a câmara nupcial como chave hermenêutica do evangelho de tomé
TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
A cacircmara nupcial como chave hermenecircutica
do
Evangelho de Tomeacute
Ricardo Gomes
Tese orientada pelo Prof Doutor Joseacute Augusto Ramos
especialmente elaborada para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre em
Histoacuteria e Cultura das Religiotildees
2019
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Resumo
O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido
literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao
seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e
significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees
foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias
e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao
desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental
nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees
qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos
sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo
as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de
Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica
do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de
Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir
da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura
de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo
antigo
Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico
figura de Jesus cristianismo primitivo
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Abstract
The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have
been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its
reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings
to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a
research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of
the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development
of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to
answer the following questions what was the historical context of this gospel its social
space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message
and what are the specific characteristics of language and experience in the early
Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the
historical understanding of the development of the Christian mental space in the first
century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a
new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian
movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social
contexts and geographical spaces of the ancient world
Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of
Jesus primitive Christianity
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Agradecimentos
Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como
misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute
Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A
sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu
intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu
sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave
minha tatildeo doce Virgem Maria
Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades
maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza
ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus
e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado
com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele
o guarde eternamente
Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a
iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e
imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o
uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os
exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo
racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela
vontade do Pairdquo
Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2
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Iacutendice
Introduccedilatildeo 14
1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19
2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20
Literatura Profeacutetica 21
Literatura Sapiencial Judaica 21
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24
Uniatildeo Nupcial no Templo 24
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36
Os Manuscritos 37
A Liacutengua Original de Tomeacute 37
A Data de Tomeacute 38
A Origem do Evangelho de Tomeacute 39
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65
A Gloacuteria do Trono 69
O Templo 70
A Merkavaacute 72
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92
6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo
simboacutelico 95
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97
Eacuteden 100
13
O Grande Mar 102
A Fonte da Vida 106
Os Rios do Paraiacuteso 108
O Veacuteu 110
Por Detraacutes do Veacuteu 114
A Grande Luz 118
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122
A Imagem e a Luz 125
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138
7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143
As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150
8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154
9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166
Bibliografia 175
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Introduccedilatildeo
ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10
O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar
a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona
os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside
nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos
alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico
para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute
Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos
por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses
evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado
Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o
simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico
Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave
hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia
cristologia e protologia apresentada por Tomeacute
Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente
interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees
simboacutelicas do texto
Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o
panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem
valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual
Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma
linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial
no Evangelho de Tomeacute
Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese
apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico
No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a
metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da
cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo
pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas
do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute
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Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para
contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve
discussatildeo dos conceitos religiosos do documento
No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na
histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no
espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que
influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma
importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do
Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e
serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais
judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento
No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a
compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da
linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do
proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio
Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo
fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um
mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos
dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas
satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais
da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1
Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal
a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia
humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se
manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por
este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do
evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso
de presenccedila interior
Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as
temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia
religiosa do evangelho de Tomeacute
1 Lohuizen Wali Van (2011) 3
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No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico
que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria
forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as
realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos
cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos
siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o
processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho
eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser
humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas
afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma
produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave
sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo
O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo
no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute
a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas
atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um
gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere
facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica
Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de
Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta
exegese
Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios
mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto
de Tomeacute
Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma
realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta
conclusatildeo
Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho
de Tomeacute
O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no
pensamento do judaiacutesmo de II Templo
Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao
ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a
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compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento
judaico e no Evangelho de Tomeacute
Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e
aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do
seu contexto
Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do
Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste
texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco
O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva
dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem
teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos
enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de
Taciano e Livro de Tomeacute
Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda
na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo
cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro
O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da
doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta
opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios
reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador
Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de
Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de
Ahiqar e textos sapienciais de Qumran
Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo
substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino
da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio
posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca
Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a
caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento
filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute
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Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no
periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de
interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute
Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de
Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a
versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute
recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As
obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo
completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc
As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana
assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e
devidamente identificadas nas passagens traduzidas
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1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia
As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa
seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos
influenciaram a textualidade de Tomeacute
Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute
Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo
Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos
de Joatildeo e Filipe
Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando
historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes
tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute
A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia
Hebraica e na Literatura Sapiencial
Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns
dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos
posteriores
Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como
Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos
pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos
Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos
textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais
no Evangelho de Tomeacute
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2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo
A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre
Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que
envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano
As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar
num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico
Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como
marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma
realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o
retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do
matrimoacutenimo com o divino
Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O
que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa
leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de
Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo
da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino
Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a
imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano
uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se
com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4
Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo
recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de
Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos
inserem-se neste mesmo padratildeo
Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria
Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado
ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que
se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano
2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem
21
Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num
evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido
no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor
nas vidas das geraccedilotildees subsequentes
A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-
humano no final da histoacuteria
Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios
da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai
o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos
Literatura Profeacutetica
Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns
profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute
direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo
intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em
Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino
do Norte6
O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma
uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica
da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos
preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel
para com o proacuteximo
Literatura Sapiencial Judaica
No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da
Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus
identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora
Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas
vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e
6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26
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amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma
sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante
A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial
apresentada pela literatura sapiencial
Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do
casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido
Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora
Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos
Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da
crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de
cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela
A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela
Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo
antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos
Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo
com o homem
Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave
cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas
dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre
Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a
uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial
Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no
tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura
Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento
no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e
pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico
dos Cacircnticos
Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara
Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe
9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29
23
Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo
ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel
fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente
transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo
para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11
Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de
simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado
com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal
redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia
sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da
eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden
Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente
associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais
frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da
criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por
Cristo o novo Adatildeo
Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o
Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os
temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro
casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13
Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os
nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com
que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao
estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes
no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de
Tomeacute
11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem
24
Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o
significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia
destas tradiccedilotildees
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai
Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por
um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo
do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel
No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio
pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo
Uniatildeo Nupcial no Templo
Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo
nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica
Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai
eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de
Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se
relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos
do batismo e da eucaristia
Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo
lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto
nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo
O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado
Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo
Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo
Testamento
A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no
templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento
14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do
Sinai
25
miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos
do batismo e da eucaristia15
Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara
Nupcial
Os templos de vaacuterios povos antigos
consideravam o Templo especialmente o
Santo dos Santos como o lugar
simboacutelico que representava a Cacircmara
Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como uma
atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai
O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para
perpetuar a teofania do Monte Sinai entre
o povo de Israel
O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo
de simbolismo coacutesmico sendo
considerado um microcosmos que
representava o universo inteiro Tambeacutem
eacute relevante a ideia antiga do homem
como microcosmo e templo uma ideia
encontrada no Novo Testamento onde o
fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o
ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece
entre o humano e o divino
O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a
fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar
onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do
divino na terra
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo
Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a
traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem
Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos
necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial
As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma
ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento
A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o
capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em
todas as ressonacircncias
15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56
26
O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura
personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se
a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)
Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte
feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina
Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica
O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo
da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos
tempos
Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria
encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo
A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)
ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo
Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca
ela se exalta diante do seu Poder
lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra
Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens
Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste
eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira
reinei sobre todos os povos e naccedilotildees
Junto de todos estes procurei onde pousar
e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo
Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico
da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma
ψυχὴν αὐτῆς)17
O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo
de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na
tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios
No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem
em Deus e a sua universalidade
Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo
Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a
palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde
17 Cf Villeneuve A (2016) 57
27
como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria
ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando
ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn
12)
O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica
que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19
Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central
do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e
terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma
reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu
O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna
que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo
e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22
A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave
coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23
Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as
mentes que estudam a virtuderdquo24
Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a
nuvem como uma ponte entre as duas esferas
A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua
identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a
paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de
sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas
caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25
Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens
primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo
A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo
18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na
referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl
987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19
28
O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o
termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a
escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo
(Gn 12)26
Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando
presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27
O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o
universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os
dois elementos do mar e da terra
Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar
especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo
Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo
dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos
de nota28
A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o
universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela
deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos
limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte
Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora
Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel
A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)
ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem
aquele que me criou armou a minha tenda e disse
lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo
Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio
e para sempre natildeo deixarei de existir
Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei
deste modo estabeleci-me em Siatildeo
e na cidade amada encontrei repouso
26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59
29
meu poder estaacute em Jerusaleacutem
Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria
no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo
Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o
ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens
Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da
sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de
Israel
No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que
habitasse em Israel
O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-
se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao
fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu
reino sobre a esfera espacial
ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo
(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu
processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo
Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)
ldquoCresci como o cedro do Liacutebano
Como o cipreste no monte Hermon
Cresci como a palmeira em Engadi
Como roseira em Jericoacute
Como formosa oliveira na planiacutecie
Cresci como plaacutetano
Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume
Como a mirra escolhida exalei bom odor
Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque
Como o vapor do incenso na Tenda
29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da
criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a
um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas
por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21
30
Estendi os meus ramos como o terebinto
Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila
Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos
E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo
A Sabedoria enraizou-se num povo honrado
A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra
de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos
Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva
localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos
Cacircnticos
No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o
palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)
associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413
A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do
rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)
Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se
trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute
associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30
A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)
tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a
noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)
Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no
Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica
O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)
Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)
As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios
satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)
A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora
Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden
30Cf Villeneuve A (2016) 63
31
O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)
ldquoVinde a mim todos os que me desejais
Fartai-vos de meus frutos
Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel
Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel
Os que me comem teratildeo ainda fome
Os que me bebem teratildeo ainda sede
Quem me obedece natildeo se envergonharaacute
Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo
Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete
sumptuoso para comerem os frutos que ela produz
Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o
vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu
vinho31
O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo
universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden
Monte Sinai e no Templo32
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos
Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros
pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no
primeiro seacuteculo da era comum
As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que
datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do
fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu
amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de
Deus participante na sua imortalidade
31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73
32
ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)
Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o
Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal
verdadeiramente seraacute imortalrdquo
Ode de Salomatildeo 35-8
A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser
humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana
para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi
considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)
Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou
beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do
Espiacuterito Santo33
ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro
de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)
Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o
jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre
aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa
nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-
9)
Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como
sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos
escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de
aacuteguas vivas
As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura
mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste
contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo
Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel
procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo
Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34
33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279
33
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute
Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder
a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute
Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados
e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns
elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e
posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver
O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho
de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo
textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico
reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute
Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio
unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de
um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si
Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira
encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados
(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem
hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que
eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que
se orerdquo
A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e
antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua
mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela
perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o
mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na
cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida
Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da
existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees
Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute
ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema
existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o
Reino dos Ceacuteus
34
Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma
identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser
fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho
o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e
responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo
natural do divino na consciecircncia)
O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em
termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz
A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das
palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte
Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano
espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua
boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos
melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos
revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando
colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto
Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e
o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos
canoacutenicos
Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos
canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o
retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar
em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada
E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso
O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus
Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos
do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo
entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz
e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios
Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque
para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo
interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por
este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial
35
No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada
um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico
Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na
eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo
duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de
comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o
disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica
eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus
Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do
misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo
menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval
A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou
divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre
dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de
duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos
sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais
simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo
A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso
trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na
experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves
manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de
misticismo mais tardias como a unio mystica
O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado
para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um
processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se
entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro
conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura
inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e
o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino
e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
36
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo35
A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a
explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica
no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo
completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo
de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra
nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem
Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com
profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que
acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute
O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo
Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra
O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua
reflexatildeo na audiecircncia que os escutava
A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa
investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode
ser interpretado legitimamente como tal36
A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos
gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel
defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute
Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe
Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito
No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de
Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -
ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo
Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o
Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto
35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43
37
O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do
cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de
Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente
heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias
Os Manuscritos
O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem
num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta
termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados
gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic
publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os
Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus
O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma
coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido
por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe
O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do
seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um
evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente
proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38
Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto
de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um
tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39
A Liacutengua Original de Tomeacute
A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta
onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo
do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria
dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41
38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by
Stevan
Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91
38
Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos
textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes
num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a
frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que
reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil
uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42
O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo
alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo
Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta
encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o
texto
Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos
manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a
liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em
manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de
Tomeacute
A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os
evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo
relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute
O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os
documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o
Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de
Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas
siriacuteacos43
Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de
manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem
originais siriacuteacos ou aramaicos
A Data de Tomeacute
41Cf Idem 91
42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97
39
Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa
complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser
datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito
onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo
em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta
e cinco dC
Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de
acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de
Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos
dC
Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave
confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71
O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus
ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos
de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila
para atestarmos esta dataccedilatildeo
A Origem do Evangelho de Tomeacute
Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute
A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito
Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em
Edessa
Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a
origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades
de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura
siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute
O nome Judas Tomeacute
44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria
40
Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo
aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute
Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma
particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo
eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo
geacutemeo de Jesus48
Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco
Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo
em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram
o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113
com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde
ocidental
O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria
da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5
Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em
siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49
O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo
encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego
aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um
apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50
Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido
provavelmente na Siacuteria
A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo
e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel
nalguma literatura maniqueiacutesta
Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos
As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca
48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10
41
ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os
vossos vestidos e os colocardes sob
os vossos peacuteshelliprdquo
Evangelho de Tomeacute 37b
As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes
nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as
Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma
literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande
Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se
na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de
ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)
O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que
Jesus disse a Judas Tomeacute
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute
Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma
problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o
seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo
do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de
radicalismo social51
Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um
misticismo unitivo ou um produto valentiano
No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada
escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das
lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios
termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees
O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a
sua teologia central
51Cf Gathercole Simon (2014) 144
ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto
que o manto da vergonha me foi
tiradordquo
Atos de Tomeacute 14
42
Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent
Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo
significativo agrave leitura de Tomeacute
A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da
linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior
ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53
Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto
pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a
ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente
seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1
Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do
judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade
tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras
continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em
Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia
Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes
divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas
da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem
No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros
disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para
lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo
A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte
onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel
desvelar novas realidades
Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente
na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos
tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as
instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai
A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21
vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o
como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)
52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145
43
O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg
57 76 96-99 133)
Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534
Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente
de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)
estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)
Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39
6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)
Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o
reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)
Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence
aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas
(lg 22 46)55
Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se
encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)
A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56
Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos
no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn
1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por
um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58
Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa
matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo
O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda
desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que
eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um
divisor (lg 72)
55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11
44
A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo
valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis
Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do
eleito
Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao
corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62
Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)
Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o
ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao
conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um
misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo
No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e
vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos
corpos
Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro
motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos
deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade
entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De
Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer
apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de
Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio
(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)
Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute
necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica
que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da
criaccedilatildeo65
O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada
acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute
repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute
62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148
45
O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que
proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para
cimardquo)
O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma
ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no
mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia
acrescentando ldquoespada e guerrardquo
Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual
os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg
110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo
O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o
reino se expande (lg 113)
O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo
contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro
Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu
maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma
posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)
Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla
dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem
fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)
Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma
oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute
A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute
encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como
ldquocarnerdquo (lg 28)
Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo
nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia
Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg
55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito
(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)
Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser
espiritual feminino (lg 105)
66Cf Idem 151
46
Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica
fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)
O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo
para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta
revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio
para escapar da morte
O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias
variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias
20 possuem um significado teoloacutegico68
Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As
referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado
defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees
psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo
do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70
A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no
Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais
como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de
ldquorepousordquo
Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg
59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)
A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica
assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute
O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das
tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado
Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento
religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia
de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos
comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este
evangelho
Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por
estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo
67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152
47
oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo
a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou
juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original
que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre
deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes
encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino
Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para
Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens
materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72
Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou
forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua
linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas
com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde
Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de
ensinamento religioso fornecido por Tomeacute
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo
O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua
composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o
misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar
quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal
heleniacutestico
A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar
iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso
Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do
sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno
do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito
assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo
O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas
mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo
71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)
48
Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os
Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o
Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as
elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da
Greacutecia claacutessica
Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os
nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas
cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma
profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com
a conquista islacircmica75
A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no
comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade
As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees
extensas incluindo franjas do deserto76
Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da
Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus
que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este
periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia
cultural persiste ateacute hoje
O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a
nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova
dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico
surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77
Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute
oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo
helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo
A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos
sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o
estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79
75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem
49
Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar
e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que
posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas
vezes esoteacutericas e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que
viaja com o viajante
De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste
meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma
revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual
Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e
traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do
Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como
eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas
religiosos deste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do
Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos
velhas crenccedilas e suposiccedilotildees
O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os
primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na
histoacuteria do livro ateacute Gutenberg
Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex
foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma
nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade
reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de
Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o
texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81
Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas
Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste
periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como
divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas
nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo
80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30
50
O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a
destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC
A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos
dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico
Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo
sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo
foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas
O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado
por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era
chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus
Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio
de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido
pela igreja dos primeiros seacuteculos
Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram
substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta
dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma
atitude miacutestica e interior da busca do divino
Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e
presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos
rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes
O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da
individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa
exegese interior
A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser
intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de
ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas
oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal
Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia
do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo
e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada
82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39
51
Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas
significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo
encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica
Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos
estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos
Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas
evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova
perspetiva sobre as tradiccedilotildees
A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original
natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria
original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado
ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a
narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo
O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da
histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os
evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute
O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes
documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as
comunidades tinham da figura de Jesus
Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando
recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu
kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria
Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus
num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de
ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do
impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam
relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e
ressurreiccedilatildeo
Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado
Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao
Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio
Eufrates
83Cf Patterson J S (2013) 10
52
A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos
que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser
completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84
Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo
comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se
encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute
parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates
Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na
grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a
norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura
literaacuteria antes do advento do cristianismo85
Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas
poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da
Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a
subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua
submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio
Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86
A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser
pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado
durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que
Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua
semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87
A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades
siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de
Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos
fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a
organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da
sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma
84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem
53
evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos
Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve
raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do
cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades
semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel
estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos
importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa
tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram
recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de
Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial
das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do
primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e
se misturaram90
Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria
ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos
primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura
intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo
de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto
oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas
feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial
do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros
ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de
quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os
pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo
Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um
entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da
tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida
88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42
54
como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu
manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da
sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos
poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta
experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram
no ocidente no outro lado do Eufrates
Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de
convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores
Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a
ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e
as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo
presentes em Tomeacute
Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes
para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a
leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso
natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica
entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de
violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus
se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente
harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos
O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de
cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que
desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da
vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e
valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo
O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de
interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel
da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o
futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da
identidade cristatilde
A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se
claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um
95 Cf Patterson J S (2013) 25
55
martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no
qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus
Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado
dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como
dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa
para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma
experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar
verdadeiramente a vida de Jesus97
No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo
um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos
pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes
eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o
Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este
Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o
ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se
encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado
A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-
se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia
de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar
da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si
proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante
diferente
O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do
segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu
pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e
cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da
criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da
crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de
pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do
periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os
quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil
96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30
56
O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que
esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais
unificadores99
O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo
A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e
o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos
cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma
platoacutenica100
Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute
notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia
centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo
geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as
vivecircncias em ambos os contextos
Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo
assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo
sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102
A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas
de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo
Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta
apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de
sabedoria
A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em
concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento
platoacutenico103
98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15
57
A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de
voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha
corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute
O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades
de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica
Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a
Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto
interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da
Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105
Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se
estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas
judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros
dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que
prosperava nestas cidades107
Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse
filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia
entre Platatildeo e Geacutenesis
Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1
na textualidade de Tomeacute
Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas
helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era
masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado
unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres
voltariam (lg 22)109
Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia
platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa
mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma
104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278
58
centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano
mortal (lg 29)110
Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido
dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e
para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111
O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao
reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo
originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)
ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg
50)112
O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no
ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma
perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e
perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres
passageiros113
O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de
vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria
contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo
Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e
os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de
Jesus em Edessa114
A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o
autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a
identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz
divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida
freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115
ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo
110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37
59
ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na
filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas
correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti
proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima
agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta
interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma
no iacutentimo do ser humano
Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de
Deus
Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois
seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e
Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o
iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte
divina ele conhecia o divino116
Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo
ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino
dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem
consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo
grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender
como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele
possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117
Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este
entendimento acerca da mesma maacutexima
ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi
feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os
fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do
universordquo118
116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)
60
Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos
platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os
aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada
Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-
se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as
perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-
se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus
suacutebditos
ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez
mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute
ouvidos a ti mesmorsquordquo 119
Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a
manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico
mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos
noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se
retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o
mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute
contemplaccedilatildeo daquele que eacute
Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este
ldquocasco de courordquo122
Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro
eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do
corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para
superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos
dois primeiros seacuteculos
Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o
risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute
Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem
O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo
empregando os termos teacutecnicos do platonismo123
119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477
61
Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de
descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam
tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente
O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute
Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza
humana e o seu destino
O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do
pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute
ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o
corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124
Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os
estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia
aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo
era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os
nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo
tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de
ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no
platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma
A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor
antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por
que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era
miseraacutevel
O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo
morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um
corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo
Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E
esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute
123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus
ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the
universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation
to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies
(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material
bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)
62
Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do
mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo
A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o
disciacutepulo mais digno do que o mundo
A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no
pensamento platoacutenico126
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo
A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese
apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a
investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um
montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho
judaico-cristatildeo127
Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo
apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de
Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde
(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos
judaico-cristatildeos
(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos
incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas
(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere
uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo
(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e
no cristianismo judaico
(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios
Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre
o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo
126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes
(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have
already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are
corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the
borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be
Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp
DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200
63
As seguintes passagens
(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV
963
(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145
(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad
Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3
(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514
Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da
Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute
a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada
Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de
Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute
Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos
estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute
O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do
nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras
de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado
como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128
Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto
porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9
(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo
ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)
Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c
7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio
Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo
Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho
Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o
judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos
128Cf Luomanen Petri (2012) 202
64
Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no
proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo
seacuteculo
A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e
duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e
quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo
Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma
cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos
Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma
exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso
A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra
aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o
repouso em Jesus
ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos
lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo
quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele
e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria
descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na
eternidaderdquo129
A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo
Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo
aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos
Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde
Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus
seguidores
Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma
voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter
dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho
dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus
129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322
65
ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-
me para a grande colina o Taborrdquo131
O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)
geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de
Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao
Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de
Jesus e a sua matildee verdadeira
ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132
Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente
nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma
teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute
- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e
ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas
Lg 24b
O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias
associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e
culturas
Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram
utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo
lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para
descreverem as suas experiecircncias133
Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas
experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou
lsquorevelaccedilatildeorsquo
A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como
visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma
131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2
66
viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas
preparaccedilotildees e rituais serem realizados
O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e
cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros
angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134
Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do
nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades
antigas para investigarmos a sua religiosidade
O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos
para denotar o fenoacutemeno cristatildeo
Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de
misticismo135
O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao
judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar
antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia
extaacutetica ou como praacutetica provocada
No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas
expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo
Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por
eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo
de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo
O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo
interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus
Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de
Tomeacute
Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque
pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um
texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute
presente no Judaiacutesmo do II Templo
A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria
do texto do Evangelho de Tomeacute136
134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7
67
O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios
ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica
Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros
trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica
Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos
formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do
templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a
realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees
As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na
literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria
na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da
Palestina de Yohanan ben Zakkai137
Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e
da especulaccedilatildeo hekhalot138
Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas
de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios
Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da
literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo
hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes
representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades
muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do
II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo
A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos
fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que
levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que
iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial
os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e
136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu
numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que
vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos
esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da
Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos
palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica
e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2
68
cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas
biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma
autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos
tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma
audiecircncia contemporacircnea
Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas
ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo
a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras
A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que
podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute
Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus
conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo
situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos
Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e
revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias
encobertas no interior das suas escrituras sagradas
Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia
Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica
A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta
tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10
40-48 Dn 7 e Is 6
Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura
produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos
A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e
na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos
Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de
temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da
evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em
textos de eacutepocas diferentes
139Cf De Conick A (2006) 7
69
Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta
as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute
associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140
A Gloacuteria do Trono
A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central
desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo
Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente
secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada
ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo
com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)
de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas
escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142
Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial
feito por dois querubins
No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute
apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos
Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias
histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute
sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos
O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite
brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo
assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta
veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado
Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras
cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co
44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus
que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-
140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8
70
23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do
templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144
O Templo
A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de
Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os
Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do
que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia
Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete
parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais
sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145
E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das
mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do
templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146
A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis
desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas
natildeo realizadas
As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da
criaccedilatildeo da humanidade
Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e
ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de
luz147
Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo
percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no
Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As
tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser
Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148
144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem
71
Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o
primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter
sido um reflexo da Kavod
Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico
Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do
que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de
encher todo o universo de um extremo ao outro150
ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]
pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel
b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o
despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro
lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse
Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a
oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151
Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do
pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos
cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave
transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos
conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da
ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e
tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de
forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152
Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da
morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente
Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os
Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as
epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades
envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no
momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na
149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21
72
liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias
ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153
Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais
antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute
15 19 37 50 59 83 84 108)
As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da
esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma
experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de
transfiguraccedilatildeo
Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os
ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees
de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de
uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no
trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154
A Merkavaacute
O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo
que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo
miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos
Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim
de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca
O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como
as fontes esoteacutericas mais tardias referem155
Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de
Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico
de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se
movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel
1014-15 com o querubim do Templo
153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30
73
Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave
presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-
se ao templo por outros meios156
A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel
encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe
mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma
ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25
Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em
duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio
de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos
Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus
identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser
vivente do profeta Ezequiel
A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus
o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o
universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-
se presente nesta literatura157
Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o
mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte
mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas
como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158
Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e
a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e
descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo
concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute
156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo
tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)
com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos
trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o
cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea
dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos
sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos
Santos
74
O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da
arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem
alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em
Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que
em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la
caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo
Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que
rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160
Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de
Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas
maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos
que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161
Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas
natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de
cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162
Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de
hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos
Cacircnticos do Sabbat163
Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e
recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era
necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos
que eram inscritos com os nomes secretos de Deus
As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o
templo e o cosmos eram estruturas opostas
As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo
a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para
o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande
santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas
planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e
