    Cheguei ao fim, referindo-me ainda cidade antiga. uma ca-tegoria defensvel? A mera cronologia no constitui argumento aseu favor, nem a inegvel variedade entre as cidades antigas um ar-gumento contra. Minha defesa muito simples. A cidade no existeisoladamente: parte integrante de uma estrutura social maior, nomundo greco-romano uma instituio central. A menos que e atque a espcie de investigao concreta que sugeri demonstre que,salvo excees, as cidades greco-romanas no tinham todas fatorescomuns de peso suficiente para assegurar sua incluso em uma ni-ca categoria e sua diferenciao da cidade oriental e da medieval,continuo afirmando que metodologicamente correto manter a ci-dade antiga como um tipo. E assim "tipo" retorna como minha pa-lavra final.

    Esparta e a sociedade espartana*

    A Esparta de que vou tratar encontra-se dentro de um perodoum pouco restrito, que se inicia por volta da metade do sculo VIe termina na batalha de Leutras em 371 a.C. Excluo a histria ante-rior, salvo uns poucos eventos e tendncias gerais, porque acreditoque nossa informao quase que totalmente fictcia (especialmen-te no que se refere a Licurgo); porque todas as tentativas de recons-truir essa histria anterior em detalhes, com nomes e datas exalas,baseiam-se em princpios metodolgicos completamente heterodo-xos; e porque a concentrao excessiva em pretensas origens remo-tas, num perodo de migrao legendrio, igualmente heterodoxacomo mtodo1. Paro em Leutras porque aceito a tradio grega,virtualmente unnime, da mudana qualitativa justamente no in-cio do sculo IV. Conseqiientemente, apesar de certos aspectos re-manescentes, Esparta estava novamente sendo transformada em umtipo diferente de sociedade.

    Isso significa que admito que o ponto crtico decisivo da hist-ria espartana chegou ou aconteceu no reinado de Leo e Agsides(Hcrdoto, 1.65-66), logo depois de 600 a.C., como a culminaode tribulaes internas que remontavam talvez a um sculo, pero-

    * Originalmente publicado em Problmes de Ia guerre en Grce ancienne, ed.J.-P. Vernant (Paris e The Hague, 1968), e reproduzido com a autorizao dos edi-tores, Mouton & Co, e da Ecole Pratique ds Hautes Eludes.