da Sumeacuteria
160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170
163Cf Idem
75
Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo
era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem
quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F
Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com
a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos
praticantes de hekhalot
ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de
certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos
anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo
nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e
canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras
interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse
viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166
Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no
Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I
seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um
rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167
A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se
bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168
A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O
Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo
assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas
do caos no terceiro dia169
Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi
criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo
164Cf Idem 171
165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and
Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21
76
ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)
Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo
O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo
assim tu faraacutes o tabernaacuteculo
De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas
bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo
fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo
as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de
terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do
corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas
na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo
uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo
os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio
do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o
firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as
aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170
Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem
documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o
pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute
O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do
homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos
vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos
poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios
corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu
proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava
Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute
estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram
compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano
O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do
corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos
escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas
estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e
angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute
170Cf Midrash bereshit rabbati
77
frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome
divino171
Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o
miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na
presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se
entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem
Divina da Gloacuteria
O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o
autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo
este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica
No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com
este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na
atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o
puacuteblico a que se destinava
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute
O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e
interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite
definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica
Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por
si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda
Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo
primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no
final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis
descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim
Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
(Lg18)
A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo
que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial
que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas
dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que
171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175
78
representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias
a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos
primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)
Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses
por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia
de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que
estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para
ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se
ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)
Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais
respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se
vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu
de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem
sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem
qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)
Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia
visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus
disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco
aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas
caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)
Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos
miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa
esta realidade no jardim do Eacuteden
Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma
crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas
crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino
Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o
exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e
o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo (Lg 22)
79
Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as
vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um
tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco
No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os
disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te
revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como
as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo
temereisrdquo (Lg 37)
O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do
corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos
natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu
ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)
A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que
a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes
no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas
quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)
Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia
platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas
simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem
Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial
do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo
Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus
O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara
Nupcial
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37
ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos
Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos
vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os
espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo
80
Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que
apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais
1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver
o Filho de Deus sem ter medo
Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao
ceacuteu numa linguagem encratita172
Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora
comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo
baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321
Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de
peles e eles vestiram-nasrdquo
Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173
Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou
ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o
sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco
Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute
difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo
Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de
pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo
Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos
neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da
carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo
O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute
um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175
Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se
revestir destardquo176
Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9
que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas
E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra
172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem
81
E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim
E o Senhor renovou-me com a sua roupa
E me possuiu com a sua luz
E do alto me deu descanso imortal
E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos
E eu despi-me da escuridatildeo
E vesti a luz
E ateacute eu mesmo adquiri membros
Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento
E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito
E eu removi de mim as minhas vestes de pele
Porque a tua matildeo direita me ressuscitou
E fez com que a doenccedila passasse de mim177
Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um
ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de
libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus
Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica
Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de
pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo
A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus
anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou
selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando
vestida torna aceitaacutevel diante de Deus
Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo
com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal
No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de
Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o
ldquoselordquo no Nome178
Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-
se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo
ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E
eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo
177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126
82
Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e
transformado num anjo da face
ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele
[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para
ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181
Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram
uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA
nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do
corpordquo183
O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm
que ser despidas sem vergonha
O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis
Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e
Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os
olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha
Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que
ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se
sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos
O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito
especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que
o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu
ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma
criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era
controlado pelos impulsos sexuais184
A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual
deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-
caiacutedo ausente de vergonha
179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134
83
Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as
vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma
pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda
daacute outro elemento sobre o ser assexuado
ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o
interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num
soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando
fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de
um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como
sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo
Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que
era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a
idade adulta em primeiro lugar186
Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento
ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187
De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo
periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188
Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era
uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo
foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189
Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que
renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico
preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190
Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada
pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam
185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes
a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do
campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e
devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos
Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135
84
As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a
experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o
objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus
Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de
Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191
Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De
mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a
existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte
e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio
Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto
retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a
essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo
Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o
homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave
esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo
material
Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde
Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque
despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo
Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias
estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193
O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos
gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do
rosto de meu Deus para sempre194
Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas
ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar
o seu corpo
191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por
Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a
Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as
conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas
materiaisrdquo
192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10
85
O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu
nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia
visionaacuteria
No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque
que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes
celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico
Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-
escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra
sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho
de Filipe 1 34-35
ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo
Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo
total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta
forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho
transformando a sua alma
ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo
sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo
No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o
mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada
encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa
experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave
entidade divina que tinha visto
O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma
crenccedila antiga presente no mundo antigo196
195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42
86
Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua
experiecircncia religiosa
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50
ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz
procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens
Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se
vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um
repousordquo
O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um
fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na
interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis
perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria
Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se
manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era
segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz
A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada
primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo
Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn
13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus
tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja
luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus
sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes
da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham
o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a
sua proacutepria luz198
Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes
da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da
imagem do Logos
197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66
87
A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus
explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse
sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo
De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz
primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis
O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se
aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos
seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos
Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos
anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como
os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl
82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um
de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn
127)rdquo
O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o
homem agrave imagem dos anjosrdquo
Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126
que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva
Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante
tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de
ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo
A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma
forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no
nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200
Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse
ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma
substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e
tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se
assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto
como a forma do invisiacutevelrdquo201
199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443
88
O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas
letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado
de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas
eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer
1141 Epiph Pan 34 47)
Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome
divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial
manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram
pronunciados agrave sua imagem202
O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de
Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo
ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a
luz do universo
No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de
lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno
de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos
o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo
Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma
realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo
alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior
Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do
Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem
trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto
estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-
me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo
(12827-30)
O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo
filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo
regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)
Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176
89
Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que
regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser
porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no
Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo
O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de
Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco
aacutervores
Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do
Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204
Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que
constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute
o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco
virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo
alcanccedila virtude e imortalidade
As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando
vestes de luz
E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor
Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram
Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal
E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna
Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra
imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver
nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores
como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da
ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso
Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes
com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o
autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo
domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205
204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83
90
Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do
paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da
imortalidade
Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim
comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma
aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito
de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica
de coisas legiacutetimasrdquo (198)206
As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a
alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do
pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e
corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves
virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas
leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda
adacircmica
E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute
existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma
com as virtudes paradisiacuteacas
O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque
vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada
ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os
eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis
novamenterdquo
No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e
manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16
ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai
contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios
(monachos)rdquo
O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este
ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com
a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos
206Idem 85
91
Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo
diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207
Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos
ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus
Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono
celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe
ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade
Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma
situaccedilatildeo num hino samaritano lemos
Ele Deus permanece para sempre
Ele existe ateacute a eternidade
De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio
Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como
Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208
Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes
se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser
angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina
Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto
angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz
aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute
paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar
uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden
Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e
inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e
adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus
e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo
ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado
angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na
natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte
207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718
92
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59
Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica
encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a
manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o
miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o
A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem
cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este
encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser
alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo
desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria
ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o
vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo
(lg 83)
A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos
que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele
prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo
Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial
e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque
224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209
O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica
presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da
humanidade
Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir
por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo
209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a
93
relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido
no ventre de uma mulher
ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos
humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a
luz gera-se a si mesma
O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a
imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto
que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod
escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na
tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que
se revelava aos miacutesticos211
Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos
anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah
A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus
esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da
ldquoGrande Gloacuteriardquo
A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum
dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo
flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212
Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio
soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213
Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou
Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a
aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)
A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse
visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e
trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo
Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7
ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33
De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e
incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no
211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104
94
entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto
ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute
cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214
Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era
abrangida pela sua luz
Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte
verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma
alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo
pode ser percebida diretamente
Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg
83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute
oculta na sua proacutepria luz215
No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica
que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do
disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)
Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos
devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos
Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus
durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a
imortalidade
Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas
homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo
Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta
uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta
imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a
imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e
aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto
nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do
214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105
95
Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado
esquerdordquo (Hom306)216
Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute
paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma
experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como
diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria
luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu
interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um
corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve
ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o
conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre
as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino
5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no
seu mundo simboacutelico
Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara
Nupcial
Lg 75
Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas
ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em
Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia
visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o
conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto
A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o
maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente
levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta
Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de
Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um
fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem
216 Cf Maloney G A (1992) 191-192
96
O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de
Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e
cristatildeos numa fase emergente
As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as
encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de
Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar
Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a
natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo
Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a
sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o
peso e a grandeza desta memoacuteria
Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas
que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada
sem excessos ou divagaccedilotildees
Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas
uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial
Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a
investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as
mensagens contidas nos outros logia
A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos
do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico
A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do
Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden
O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do
percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado
nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial
Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos
que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas
Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam
as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos
Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus
criador e personagens com nomes hebraicos
Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas
questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos
97
Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que
antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de
Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental
As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave
obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao
Templo de Jerusaleacutem
O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do
Templo a niacutevel simboacutelico
O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era
transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram
os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes
conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo
deste processo revolucionaram as suas religiotildees
Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta
influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo
apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a
simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem
Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos
questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo
olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos
ciclos da vida
A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o
encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a
adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217
A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num
calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas
formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218
O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas
combinadas e sincronizadas
217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem
98
A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do
sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do
ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-
calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal
preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e
ciclo sacrificial221
A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais
complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute
traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito
memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222
Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do
Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento
simboacutelico da realidade do Templo
Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de
modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica
do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e
terrestre pelo serviccedilo sagrado223
O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do
Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos
escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se
Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e
reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa
Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo
fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo
ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos
ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a
redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade
centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224
219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio
vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de
cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6
99
Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da
inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-
se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de
tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do
calendaacuterio
A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo
canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do
Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria
viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e
Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque
Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos
anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada
dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou
sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua
marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que
descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos
sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos
soprar o shofar e prostrarem-se227
O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam
os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se
vivas
ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras
espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo
vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas
225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos
ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute
descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da
terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual
com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre
a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute
ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados
antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica
e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os
sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do
ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos
perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13
100
cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as
cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos
Santos (hellip)
As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das
maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da
cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas
com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo
vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta
dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-
todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228
Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o
cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos
separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O
espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de
uma realidade eterna
Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que
aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente
Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa
forma simboacutelica e narrativa229
Eacuteden
O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais
interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim
como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o
paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)
Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a
partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do
Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma
humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da
mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo
estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes
228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57
101
na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes
do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem
criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se
manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do
outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe
ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a
Origem do Mundo)230
A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute
a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao
Eacuteden
Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai
Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria
Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila
do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico
Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais
antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos
aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231
Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo
como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo
gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito
da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico
neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos
gnoacutesticos
Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos
constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram
Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que
tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram
Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o
significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem
deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)
230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103
102
O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser
considerado bom como o Eacuteden inicial
O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter
especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo
havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo
poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual
O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas
sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da
textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o
sentimento hebreu para com o Eacuteden
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim
Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o
iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e
natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)
ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa
expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai
estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)
O Grande Mar
A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os
israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era
apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma
descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido
O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar
do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente
considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo
unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da
montanha coacutesmica
O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o
firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze
enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da
largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente
representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio
103
era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair
que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos
Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita
para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232
Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o
mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o
maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b
Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio
Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem
afirmou que o paacutetio exterior representava o mar
Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e
entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos
Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos
Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos
homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)
Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo
associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel
que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon
de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior
O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade
estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo
2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece
entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do
criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees
que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os
mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)
sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu
povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve
o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)
mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema
natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da
criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste
232Citado em Barker Margaret (1990) 61
104
para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo
(Ecircxodo1517)
Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento
hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo
do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo
a partir dos mares primitivos
Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos
primordial233
O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das
visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel
de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de
entronizaccedilatildeo
Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas
surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram
autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)
Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus
antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e
derrotado (Isaiacuteas 519)
O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em
tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo
nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4
Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na
qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da
montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor
O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui
aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se
encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono
celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute
que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao
redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)
Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do
Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)
233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522
105
ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado
com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu
nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse
152)
O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o
firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo
O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o
jardim de Deus no livro de Ezequiel
Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal
do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim
seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em
mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo
material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre
necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia
O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era
frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado
Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha
sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em
que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro
Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa
(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o
poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234
Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas
explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade
disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo
quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)
Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua
vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do
Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no
Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava
simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira
como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo
234Cf Barker Margaret (1990) 61-69
106
De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios
querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e
uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo
Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do
templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo
numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras
(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel
4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-
12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em
outras partes da Biacuteblia Hebraica
A Fonte da Vida
Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz
Salmo 367-9
Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e
ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a
construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde
e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se
sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes
cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos
varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de
ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que
tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material
lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em
todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista
o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes
recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus
poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era
235Cf Ginzberg Louis (2003) 162
107
devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o
santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua
ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo
em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o
mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o
mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado
para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao
ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no
segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que
estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o
mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia
no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como
alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O
candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua
criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o
Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no
quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No
sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o
seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante
de seu Senhor e criadorrdquo236
A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo
VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado
em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes
colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para
o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor
dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)
Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da
fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade
ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem
prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)
236Cf Ginzberg Louis (2003) 150
108
Os Rios do Paraiacuteso
Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em
quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas
vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre
associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo
O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do
Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a
um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos
Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica
no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias
semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na
montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele
que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute
um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em
majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas
visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a
fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da
sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo
no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro
de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo
isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da
porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e
tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores
cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para
eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da
fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade
com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta
oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda
do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica
a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem
metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no
veratildeo como no inverno
109
E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome
um (Zacarias 148-9)
O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os
Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu
cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam
No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de
Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a
aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas
da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)
Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos
paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio
No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos
Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando
ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da
festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a
mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de
aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber
(Joatildeo 737 -9)
O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios
serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a
simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era
quase sinoacutenimo do Espiacuterito
Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham
adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de
Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis
12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria
foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)
Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a
com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele
(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de
especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum
onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)
A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e
como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o
110
Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a
luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)
Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea
para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e
como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o
meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar
(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios
do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque
confirmam esta associaccedilatildeo
Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono
Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada
completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho
do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante
ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque
dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem
de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele
(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor
descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e
vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)
O Veacuteu
ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos
dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a
esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram
reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser
tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]
antes do templo sagradordquo
Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)
Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono
dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo
que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas
Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da
experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido
111
uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como
saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido
As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente
tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu
representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as
vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava
Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da
encarnaccedilatildeo
O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o
lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo
visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade
As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como
parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos
e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia
do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo
Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado
Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos
dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos
alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do
templo
O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8
mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de
puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)
Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da
mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido
Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1
ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado
Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se
havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-
sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o
comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o
primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia
entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de
duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de
112
modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi
colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado
norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua
esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas
grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de
espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia
vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de
vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em
cada ano (Mishnah Shekalim 85)
Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e
sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila
forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para
a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este
veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de
Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias
descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia
haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada
por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)
Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade
viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus
despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que
a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde
um rabino do segundo seacuteculo a viu
Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose
Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas
satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)
No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado
ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica
com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma
habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico
tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da
terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo
113
Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma
que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama
dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)
Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual
Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave
sabedoria do templo ou era algo antigo
A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi
coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim
foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada
espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que
poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas
(Antiguidades Judaicas III124 126)
As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o
linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez
que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o
carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)
Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade
cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo
(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este
simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute
como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de
toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais
166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO
que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo
siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo
feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais
excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador
de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de
[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre
Ecircxodo 1185)
Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que
separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um
palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas
quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao
114
dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este
veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo
sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos
transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal
como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E
satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e
inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis
(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)
A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu
(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da
cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram
vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos
elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra
azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina
tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3
Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo
Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi
descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O
veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a
invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de
como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem
do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os
elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa
compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da
vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da
realidade subjacente ao tempo237
Por Detraacutes do Veacuteu
Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar
onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era
237Cf Barker Margaret (1990) 104-107
115
eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz
lm
Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram
apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores
descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu
toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele
O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto
que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha
sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente
Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial
Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do
Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo
impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar
ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo
da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir
Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel
quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees
ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)
O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma
visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu
ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava
Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o
verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das
vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o
escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do
veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)
Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do
veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus
Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os
profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica
da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos
agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para
um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram
116
pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1
Henoque 873-4)
A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre
como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu
posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute
e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a
visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda
visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda
espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)
Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram
patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado
simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio
Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o
paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)
O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos
Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do
segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o
santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)
As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre
o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou
retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti
e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque
34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o
mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido
deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e
se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as
extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que
estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)
A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de
Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da
Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no
modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-
lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o
117
nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo
das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)
O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material
e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da
presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do
Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais
esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute
chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar
que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que
fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)
Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel
para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O
debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi
construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses
mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238
ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e
o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)
Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano
Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees
simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o
proacuteprio Jesus
No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais
iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos
celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus
misteacuteriosrdquo (lg 62)
O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do
veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o
imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da
cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido
por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos
falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por
traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe
238Cf Barker Margaret (1990) 127-128
118
Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que
ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro
Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem
semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)
O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros
lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o
nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah
12b)
A Grande Luz
ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo
proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai
a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)
ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute
privado do Todordquo (loacuteg 67)
No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas
como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na
criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se
oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de
Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de
Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute
vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta
expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa
para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre
os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os
disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza
com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente
239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram
por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo
vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que
morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo
119
O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz
do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo
deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como
expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave
figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria
criando iluminando e penetrando todas as coisas
Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm
a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave
sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia
Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor
da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua
bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em
Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num
movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga
o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo
regressa
Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que
atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma
imanecircncia divina no mundo e no homem
Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a
procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado
para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um
aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da
criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31
Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca
primordial o tempo antes do tempo
A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que
encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg
19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido
242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26
120
O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o
termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2
da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244
A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee
mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que
existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e
77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as
coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser
humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no
interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de
Deus (lg 3)
A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida
em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em
que este se situa e estaacute presente
Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo
judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser
concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute
Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com
siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo
Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes
pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino
podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no
Evangelho de Tomeacute
O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz
em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute
244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute
necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de
um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros
do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o
Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios
entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos
conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3
121
O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do
Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor
lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que
Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo
(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-
nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)
Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que
andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque
vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo
cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua
gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)
A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma
das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC
Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo
(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute
desoladordquo (Daniel917)
A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os
raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono
dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este
simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao
templo
A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel
veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou
com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada
para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do
Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora
quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para
iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)
Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os
meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e
evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente
nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute
248Cf Barker Margaret (1990) 148-150
122
diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes
detentoras do conhecimento
Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo
encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute
tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo
Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos
pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes
da religiatildeo do primeiro templo
O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os
profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das
visotildees dos profetas
Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No
Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como
emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse
Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo
haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1
A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no
livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249
Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia
grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo
apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees
generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)
A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica
abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro
249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o
pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeus e Parmeacutenides
123
diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash
que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252
Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que
descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus
declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o
vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e
61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da
condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo
ldquodivididardquo privada da imagem divina
Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11
e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial
anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo
As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam
bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253
252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem
Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo
Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70
Para traccedilarmos a exegese do Evangelho
de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo
presentes em Geacutenesis devemos procurar
ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a
hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo
dispostos de forma aleatoacuteria
No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele
que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o
poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes
(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute
recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo
(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco
a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram
atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os
governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos
como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com
a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg
4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete
diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia
da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer
(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo
um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente
concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e
relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha
com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos
como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo
humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando
Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser
124
Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a
luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda
a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz
manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que
fala na primeira pessoa com uma voz humana
Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em
simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por
todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute
uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o
protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254
A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de
modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A
atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do
espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso
divino no seacutetimo dia
Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus
atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende
aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se
encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior
254Cf Pagels E H (1999) 484
singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o
homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e
fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo
causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando
chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas
eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia
presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a
unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz
125
ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os
disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta
dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute
ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas
oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela
sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo
conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor
pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico
que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a
humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina
Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos
duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo
A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a
fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos
era bastante comum no seu tempo
A Imagem e a Luz
ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Lg 22
A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas
da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada
pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida
Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho
de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes
conceitos
Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma
experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu
sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo
Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um
corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser
255Cf Idem
126
humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns
pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original
arquetiacutepica
Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no
com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido
o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257
Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de
Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele
argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo
sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos
evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do
judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem
quanto suportareisrdquo259
O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado
primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a
existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da
pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um
objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser
humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento
divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia
afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino
Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois
Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem
celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem
criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da
Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11
Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam
256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158
127
ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo
natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou
com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim
do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job
1420)rdquo
De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre
Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu
mudei261
Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como
cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo
brilhante que ateacute superou o brilho do sol262
Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus
criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da
queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda
Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b
O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O
espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele
O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a
Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263
Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que
foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem
(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma
interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a
sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo
luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que
imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado
No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe
uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem
De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden
entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo
261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18
128
tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz
eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo
Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou
no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso
63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e
viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem
estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante
delardquo266
Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que
encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente
vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que
tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do
pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que
estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido
da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute
perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja
claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva
Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267
O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um
processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como
resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem
Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica
um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava
retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106
ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois
um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial
A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem
ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma
ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos
265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223
Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do
trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais
antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o
homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160
129
dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a
Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se
depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e
adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268
Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim
necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem
quanto suportareisrdquo270
ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser
digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271
Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute
Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as
imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo
num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo
manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272
O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo
relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)
numa imagem (imagem) para entrar no Reino
No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem
da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das
imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo
pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-
nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo
inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo
Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees
coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se
268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63
130
manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a
imagem dessa luz273
Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes
conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos
que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)
esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as
outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser
humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a
luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que
falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e
condenado a provar a morte274
O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa
imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84
menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas
beatitudes nas lg 18b e 19a
ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a
morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276
Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial
ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277
ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na
Cacircmara Nupcialrdquo278
A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de
Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e
retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo
subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de
Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que
273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63
275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75
131
interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da
lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas
proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta
do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)
Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que
ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus
responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que
borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha
boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-
lhe-atildeo reveladasrdquo280
Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as
palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara
Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)
estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute
designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo
representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104
e cada alma unir-se-agrave a ele
Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um
estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado
por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial
estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o
casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa
o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da
histoacuteria
Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem
simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o
jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o
final dos tempos
Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do
estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em
279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487
132
que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis
saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)
Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de
unidade
Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e
por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs
grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo
transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute
a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a
uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de
Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre
o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem
procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas
Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial
primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e
ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute
natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se
oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o
disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas
se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle
disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz
e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)
Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz
oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial
O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento
salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante
Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos
lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que
estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem
Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da
experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo
de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de
preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe
instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais
133
No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura
analisada e aos evangelhos sinoacuteticos
O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora
acessiacuteveis a todos os que as buscarem
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo
Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave
porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca
de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles
transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)
134
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho
carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo
interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo
entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo283
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284
ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que
vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam
como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que
estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim
consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu
Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo
Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da
imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na
presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em
fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos
pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda
Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a
carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila
para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285
283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162
135
Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon
sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu
uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou
consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os
raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que
gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex
227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex
240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos
luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de
Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo
Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma
ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente
meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas
ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas
de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo
Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de
nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos
ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao
redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o
queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo
Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus
hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal
Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104
Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o
olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo
traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo
causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo
acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de
fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do
sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio
286Cf Idem 106
136
ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode
recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a
imortalidade (αθανασίας) (104)
No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda
muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim
conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente
transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento
esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por
meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia
Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser
deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287
Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave
experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem
natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do
que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que
a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas
sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288
Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus
estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o
fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa
Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se
encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute
perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial
Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento
central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos
Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute
ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da
imagem da luz do Pai
Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz
da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na
presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus
ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder
287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108
137
transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores
estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila
judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam
esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus
O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma
de misticismo transformacional
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289
Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a
revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos
como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte
da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os
sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os
justos os santos e os escolhidosrdquo
Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos
santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os
segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria
ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila
pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a
injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291
Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147
em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles
estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras
tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem
recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do
conhecimentordquo292
Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no
lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293
289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81
138
A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a
aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave
linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo
em 4 Esdras 1438-41
ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a
beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida
estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi
e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a
minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a
minha boca foi aberta e jamais fechadardquo
Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire
conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para
descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca
eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do
fogo
Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a
condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84
explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras
palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si
mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe
eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294
A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar
fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino
Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes
tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me
intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa
ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se
natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296
294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93
139
As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia
comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que
emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si
mesmo297
Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano
no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298
Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da
existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos
conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima
intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem
do corpo no Evangelho de Tomeacute299
O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e
antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus
supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito
O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte
de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se
aprisionada no corpo humano
O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na
qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica
interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes
(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em
Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo
Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo
sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo
cultural heleacutenico
Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta
temaacutetica
A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente
com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que
encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma
297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54
140
compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e
enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento
Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg
568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)
O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento
afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida
Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e
ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na
exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de
contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute
ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo
(Lg 112)
ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que
depende destes doisrdquo (Lg 87)
O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne
sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)
ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos
alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os
nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos
que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do
corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo
Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de
escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e
Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma
Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que
ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira
afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo
seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute
ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301
Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como
uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia
300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59
141
resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria
entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da
filosofia greco-romana302
O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma
condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo
que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois
corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta
interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303
Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um
corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever
Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de
Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural
Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma
plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende
do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo
universal
A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um
indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do
asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias
restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior
Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a
descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do
mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas
lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma
compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo
experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores
sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si
mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de
Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo
pessoal
ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que
conheceram o Pai em verdade
302 Cf Idem 60 303 Cf Idem
142
Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o
tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)
Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos
inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a
vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente
Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304
O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento
preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-
se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos
ldquomovimentos de Jesusrdquo
Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o
homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo
apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de
perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe
que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados
De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que
encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e
reinaraacute sobre o Todordquo
Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando
sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais
notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus
existem na sua forma concreta como um texto escrito
A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo
por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete
repetidamente no seu significado
ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo
corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)
304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273
143
Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo
Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual
seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo
esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta
eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a
realidade fiacutesica em termos de origem307
Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o
homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de
vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29
corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que
o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave
animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a
prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que
atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a
lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310
Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos
eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase
em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e
guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social
(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo
autorizadas
6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no
evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido
na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos
307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus
iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas
espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita
existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que
explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo
de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era
144
gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de
gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria
Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia
gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo
interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode
salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de
Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312
O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro
autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia
gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo
eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia
Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o
conhecimento de Deus
Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas
disponiacuteveis em Nag Hammadi
ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu
a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313
ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde
e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo
o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso
O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de
onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da
sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314
A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser
humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua
realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino
considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a
sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo
contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos
estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo
religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 149
145
Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a
iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as
realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo
O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees
no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo
de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as
ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo
Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como
a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de
escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas
geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes
que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes
livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de
interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram
deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315
Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas
uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual
As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram
comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da
antiguidade
Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental
influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel
transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado
apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas
Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como
verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees
O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em
concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos
leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega
315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus
146
Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a
novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo
da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido
Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no
autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender
que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo
Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros
revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam
entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam
assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual
A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual
gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute
agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a
difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento
distintas
Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica
Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita
no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se
encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma
ortodoxia definida
Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a
experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior
de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e
adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro
de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras
sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes
Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que
surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros
contextos
Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o
gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo
signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se
assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem
147
Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo
se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316
seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que
possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da
experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta
temaacutetica317
O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas
doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais
abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual
do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo
apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e
como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma
questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma
exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com
revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender
As variedades da experiecircncia gnoacutestica
Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem
pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do
conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do
segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito
(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a
interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a
descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da
histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador
dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos
Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o
gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem
algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da
mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no
pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo
316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)
148
este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a
alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento
evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas
Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma
conotaccedilatildeo positiva318
O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este
adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e
operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o
conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo
Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que
alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de
Deus e das verdades superiores
O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter
trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade
de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como
ldquoa gnose que nos foi dadardquo321
Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os
acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes
uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica
definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada
chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322
Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios
fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro
lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -
falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir
que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia
perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de
Valentino e a sua escola
318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem
149
Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos
valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as
doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325
Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo
especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos
O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma
designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria
Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo
num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria
Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo
ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo
era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes
conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus
Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento
gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque
preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais
corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as
manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos
gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326
No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos
espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo
mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro
lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se
a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327
A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por
gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim
como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328
Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de
situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade
foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a
325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12
150
designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos
orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo
perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados
para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma
particular de viver a vida
Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas
respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana
Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo
para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo
Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os
gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu
tempo
Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees
entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica
Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos
sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico
geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses
conhecimentos esoteacutericos
Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e
espiritualmente conhecimentos superiores
O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos
primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas
escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era
comum
Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico
isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o
gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram
329Cf Idem
151
problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava
separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens
deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar
de libertaccedilatildeo
Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos
tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso
O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o
conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas
No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano
nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a
salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus
Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm
conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em
Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente
A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos
descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para
voltar ao estado da imagem divina no corpo humano
No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz
gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de
iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto
perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo
Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito
gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico
O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de
pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de
conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente
O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a
lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura
encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza
gnoacutestica do evangelho de Tomeacute
O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem
humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino
satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico
152
Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou
na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu
pensamento
ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou
Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos
onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o
que constitui um renascimento [real]rdquo
- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782
Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos
do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo
A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua
mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve
em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas
Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332
ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes
da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial
apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do
antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde
todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo
330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash
Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e
dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo
encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma
criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos
apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de
Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo
primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio
metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-
lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o
pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim
e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis
153
de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo
com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que
chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz
primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo
retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua
substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que
superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)
recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos
(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo
humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu
no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo
estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de
facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira
pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos
os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma
emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e
a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos
disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um
movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos
inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis
dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que
interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina
dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar
Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a
questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina
334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o
procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e
ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24
154
o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo
146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a
luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao
homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua
imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem
divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos
nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo
para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma
parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a
forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no
quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo
pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a
exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335
Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua
ideologia religiosa
7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute
Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336
Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica
sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do
evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente
considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias
diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de
natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico
descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases
fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute
A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute
e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e
metafiacutesica entre o ser humano e o divino
335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27
155
A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos
tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos
fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do
nosso pensamento
No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da
unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por
excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma
correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e
antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia
ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o
conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades
superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser
unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que
natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo
aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da
gnose338
O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de
Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da
experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade
antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade
metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339
Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da
perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo
reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os
fenoacutemenos da existecircncia
Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus
quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial
Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas
vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de
gnose
337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem
156
Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de
solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o
processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a
solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo
dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral
Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo
gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa
Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a
um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute
os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o
conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial
Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado
atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os
temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo
associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial
A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute
eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)
Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de
pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este
padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho
O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da
tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de
Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal
No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema
da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus
correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340
Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico
essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus
Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que
a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a
Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma
mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria
340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817
157
ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo
abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis
A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e
penetrardquo342
Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita
com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a
Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela
aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do
Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e
transcendentes
A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria
e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da
qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu
aspeto de Sabedoria343
Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo
miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas
O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante
agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes
faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata
obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes
tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga
eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano
Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute
esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da
racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores
ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a
imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344
342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817
158
Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no
coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do
seu interior
Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor
da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes
exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna
possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar
a sabedoria e o conhecimento de Deus
O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura
intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado
idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia
paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de
separaccedilatildeo entre o divino e o humano
Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a
humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria
humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo
deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento
religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai
eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante
deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu
papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o
sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e
do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel
e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo
Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no
pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento
Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute
de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de
Tomeacute
Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu
pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a
escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma
realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse
159
Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro
estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas
doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como
conclusatildeo
Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos
as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de
Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora
nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses
A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial
assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo
Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da
linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca
Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-
existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo
(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e
fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)
Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de
todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa
evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo
eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara
nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser
humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No
dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que
fareisrdquo347
A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos
disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348
345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18
160
Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento
de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo349
Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar
no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu
pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio
A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se
alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave
eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos
atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no
conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente
A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o
inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da
compreensatildeo
A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua
lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino
conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade
Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da
interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio
Jesus Vivente
Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo
da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do
corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como
intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um
conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que
inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento
Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que
inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo
Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da
leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave
consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos
349 Log 1
161
Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos
duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede
de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria
Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um
reino de luz primordial em que o ser humano era majestade
O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o
humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se
unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24
61)
Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve
os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo
Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a
imagem e a luz
Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo
menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente
Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da
cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro
estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando
analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto
do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido
Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai
receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo
tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350
A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos
seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica
Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram
revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua
imortalidade
A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria
assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar
mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo
350 Log 19
162
mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma
interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo
A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir
para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o
casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade
Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar
forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do
divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de
pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as
implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias
Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente
em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo
como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu
interior o disciacutepulo salva-se (log 70)
Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o
exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece
sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade
alinha-se em conformidade com essa luz primordial
No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como
ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de
Israel
Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de
Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia
ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do
templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria
Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo
miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas
realidades celestiais
Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o
momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica
Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a
uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a
unir-se com o divino
163
No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos
evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas
religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do
saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351
A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais
sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades
a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma
privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do
Reino
O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido
como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos
laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os
que conheceram o pai de verdaderdquo352
O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo
ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353
A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita
a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o
terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua
memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de
unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica
expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua
organizaccedilatildeo
Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no
coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)
Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda
reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do
mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo
que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma
351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59
164
meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo
visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai
A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no
Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os
elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados
em Tomeacute
Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se
encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades
interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo
Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo
o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial
O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio
concreto onde ela se localize
Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute
um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de
quem a aborda ela expande-se ou contrai-se
Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da
minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas
ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354
A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia
o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo
A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo
que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem
Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de
Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591
165
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos
nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara
e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e
entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no
Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios
O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na
divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a
distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo357
356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82
166
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358
A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de
experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos
miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel
contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos
que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma
como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o
divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia
interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo
comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num
desejo de transcendecircncia
8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute
A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada
sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia
dos vaacuterios resultados apresentados
Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma
hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos
entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns
na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da
existecircncia humana a sua origem e o seu destino final
Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo
metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do
secreto
A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da
tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo
358Cf Deconick D April (1996) 105
167
Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o
evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na
Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da
literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas
Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso
sapiencial da Sabedoria
Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do
Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute
O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por
parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a
forma como o mesmo mito era interpretado
O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para
as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden
Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de
gnoacutesticos
A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis
aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois
mundos que convergiam neste debate
O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do
adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo
mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo
mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu
mestre
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)
Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus
A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste
loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos
de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila
divina interpretada com o simbolismo do templo
Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o
santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas
Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a
se transfigurar na mesma
168
A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes
da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese
facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do
significado da cacircmara nupcial no evangelho
Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde
existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua
redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em
Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo
celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto
encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do
evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do
templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica
Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental
na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na
tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em
oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do
evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a
sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada
como base ideoloacutegica360
No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne
onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era
impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o
proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade
Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens
afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra
Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como
uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)
Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na
cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde
tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio
poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai
tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um
359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274
169
reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas
teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como
Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto
Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para
entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos
Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso
de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza
divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino
Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos
outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute
A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a
unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus
A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para
integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo
A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion
22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o
de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino
natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de
um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em
lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da
transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362
Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo
com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma
imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363
No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a
Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas
seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a
imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que
361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os
humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres
humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser
divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente
fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438
170
concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem
divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que
Cristo eacute
Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg
22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho
natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser
assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser
transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)
A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no
evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos
dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um
chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma
natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no
seio da luz (lg 11)
Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa
situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave
identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute
estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a
derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o
mestre
ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele
e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito
ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de
Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica
da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que
entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)
O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira
instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos
ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de
traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes
leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida
Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente
descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que
Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores
171
Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho
por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes
Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de
compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus
textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees
orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que
estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos
apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos
Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de
Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque
Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo
grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus
textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden
que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem
Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe
permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam
despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se
ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que
prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos
processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que
era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute
A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria
possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma
que estes leitores consideravam adequada
No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na
variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira
interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364
Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon
descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras
ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo
Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e
isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo
364 Cf Levison (1999) 38
172
Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o
propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da
atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65
ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou
impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio
do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das
profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem
o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo
Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento
as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente
humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar
conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo
O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates
Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)
O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave
inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366
Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)
reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo
a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates
era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do
espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates
corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom
profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados
inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes
como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo
(2187)367
De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria
iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter
recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra
elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins
365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46
173
ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria
alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este
pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute
realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a
soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo
misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua
soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da
soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas
destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher
27-29)
A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor
afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com
estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua
experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior
expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior
dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento
elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)
as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala
(Som 2252)368
Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis
onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas
revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que
afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia
sobre os detalhesrdquo (588C)
A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o
inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo
sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de
revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem
naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca
pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da
368Levison (1999) 50
174
verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares
de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das
vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos
antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion
Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia
de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do
filho da luz
175
Bibliografia
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Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim
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Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos
1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e
grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas
o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees
Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das
paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas
a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias
indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas
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O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos
Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20
3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em
etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim
In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507
Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto
de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem
documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de
interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC
nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem
em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos
tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os
pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o
symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram
eco nestes manuscritos
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo
A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute
relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
177
A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas
antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias
camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text
Verlag Algred Toperlmann
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW
Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento
importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar
onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em
termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo
simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por
exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute
Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316
ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas
ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association
Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais
associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute
Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press
Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco
Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do
cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos
e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute
Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New
York Tampt Clark
Outros autores judeus
Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se
fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no
evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia
178
Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os
significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas
associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que
Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao
longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo
corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha
responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa
Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet
Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing
Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra
judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho
no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do
elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos
fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute
Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das
Assembleacuteias de Deus
Textos Rabiacutenicos
Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo
literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que
permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o
interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos
eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei
oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos
A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo
releeituras das tradiccedilotildees anteriores
Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo
da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a
sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados
homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo
sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico
que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave
escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos
179
Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford
Midrashim
Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do
quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de
pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente
textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso
destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma
circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese
responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos
ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para
explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua
antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo
histoacuterico em discussatildeo
Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The
Soncino Press
Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma
exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o
capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado
TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London
Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da
Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que
tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma
complete no seacuteculo doze
TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London
Literatura de hekhalot
Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo
anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios
180
celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose
desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da
memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria
elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute
lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano
ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute
transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de
hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos
produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a
literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm
com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais
autoinduzidas
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2
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Resumo
O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido
literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao
seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e
significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees
foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias
e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao
desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental
nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees
qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos
sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo
as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de
Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica
do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de
Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir
da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura
de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo
antigo
Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico
figura de Jesus cristianismo primitivo
10
Abstract
The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have
been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its
reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings
to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a
research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of
the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development
of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to
answer the following questions what was the historical context of this gospel its social
space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message
and what are the specific characteristics of language and experience in the early
Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the
historical understanding of the development of the Christian mental space in the first
century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a
new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian
movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social
contexts and geographical spaces of the ancient world
Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of
Jesus primitive Christianity
11
Agradecimentos
Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como
misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute
Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A
sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu
intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu
sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave
minha tatildeo doce Virgem Maria
Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades
maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza
ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus
e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado
com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele
o guarde eternamente
Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a
iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e
imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o
uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os
exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo
racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela
vontade do Pairdquo
Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2
12
Iacutendice
Introduccedilatildeo 14
1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19
2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20
Literatura Profeacutetica 21
Literatura Sapiencial Judaica 21
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24
Uniatildeo Nupcial no Templo 24
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36
Os Manuscritos 37
A Liacutengua Original de Tomeacute 37
A Data de Tomeacute 38
A Origem do Evangelho de Tomeacute 39
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65
A Gloacuteria do Trono 69
O Templo 70
A Merkavaacute 72
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92
6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo
simboacutelico 95
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97
Eacuteden 100
13
O Grande Mar 102
A Fonte da Vida 106
Os Rios do Paraiacuteso 108
O Veacuteu 110
Por Detraacutes do Veacuteu 114
A Grande Luz 118
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122
A Imagem e a Luz 125
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138
7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143
As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150
8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154
9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166
Bibliografia 175
14
Introduccedilatildeo
ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10
O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar
a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona
os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside
nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos
alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico
para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute
Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos
por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses
evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado
Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o
simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico
Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave
hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia
cristologia e protologia apresentada por Tomeacute
Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente
interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees
simboacutelicas do texto
Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o
panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem
valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual
Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma
linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial
no Evangelho de Tomeacute
Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese
apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico
No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a
metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da
cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo
pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas
do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute
15
Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para
contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve
discussatildeo dos conceitos religiosos do documento
No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na
histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no
espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que
influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma
importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do
Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e
serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais
judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento
No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a
compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da
linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do
proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio
Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo
fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um
mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos
dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas
satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais
da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1
Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal
a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia
humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se
manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por
este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do
evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso
de presenccedila interior
Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as
temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia
religiosa do evangelho de Tomeacute
1 Lohuizen Wali Van (2011) 3
16
No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico
que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria
forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as
realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos
cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos
siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o
processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho
eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser
humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas
afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma
produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave
sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo
O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo
no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute
a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas
atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um
gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere
facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica
Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de
Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta
exegese
Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios
mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto
de Tomeacute
Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma
realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta
conclusatildeo
Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho
de Tomeacute
O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no
pensamento do judaiacutesmo de II Templo
Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao
ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a
17
compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento
judaico e no Evangelho de Tomeacute
Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e
aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do
seu contexto
Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do
Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste
texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco
O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva
dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem
teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos
enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de
Taciano e Livro de Tomeacute
Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda
na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo
cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro
O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da
doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta
opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios
reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador
Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de
Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de
Ahiqar e textos sapienciais de Qumran
Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo
substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino
da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio
posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca
Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a
caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento
filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute
18
Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no
periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de
interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute
Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de
Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a
versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute
recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As
obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo
completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc
As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana
assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e
devidamente identificadas nas passagens traduzidas
19
1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia
As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa
seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos
influenciaram a textualidade de Tomeacute
Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute
Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo
Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos
de Joatildeo e Filipe
Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando
historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes
tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute
A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia
Hebraica e na Literatura Sapiencial
Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns
dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos
posteriores
Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como
Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos
pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos
Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos
textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais
no Evangelho de Tomeacute
20
2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo
A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre
Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que
envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano
As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar
num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico
Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como
marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma
realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o
retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do
matrimoacutenimo com o divino
Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O
que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa
leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de
Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo
da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino
Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a
imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano
uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se
com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4
Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo
recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de
Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos
inserem-se neste mesmo padratildeo
Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria
Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado
ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que
se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano
2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem
21
Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num
evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido
no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor
nas vidas das geraccedilotildees subsequentes
A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-
humano no final da histoacuteria
Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios
da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai
o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos
Literatura Profeacutetica
Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns
profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute
direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo
intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em
Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino
do Norte6
O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma
uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica
da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos
preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel
para com o proacuteximo
Literatura Sapiencial Judaica
No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da
Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus
identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora
Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas
vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e
6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26
22
amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma
sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante
A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial
apresentada pela literatura sapiencial
Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do
casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido
Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora
Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos
Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da
crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de
cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela
A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela
Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo
antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos
Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo
com o homem
Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave
cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas
dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre
Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a
uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial
Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no
tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura
Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento
no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e
pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico
dos Cacircnticos
Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara
Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe
9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29
23
Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo
ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel
fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente
transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo
para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11
Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de
simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado
com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal
redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia
sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da
eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden
Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente
associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais
frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da
criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por
Cristo o novo Adatildeo
Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o
Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os
temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro
casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13
Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os
nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com
que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao
estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes
no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de
Tomeacute
11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem
24
Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o
significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia
destas tradiccedilotildees
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai
Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por
um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo
do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel
No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio
pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo
Uniatildeo Nupcial no Templo
Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo
nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica
Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai
eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de
Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se
relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos
do batismo e da eucaristia
Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo
lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto
nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo
O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado
Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo
Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo
Testamento
A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no
templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento
14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do
Sinai
25
miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos
do batismo e da eucaristia15
Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara
Nupcial
Os templos de vaacuterios povos antigos
consideravam o Templo especialmente o
Santo dos Santos como o lugar
simboacutelico que representava a Cacircmara
Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como uma
atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai
O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para
perpetuar a teofania do Monte Sinai entre
o povo de Israel
O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo
de simbolismo coacutesmico sendo
considerado um microcosmos que
representava o universo inteiro Tambeacutem
eacute relevante a ideia antiga do homem
como microcosmo e templo uma ideia
encontrada no Novo Testamento onde o
fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o
ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece
entre o humano e o divino
O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a
fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar
onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do
divino na terra
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo
Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a
traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem
Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos
necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial
As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma
ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento
A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o
capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em
todas as ressonacircncias
15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56
26
O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura
personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se
a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)
Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte
feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina
Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica
O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo
da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos
tempos
Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria
encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo
A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)
ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo
Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca
ela se exalta diante do seu Poder
lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra
Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens
Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste
eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira
reinei sobre todos os povos e naccedilotildees
Junto de todos estes procurei onde pousar
e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo
Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico
da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma
ψυχὴν αὐτῆς)17
O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo
de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na
tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios
No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem
em Deus e a sua universalidade
Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo
Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a
palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde
17 Cf Villeneuve A (2016) 57
27
como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria
ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando
ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn
12)
O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica
que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19
Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central
do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e
terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma
reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu
O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna
que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo
e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22
A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave
coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23
Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as
mentes que estudam a virtuderdquo24
Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a
nuvem como uma ponte entre as duas esferas
A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua
identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a
paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de
sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas
caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25
Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens
primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo
A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo
18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na
referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl
987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19
28
O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o
termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a
escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo
(Gn 12)26
Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando
presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27
O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o
universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os
dois elementos do mar e da terra
Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar
especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo
Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo
dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos
de nota28
A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o
universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela
deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos
limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte
Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora
Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel
A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)
ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem
aquele que me criou armou a minha tenda e disse
lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo
Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio
e para sempre natildeo deixarei de existir
Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei
deste modo estabeleci-me em Siatildeo
e na cidade amada encontrei repouso
26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59
29
meu poder estaacute em Jerusaleacutem
Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria
no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo
Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o
ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens
Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da
sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de
Israel
No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que
habitasse em Israel
O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-
se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao
fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu
reino sobre a esfera espacial
ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo
(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu
processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo
Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)
ldquoCresci como o cedro do Liacutebano
Como o cipreste no monte Hermon
Cresci como a palmeira em Engadi
Como roseira em Jericoacute
Como formosa oliveira na planiacutecie
Cresci como plaacutetano
Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume
Como a mirra escolhida exalei bom odor
Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque
Como o vapor do incenso na Tenda
29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da
criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a
um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas
por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21
30
Estendi os meus ramos como o terebinto
Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila
Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos
E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo
A Sabedoria enraizou-se num povo honrado
A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra
de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos
Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva
localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos
Cacircnticos
No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o
palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)
associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413
A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do
rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)
Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se
trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute
associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30
A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)
tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a
noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)
Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no
Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica
O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)
Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)
As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios
satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)
A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora
Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden
30Cf Villeneuve A (2016) 63
31
O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)
ldquoVinde a mim todos os que me desejais
Fartai-vos de meus frutos
Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel
Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel
Os que me comem teratildeo ainda fome
Os que me bebem teratildeo ainda sede
Quem me obedece natildeo se envergonharaacute
Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo
Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete
sumptuoso para comerem os frutos que ela produz
Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o
vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu
vinho31
O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo
universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden
Monte Sinai e no Templo32
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos
Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros
pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no
primeiro seacuteculo da era comum
As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que
datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do
fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu
amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de
Deus participante na sua imortalidade
31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73
32
ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)
Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o
Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal
verdadeiramente seraacute imortalrdquo
Ode de Salomatildeo 35-8
A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser
humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana
para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi
considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)
Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou
beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do
Espiacuterito Santo33
ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro
de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)
Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o
jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre
aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa
nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-
9)
Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como
sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos
escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de
aacuteguas vivas
As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura
mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste
contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo
Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel
procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo
Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34
33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279
33
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute
Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder
a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute
Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados
e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns
elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e
posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver
O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho
de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo
textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico
reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute
Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio
unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de
um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si
Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira
encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados
(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem
hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que
eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que
se orerdquo
A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e
antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua
mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela
perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o
mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na
cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida
Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da
existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees
Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute
ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema
existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o
Reino dos Ceacuteus
34
Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma
identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser
fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho
o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e
responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo
natural do divino na consciecircncia)
O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em
termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz
A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das
palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte
Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano
espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua
boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos
melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos
revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando
colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto
Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e
o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos
canoacutenicos
Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos
canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o
retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar
em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada
E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso
O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus
Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos
do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo
entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz
e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios
Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque
para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo
interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por
este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial
35
No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada
um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico
Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na
eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo
duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de
comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o
disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica
eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus
Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do
misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo
menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval
A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou
divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre
dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de
duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos
sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais
simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo
A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso
trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na
experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves
manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de
misticismo mais tardias como a unio mystica
O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado
para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um
processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se
entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro
conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura
inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e
o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino
e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
36
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo35
A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a
explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica
no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo
completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo
de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra
nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem
Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com
profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que
acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute
O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo
Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra
O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua
reflexatildeo na audiecircncia que os escutava
A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa
investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode
ser interpretado legitimamente como tal36
A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos
gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel
defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute
Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe
Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito
No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de
Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -
ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo
Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o
Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto
35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43
37
O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do
cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de
Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente
heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias
Os Manuscritos
O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem
num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta
termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados
gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic
publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os
Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus
O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma
coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido
por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe
O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do
seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um
evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente
proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38
Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto
de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um
tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39
A Liacutengua Original de Tomeacute
A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta
onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo
do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria
dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41
38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by
Stevan
Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91
38
Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos
textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes
num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a
frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que
reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil
uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42
O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo
alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo
Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta
encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o
texto
Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos
manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a
liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em
manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de
Tomeacute
A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os
evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo
relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute
O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os
documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o
Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de
Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas
siriacuteacos43
Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de
manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem
originais siriacuteacos ou aramaicos
A Data de Tomeacute
41Cf Idem 91
42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97
39
Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa
complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser
datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito
onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo
em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta
e cinco dC
Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de
acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de
Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos
dC
Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave
confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71
O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus
ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos
de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila
para atestarmos esta dataccedilatildeo
A Origem do Evangelho de Tomeacute
Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute
A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito
Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em
Edessa
Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a
origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades
de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura
siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute
O nome Judas Tomeacute
44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria
40
Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo
aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute
Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma
particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo
eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo
geacutemeo de Jesus48
Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco
Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo
em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram
o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113
com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde
ocidental
O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria
da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5
Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em
siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49
O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo
encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego
aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um
apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50
Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido
provavelmente na Siacuteria
A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo
e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel
nalguma literatura maniqueiacutesta
Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos
As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca
48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10
41
ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os
vossos vestidos e os colocardes sob
os vossos peacuteshelliprdquo
Evangelho de Tomeacute 37b
As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes
nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as
Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma
literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande
Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se
na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de
ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)
O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que
Jesus disse a Judas Tomeacute
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute
Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma
problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o
seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo
do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de
radicalismo social51
Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um
misticismo unitivo ou um produto valentiano
No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada
escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das
lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios
termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees
O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a
sua teologia central
51Cf Gathercole Simon (2014) 144
ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto
que o manto da vergonha me foi
tiradordquo
Atos de Tomeacute 14
42
Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent
Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo
significativo agrave leitura de Tomeacute
A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da
linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior
ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53
Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto
pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a
ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente
seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1
Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do
judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade
tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras
continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em
Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia
Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes
divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas
da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem
No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros
disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para
lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo
A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte
onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel
desvelar novas realidades
Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente
na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos
tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as
instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai
A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21
vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o
como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)
52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145
43
O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg
57 76 96-99 133)
Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534
Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente
de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)
estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)
Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39
6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)
Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o
reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)
Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence
aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas
(lg 22 46)55
Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se
encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)
A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56
Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos
no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn
1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por
um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58
Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa
matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo
O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda
desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que
eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um
divisor (lg 72)
55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11
44
A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo
valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis
Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do
eleito
Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao
corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62
Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)
Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o
ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao
conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um
misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo
No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e
vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos
corpos
Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro
motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos
deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade
entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De
Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer
apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de
Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio
(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)
Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute
necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica
que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da
criaccedilatildeo65
O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada
acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute
repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute
62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148
45
O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que
proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para
cimardquo)
O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma
ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no
mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia
acrescentando ldquoespada e guerrardquo
Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual
os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg
110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo
O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o
reino se expande (lg 113)
O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo
contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro
Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu
maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma
posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)
Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla
dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem
fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)
Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma
oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute
A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute
encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como
ldquocarnerdquo (lg 28)
Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo
nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia
Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg
55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito
(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)
Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser
espiritual feminino (lg 105)
66Cf Idem 151
46
Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica
fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)
O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo
para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta
revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio
para escapar da morte
O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias
variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias
20 possuem um significado teoloacutegico68
Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As
referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado
defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees
psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo
do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70
A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no
Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais
como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de
ldquorepousordquo
Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg
59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)
A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica
assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute
O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das
tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado
Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento
religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia
de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos
comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este
evangelho
Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por
estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo
67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152
47
oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo
a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou
juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original
que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre
deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes
encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino
Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para
Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens
materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72
Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou
forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua
linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas
com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde
Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de
ensinamento religioso fornecido por Tomeacute
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo
O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua
composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o
misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar
quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal
heleniacutestico
A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar
iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso
Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do
sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno
do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito
assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo
O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas
mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo
71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)
48
Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os
Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o
Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as
elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da
Greacutecia claacutessica
Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os
nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas
cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma
profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com
a conquista islacircmica75
A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no
comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade
As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees
extensas incluindo franjas do deserto76
Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da
Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus
que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este
periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia
cultural persiste ateacute hoje
O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a
nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova
dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico
surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77
Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute
oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo
helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo
A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos
sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o
estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79
75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem
49
Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar
e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que
posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas
vezes esoteacutericas e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que
viaja com o viajante
De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste
meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma
revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual
Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e
traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do
Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como
eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas
religiosos deste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do
Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos
velhas crenccedilas e suposiccedilotildees
O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os
primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na
histoacuteria do livro ateacute Gutenberg
Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex
foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma
nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade
reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de
Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o
texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81
Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas
Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste
periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como
divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas
nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo
80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30
50
O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a
destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC
A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos
dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico
Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo
sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo
foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas
O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado
por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era
chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus
Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio
de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido
pela igreja dos primeiros seacuteculos
Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram
substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta
dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma
atitude miacutestica e interior da busca do divino
Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e
presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos
rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes
O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da
individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa
exegese interior
A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser
intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de
ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas
oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal
Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia
do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo
e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada
82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39
51
Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas
significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo
encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica
Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos
estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos
Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas
evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova
perspetiva sobre as tradiccedilotildees
A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original
natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria
original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado
ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a
narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo
O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da
histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os
evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute
O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes
documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as
comunidades tinham da figura de Jesus
Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando
recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu
kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria
Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus
num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de
ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do
impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam
relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e
ressurreiccedilatildeo
Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado
Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao
Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio
Eufrates
83Cf Patterson J S (2013) 10
52
A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos
que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser
completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84
Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo
comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se
encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute
parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates
Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na
grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a
norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura
literaacuteria antes do advento do cristianismo85
Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas
poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da
Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a
subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua
submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio
Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86
A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser
pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado
durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que
Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua
semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87
A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades
siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de
Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos
fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a
organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da
sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma
84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem
53
evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos
Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve
raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do
cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades
semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel
estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos
importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa
tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram
recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de
Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial
das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do
primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e
se misturaram90
Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria
ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos
primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura
intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo
de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto
oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas
feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial
do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros
ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de
quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os
pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo
Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um
entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da
tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida
88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42
54
como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu
manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da
sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos
poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta
experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram
no ocidente no outro lado do Eufrates
Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de
convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores
Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a
ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e
as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo
presentes em Tomeacute
Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes
para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a
leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso
natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica
entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de
violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus
se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente
harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos
O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de
cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que
desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da
vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e
valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo
O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de
interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel
da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o
futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da
identidade cristatilde
A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se
claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um
95 Cf Patterson J S (2013) 25
55
martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no
qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus
Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado
dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como
dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa
para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma
experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar
verdadeiramente a vida de Jesus97
No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo
um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos
pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes
eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o
Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este
Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o
ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se
encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado
A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-
se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia
de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar
da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si
proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante
diferente
O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do
segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu
pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e
cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da
criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da
crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de
pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do
periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os
quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil
96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30
56
O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que
esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais
unificadores99
O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo
A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e
o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos
cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma
platoacutenica100
Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute
notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia
centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo
geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as
vivecircncias em ambos os contextos
Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo
assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo
sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102
A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas
de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo
Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta
apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de
sabedoria
A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em
concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento
platoacutenico103
98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15
57
A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de
voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha
corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute
O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades
de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica
Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a
Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto
interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da
Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105
Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se
estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas
judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros
dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que
prosperava nestas cidades107
Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse
filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia
entre Platatildeo e Geacutenesis
Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1
na textualidade de Tomeacute
Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas
helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era
masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado
unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres
voltariam (lg 22)109
Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia
platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa
mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma
104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278
58
centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano
mortal (lg 29)110
Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido
dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e
para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111
O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao
reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo
originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)
ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg
50)112
O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no
ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma
perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e
perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres
passageiros113
O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de
vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria
contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo
Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e
os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de
Jesus em Edessa114
A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o
autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a
identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz
divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida
freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115
ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo
110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37
59
ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na
filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas
correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti
proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima
agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta
interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma
no iacutentimo do ser humano
Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de
Deus
Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois
seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e
Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o
iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte
divina ele conhecia o divino116
Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo
ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino
dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem
consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo
grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender
como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele
possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117
Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este
entendimento acerca da mesma maacutexima
ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi
feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os
fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do
universordquo118
116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)
60
Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos
platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os
aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada
Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-
se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as
perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-
se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus
suacutebditos
ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez
mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute
ouvidos a ti mesmorsquordquo 119
Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a
manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico
mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos
noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se
retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o
mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute
contemplaccedilatildeo daquele que eacute
Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este
ldquocasco de courordquo122
Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro
eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do
corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para
superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos
dois primeiros seacuteculos
Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o
risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute
Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem
O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo
empregando os termos teacutecnicos do platonismo123
119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477
61
Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de
descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam
tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente
O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute
Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza
humana e o seu destino
O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do
pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute
ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o
corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124
Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os
estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia
aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo
era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os
nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo
tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de
ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no
platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma
A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor
antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por
que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era
miseraacutevel
O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo
morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um
corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo
Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E
esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute
123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus
ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the
universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation
to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies
(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material
bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)
62
Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do
mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo
A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o
disciacutepulo mais digno do que o mundo
A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no
pensamento platoacutenico126
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo
A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese
apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a
investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um
montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho
judaico-cristatildeo127
Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo
apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de
Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde
(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos
judaico-cristatildeos
(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos
incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas
(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere
uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo
(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e
no cristianismo judaico
(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios
Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre
o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo
126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes
(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have
already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are
corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the
borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be
Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp
DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200
63
As seguintes passagens
(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV
963
(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145
(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad
Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3
(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514
Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da
Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute
a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada
Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de
Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute
Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos
estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute
O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do
nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras
de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado
como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128
Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto
porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9
(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo
ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)
Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c
7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio
Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo
Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho
Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o
judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos
128Cf Luomanen Petri (2012) 202
64
Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no
proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo
seacuteculo
A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e
duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e
quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo
Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma
cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos
Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma
exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso
A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra
aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o
repouso em Jesus
ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos
lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo
quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele
e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria
descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na
eternidaderdquo129
A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo
Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo
aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos
Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde
Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus
seguidores
Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma
voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter
dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho
dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus
129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322
65
ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-
me para a grande colina o Taborrdquo131
O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)
geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de
Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao
Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de
Jesus e a sua matildee verdadeira
ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132
Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente
nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma
teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute
- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e
ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas
Lg 24b
O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias
associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e
culturas
Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram
utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo
lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para
descreverem as suas experiecircncias133
Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas
experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou
lsquorevelaccedilatildeorsquo
A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como
visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma
131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2
66
viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas
preparaccedilotildees e rituais serem realizados
O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e
cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros
angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134
Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do
nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades
antigas para investigarmos a sua religiosidade
O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos
para denotar o fenoacutemeno cristatildeo
Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de
misticismo135
O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao
judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar
antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia
extaacutetica ou como praacutetica provocada
No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas
expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo
Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por
eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo
de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo
O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo
interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus
Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de
Tomeacute
Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque
pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um
texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute
presente no Judaiacutesmo do II Templo
A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria
do texto do Evangelho de Tomeacute136
134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7
67
O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios
ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica
Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros
trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica
Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos
formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do
templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a
realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees
As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na
literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria
na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da
Palestina de Yohanan ben Zakkai137
Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e
da especulaccedilatildeo hekhalot138
Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas
de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios
Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da
literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo
hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes
representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades
muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do
II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo
A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos
fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que
levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que
iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial
os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e
136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu
numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que
vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos
esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da
Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos
palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica
e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2
68
cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas
biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma
autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos
tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma
audiecircncia contemporacircnea
Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas
ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo
a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras
A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que
podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute
Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus
conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo
situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos
Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e
revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias
encobertas no interior das suas escrituras sagradas
Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia
Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica
A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta
tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10
40-48 Dn 7 e Is 6
Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura
produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos
A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e
na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos
Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de
temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da
evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em
textos de eacutepocas diferentes
139Cf De Conick A (2006) 7
69
Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta
as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute
associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140
A Gloacuteria do Trono
A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central
desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo
Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente
secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada
ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo
com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)
de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas
escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142
Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial
feito por dois querubins
No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute
apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos
Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias
histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute
sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos
O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite
brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo
assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta
veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado
Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras
cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co
44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus
que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-
140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8
70
23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do
templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144
O Templo
A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de
Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os
Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do
que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia
Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete
parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais
sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145
E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das
mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do
templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146
A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis
desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas
natildeo realizadas
As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da
criaccedilatildeo da humanidade
Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e
ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de
luz147
Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo
percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no
Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As
tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser
Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148
144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem
71
Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o
primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter
sido um reflexo da Kavod
Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico
Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do
que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de
encher todo o universo de um extremo ao outro150
ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]
pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel
b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o
despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro
lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse
Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a
oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151
Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do
pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos
cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave
transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos
conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da
ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e
tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de
forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152
Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da
morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente
Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os
Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as
epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades
envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no
momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na
149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21
72
liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias
ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153
Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais
antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute
15 19 37 50 59 83 84 108)
As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da
esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma
experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de
transfiguraccedilatildeo
Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os
ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees
de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de
uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no
trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154
A Merkavaacute
O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo
que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo
miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos
Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim
de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca
O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como
as fontes esoteacutericas mais tardias referem155
Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de
Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico
de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se
movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel
1014-15 com o querubim do Templo
153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30
73
Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave
presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-
se ao templo por outros meios156
A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel
encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe
mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma
ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25
Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em
duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio
de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos
Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus
identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser
vivente do profeta Ezequiel
A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus
o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o
universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-
se presente nesta literatura157
Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o
mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte
mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas
como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158
Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e
a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e
descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo
concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute
156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo
tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)
com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos
trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o
cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea
dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos
sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos
Santos
74
O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da
arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem
alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em
Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que
em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la
caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo
Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que
rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160
Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de
Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas
maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos
que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161
Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas
natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de
cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162
Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de
hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos
Cacircnticos do Sabbat163
Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e
recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era
necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos
que eram inscritos com os nomes secretos de Deus
As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o
templo e o cosmos eram estruturas opostas
As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo
a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para
o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande
santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas
planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e
da Sumeacuteria
160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170
163Cf Idem
75
Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo
era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem
quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F
Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com
a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos
praticantes de hekhalot
ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de
certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos
anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo
nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e
canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras
interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse
viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166
Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no
Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I
seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um
rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167
A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se
bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168
A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O
Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo
assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas
do caos no terceiro dia169
Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi
criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo
164Cf Idem 171
165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and
Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21
76
ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)
Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo
O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo
assim tu faraacutes o tabernaacuteculo
De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas
bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo
fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo
as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de
terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do
corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas
na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo
uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo
os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio
do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o
firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as
aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170
Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem
documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o
pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute
O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do
homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos
vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos
poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios
corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu
proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava
Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute
estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram
compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano
O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do
corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos
escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas
estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e
angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute
170Cf Midrash bereshit rabbati
77
frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome
divino171
Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o
miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na
presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se
entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem
Divina da Gloacuteria
O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o
autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo
este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica
No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com
este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na
atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o
puacuteblico a que se destinava
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute
O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e
interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite
definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica
Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por
si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda
Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo
primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no
final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis
descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim
Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
(Lg18)
A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo
que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial
que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas
dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que
171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175
78
representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias
a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos
primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)
Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses
por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia
de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que
estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para
ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se
ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)
Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais
respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se
vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu
de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem
sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem
qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)
Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia
visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus
disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco
aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas
caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)
Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos
miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa
esta realidade no jardim do Eacuteden
Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma
crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas
crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino
Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o
exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e
o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo (Lg 22)
79
Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as
vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um
tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco
No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os
disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te
revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como
as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo
temereisrdquo (Lg 37)
O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do
corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos
natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu
ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)
A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que
a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes
no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas
quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)
Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia
platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas
simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem
Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial
do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo
Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus
O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara
Nupcial
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37
ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos
Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos
vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os
espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo
80
Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que
apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais
1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver
o Filho de Deus sem ter medo
Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao
ceacuteu numa linguagem encratita172
Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora
comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo
baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321
Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de
peles e eles vestiram-nasrdquo
Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173
Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou
ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o
sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco
Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute
difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo
Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de
pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo
Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos
neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da
carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo
O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute
um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175
Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se
revestir destardquo176
Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9
que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas
E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra
172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem
81
E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim
E o Senhor renovou-me com a sua roupa
E me possuiu com a sua luz
E do alto me deu descanso imortal
E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos
E eu despi-me da escuridatildeo
E vesti a luz
E ateacute eu mesmo adquiri membros
Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento
E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito
E eu removi de mim as minhas vestes de pele
Porque a tua matildeo direita me ressuscitou
E fez com que a doenccedila passasse de mim177
Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um
ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de
libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus
Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica
Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de
pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo
A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus
anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou
selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando
vestida torna aceitaacutevel diante de Deus
Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo
com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal
No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de
Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o
ldquoselordquo no Nome178
Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-
se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo
ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E
eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo
177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126
82
Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e
transformado num anjo da face
ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele
[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para
ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181
Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram
uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA
nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do
corpordquo183
O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm
que ser despidas sem vergonha
O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis
Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e
Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os
olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha
Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que
ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se
sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos
O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito
especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que
o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu
ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma
criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era
controlado pelos impulsos sexuais184
A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual
deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-
caiacutedo ausente de vergonha
179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134
83
Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as
vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma
pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda
daacute outro elemento sobre o ser assexuado
ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o
interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num
soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando
fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de
um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como
sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo
Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que
era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a
idade adulta em primeiro lugar186
Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento
ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187
De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo
periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188
Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era
uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo
foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189
Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que
renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico
preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190
Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada
pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam
185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes
a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do
campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e
devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos
Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135
84
As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a
experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o
objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus
Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de
Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191
Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De
mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a
existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte
e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio
Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto
retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a
essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo
Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o
homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave
esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo
material
Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde
Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque
despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo
Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias
estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193
O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos
gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do
rosto de meu Deus para sempre194
Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas
ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar
o seu corpo
191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por
Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a
Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as
conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas
materiaisrdquo
192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10
85
O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu
nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia
visionaacuteria
No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque
que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes
celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico
Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-
escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra
sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho
de Filipe 1 34-35
ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo
Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo
total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta
forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho
transformando a sua alma
ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo
sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo
No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o
mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada
encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa
experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave
entidade divina que tinha visto
O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma
crenccedila antiga presente no mundo antigo196
195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42
86
Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua
experiecircncia religiosa
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50
ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz
procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens
Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se
vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um
repousordquo
O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um
fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na
interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis
perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria
Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se
manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era
segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz
A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada
primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo
Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn
13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus
tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja
luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus
sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes
da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham
o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a
sua proacutepria luz198
Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes
da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da
imagem do Logos
197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66
87
A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus
explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse
sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo
De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz
primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis
O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se
aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos
seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos
Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos
anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como
os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl
82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um
de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn
127)rdquo
O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o
homem agrave imagem dos anjosrdquo
Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126
que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva
Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante
tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de
ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo
A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma
forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no
nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200
Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse
ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma
substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e
tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se
assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto
como a forma do invisiacutevelrdquo201
199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443
88
O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas
letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado
de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas
eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer
1141 Epiph Pan 34 47)
Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome
divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial
manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram
pronunciados agrave sua imagem202
O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de
Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo
ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a
luz do universo
No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de
lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno
de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos
o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo
Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma
realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo
alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior
Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do
Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem
trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto
estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-
me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo
(12827-30)
O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo
filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo
regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)
Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176
89
Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que
regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser
porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no
Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo
O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de
Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco
aacutervores
Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do
Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204
Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que
constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute
o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco
virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo
alcanccedila virtude e imortalidade
As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando
vestes de luz
E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor
Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram
Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal
E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna
Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra
imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver
nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores
como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da
ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso
Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes
com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o
autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo
domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205
204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83
90
Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do
paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da
imortalidade
Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim
comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma
aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito
de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica
de coisas legiacutetimasrdquo (198)206
As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a
alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do
pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e
corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves
virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas
leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda
adacircmica
E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute
existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma
com as virtudes paradisiacuteacas
O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque
vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada
ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os
eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis
novamenterdquo
No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e
manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16
ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai
contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios
(monachos)rdquo
O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este
ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com
a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos
206Idem 85
91
Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo
diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207
Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos
ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus
Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono
celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe
ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade
Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma
situaccedilatildeo num hino samaritano lemos
Ele Deus permanece para sempre
Ele existe ateacute a eternidade
De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio
Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como
Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208
Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes
se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser
angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina
Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto
angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz
aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute
paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar
uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden
Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e
inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e
adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus
e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo
ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado
angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na
natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte
207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718
92
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59
Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica
encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a
manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o
miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o
A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem
cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este
encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser
alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo
desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria
ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o
vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo
(lg 83)
A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos
que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele
prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo
Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial
e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque
224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209
O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica
presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da
humanidade
Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir
por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo
209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a
93
relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido
no ventre de uma mulher
ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos
humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a
luz gera-se a si mesma
O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a
imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto
que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod
escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na
tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que
se revelava aos miacutesticos211
Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos
anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah
A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus
esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da
ldquoGrande Gloacuteriardquo
A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum
dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo
flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212
Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio
soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213
Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou
Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a
aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)
A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse
visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e
trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo
Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7
ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33
De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e
incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no
211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104
94
entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto
ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute
cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214
Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era
abrangida pela sua luz
Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte
verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma
alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo
pode ser percebida diretamente
Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg
83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute
oculta na sua proacutepria luz215
No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica
que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do
disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)
Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos
devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos
Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus
durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a
imortalidade
Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas
homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo
Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta
uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta
imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a
imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e
aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto
nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do
214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105
95
Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado
esquerdordquo (Hom306)216
Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute
paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma
experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como
diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria
luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu
interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um
corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve
ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o
conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre
as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino
5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no
seu mundo simboacutelico
Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara
Nupcial
Lg 75
Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas
ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em
Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia
visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o
conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto
A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o
maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente
levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta
Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de
Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um
fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem
216 Cf Maloney G A (1992) 191-192
96
O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de
Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e
cristatildeos numa fase emergente
As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as
encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de
Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar
Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a
natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo
Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a
sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o
peso e a grandeza desta memoacuteria
Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas
que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada
sem excessos ou divagaccedilotildees
Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas
uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial
Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a
investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as
mensagens contidas nos outros logia
A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos
do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico
A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do
Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden
O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do
percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado
nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial
Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos
que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas
Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam
as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos
Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus
criador e personagens com nomes hebraicos
Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas
questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos
97
Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que
antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de
Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental
As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave
obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao
Templo de Jerusaleacutem
O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do
Templo a niacutevel simboacutelico
O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era
transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram
os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes
conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo
deste processo revolucionaram as suas religiotildees
Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta
influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo
apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a
simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem
Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos
questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo
olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos
ciclos da vida
A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o
encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a
adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217
A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num
calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas
formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218
O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas
combinadas e sincronizadas
217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem
98
A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do
sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do
ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-
calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal
preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e
ciclo sacrificial221
A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais
complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute
traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito
memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222
Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do
Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento
simboacutelico da realidade do Templo
Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de
modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica
do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e
terrestre pelo serviccedilo sagrado223
O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do
Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos
escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se
Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e
reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa
Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo
fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo
ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos
ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a
redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade
centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224
219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio
vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de
cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6
99
Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da
inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-
se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de
tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do
calendaacuterio
A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo
canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do
Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria
viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e
Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque
Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos
anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada
dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou
sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua
marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que
descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos
sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos
soprar o shofar e prostrarem-se227
O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam
os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se
vivas
ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras
espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo
vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas
225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos
ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute
descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da
terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual
com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre
a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute
ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados
antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica
e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os
sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do
ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos
perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13
100
cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as
cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos
Santos (hellip)
As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das
maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da
cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas
com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo
vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta
dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-
todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228
Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o
cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos
separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O
espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de
uma realidade eterna
Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que
aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente
Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa
forma simboacutelica e narrativa229
Eacuteden
O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais
interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim
como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o
paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)
Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a
partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do
Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma
humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da
mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo
estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes
228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57
101
na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes
do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem
criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se
manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do
outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe
ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a
Origem do Mundo)230
A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute
a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao
Eacuteden
Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai
Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria
Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila
do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico
Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais
antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos
aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231
Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo
como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo
gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito
da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico
neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos
gnoacutesticos
Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos
constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram
Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que
tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram
Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o
significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem
deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)
230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103
102
O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser
considerado bom como o Eacuteden inicial
O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter
especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo
havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo
poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual
O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas
sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da
textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o
sentimento hebreu para com o Eacuteden
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim
Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o
iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e
natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)
ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa
expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai
estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)
O Grande Mar
A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os
israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era
apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma
descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido
O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar
do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente
considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo
unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da
montanha coacutesmica
O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o
firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze
enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da
largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente
representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio
103
era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair
que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos
Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita
para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232
Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o
mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o
maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b
Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio
Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem
afirmou que o paacutetio exterior representava o mar
Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e
entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos
Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos
Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos
homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)
Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo
associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel
que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon
de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior
O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade
estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo
2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece
entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do
criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees
que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os
mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)
sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu
povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve
o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)
mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema
natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da
criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste
232Citado em Barker Margaret (1990) 61
104
para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo
(Ecircxodo1517)
Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento
hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo
do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo
a partir dos mares primitivos
Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos
primordial233
O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das
visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel
de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de
entronizaccedilatildeo
Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas
surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram
autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)
Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus
antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e
derrotado (Isaiacuteas 519)
O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em
tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo
nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4
Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na
qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da
montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor
O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui
aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se
encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono
celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute
que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao
redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)
Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do
Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)
233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522
105
ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado
com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu
nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse
152)
O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o
firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo
O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o
jardim de Deus no livro de Ezequiel
Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal
do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim
seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em
mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo
material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre
necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia
O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era
frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado
Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha
sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em
que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro
Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa
(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o
poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234
Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas
explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade
disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo
quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)
Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua
vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do
Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no
Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava
simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira
como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo
234Cf Barker Margaret (1990) 61-69
106
De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios
querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e
uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo
Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do
templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo
numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras
(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel
4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-
12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em
outras partes da Biacuteblia Hebraica
A Fonte da Vida
Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz
Salmo 367-9
Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e
ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a
construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde
e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se
sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes
cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos
varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de
ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que
tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material
lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em
todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista
o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes
recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus
poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era
235Cf Ginzberg Louis (2003) 162
107
devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o
santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua
ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo
em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o
mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o
mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado
para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao
ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no
segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que
estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o
mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia
no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como
alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O
candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua
criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o
Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no
quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No
sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o
seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante
de seu Senhor e criadorrdquo236
A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo
VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado
em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes
colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para
o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor
dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)
Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da
fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade
ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem
prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)
236Cf Ginzberg Louis (2003) 150
108
Os Rios do Paraiacuteso
Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em
quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas
vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre
associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo
O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do
Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a
um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos
Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica
no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias
semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na
montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele
que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute
um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em
majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas
visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a
fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da
sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo
no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro
de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo
isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da
porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e
tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores
cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para
eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da
fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade
com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta
oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda
do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica
a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem
metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no
veratildeo como no inverno
109
E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome
um (Zacarias 148-9)
O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os
Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu
cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam
No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de
Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a
aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas
da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)
Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos
paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio
No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos
Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando
ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da
festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a
mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de
aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber
(Joatildeo 737 -9)
O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios
serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a
simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era
quase sinoacutenimo do Espiacuterito
Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham
adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de
Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis
12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria
foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)
Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a
com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele
(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de
especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum
onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)
A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e
como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o
110
Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a
luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)
Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea
para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e
como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o
meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar
(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios
do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque
confirmam esta associaccedilatildeo
Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono
Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada
completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho
do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante
ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque
dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem
de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele
(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor
descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e
vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)
O Veacuteu
ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos
dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a
esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram
reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser
tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]
antes do templo sagradordquo
Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)
Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono
dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo
que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas
Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da
experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido
111
uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como
saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido
As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente
tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu
representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as
vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava
Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da
encarnaccedilatildeo
O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o
lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo
visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade
As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como
parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos
e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia
do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo
Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado
Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos
dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos
alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do
templo
O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8
mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de
puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)
Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da
mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido
Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1
ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado
Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se
havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-
sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o
comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o
primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia
entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de
duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de
112
modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi
colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado
norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua
esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas
grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de
espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia
vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de
vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em
cada ano (Mishnah Shekalim 85)
Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e
sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila
forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para
a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este
veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de
Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias
descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia
haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada
por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)
Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade
viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus
despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que
a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde
um rabino do segundo seacuteculo a viu
Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose
Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas
satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)
No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado
ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica
com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma
habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico
tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da
terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo
113
Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma
que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama
dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)
Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual
Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave
sabedoria do templo ou era algo antigo
A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi
coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim
foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada
espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que
poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas
(Antiguidades Judaicas III124 126)
As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o
linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez
que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o
carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)
Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade
cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo
(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este
simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute
como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de
toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais
166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO
que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo
siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo
feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais
excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador
de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de
[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre
Ecircxodo 1185)
Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que
separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um
palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas
quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao
114
dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este
veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo
sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos
transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal
como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E
satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e
inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis
(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)
A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu
(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da
cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram
vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos
elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra
azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina
tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3
Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo
Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi
descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O
veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a
invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de
como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem
do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os
elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa
compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da
vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da
realidade subjacente ao tempo237
Por Detraacutes do Veacuteu
Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar
onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era
237Cf Barker Margaret (1990) 104-107
115
eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz
lm
Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram
apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores
descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu
toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele
O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto
que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha
sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente
Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial
Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do
Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo
impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar
ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo
da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir
Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel
quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees
ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)
O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma
visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu
ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava
Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o
verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das
vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o
escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do
veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)
Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do
veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus
Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os
profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica
da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos
agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para
um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram
116
pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1
Henoque 873-4)
A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre
como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu
posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute
e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a
visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda
visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda
espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)
Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram
patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado
simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio
Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o
paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)
O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos
Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do
segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o
santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)
As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre
o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou
retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti
e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque
34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o
mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido
deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e
se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as
extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que
estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)
A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de
Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da
Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no
modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-
lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o
117
nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo
das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)
O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material
e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da
presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do
Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais
esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute
chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar
que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que
fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)
Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel
para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O
debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi
construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses
mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238
ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e
o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)
Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano
Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees
simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o
proacuteprio Jesus
No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais
iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos
celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus
misteacuteriosrdquo (lg 62)
O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do
veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o
imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da
cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido
por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos
falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por
traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe
238Cf Barker Margaret (1990) 127-128
118
Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que
ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro
Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem
semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)
O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros
lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o
nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah
12b)
A Grande Luz
ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo
proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai
a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)
ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute
privado do Todordquo (loacuteg 67)
No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas
como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na
criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se
oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de
Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de
Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute
vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta
expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa
para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre
os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os
disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza
com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente
239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram
por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo
vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que
morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo
119
O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz
do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo
deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como
expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave
figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria
criando iluminando e penetrando todas as coisas
Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm
a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave
sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia
Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor
da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua
bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em
Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num
movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga
o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo
regressa
Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que
atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma
imanecircncia divina no mundo e no homem
Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a
procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado
para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um
aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da
criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31
Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca
primordial o tempo antes do tempo
A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que
encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg
19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido
242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26
120
O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o
termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2
da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244
A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee
mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que
existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e
77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as
coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser
humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no
interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de
Deus (lg 3)
A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida
em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em
que este se situa e estaacute presente
Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo
judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser
concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute
Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com
siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo
Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes
pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino
podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no
Evangelho de Tomeacute
O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz
em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute
244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute
necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de
um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros
do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o
Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios
entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos
conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3
121
O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do
Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor
lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que
Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo
(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-
nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)
Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que
andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque
vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo
cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua
gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)
A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma
das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC
Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo
(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute
desoladordquo (Daniel917)
A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os
raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono
dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este
simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao
templo
A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel
veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou
com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada
para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do
Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora
quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para
iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)
Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os
meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e
evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente
nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute
248Cf Barker Margaret (1990) 148-150
122
diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes
detentoras do conhecimento
Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo
encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute
tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo
Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos
pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes
da religiatildeo do primeiro templo
O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os
profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das
visotildees dos profetas
Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No
Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como
emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse
Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo
haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1
A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no
livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249
Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia
grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo
apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees
generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)
A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica
abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro
249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o
pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeus e Parmeacutenides
123
diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash
que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252
Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que
descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus
declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o
vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e
61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da
condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo
ldquodivididardquo privada da imagem divina
Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11
e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial
anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo
As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam
bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253
252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem
Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo
Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70
Para traccedilarmos a exegese do Evangelho
de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo
presentes em Geacutenesis devemos procurar
ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a
hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo
dispostos de forma aleatoacuteria
No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele
que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o
poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes
(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute
recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo
(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco
a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram
atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os
governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos
como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com
a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg
4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete
diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia
da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer
(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo
um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente
concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e
relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha
com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos
como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo
humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando
Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser
124
Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a
luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda
a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz
manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que
fala na primeira pessoa com uma voz humana
Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em
simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por
todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute
uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o
protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254
A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de
modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A
atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do
espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso
divino no seacutetimo dia
Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus
atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende
aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se
encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior
254Cf Pagels E H (1999) 484
singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o
homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e
fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo
causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando
chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas
eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia
presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a
unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz
125
ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os
disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta
dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute
ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas
oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela
sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo
conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor
pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico
que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a
humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina
Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos
duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo
A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a
fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos
era bastante comum no seu tempo
A Imagem e a Luz
ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Lg 22
A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas
da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada
pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida
Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho
de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes
conceitos
Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma
experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu
sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo
Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um
corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser
255Cf Idem
126
humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns
pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original
arquetiacutepica
Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no
com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido
o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257
Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de
Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele
argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo
sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos
evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do
judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem
quanto suportareisrdquo259
O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado
primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a
existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da
pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um
objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser
humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento
divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia
afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino
Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois
Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem
celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem
criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da
Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11
Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam
256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158
127
ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo
natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou
com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim
do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job
1420)rdquo
De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre
Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu
mudei261
Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como
cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo
brilhante que ateacute superou o brilho do sol262
Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus
criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da
queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda
Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b
O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O
espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele
O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a
Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263
Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que
foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem
(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma
interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a
sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo
luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que
imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado
No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe
uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem
De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden
entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo
261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18
128
tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz
eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo
Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou
no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso
63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e
viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem
estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante
delardquo266
Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que
encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente
vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que
tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do
pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que
estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido
da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute
perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja
claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva
Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267
O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um
processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como
resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem
Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica
um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava
retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106
ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois
um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial
A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem
ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma
ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos
265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223
Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do
trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais
antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o
homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160
129
dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a
Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se
depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e
adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268
Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim
necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem
quanto suportareisrdquo270
ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser
digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271
Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute
Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as
imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo
num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo
manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272
O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo
relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)
numa imagem (imagem) para entrar no Reino
No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem
da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das
imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo
pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-
nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo
inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo
Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees
coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se
268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63
130
manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a
imagem dessa luz273
Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes
conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos
que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)
esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as
outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser
humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a
luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que
falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e
condenado a provar a morte274
O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa
imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84
menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas
beatitudes nas lg 18b e 19a
ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a
morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276
Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial
ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277
ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na
Cacircmara Nupcialrdquo278
A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de
Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e
retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo
subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de
Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que
273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63
275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75
131
interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da
lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas
proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta
do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)
Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que
ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus
responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que
borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha
boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-
lhe-atildeo reveladasrdquo280
Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as
palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara
Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)
estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute
designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo
representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104
e cada alma unir-se-agrave a ele
Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um
estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado
por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial
estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o
casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa
o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da
histoacuteria
Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem
simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o
jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o
final dos tempos
Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do
estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em
279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487
132
que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis
saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)
Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de
unidade
Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e
por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs
grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo
transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute
a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a
uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de
Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre
o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem
procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas
Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial
primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e
ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute
natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se
oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o
disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas
se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle
disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz
e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)
Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz
oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial
O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento
salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante
Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos
lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que
estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem
Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da
experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo
de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de
preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe
instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais
133
No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura
analisada e aos evangelhos sinoacuteticos
O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora
acessiacuteveis a todos os que as buscarem
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo
Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave
porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca
de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles
transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)
134
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho
carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo
interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo
entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo283
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284
ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que
vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam
como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que
estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim
consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu
Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo
Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da
imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na
presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em
fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos
pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda
Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a
carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila
para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285
283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162
135
Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon
sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu
uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou
consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os
raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que
gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex
227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex
240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos
luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de
Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo
Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma
ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente
meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas
ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas
de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo
Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de
nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos
ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao
redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o
queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo
Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus
hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal
Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104
Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o
olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo
traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo
causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo
acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de
fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do
sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio
286Cf Idem 106
136
ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode
recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a
imortalidade (αθανασίας) (104)
No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda
muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim
conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente
transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento
esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por
meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia
Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser
deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287
Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave
experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem
natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do
que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que
a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas
sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288
Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus
estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o
fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa
Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se
encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute
perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial
Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento
central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos
Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute
ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da
imagem da luz do Pai
Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz
da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na
presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus
ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder
287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108
137
transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores
estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila
judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam
esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus
O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma
de misticismo transformacional
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289
Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a
revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos
como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte
da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os
sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os
justos os santos e os escolhidosrdquo
Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos
santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os
segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria
ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila
pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a
injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291
Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147
em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles
estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras
tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem
recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do
conhecimentordquo292
Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no
lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293
289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81
138
A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a
aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave
linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo
em 4 Esdras 1438-41
ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a
beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida
estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi
e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a
minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a
minha boca foi aberta e jamais fechadardquo
Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire
conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para
descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca
eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do
fogo
Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a
condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84
explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras
palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si
mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe
eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294
A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar
fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino
Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes
tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me
intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa
ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se
natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296
294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93
139
As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia
comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que
emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si
mesmo297
Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano
no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298
Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da
existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos
conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima
intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem
do corpo no Evangelho de Tomeacute299
O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e
antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus
supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito
O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte
de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se
aprisionada no corpo humano
O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na
qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica
interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes
(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em
Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo
Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo
sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo
cultural heleacutenico
Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta
temaacutetica
A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente
com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que
encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma
297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54
140
compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e
enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento
Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg
568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)
O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento
afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida
Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e
ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na
exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de
contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute
ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo
(Lg 112)
ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que
depende destes doisrdquo (Lg 87)
O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne
sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)
ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos
alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os
nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos
que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do
corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo
Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de
escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e
Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma
Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que
ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira
afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo
seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute
ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301
Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como
uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia
300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59
141
resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria
entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da
filosofia greco-romana302
O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma
condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo
que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois
corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta
interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303
Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um
corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever
Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de
Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural
Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma
plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende
do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo
universal
A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um
indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do
asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias
restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior
Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a
descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do
mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas
lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma
compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo
experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores
sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si
mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de
Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo
pessoal
ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que
conheceram o Pai em verdade
302 Cf Idem 60 303 Cf Idem
142
Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o
tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)
Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos
inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a
vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente
Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304
O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento
preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-
se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos
ldquomovimentos de Jesusrdquo
Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o
homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo
apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de
perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe
que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados
De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que
encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e
reinaraacute sobre o Todordquo
Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando
sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais
notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus
existem na sua forma concreta como um texto escrito
A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo
por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete
repetidamente no seu significado
ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo
corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)
304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273
143
Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo
Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual
seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo
esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta
eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a
realidade fiacutesica em termos de origem307
Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o
homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de
vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29
corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que
o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave
animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a
prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que
atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a
lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310
Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos
eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase
em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e
guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social
(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo
autorizadas
6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no
evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido
na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos
307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus
iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas
espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita
existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que
explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo
de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era
144
gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de
gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria
Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia
gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo
interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode
salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de
Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312
O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro
autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia
gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo
eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia
Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o
conhecimento de Deus
Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas
disponiacuteveis em Nag Hammadi
ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu
a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313
ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde
e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo
o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso
O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de
onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da
sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314
A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser
humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua
realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino
considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a
sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo
contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos
estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo
religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 149
145
Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a
iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as
realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo
O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees
no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo
de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as
ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo
Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como
a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de
escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas
geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes
que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes
livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de
interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram
deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315
Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas
uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual
As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram
comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da
antiguidade
Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental
influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel
transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado
apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas
Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como
verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees
O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em
concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos
leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega
315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus
146
Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a
novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo
da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido
Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no
autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender
que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo
Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros
revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam
entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam
assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual
A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual
gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute
agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a
difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento
distintas
Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica
Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita
no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se
encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma
ortodoxia definida
Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a
experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior
de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e
adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro
de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras
sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes
Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que
surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros
contextos
Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o
gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo
signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se
assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem
147
Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo
se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316
seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que
possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da
experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta
temaacutetica317
O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas
doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais
abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual
do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo
apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e
como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma
questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma
exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com
revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender
As variedades da experiecircncia gnoacutestica
Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem
pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do
conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do
segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito
(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a
interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a
descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da
histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador
dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos
Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o
gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem
algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da
mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no
pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo
316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)
148
este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a
alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento
evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas
Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma
conotaccedilatildeo positiva318
O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este
adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e
operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o
conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo
Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que
alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de
Deus e das verdades superiores
O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter
trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade
de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como
ldquoa gnose que nos foi dadardquo321
Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os
acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes
uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica
definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada
chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322
Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios
fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro
lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -
falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir
que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia
perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de
Valentino e a sua escola
318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem
149
Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos
valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as
doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325
Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo
especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos
O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma
designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria
Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo
num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria
Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo
ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo
era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes
conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus
Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento
gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque
preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais
corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as
manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos
gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326
No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos
espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo
mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro
lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se
a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327
A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por
gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim
como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328
Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de
situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade
foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a
325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12
150
designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos
orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo
perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados
para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma
particular de viver a vida
Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas
respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana
Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo
para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo
Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os
gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu
tempo
Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees
entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica
Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos
sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico
geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses
conhecimentos esoteacutericos
Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e
espiritualmente conhecimentos superiores
O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos
primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas
escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era
comum
Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico
isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o
gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram
329Cf Idem
151
problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava
separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens
deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar
de libertaccedilatildeo
Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos
tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso
O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o
conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas
No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano
nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a
salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus
Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm
conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em
Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente
A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos
descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para
voltar ao estado da imagem divina no corpo humano
No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz
gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de
iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto
perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo
Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito
gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico
O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de
pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de
conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente
O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a
lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura
encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza
gnoacutestica do evangelho de Tomeacute
O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem
humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino
satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico
152
Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou
na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu
pensamento
ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou
Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos
onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o
que constitui um renascimento [real]rdquo
- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782
Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos
do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo
A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua
mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve
em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas
Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332
ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes
da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial
apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do
antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde
todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo
330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash
Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e
dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo
encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma
criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos
apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de
Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo
primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio
metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-
lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o
pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim
e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis
153
de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo
com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que
chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz
primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo
retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua
substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que
superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)
recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos
(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo
humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu
no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo
estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de
facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira
pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos
os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma
emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e
a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos
disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um
movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos
inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis
dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que
interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina
dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar
Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a
questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina
334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o
procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e
ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24
154
o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo
146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a
luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao
homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua
imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem
divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos
nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo
para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma
parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a
forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no
quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo
pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a
exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335
Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua
ideologia religiosa
7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute
Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336
Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica
sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do
evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente
considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias
diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de
natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico
descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases
fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute
A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute
e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e
metafiacutesica entre o ser humano e o divino
335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27
155
A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos
tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos
fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do
nosso pensamento
No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da
unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por
excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma
correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e
antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia
ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o
conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades
superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser
unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que
natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo
aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da
gnose338
O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de
Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da
experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade
antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade
metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339
Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da
perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo
reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os
fenoacutemenos da existecircncia
Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus
quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial
Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas
vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de
gnose
337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem
156
Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de
solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o
processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a
solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo
dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral
Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo
gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa
Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a
um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute
os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o
conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial
Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado
atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os
temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo
associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial
A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute
eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)
Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de
pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este
padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho
O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da
tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de
Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal
No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema
da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus
correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340
Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico
essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus
Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que
a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a
Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma
mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria
340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817
157
ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo
abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis
A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e
penetrardquo342
Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita
com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a
Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela
aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do
Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e
transcendentes
A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria
e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da
qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu
aspeto de Sabedoria343
Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo
miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas
O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante
agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes
faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata
obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes
tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga
eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano
Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute
esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da
racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores
ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a
imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344
342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817
158
Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no
coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do
seu interior
Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor
da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes
exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna
possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar
a sabedoria e o conhecimento de Deus
O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura
intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado
idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia
paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de
separaccedilatildeo entre o divino e o humano
Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a
humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria
humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo
deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento
religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai
eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante
deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu
papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o
sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e
do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel
e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo
Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no
pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento
Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute
de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de
Tomeacute
Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu
pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a
escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma
realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse
159
Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro
estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas
doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como
conclusatildeo
Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos
as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de
Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora
nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses
A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial
assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo
Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da
linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca
Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-
existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo
(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e
fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)
Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de
todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa
evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo
eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara
nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser
humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No
dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que
fareisrdquo347
A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos
disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348
345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18
160
Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento
de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo349
Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar
no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu
pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio
A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se
alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave
eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos
atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no
conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente
A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o
inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da
compreensatildeo
A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua
lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino
conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade
Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da
interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio
Jesus Vivente
Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo
da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do
corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como
intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um
conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que
inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento
Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que
inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo
Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da
leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave
consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos
349 Log 1
161
Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos
duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede
de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria
Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um
reino de luz primordial em que o ser humano era majestade
O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o
humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se
unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24
61)
Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve
os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo
Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a
imagem e a luz
Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo
menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente
Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da
cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro
estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando
analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto
do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido
Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai
receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo
tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350
A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos
seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica
Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram
revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua
imortalidade
A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria
assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar
mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo
350 Log 19
162
mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma
interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo
A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir
para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o
casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade
Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar
forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do
divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de
pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as
implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias
Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente
em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo
como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu
interior o disciacutepulo salva-se (log 70)
Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o
exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece
sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade
alinha-se em conformidade com essa luz primordial
No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como
ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de
Israel
Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de
Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia
ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do
templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria
Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo
miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas
realidades celestiais
Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o
momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica
Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a
uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a
unir-se com o divino
163
No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos
evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas
religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do
saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351
A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais
sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades
a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma
privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do
Reino
O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido
como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos
laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os
que conheceram o pai de verdaderdquo352
O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo
ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353
A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita
a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o
terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua
memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de
unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica
expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua
organizaccedilatildeo
Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no
coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)
Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda
reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do
mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo
que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma
351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59
164
meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo
visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai
A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no
Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os
elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados
em Tomeacute
Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se
encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades
interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo
Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo
o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial
O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio
concreto onde ela se localize
Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute
um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de
quem a aborda ela expande-se ou contrai-se
Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da
minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas
ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354
A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia
o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo
A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo
que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem
Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de
Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591
165
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos
nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara
e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e
entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no
Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios
O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na
divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a
distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo357
356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82
166
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358
A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de
experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos
miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel
contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos
que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma
como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o
divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia
interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo
comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num
desejo de transcendecircncia
8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute
A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada
sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia
dos vaacuterios resultados apresentados
Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma
hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos
entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns
na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da
existecircncia humana a sua origem e o seu destino final
Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo
metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do
secreto
A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da
tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo
358Cf Deconick D April (1996) 105
167
Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o
evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na
Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da
literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas
Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso
sapiencial da Sabedoria
Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do
Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute
O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por
parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a
forma como o mesmo mito era interpretado
O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para
as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden
Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de
gnoacutesticos
A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis
aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois
mundos que convergiam neste debate
O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do
adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo
mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo
mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu
mestre
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)
Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus
A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste
loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos
de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila
divina interpretada com o simbolismo do templo
Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o
santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas
Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a
se transfigurar na mesma
168
A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes
da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese
facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do
significado da cacircmara nupcial no evangelho
Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde
existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua
redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em
Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo
celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto
encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do
evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do
templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica
Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental
na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na
tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em
oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do
evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a
sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada
como base ideoloacutegica360
No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne
onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era
impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o
proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade
Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens
afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra
Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como
uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)
Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na
cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde
tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio
poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai
tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um
359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274
169
reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas
teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como
Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto
Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para
entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos
Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso
de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza
divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino
Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos
outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute
A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a
unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus
A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para
integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo
A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion
22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o
de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino
natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de
um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em
lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da
transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362
Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo
com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma
imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363
No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a
Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas
seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a
imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que
361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os
humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres
humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser
divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente
fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438
170
concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem
divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que
Cristo eacute
Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg
22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho
natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser
assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser
transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)
A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no
evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos
dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um
chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma
natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no
seio da luz (lg 11)
Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa
situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave
identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute
estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a
derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o
mestre
ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele
e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito
ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de
Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica
da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que
entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)
O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira
instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos
ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de
traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes
leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida
Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente
descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que
Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores
171
Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho
por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes
Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de
compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus
textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees
orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que
estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos
apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos
Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de
Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque
Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo
grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus
textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden
que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem
Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe
permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam
despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se
ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que
prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos
processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que
era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute
A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria
possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma
que estes leitores consideravam adequada
No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na
variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira
interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364
Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon
descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras
ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo
Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e
isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo
364 Cf Levison (1999) 38
172
Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o
propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da
atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65
ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou
impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio
do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das
profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem
o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo
Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento
as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente
humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar
conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo
O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates
Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)
O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave
inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366
Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)
reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo
a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates
era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do
espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates
corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom
profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados
inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes
como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo
(2187)367
De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria
iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter
recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra
elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins
365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46
173
ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria
alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este
pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute
realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a
soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo
misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua
soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da
soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas
destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher
27-29)
A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor
afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com
estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua
experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior
expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior
dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento
elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)
as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala
(Som 2252)368
Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis
onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas
revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que
afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia
sobre os detalhesrdquo (588C)
A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o
inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo
sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de
revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem
naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca
pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da
368Levison (1999) 50
174
verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares
de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das
vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos
antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion
Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia
de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do
filho da luz
175
Bibliografia
Fontes Primaacuterias
Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim
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Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos
1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e
grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas
o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees
Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das
paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas
a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias
indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas
James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press
O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos
Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20
3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em
etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim
In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507
Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto
de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem
documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de
interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC
nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem
em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos
tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os
pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o
symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram
eco nestes manuscritos
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo
A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute
relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
177
A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas
antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias
camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text
Verlag Algred Toperlmann
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW
Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento
importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar
onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em
termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo
simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por
exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute
Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316
ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas
ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association
Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais
associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute
Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press
Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco
Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do
cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos
e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute
Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New
York Tampt Clark
Outros autores judeus
Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se
fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no
evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia
178
Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os
significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas
associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que
Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao
longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo
corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha
responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa
Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet
Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing
Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra
judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho
no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do
elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos
fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute
Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das
Assembleacuteias de Deus
Textos Rabiacutenicos
Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo
literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que
permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o
interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos
eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei
oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos
A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo
releeituras das tradiccedilotildees anteriores
Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo
da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a
sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados
homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo
sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico
que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave
escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos
179
Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford
Midrashim
Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do
quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de
pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente
textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso
destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma
circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese
responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos
ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para
explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua
antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo
histoacuterico em discussatildeo
Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The
Soncino Press
Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma
exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o
capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado
TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London
Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da
Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que
tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma
complete no seacuteculo doze
TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London
Literatura de hekhalot
Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo
anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios
180
celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose
desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da
memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria
elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute
lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano
ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute
transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de
hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos
produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a
literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm
com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais
autoinduzidas
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Resumo
O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido
literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao
seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e
significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees
foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias
e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao
desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental
nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees
qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos
sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo
as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de
Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica
do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de
Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir
da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura
de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo
antigo
Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico
figura de Jesus cristianismo primitivo
10
Abstract
The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have
been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its
reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings
to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a
research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of
the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development
of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to
answer the following questions what was the historical context of this gospel its social
space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message
and what are the specific characteristics of language and experience in the early
Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the
historical understanding of the development of the Christian mental space in the first
century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a
new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian
movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social
contexts and geographical spaces of the ancient world
Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of
Jesus primitive Christianity
11
Agradecimentos
Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como
misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute
Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A
sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu
intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu
sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave
minha tatildeo doce Virgem Maria
Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades
maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza
ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus
e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado
com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele
o guarde eternamente
Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a
iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e
imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o
uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os
exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo
racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela
vontade do Pairdquo
Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2
12
Iacutendice
Introduccedilatildeo 14
1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19
2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20
Literatura Profeacutetica 21
Literatura Sapiencial Judaica 21
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24
Uniatildeo Nupcial no Templo 24
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36
Os Manuscritos 37
A Liacutengua Original de Tomeacute 37
A Data de Tomeacute 38
A Origem do Evangelho de Tomeacute 39
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65
A Gloacuteria do Trono 69
O Templo 70
A Merkavaacute 72
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92
6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo
simboacutelico 95
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97
Eacuteden 100
13
O Grande Mar 102
A Fonte da Vida 106
Os Rios do Paraiacuteso 108
O Veacuteu 110
Por Detraacutes do Veacuteu 114
A Grande Luz 118
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122
A Imagem e a Luz 125
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138
7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143
As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150
8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154
9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166
Bibliografia 175
14
Introduccedilatildeo
ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10
O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar
a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona
os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside
nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos
alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico
para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute
Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos
por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses
evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado
Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o
simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico
Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave
hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia
cristologia e protologia apresentada por Tomeacute
Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente
interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees
simboacutelicas do texto
Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o
panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem
valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual
Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma
linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial
no Evangelho de Tomeacute
Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese
apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico
No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a
metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da
cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo
pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas
do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute
15
Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para
contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve
discussatildeo dos conceitos religiosos do documento
No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na
histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no
espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que
influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma
importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do
Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e
serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais
judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento
No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a
compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da
linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do
proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio
Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo
fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um
mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos
dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas
satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais
da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1
Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal
a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia
humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se
manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por
este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do
evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso
de presenccedila interior
Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as
temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia
religiosa do evangelho de Tomeacute
1 Lohuizen Wali Van (2011) 3
16
No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico
que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria
forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as
realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos
cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos
siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o
processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho
eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser
humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas
afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma
produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave
sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo
O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo
no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute
a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas
atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um
gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere
facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica
Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de
Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta
exegese
Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios
mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto
de Tomeacute
Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma
realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta
conclusatildeo
Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho
de Tomeacute
O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no
pensamento do judaiacutesmo de II Templo
Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao
ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a
17
compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento
judaico e no Evangelho de Tomeacute
Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e
aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do
seu contexto
Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do
Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste
texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco
O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva
dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem
teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos
enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de
Taciano e Livro de Tomeacute
Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda
na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo
cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro
O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da
doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta
opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios
reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador
Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de
Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de
Ahiqar e textos sapienciais de Qumran
Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo
substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino
da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio
posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca
Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a
caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento
filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute
18
Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no
periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de
interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute
Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de
Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a
versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute
recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As
obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo
completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc
As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana
assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e
devidamente identificadas nas passagens traduzidas
19
1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia
As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa
seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos
influenciaram a textualidade de Tomeacute
Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute
Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo
Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos
de Joatildeo e Filipe
Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando
historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes
tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute
A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia
Hebraica e na Literatura Sapiencial
Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns
dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos
posteriores
Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como
Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos
pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos
Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos
textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais
no Evangelho de Tomeacute
20
2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo
A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre
Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que
envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano
As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar
num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico
Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como
marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma
realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o
retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do
matrimoacutenimo com o divino
Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O
que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa
leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de
Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo
da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino
Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a
imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano
uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se
com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4
Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo
recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de
Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos
inserem-se neste mesmo padratildeo
Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria
Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado
ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que
se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano
2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem
21
Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num
evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido
no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor
nas vidas das geraccedilotildees subsequentes
A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-
humano no final da histoacuteria
Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios
da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai
o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos
Literatura Profeacutetica
Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns
profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute
direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo
intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em
Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino
do Norte6
O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma
uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica
da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos
preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel
para com o proacuteximo
Literatura Sapiencial Judaica
No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da
Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus
identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora
Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas
vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e
6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26
22
amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma
sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante
A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial
apresentada pela literatura sapiencial
Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do
casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido
Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora
Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos
Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da
crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de
cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela
A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela
Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo
antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos
Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo
com o homem
Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave
cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas
dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre
Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a
uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial
Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no
tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura
Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento
no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e
pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico
dos Cacircnticos
Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara
Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe
9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29
23
Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo
ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel
fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente
transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo
para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11
Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de
simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado
com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal
redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia
sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da
eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden
Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente
associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais
frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da
criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por
Cristo o novo Adatildeo
Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o
Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os
temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro
casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13
Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os
nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com
que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao
estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes
no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de
Tomeacute
11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem
24
Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o
significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia
destas tradiccedilotildees
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai
Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por
um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo
do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel
No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio
pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo
Uniatildeo Nupcial no Templo
Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo
nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica
Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai
eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de
Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se
relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos
do batismo e da eucaristia
Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo
lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto
nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo
O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado
Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo
Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo
Testamento
A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no
templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento
14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do
Sinai
25
miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos
do batismo e da eucaristia15
Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara
Nupcial
Os templos de vaacuterios povos antigos
consideravam o Templo especialmente o
Santo dos Santos como o lugar
simboacutelico que representava a Cacircmara
Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como uma
atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai
O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para
perpetuar a teofania do Monte Sinai entre
o povo de Israel
O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo
de simbolismo coacutesmico sendo
considerado um microcosmos que
representava o universo inteiro Tambeacutem
eacute relevante a ideia antiga do homem
como microcosmo e templo uma ideia
encontrada no Novo Testamento onde o
fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o
ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece
entre o humano e o divino
O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a
fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar
onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do
divino na terra
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo
Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a
traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem
Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos
necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial
As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma
ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento
A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o
capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em
todas as ressonacircncias
15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56
26
O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura
personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se
a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)
Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte
feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina
Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica
O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo
da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos
tempos
Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria
encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo
A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)
ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo
Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca
ela se exalta diante do seu Poder
lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra
Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens
Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste
eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira
reinei sobre todos os povos e naccedilotildees
Junto de todos estes procurei onde pousar
e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo
Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico
da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma
ψυχὴν αὐτῆς)17
O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo
de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na
tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios
No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem
em Deus e a sua universalidade
Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo
Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a
palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde
17 Cf Villeneuve A (2016) 57
27
como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria
ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando
ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn
12)
O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica
que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19
Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central
do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e
terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma
reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu
O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna
que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo
e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22
A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave
coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23
Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as
mentes que estudam a virtuderdquo24
Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a
nuvem como uma ponte entre as duas esferas
A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua
identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a
paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de
sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas
caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25
Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens
primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo
A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo
18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na
referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl
987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19
28
O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o
termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a
escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo
(Gn 12)26
Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando
presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27
O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o
universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os
dois elementos do mar e da terra
Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar
especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo
Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo
dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos
de nota28
A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o
universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela
deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos
limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte
Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora
Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel
A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)
ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem
aquele que me criou armou a minha tenda e disse
lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo
Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio
e para sempre natildeo deixarei de existir
Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei
deste modo estabeleci-me em Siatildeo
e na cidade amada encontrei repouso
26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59
29
meu poder estaacute em Jerusaleacutem
Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria
no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo
Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o
ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens
Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da
sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de
Israel
No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que
habitasse em Israel
O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-
se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao
fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu
reino sobre a esfera espacial
ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo
(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu
processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo
Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)
ldquoCresci como o cedro do Liacutebano
Como o cipreste no monte Hermon
Cresci como a palmeira em Engadi
Como roseira em Jericoacute
Como formosa oliveira na planiacutecie
Cresci como plaacutetano
Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume
Como a mirra escolhida exalei bom odor
Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque
Como o vapor do incenso na Tenda
29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da
criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a
um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas
por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21
30
Estendi os meus ramos como o terebinto
Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila
Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos
E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo
A Sabedoria enraizou-se num povo honrado
A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra
de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos
Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva
localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos
Cacircnticos
No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o
palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)
associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413
A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do
rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)
Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se
trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute
associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30
A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)
tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a
noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)
Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no
Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica
O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)
Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)
As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios
satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)
A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora
Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden
30Cf Villeneuve A (2016) 63
31
O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)
ldquoVinde a mim todos os que me desejais
Fartai-vos de meus frutos
Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel
Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel
Os que me comem teratildeo ainda fome
Os que me bebem teratildeo ainda sede
Quem me obedece natildeo se envergonharaacute
Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo
Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete
sumptuoso para comerem os frutos que ela produz
Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o
vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu
vinho31
O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo
universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden
Monte Sinai e no Templo32
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos
Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros
pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no
primeiro seacuteculo da era comum
As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que
datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do
fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu
amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de
Deus participante na sua imortalidade
31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73
32
ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)
Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o
Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal
verdadeiramente seraacute imortalrdquo
Ode de Salomatildeo 35-8
A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser
humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana
para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi
considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)
Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou
beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do
Espiacuterito Santo33
ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro
de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)
Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o
jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre
aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa
nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-
9)
Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como
sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos
escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de
aacuteguas vivas
As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura
mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste
contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo
Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel
procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo
Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34
33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279
33
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute
Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder
a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute
Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados
e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns
elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e
posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver
O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho
de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo
textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico
reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute
Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio
unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de
um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si
Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira
encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados
(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem
hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que
eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que
se orerdquo
A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e
antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua
mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela
perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o
mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na
cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida
Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da
existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees
Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute
ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema
existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o
Reino dos Ceacuteus
34
Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma
identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser
fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho
o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e
responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo
natural do divino na consciecircncia)
O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em
termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz
A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das
palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte
Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano
espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua
boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos
melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos
revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando
colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto
Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e
o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos
canoacutenicos
Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos
canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o
retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar
em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada
E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso
O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus
Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos
do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo
entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz
e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios
Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque
para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo
interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por
este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial
35
No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada
um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico
Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na
eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo
duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de
comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o
disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica
eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus
Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do
misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo
menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval
A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou
divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre
dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de
duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos
sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais
simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo
A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso
trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na
experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves
manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de
misticismo mais tardias como a unio mystica
O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado
para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um
processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se
entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro
conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura
inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e
o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino
e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
36
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo35
A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a
explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica
no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo
completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo
de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra
nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem
Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com
profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que
acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute
O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo
Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra
O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua
reflexatildeo na audiecircncia que os escutava
A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa
investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode
ser interpretado legitimamente como tal36
A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos
gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel
defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute
Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe
Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito
No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de
Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -
ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo
Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o
Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto
35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43
37
O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do
cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de
Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente
heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias
Os Manuscritos
O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem
num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta
termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados
gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic
publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os
Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus
O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma
coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido
por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe
O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do
seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um
evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente
proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38
Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto
de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um
tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39
A Liacutengua Original de Tomeacute
A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta
onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo
do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria
dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41
38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by
Stevan
Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91
38
Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos
textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes
num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a
frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que
reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil
uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42
O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo
alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo
Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta
encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o
texto
Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos
manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a
liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em
manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de
Tomeacute
A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os
evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo
relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute
O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os
documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o
Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de
Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas
siriacuteacos43
Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de
manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem
originais siriacuteacos ou aramaicos
A Data de Tomeacute
41Cf Idem 91
42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97
39
Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa
complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser
datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito
onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo
em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta
e cinco dC
Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de
acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de
Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos
dC
Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave
confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71
O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus
ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos
de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila
para atestarmos esta dataccedilatildeo
A Origem do Evangelho de Tomeacute
Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute
A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito
Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em
Edessa
Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a
origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades
de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura
siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute
O nome Judas Tomeacute
44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria
40
Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo
aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute
Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma
particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo
eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo
geacutemeo de Jesus48
Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco
Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo
em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram
o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113
com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde
ocidental
O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria
da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5
Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em
siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49
O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo
encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego
aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um
apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50
Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido
provavelmente na Siacuteria
A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo
e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel
nalguma literatura maniqueiacutesta
Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos
As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca
48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10
41
ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os
vossos vestidos e os colocardes sob
os vossos peacuteshelliprdquo
Evangelho de Tomeacute 37b
As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes
nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as
Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma
literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande
Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se
na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de
ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)
O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que
Jesus disse a Judas Tomeacute
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute
Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma
problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o
seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo
do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de
radicalismo social51
Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um
misticismo unitivo ou um produto valentiano
No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada
escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das
lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios
termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees
O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a
sua teologia central
51Cf Gathercole Simon (2014) 144
ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto
que o manto da vergonha me foi
tiradordquo
Atos de Tomeacute 14
42
Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent
Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo
significativo agrave leitura de Tomeacute
A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da
linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior
ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53
Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto
pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a
ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente
seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1
Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do
judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade
tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras
continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em
Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia
Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes
divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas
da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem
No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros
disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para
lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo
A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte
onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel
desvelar novas realidades
Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente
na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos
tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as
instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai
A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21
vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o
como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)
52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145
43
O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg
57 76 96-99 133)
Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534
Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente
de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)
estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)
Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39
6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)
Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o
reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)
Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence
aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas
(lg 22 46)55
Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se
encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)
A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56
Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos
no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn
1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por
um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58
Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa
matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo
O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda
desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que
eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um
divisor (lg 72)
55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11
44
A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo
valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis
Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do
eleito
Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao
corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62
Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)
Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o
ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao
conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um
misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo
No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e
vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos
corpos
Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro
motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos
deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade
entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De
Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer
apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de
Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio
(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)
Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute
necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica
que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da
criaccedilatildeo65
O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada
acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute
repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute
62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148
45
O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que
proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para
cimardquo)
O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma
ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no
mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia
acrescentando ldquoespada e guerrardquo
Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual
os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg
110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo
O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o
reino se expande (lg 113)
O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo
contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro
Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu
maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma
posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)
Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla
dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem
fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)
Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma
oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute
A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute
encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como
ldquocarnerdquo (lg 28)
Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo
nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia
Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg
55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito
(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)
Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser
espiritual feminino (lg 105)
66Cf Idem 151
46
Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica
fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)
O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo
para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta
revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio
para escapar da morte
O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias
variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias
20 possuem um significado teoloacutegico68
Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As
referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado
defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees
psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo
do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70
A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no
Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais
como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de
ldquorepousordquo
Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg
59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)
A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica
assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute
O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das
tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado
Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento
religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia
de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos
comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este
evangelho
Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por
estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo
67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152
47
oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo
a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou
juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original
que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre
deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes
encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino
Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para
Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens
materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72
Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou
forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua
linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas
com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde
Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de
ensinamento religioso fornecido por Tomeacute
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo
O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua
composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o
misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar
quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal
heleniacutestico
A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar
iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso
Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do
sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno
do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito
assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo
O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas
mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo
71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)
48
Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os
Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o
Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as
elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da
Greacutecia claacutessica
Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os
nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas
cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma
profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com
a conquista islacircmica75
A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no
comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade
As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees
extensas incluindo franjas do deserto76
Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da
Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus
que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este
periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia
cultural persiste ateacute hoje
O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a
nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova
dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico
surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77
Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute
oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo
helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo
A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos
sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o
estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79
75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem
49
Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar
e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que
posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas
vezes esoteacutericas e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que
viaja com o viajante
De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste
meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma
revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual
Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e
traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do
Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como
eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas
religiosos deste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do
Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos
velhas crenccedilas e suposiccedilotildees
O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os
primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na
histoacuteria do livro ateacute Gutenberg
Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex
foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma
nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade
reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de
Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o
texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81
Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas
Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste
periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como
divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas
nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo
80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30
50
O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a
destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC
A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos
dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico
Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo
sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo
foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas
O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado
por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era
chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus
Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio
de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido
pela igreja dos primeiros seacuteculos
Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram
substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta
dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma
atitude miacutestica e interior da busca do divino
Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e
presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos
rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes
O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da
individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa
exegese interior
A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser
intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de
ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas
oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal
Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia
do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo
e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada
82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39
51
Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas
significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo
encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica
Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos
estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos
Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas
evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova
perspetiva sobre as tradiccedilotildees
A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original
natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria
original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado
ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a
narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo
O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da
histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os
evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute
O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes
documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as
comunidades tinham da figura de Jesus
Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando
recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu
kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria
Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus
num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de
ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do
impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam
relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e
ressurreiccedilatildeo
Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado
Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao
Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio
Eufrates
83Cf Patterson J S (2013) 10
52
A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos
que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser
completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84
Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo
comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se
encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute
parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates
Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na
grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a
norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura
literaacuteria antes do advento do cristianismo85
Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas
poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da
Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a
subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua
submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio
Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86
A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser
pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado
durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que
Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua
semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87
A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades
siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de
Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos
fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a
organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da
sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma
84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem
53
evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos
Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve
raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do
cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades
semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel
estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos
importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa
tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram
recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de
Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial
das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do
primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e
se misturaram90
Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria
ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos
primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura
intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo
de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto
oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas
feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial
do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros
ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de
quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os
pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo
Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um
entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da
tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida
88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42
54
como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu
manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da
sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos
poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta
experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram
no ocidente no outro lado do Eufrates
Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de
convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores
Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a
ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e
as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo
presentes em Tomeacute
Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes
para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a
leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso
natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica
entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de
violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus
se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente
harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos
O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de
cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que
desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da
vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e
valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo
O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de
interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel
da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o
futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da
identidade cristatilde
A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se
claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um
95 Cf Patterson J S (2013) 25
55
martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no
qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus
Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado
dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como
dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa
para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma
experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar
verdadeiramente a vida de Jesus97
No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo
um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos
pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes
eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o
Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este
Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o
ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se
encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado
A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-
se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia
de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar
da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si
proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante
diferente
O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do
segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu
pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e
cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da
criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da
crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de
pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do
periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os
quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil
96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30
56
O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que
esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais
unificadores99
O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo
A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e
o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos
cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma
platoacutenica100
Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute
notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia
centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo
geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as
vivecircncias em ambos os contextos
Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo
assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo
sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102
A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas
de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo
Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta
apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de
sabedoria
A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em
concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento
platoacutenico103
98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15
57
A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de
voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha
corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute
O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades
de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica
Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a
Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto
interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da
Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105
Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se
estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas
judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros
dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que
prosperava nestas cidades107
Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse
filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia
entre Platatildeo e Geacutenesis
Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1
na textualidade de Tomeacute
Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas
helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era
masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado
unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres
voltariam (lg 22)109
Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia
platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa
mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma
104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278
58
centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano
mortal (lg 29)110
Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido
dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e
para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111
O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao
reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo
originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)
ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg
50)112
O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no
ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma
perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e
perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres
passageiros113
O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de
vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria
contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo
Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e
os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de
Jesus em Edessa114
A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o
autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a
identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz
divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida
freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115
ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo
110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37
59
ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na
filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas
correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti
proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima
agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta
interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma
no iacutentimo do ser humano
Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de
Deus
Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois
seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e
Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o
iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte
divina ele conhecia o divino116
Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo
ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino
dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem
consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo
grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender
como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele
possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117
Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este
entendimento acerca da mesma maacutexima
ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi
feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os
fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do
universordquo118
116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)
60
Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos
platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os
aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada
Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-
se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as
perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-
se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus
suacutebditos
ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez
mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute
ouvidos a ti mesmorsquordquo 119
Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a
manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico
mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos
noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se
retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o
mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute
contemplaccedilatildeo daquele que eacute
Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este
ldquocasco de courordquo122
Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro
eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do
corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para
superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos
dois primeiros seacuteculos
Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o
risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute
Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem
O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo
empregando os termos teacutecnicos do platonismo123
119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477
61
Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de
descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam
tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente
O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute
Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza
humana e o seu destino
O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do
pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute
ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o
corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124
Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os
estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia
aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo
era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os
nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo
tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de
ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no
platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma
A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor
antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por
que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era
miseraacutevel
O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo
morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um
corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo
Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E
esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute
123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus
ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the
universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation
to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies
(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material
bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)
62
Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do
mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo
A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o
disciacutepulo mais digno do que o mundo
A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no
pensamento platoacutenico126
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo
A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese
apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a
investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um
montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho
judaico-cristatildeo127
Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo
apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de
Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde
(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos
judaico-cristatildeos
(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos
incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas
(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere
uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo
(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e
no cristianismo judaico
(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios
Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre
o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo
126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes
(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have
already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are
corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the
borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be
Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp
DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200
63
As seguintes passagens
(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV
963
(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145
(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad
Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3
(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514
Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da
Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute
a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada
Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de
Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute
Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos
estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute
O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do
nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras
de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado
como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128
Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto
porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9
(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo
ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)
Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c
7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio
Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo
Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho
Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o
judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos
128Cf Luomanen Petri (2012) 202
64
Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no
proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo
seacuteculo
A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e
duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e
quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo
Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma
cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos
Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma
exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso
A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra
aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o
repouso em Jesus
ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos
lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo
quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele
e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria
descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na
eternidaderdquo129
A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo
Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo
aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos
Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde
Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus
seguidores
Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma
voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter
dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho
dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus
129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322
65
ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-
me para a grande colina o Taborrdquo131
O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)
geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de
Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao
Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de
Jesus e a sua matildee verdadeira
ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132
Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente
nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma
teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute
- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e
ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas
Lg 24b
O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias
associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e
culturas
Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram
utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo
lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para
descreverem as suas experiecircncias133
Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas
experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou
lsquorevelaccedilatildeorsquo
A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como
visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma
131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2
66
viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas
preparaccedilotildees e rituais serem realizados
O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e
cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros
angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134
Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do
nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades
antigas para investigarmos a sua religiosidade
O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos
para denotar o fenoacutemeno cristatildeo
Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de
misticismo135
O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao
judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar
antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia
extaacutetica ou como praacutetica provocada
No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas
expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo
Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por
eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo
de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo
O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo
interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus
Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de
Tomeacute
Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque
pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um
texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute
presente no Judaiacutesmo do II Templo
A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria
do texto do Evangelho de Tomeacute136
134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7
67
O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios
ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica
Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros
trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica
Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos
formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do
templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a
realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees
As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na
literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria
na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da
Palestina de Yohanan ben Zakkai137
Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e
da especulaccedilatildeo hekhalot138
Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas
de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios
Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da
literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo
hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes
representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades
muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do
II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo
A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos
fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que
levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que
iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial
os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e
136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu
numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que
vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos
esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da
Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos
palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica
e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2
68
cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas
biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma
autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos
tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma
audiecircncia contemporacircnea
Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas
ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo
a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras
A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que
podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute
Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus
conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo
situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos
Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e
revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias
encobertas no interior das suas escrituras sagradas
Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia
Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica
A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta
tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10
40-48 Dn 7 e Is 6
Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura
produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos
A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e
na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos
Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de
temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da
evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em
textos de eacutepocas diferentes
139Cf De Conick A (2006) 7
69
Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta
as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute
associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140
A Gloacuteria do Trono
A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central
desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo
Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente
secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada
ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo
com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)
de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas
escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142
Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial
feito por dois querubins
No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute
apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos
Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias
histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute
sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos
O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite
brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo
assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta
veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado
Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras
cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co
44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus
que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-
140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8
70
23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do
templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144
O Templo
A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de
Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os
Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do
que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia
Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete
parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais
sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145
E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das
mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do
templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146
A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis
desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas
natildeo realizadas
As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da
criaccedilatildeo da humanidade
Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e
ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de
luz147
Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo
percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no
Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As
tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser
Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148
144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem
71
Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o
primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter
sido um reflexo da Kavod
Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico
Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do
que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de
encher todo o universo de um extremo ao outro150
ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]
pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel
b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o
despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro
lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse
Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a
oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151
Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do
pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos
cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave
transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos
conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da
ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e
tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de
forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152
Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da
morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente
Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os
Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as
epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades
envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no
momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na
149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21
72
liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias
ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153
Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais
antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute
15 19 37 50 59 83 84 108)
As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da
esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma
experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de
transfiguraccedilatildeo
Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os
ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees
de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de
uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no
trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154
A Merkavaacute
O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo
que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo
miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos
Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim
de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca
O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como
as fontes esoteacutericas mais tardias referem155
Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de
Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico
de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se
movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel
1014-15 com o querubim do Templo
153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30
73
Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave
presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-
se ao templo por outros meios156
A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel
encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe
mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma
ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25
Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em
duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio
de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos
Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus
identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser
vivente do profeta Ezequiel
A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus
o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o
universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-
se presente nesta literatura157
Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o
mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte
mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas
como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158
Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e
a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e
descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo
concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute
156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo
tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)
com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos
trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o
cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea
dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos
sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos
Santos
74
O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da
arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem
alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em
Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que
em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la
caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo
Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que
rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160
Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de
Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas
maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos
que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161
Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas
natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de
cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162
Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de
hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos
Cacircnticos do Sabbat163
Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e
recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era
necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos
que eram inscritos com os nomes secretos de Deus
As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o
templo e o cosmos eram estruturas opostas
As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo
a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para
o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande
santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas
planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e
da Sumeacuteria
160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170
163Cf Idem
75
Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo
era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem
quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F
Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com
a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos
praticantes de hekhalot
ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de
certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos
anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo
nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e
canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras
interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse
viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166
Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no
Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I
seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um
rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167
A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se
bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168
A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O
Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo
assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas
do caos no terceiro dia169
Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi
criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo
164Cf Idem 171
165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and
Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21
76
ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)
Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo
O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo
assim tu faraacutes o tabernaacuteculo
De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas
bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo
fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo
as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de
terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do
corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas
na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo
uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo
os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio
do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o
firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as
aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170
Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem
documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o
pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute
O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do
homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos
vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos
poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios
corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu
proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava
Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute
estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram
compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano
O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do
corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos
escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas
estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e
angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute
170Cf Midrash bereshit rabbati
77
frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome
divino171
Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o
miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na
presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se
entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem
Divina da Gloacuteria
O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o
autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo
este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica
No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com
este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na
atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o
puacuteblico a que se destinava
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute
O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e
interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite
definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica
Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por
si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda
Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo
primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no
final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis
descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim
Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
(Lg18)
A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo
que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial
que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas
dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que
171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175
78
representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias
a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos
primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)
Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses
por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia
de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que
estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para
ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se
ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)
Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais
respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se
vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu
de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem
sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem
qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)
Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia
visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus
disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco
aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas
caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)
Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos
miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa
esta realidade no jardim do Eacuteden
Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma
crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas
crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino
Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o
exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e
o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo (Lg 22)
79
Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as
vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um
tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco
No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os
disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te
revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como
as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo
temereisrdquo (Lg 37)
O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do
corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos
natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu
ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)
A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que
a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes
no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas
quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)
Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia
platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas
simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem
Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial
do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo
Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus
O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara
Nupcial
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37
ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos
Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos
vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os
espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo
80
Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que
apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais
1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver
o Filho de Deus sem ter medo
Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao
ceacuteu numa linguagem encratita172
Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora
comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo
baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321
Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de
peles e eles vestiram-nasrdquo
Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173
Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou
ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o
sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco
Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute
difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo
Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de
pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo
Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos
neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da
carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo
O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute
um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175
Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se
revestir destardquo176
Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9
que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas
E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra
172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem
81
E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim
E o Senhor renovou-me com a sua roupa
E me possuiu com a sua luz
E do alto me deu descanso imortal
E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos
E eu despi-me da escuridatildeo
E vesti a luz
E ateacute eu mesmo adquiri membros
Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento
E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito
E eu removi de mim as minhas vestes de pele
Porque a tua matildeo direita me ressuscitou
E fez com que a doenccedila passasse de mim177
Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um
ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de
libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus
Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica
Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de
pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo
A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus
anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou
selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando
vestida torna aceitaacutevel diante de Deus
Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo
com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal
No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de
Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o
ldquoselordquo no Nome178
Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-
se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo
ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E
eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo
177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126
82
Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e
transformado num anjo da face
ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele
[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para
ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181
Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram
uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA
nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do
corpordquo183
O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm
que ser despidas sem vergonha
O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis
Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e
Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os
olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha
Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que
ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se
sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos
O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito
especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que
o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu
ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma
criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era
controlado pelos impulsos sexuais184
A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual
deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-
caiacutedo ausente de vergonha
179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134
83
Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as
vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma
pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda
daacute outro elemento sobre o ser assexuado
ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o
interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num
soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando
fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de
um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como
sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo
Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que
era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a
idade adulta em primeiro lugar186
Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento
ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187
De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo
periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188
Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era
uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo
foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189
Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que
renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico
preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190
Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada
pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam
185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes
a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do
campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e
devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos
Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135
84
As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a
experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o
objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus
Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de
Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191
Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De
mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a
existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte
e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio
Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto
retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a
essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo
Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o
homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave
esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo
material
Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde
Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque
despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo
Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias
estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193
O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos
gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do
rosto de meu Deus para sempre194
Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas
ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar
o seu corpo
191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por
Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a
Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as
conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas
materiaisrdquo
192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10
85
O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu
nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia
visionaacuteria
No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque
que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes
celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico
Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-
escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra
sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho
de Filipe 1 34-35
ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo
Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo
total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta
forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho
transformando a sua alma
ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo
sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo
No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o
mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada
encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa
experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave
entidade divina que tinha visto
O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma
crenccedila antiga presente no mundo antigo196
195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42
86
Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua
experiecircncia religiosa
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50
ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz
procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens
Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se
vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um
repousordquo
O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um
fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na
interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis
perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria
Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se
manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era
segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz
A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada
primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo
Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn
13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus
tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja
luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus
sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes
da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham
o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a
sua proacutepria luz198
Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes
da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da
imagem do Logos
197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66
87
A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus
explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse
sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo
De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz
primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis
O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se
aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos
seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos
Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos
anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como
os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl
82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um
de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn
127)rdquo
O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o
homem agrave imagem dos anjosrdquo
Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126
que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva
Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante
tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de
ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo
A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma
forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no
nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200
Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse
ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma
substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e
tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se
assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto
como a forma do invisiacutevelrdquo201
199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443
88
O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas
letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado
de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas
eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer
1141 Epiph Pan 34 47)
Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome
divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial
manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram
pronunciados agrave sua imagem202
O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de
Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo
ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a
luz do universo
No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de
lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno
de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos
o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo
Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma
realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo
alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior
Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do
Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem
trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto
estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-
me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo
(12827-30)
O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo
filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo
regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)
Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176
89
Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que
regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser
porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no
Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo
O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de
Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco
aacutervores
Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do
Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204
Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que
constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute
o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco
virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo
alcanccedila virtude e imortalidade
As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando
vestes de luz
E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor
Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram
Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal
E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna
Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra
imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver
nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores
como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da
ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso
Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes
com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o
autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo
domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205
204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83
90
Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do
paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da
imortalidade
Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim
comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma
aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito
de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica
de coisas legiacutetimasrdquo (198)206
As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a
alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do
pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e
corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves
virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas
leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda
adacircmica
E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute
existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma
com as virtudes paradisiacuteacas
O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque
vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada
ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os
eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis
novamenterdquo
No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e
manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16
ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai
contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios
(monachos)rdquo
O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este
ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com
a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos
206Idem 85
91
Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo
diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207
Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos
ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus
Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono
celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe
ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade
Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma
situaccedilatildeo num hino samaritano lemos
Ele Deus permanece para sempre
Ele existe ateacute a eternidade
De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio
Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como
Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208
Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes
se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser
angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina
Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto
angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz
aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute
paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar
uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden
Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e
inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e
adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus
e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo
ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado
angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na
natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte
207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718
92
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59
Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica
encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a
manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o
miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o
A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem
cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este
encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser
alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo
desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria
ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o
vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo
(lg 83)
A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos
que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele
prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo
Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial
e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque
224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209
O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica
presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da
humanidade
Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir
por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo
209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a
93
relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido
no ventre de uma mulher
ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos
humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a
luz gera-se a si mesma
O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a
imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto
que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod
escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na
tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que
se revelava aos miacutesticos211
Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos
anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah
A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus
esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da
ldquoGrande Gloacuteriardquo
A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum
dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo
flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212
Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio
soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213
Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou
Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a
aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)
A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse
visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e
trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo
Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7
ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33
De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e
incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no
211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104
94
entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto
ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute
cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214
Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era
abrangida pela sua luz
Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte
verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma
alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo
pode ser percebida diretamente
Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg
83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute
oculta na sua proacutepria luz215
No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica
que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do
disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)
Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos
devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos
Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus
durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a
imortalidade
Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas
homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo
Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta
uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta
imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a
imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e
aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto
nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do
214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105
95
Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado
esquerdordquo (Hom306)216
Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute
paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma
experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como
diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria
luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu
interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um
corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve
ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o
conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre
as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino
5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no
seu mundo simboacutelico
Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara
Nupcial
Lg 75
Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas
ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em
Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia
visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o
conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto
A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o
maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente
levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta
Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de
Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um
fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem
216 Cf Maloney G A (1992) 191-192
96
O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de
Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e
cristatildeos numa fase emergente
As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as
encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de
Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar
Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a
natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo
Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a
sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o
peso e a grandeza desta memoacuteria
Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas
que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada
sem excessos ou divagaccedilotildees
Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas
uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial
Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a
investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as
mensagens contidas nos outros logia
A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos
do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico
A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do
Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden
O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do
percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado
nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial
Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos
que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas
Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam
as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos
Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus
criador e personagens com nomes hebraicos
Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas
questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos
97
Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que
antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de
Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental
As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave
obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao
Templo de Jerusaleacutem
O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do
Templo a niacutevel simboacutelico
O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era
transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram
os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes
conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo
deste processo revolucionaram as suas religiotildees
Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta
influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo
apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a
simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem
Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos
questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo
olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos
ciclos da vida
A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o
encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a
adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217
A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num
calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas
formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218
O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas
combinadas e sincronizadas
217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem
98
A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do
sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do
ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-
calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal
preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e
ciclo sacrificial221
A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais
complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute
traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito
memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222
Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do
Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento
simboacutelico da realidade do Templo
Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de
modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica
do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e
terrestre pelo serviccedilo sagrado223
O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do
Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos
escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se
Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e
reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa
Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo
fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo
ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos
ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a
redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade
centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224
219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio
vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de
cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6
99
Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da
inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-
se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de
tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do
calendaacuterio
A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo
canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do
Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria
viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e
Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque
Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos
anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada
dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou
sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua
marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que
descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos
sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos
soprar o shofar e prostrarem-se227
O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam
os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se
vivas
ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras
espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo
vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas
225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos
ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute
descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da
terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual
com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre
a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute
ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados
antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica
e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os
sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do
ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos
perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13
100
cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as
cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos
Santos (hellip)
As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das
maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da
cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas
com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo
vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta
dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-
todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228
Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o
cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos
separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O
espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de
uma realidade eterna
Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que
aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente
Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa
forma simboacutelica e narrativa229
Eacuteden
O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais
interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim
como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o
paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)
Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a
partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do
Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma
humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da
mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo
estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes
228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57
101
na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes
do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem
criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se
manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do
outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe
ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a
Origem do Mundo)230
A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute
a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao
Eacuteden
Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai
Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria
Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila
do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico
Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais
antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos
aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231
Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo
como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo
gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito
da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico
neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos
gnoacutesticos
Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos
constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram
Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que
tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram
Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o
significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem
deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)
230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103
102
O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser
considerado bom como o Eacuteden inicial
O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter
especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo
havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo
poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual
O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas
sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da
textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o
sentimento hebreu para com o Eacuteden
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim
Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o
iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e
natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)
ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa
expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai
estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)
O Grande Mar
A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os
israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era
apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma
descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido
O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar
do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente
considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo
unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da
montanha coacutesmica
O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o
firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze
enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da
largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente
representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio
103
era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair
que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos
Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita
para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232
Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o
mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o
maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b
Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio
Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem
afirmou que o paacutetio exterior representava o mar
Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e
entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos
Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos
Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos
homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)
Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo
associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel
que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon
de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior
O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade
estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo
2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece
entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do
criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees
que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os
mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)
sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu
povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve
o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)
mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema
natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da
criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste
232Citado em Barker Margaret (1990) 61
104
para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo
(Ecircxodo1517)
Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento
hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo
do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo
a partir dos mares primitivos
Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos
primordial233
O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das
visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel
de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de
entronizaccedilatildeo
Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas
surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram
autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)
Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus
antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e
derrotado (Isaiacuteas 519)
O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em
tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo
nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4
Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na
qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da
montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor
O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui
aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se
encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono
celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute
que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao
redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)
Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do
Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)
233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522
105
ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado
com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu
nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse
152)
O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o
firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo
O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o
jardim de Deus no livro de Ezequiel
Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal
do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim
seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em
mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo
material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre
necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia
O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era
frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado
Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha
sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em
que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro
Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa
(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o
poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234
Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas
explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade
disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo
quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)
Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua
vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do
Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no
Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava
simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira
como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo
234Cf Barker Margaret (1990) 61-69
106
De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios
querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e
uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo
Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do
templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo
numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras
(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel
4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-
12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em
outras partes da Biacuteblia Hebraica
A Fonte da Vida
Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz
Salmo 367-9
Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e
ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a
construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde
e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se
sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes
cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos
varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de
ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que
tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material
lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em
todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista
o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes
recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus
poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era
235Cf Ginzberg Louis (2003) 162
107
devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o
santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua
ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo
em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o
mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o
mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado
para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao
ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no
segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que
estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o
mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia
no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como
alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O
candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua
criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o
Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no
quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No
sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o
seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante
de seu Senhor e criadorrdquo236
A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo
VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado
em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes
colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para
o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor
dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)
Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da
fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade
ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem
prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)
236Cf Ginzberg Louis (2003) 150
108
Os Rios do Paraiacuteso
Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em
quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas
vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre
associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo
O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do
Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a
um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos
Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica
no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias
semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na
montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele
que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute
um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em
majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas
visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a
fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da
sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo
no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro
de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo
isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da
porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e
tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores
cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para
eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da
fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade
com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta
oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda
do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica
a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem
metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no
veratildeo como no inverno
109
E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome
um (Zacarias 148-9)
O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os
Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu
cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam
No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de
Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a
aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas
da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)
Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos
paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio
No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos
Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando
ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da
festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a
mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de
aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber
(Joatildeo 737 -9)
O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios
serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a
simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era
quase sinoacutenimo do Espiacuterito
Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham
adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de
Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis
12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria
foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)
Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a
com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele
(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de
especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum
onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)
A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e
como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o
110
Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a
luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)
Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea
para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e
como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o
meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar
(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios
do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque
confirmam esta associaccedilatildeo
Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono
Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada
completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho
do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante
ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque
dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem
de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele
(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor
descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e
vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)
O Veacuteu
ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos
dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a
esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram
reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser
tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]
antes do templo sagradordquo
Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)
Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono
dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo
que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas
Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da
experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido
111
uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como
saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido
As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente
tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu
representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as
vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava
Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da
encarnaccedilatildeo
O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o
lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo
visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade
As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como
parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos
e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia
do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo
Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado
Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos
dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos
alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do
templo
O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8
mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de
puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)
Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da
mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido
Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1
ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado
Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se
havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-
sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o
comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o
primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia
entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de
duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de
112
modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi
colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado
norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua
esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas
grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de
espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia
vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de
vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em
cada ano (Mishnah Shekalim 85)
Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e
sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila
forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para
a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este
veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de
Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias
descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia
haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada
por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)
Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade
viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus
despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que
a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde
um rabino do segundo seacuteculo a viu
Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose
Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas
satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)
No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado
ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica
com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma
habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico
tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da
terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo
113
Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma
que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama
dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)
Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual
Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave
sabedoria do templo ou era algo antigo
A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi
coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim
foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada
espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que
poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas
(Antiguidades Judaicas III124 126)
As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o
linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez
que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o
carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)
Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade
cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo
(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este
simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute
como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de
toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais
166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO
que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo
siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo
feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais
excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador
de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de
[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre
Ecircxodo 1185)
Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que
separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um
palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas
quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao
114
dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este
veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo
sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos
transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal
como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E
satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e
inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis
(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)
A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu
(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da
cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram
vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos
elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra
azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina
tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3
Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo
Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi
descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O
veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a
invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de
como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem
do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os
elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa
compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da
vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da
realidade subjacente ao tempo237
Por Detraacutes do Veacuteu
Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar
onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era
237Cf Barker Margaret (1990) 104-107
115
eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz
lm
Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram
apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores
descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu
toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele
O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto
que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha
sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente
Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial
Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do
Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo
impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar
ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo
da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir
Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel
quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees
ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)
O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma
visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu
ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava
Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o
verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das
vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o
escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do
veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)
Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do
veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus
Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os
profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica
da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos
agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para
um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram
116
pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1
Henoque 873-4)
A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre
como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu
posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute
e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a
visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda
visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda
espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)
Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram
patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado
simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio
Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o
paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)
O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos
Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do
segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o
santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)
As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre
o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou
retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti
e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque
34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o
mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido
deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e
se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as
extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que
estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)
A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de
Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da
Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no
modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-
lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o
117
nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo
das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)
O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material
e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da
presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do
Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais
esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute
chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar
que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que
fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)
Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel
para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O
debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi
construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses
mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238
ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e
o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)
Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano
Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees
simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o
proacuteprio Jesus
No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais
iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos
celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus
misteacuteriosrdquo (lg 62)
O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do
veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o
imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da
cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido
por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos
falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por
traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe
238Cf Barker Margaret (1990) 127-128
118
Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que
ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro
Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem
semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)
O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros
lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o
nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah
12b)
A Grande Luz
ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo
proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai
a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)
ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute
privado do Todordquo (loacuteg 67)
No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas
como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na
criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se
oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de
Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de
Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute
vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta
expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa
para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre
os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os
disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza
com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente
239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram
por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo
vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que
morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo
119
O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz
do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo
deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como
expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave
figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria
criando iluminando e penetrando todas as coisas
Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm
a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave
sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia
Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor
da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua
bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em
Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num
movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga
o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo
regressa
Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que
atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma
imanecircncia divina no mundo e no homem
Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a
procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado
para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um
aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da
criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31
Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca
primordial o tempo antes do tempo
A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que
encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg
19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido
242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26
120
O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o
termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2
da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244
A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee
mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que
existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e
77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as
coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser
humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no
interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de
Deus (lg 3)
A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida
em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em
que este se situa e estaacute presente
Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo
judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser
concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute
Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com
siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo
Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes
pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino
podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no
Evangelho de Tomeacute
O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz
em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute
244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute
necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de
um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros
do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o
Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios
entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos
conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3
121
O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do
Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor
lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que
Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo
(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-
nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)
Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que
andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque
vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo
cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua
gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)
A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma
das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC
Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo
(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute
desoladordquo (Daniel917)
A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os
raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono
dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este
simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao
templo
A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel
veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou
com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada
para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do
Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora
quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para
iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)
Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os
meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e
evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente
nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute
248Cf Barker Margaret (1990) 148-150
122
diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes
detentoras do conhecimento
Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo
encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute
tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo
Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos
pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes
da religiatildeo do primeiro templo
O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os
profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das
visotildees dos profetas
Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No
Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como
emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse
Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo
haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1
A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no
livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249
Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia
grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo
apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees
generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)
A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica
abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro
249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o
pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeus e Parmeacutenides
123
diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash
que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252
Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que
descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus
declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o
vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e
61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da
condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo
ldquodivididardquo privada da imagem divina
Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11
e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial
anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo
As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam
bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253
252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem
Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo
Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70
Para traccedilarmos a exegese do Evangelho
de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo
presentes em Geacutenesis devemos procurar
ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a
hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo
dispostos de forma aleatoacuteria
No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele
que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o
poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes
(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute
recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo
(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco
a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram
atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os
governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos
como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com
a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg
4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete
diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia
da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer
(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo
um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente
concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e
relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha
com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos
como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo
humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando
Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser
124
Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a
luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda
a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz
manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que
fala na primeira pessoa com uma voz humana
Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em
simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por
todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute
uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o
protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254
A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de
modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A
atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do
espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso
divino no seacutetimo dia
Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus
atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende
aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se
encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior
254Cf Pagels E H (1999) 484
singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o
homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e
fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo
causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando
chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas
eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia
presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a
unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz
125
ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os
disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta
dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute
ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas
oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela
sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo
conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor
pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico
que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a
humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina
Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos
duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo
A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a
fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos
era bastante comum no seu tempo
A Imagem e a Luz
ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Lg 22
A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas
da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada
pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida
Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho
de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes
conceitos
Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma
experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu
sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo
Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um
corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser
255Cf Idem
126
humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns
pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original
arquetiacutepica
Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no
com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido
o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257
Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de
Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele
argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo
sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos
evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do
judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem
quanto suportareisrdquo259
O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado
primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a
existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da
pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um
objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser
humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento
divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia
afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino
Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois
Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem
celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem
criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da
Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11
Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam
256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158
127
ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo
natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou
com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim
do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job
1420)rdquo
De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre
Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu
mudei261
Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como
cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo
brilhante que ateacute superou o brilho do sol262
Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus
criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da
queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda
Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b
O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O
espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele
O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a
Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263
Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que
foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem
(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma
interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a
sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo
luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que
imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado
No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe
uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem
De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden
entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo
261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18
128
tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz
eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo
Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou
no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso
63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e
viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem
estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante
delardquo266
Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que
encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente
vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que
tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do
pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que
estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido
da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute
perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja
claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva
Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267
O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um
processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como
resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem
Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica
um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava
retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106
ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois
um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial
A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem
ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma
ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos
265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223
Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do
trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais
antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o
homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160
129
dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a
Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se
depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e
adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268
Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim
necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem
quanto suportareisrdquo270
ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser
digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271
Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute
Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as
imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo
num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo
manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272
O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo
relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)
numa imagem (imagem) para entrar no Reino
No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem
da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das
imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo
pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-
nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo
inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo
Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees
coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se
268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63
130
manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a
imagem dessa luz273
Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes
conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos
que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)
esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as
outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser
humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a
luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que
falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e
condenado a provar a morte274
O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa
imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84
menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas
beatitudes nas lg 18b e 19a
ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a
morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276
Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial
ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277
ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na
Cacircmara Nupcialrdquo278
A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de
Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e
retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo
subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de
Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que
273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63
275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75
131
interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da
lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas
proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta
do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)
Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que
ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus
responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que
borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha
boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-
lhe-atildeo reveladasrdquo280
Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as
palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara
Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)
estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute
designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo
representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104
e cada alma unir-se-agrave a ele
Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um
estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado
por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial
estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o
casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa
o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da
histoacuteria
Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem
simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o
jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o
final dos tempos
Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do
estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em
279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487
132
que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis
saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)
Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de
unidade
Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e
por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs
grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo
transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute
a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a
uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de
Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre
o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem
procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas
Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial
primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e
ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute
natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se
oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o
disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas
se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle
disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz
e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)
Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz
oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial
O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento
salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante
Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos
lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que
estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem
Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da
experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo
de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de
preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe
instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais
133
No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura
analisada e aos evangelhos sinoacuteticos
O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora
acessiacuteveis a todos os que as buscarem
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo
Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave
porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca
de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles
transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)
134
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho
carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo
interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo
entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo283
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284
ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que
vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam
como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que
estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim
consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu
Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo
Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da
imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na
presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em
fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos
pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda
Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a
carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila
para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285
283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162
135
Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon
sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu
uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou
consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os
raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que
gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex
227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex
240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos
luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de
Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo
Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma
ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente
meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas
ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas
de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo
Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de
nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos
ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao
redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o
queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo
Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus
hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal
Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104
Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o
olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo
traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo
causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo
acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de
fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do
sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio
286Cf Idem 106
136
ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode
recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a
imortalidade (αθανασίας) (104)
No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda
muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim
conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente
transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento
esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por
meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia
Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser
deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287
Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave
experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem
natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do
que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que
a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas
sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288
Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus
estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o
fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa
Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se
encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute
perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial
Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento
central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos
Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute
ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da
imagem da luz do Pai
Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz
da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na
presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus
ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder
287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108
137
transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores
estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila
judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam
esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus
O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma
de misticismo transformacional
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289
Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a
revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos
como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte
da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os
sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os
justos os santos e os escolhidosrdquo
Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos
santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os
segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria
ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila
pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a
injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291
Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147
em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles
estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras
tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem
recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do
conhecimentordquo292
Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no
lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293
289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81
138
A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a
aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave
linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo
em 4 Esdras 1438-41
ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a
beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida
estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi
e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a
minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a
minha boca foi aberta e jamais fechadardquo
Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire
conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para
descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca
eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do
fogo
Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a
condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84
explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras
palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si
mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe
eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294
A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar
fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino
Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes
tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me
intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa
ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se
natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296
294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93
139
As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia
comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que
emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si
mesmo297
Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano
no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298
Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da
existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos
conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima
intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem
do corpo no Evangelho de Tomeacute299
O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e
antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus
supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito
O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte
de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se
aprisionada no corpo humano
O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na
qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica
interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes
(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em
Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo
Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo
sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo
cultural heleacutenico
Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta
temaacutetica
A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente
com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que
encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma
297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54
140
compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e
enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento
Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg
568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)
O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento
afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida
Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e
ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na
exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de
contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute
ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo
(Lg 112)
ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que
depende destes doisrdquo (Lg 87)
O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne
sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)
ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos
alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os
nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos
que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do
corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo
Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de
escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e
Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma
Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que
ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira
afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo
seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute
ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301
Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como
uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia
300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59
141
resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria
entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da
filosofia greco-romana302
O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma
condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo
que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois
corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta
interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303
Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um
corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever
Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de
Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural
Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma
plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende
do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo
universal
A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um
indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do
asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias
restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior
Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a
descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do
mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas
lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma
compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo
experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores
sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si
mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de
Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo
pessoal
ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que
conheceram o Pai em verdade
302 Cf Idem 60 303 Cf Idem
142
Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o
tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)
Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos
inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a
vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente
Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304
O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento
preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-
se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos
ldquomovimentos de Jesusrdquo
Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o
homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo
apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de
perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe
que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados
De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que
encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e
reinaraacute sobre o Todordquo
Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando
sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais
notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus
existem na sua forma concreta como um texto escrito
A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo
por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete
repetidamente no seu significado
ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo
corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)
304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273
143
Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo
Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual
seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo
esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta
eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a
realidade fiacutesica em termos de origem307
Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o
homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de
vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29
corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que
o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave
animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a
prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que
atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a
lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310
Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos
eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase
em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e
guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social
(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo
autorizadas
6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no
evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido
na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos
307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus
iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas
espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita
existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que
explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo
de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era
144
gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de
gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria
Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia
gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo
interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode
salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de
Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312
O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro
autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia
gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo
eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia
Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o
conhecimento de Deus
Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas
disponiacuteveis em Nag Hammadi
ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu
a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313
ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde
e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo
o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso
O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de
onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da
sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314
A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser
humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua
realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino
considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a
sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo
contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos
estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo
religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 149
145
Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a
iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as
realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo
O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees
no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo
de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as
ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo
Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como
a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de
escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas
geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes
que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes
livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de
interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram
deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315
Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas
uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual
As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram
comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da
antiguidade
Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental
influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel
transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado
apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas
Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como
verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees
O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em
concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos
leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega
315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus
146
Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a
novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo
da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido
Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no
autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender
que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo
Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros
revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam
entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam
assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual
A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual
gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute
agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a
difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento
distintas
Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica
Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita
no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se
encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma
ortodoxia definida
Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a
experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior
de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e
adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro
de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras
sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes
Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que
surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros
contextos
Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o
gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo
signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se
assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem
147
Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo
se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316
seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que
possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da
experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta
temaacutetica317
O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas
doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais
abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual
do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo
apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e
como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma
questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma
exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com
revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender
As variedades da experiecircncia gnoacutestica
Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem
pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do
conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do
segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito
(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a
interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a
descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da
histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador
dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos
Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o
gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem
algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da
mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no
pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo
316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)
148
este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a
alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento
evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas
Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma
conotaccedilatildeo positiva318
O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este
adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e
operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o
conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo
Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que
alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de
Deus e das verdades superiores
O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter
trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade
de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como
ldquoa gnose que nos foi dadardquo321
Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os
acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes
uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica
definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada
chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322
Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios
fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro
lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -
falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir
que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia
perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de
Valentino e a sua escola
318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem
149
Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos
valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as
doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325
Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo
especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos
O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma
designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria
Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo
num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria
Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo
ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo
era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes
conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus
Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento
gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque
preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais
corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as
manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos
gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326
No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos
espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo
mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro
lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se
a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327
A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por
gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim
como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328
Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de
situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade
foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a
325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12
150
designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos
orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo
perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados
para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma
particular de viver a vida
Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas
respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana
Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo
para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo
Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os
gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu
tempo
Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees
entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica
Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos
sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico
geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses
conhecimentos esoteacutericos
Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e
espiritualmente conhecimentos superiores
O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos
primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas
escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era
comum
Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico
isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o
gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram
329Cf Idem
151
problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava
separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens
deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar
de libertaccedilatildeo
Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos
tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso
O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o
conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas
No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano
nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a
salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus
Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm
conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em
Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente
A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos
descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para
voltar ao estado da imagem divina no corpo humano
No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz
gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de
iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto
perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo
Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito
gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico
O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de
pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de
conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente
O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a
lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura
encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza
gnoacutestica do evangelho de Tomeacute
O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem
humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino
satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico
152
Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou
na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu
pensamento
ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou
Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos
onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o
que constitui um renascimento [real]rdquo
- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782
Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos
do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo
A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua
mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve
em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas
Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332
ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes
da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial
apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do
antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde
todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo
330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash
Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e
dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo
encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma
criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos
apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de
Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo
primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio
metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-
lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o
pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim
e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis
153
de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo
com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que
chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz
primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo
retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua
substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que
superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)
recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos
(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo
humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu
no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo
estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de
facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira
pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos
os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma
emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e
a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos
disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um
movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos
inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis
dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que
interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina
dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar
Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a
questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina
334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o
procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e
ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24
154
o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo
146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a
luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao
homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua
imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem
divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos
nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo
para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma
parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a
forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no
quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo
pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a
exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335
Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua
ideologia religiosa
7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute
Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336
Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica
sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do
evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente
considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias
diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de
natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico
descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases
fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute
A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute
e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e
metafiacutesica entre o ser humano e o divino
335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27
155
A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos
tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos
fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do
nosso pensamento
No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da
unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por
excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma
correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e
antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia
ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o
conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades
superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser
unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que
natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo
aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da
gnose338
O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de
Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da
experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade
antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade
metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339
Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da
perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo
reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os
fenoacutemenos da existecircncia
Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus
quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial
Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas
vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de
gnose
337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem
156
Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de
solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o
processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a
solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo
dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral
Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo
gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa
Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a
um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute
os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o
conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial
Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado
atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os
temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo
associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial
A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute
eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)
Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de
pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este
padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho
O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da
tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de
Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal
No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema
da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus
correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340
Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico
essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus
Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que
a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a
Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma
mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria
340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817
157
ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo
abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis
A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e
penetrardquo342
Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita
com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a
Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela
aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do
Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e
transcendentes
A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria
e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da
qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu
aspeto de Sabedoria343
Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo
miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas
O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante
agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes
faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata
obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes
tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga
eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano
Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute
esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da
racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores
ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a
imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344
342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817
158
Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no
coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do
seu interior
Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor
da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes
exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna
possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar
a sabedoria e o conhecimento de Deus
O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura
intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado
idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia
paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de
separaccedilatildeo entre o divino e o humano
Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a
humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria
humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo
deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento
religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai
eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante
deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu
papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o
sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e
do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel
e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo
Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no
pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento
Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute
de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de
Tomeacute
Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu
pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a
escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma
realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse
159
Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro
estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas
doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como
conclusatildeo
Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos
as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de
Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora
nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses
A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial
assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo
Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da
linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca
Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-
existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo
(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e
fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)
Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de
todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa
evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo
eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara
nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser
humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No
dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que
fareisrdquo347
A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos
disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348
345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18
160
Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento
de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo349
Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar
no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu
pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio
A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se
alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave
eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos
atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no
conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente
A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o
inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da
compreensatildeo
A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua
lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino
conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade
Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da
interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio
Jesus Vivente
Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo
da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do
corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como
intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um
conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que
inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento
Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que
inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo
Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da
leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave
consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos
349 Log 1
161
Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos
duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede
de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria
Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um
reino de luz primordial em que o ser humano era majestade
O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o
humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se
unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24
61)
Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve
os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo
Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a
imagem e a luz
Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo
menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente
Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da
cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro
estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando
analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto
do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido
Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai
receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo
tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350
A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos
seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica
Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram
revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua
imortalidade
A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria
assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar
mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo
350 Log 19
162
mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma
interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo
A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir
para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o
casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade
Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar
forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do
divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de
pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as
implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias
Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente
em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo
como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu
interior o disciacutepulo salva-se (log 70)
Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o
exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece
sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade
alinha-se em conformidade com essa luz primordial
No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como
ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de
Israel
Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de
Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia
ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do
templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria
Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo
miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas
realidades celestiais
Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o
momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica
Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a
uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a
unir-se com o divino
163
No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos
evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas
religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do
saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351
A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais
sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades
a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma
privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do
Reino
O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido
como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos
laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os
que conheceram o pai de verdaderdquo352
O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo
ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353
A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita
a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o
terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua
memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de
unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica
expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua
organizaccedilatildeo
Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no
coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)
Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda
reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do
mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo
que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma
351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59
164
meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo
visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai
A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no
Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os
elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados
em Tomeacute
Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se
encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades
interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo
Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo
o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial
O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio
concreto onde ela se localize
Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute
um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de
quem a aborda ela expande-se ou contrai-se
Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da
minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas
ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354
A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia
o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo
A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo
que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem
Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de
Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591
165
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos
nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara
e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e
entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no
Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios
O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na
divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a
distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo357
356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82
166
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358
A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de
experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos
miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel
contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos
que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma
como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o
divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia
interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo
comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num
desejo de transcendecircncia
8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute
A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada
sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia
dos vaacuterios resultados apresentados
Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma
hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos
entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns
na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da
existecircncia humana a sua origem e o seu destino final
Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo
metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do
secreto
A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da
tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo
358Cf Deconick D April (1996) 105
167
Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o
evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na
Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da
literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas
Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso
sapiencial da Sabedoria
Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do
Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute
O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por
parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a
forma como o mesmo mito era interpretado
O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para
as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden
Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de
gnoacutesticos
A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis
aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois
mundos que convergiam neste debate
O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do
adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo
mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo
mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu
mestre
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)
Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus
A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste
loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos
de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila
divina interpretada com o simbolismo do templo
Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o
santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas
Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a
se transfigurar na mesma
168
A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes
da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese
facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do
significado da cacircmara nupcial no evangelho
Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde
existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua
redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em
Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo
celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto
encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do
evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do
templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica
Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental
na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na
tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em
oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do
evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a
sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada
como base ideoloacutegica360
No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne
onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era
impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o
proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade
Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens
afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra
Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como
uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)
Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na
cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde
tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio
poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai
tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um
359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274
169
reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas
teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como
Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto
Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para
entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos
Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso
de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza
divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino
Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos
outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute
A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a
unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus
A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para
integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo
A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion
22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o
de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino
natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de
um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em
lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da
transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362
Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo
com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma
imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363
No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a
Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas
seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a
imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que
361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os
humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres
humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser
divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente
fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438
170
concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem
divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que
Cristo eacute
Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg
22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho
natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser
assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser
transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)
A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no
evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos
dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um
chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma
natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no
seio da luz (lg 11)
Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa
situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave
identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute
estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a
derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o
mestre
ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele
e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito
ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de
Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica
da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que
entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)
O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira
instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos
ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de
traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes
leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida
Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente
descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que
Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores
171
Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho
por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes
Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de
compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus
textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees
orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que
estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos
apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos
Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de
Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque
Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo
grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus
textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden
que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem
Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe
permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam
despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se
ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que
prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos
processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que
era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute
A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria
possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma
que estes leitores consideravam adequada
No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na
variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira
interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364
Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon
descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras
ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo
Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e
isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo
364 Cf Levison (1999) 38
172
Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o
propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da
atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65
ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou
impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio
do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das
profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem
o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo
Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento
as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente
humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar
conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo
O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates
Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)
O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave
inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366
Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)
reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo
a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates
era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do
espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates
corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom
profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados
inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes
como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo
(2187)367
De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria
iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter
recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra
elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins
365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46
173
ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria
alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este
pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute
realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a
soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo
misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua
soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da
soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas
destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher
27-29)
A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor
afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com
estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua
experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior
expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior
dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento
elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)
as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala
(Som 2252)368
Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis
onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas
revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que
afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia
sobre os detalhesrdquo (588C)
A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o
inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo
sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de
revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem
naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca
pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da
368Levison (1999) 50
174
verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares
de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das
vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos
antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion
Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia
de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do
filho da luz
175
Bibliografia
Fontes Primaacuterias
Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim
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Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos
1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e
grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas
o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees
Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das
paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas
a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias
indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas
James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press
O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos
Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20
3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em
etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim
In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507
Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto
de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem
documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de
interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC
nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem
em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos
tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os
pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o
symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram
eco nestes manuscritos
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo
A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute
relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
177
A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas
antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias
camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text
Verlag Algred Toperlmann
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW
Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento
importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar
onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em
termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo
simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por
exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute
Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316
ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas
ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association
Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais
associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute
Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press
Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco
Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do
cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos
e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute
Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New
York Tampt Clark
Outros autores judeus
Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se
fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no
evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia
178
Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os
significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas
associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que
Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao
longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo
corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha
responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa
Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet
Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing
Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra
judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho
no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do
elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos
fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute
Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das
Assembleacuteias de Deus
Textos Rabiacutenicos
Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo
literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que
permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o
interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos
eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei
oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos
A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo
releeituras das tradiccedilotildees anteriores
Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo
da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a
sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados
homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo
sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico
que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave
escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos
179
Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford
Midrashim
Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do
quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de
pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente
textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso
destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma
circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese
responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos
ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para
explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua
antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo
histoacuterico em discussatildeo
Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The
Soncino Press
Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma
exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o
capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado
TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London
Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da
Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que
tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma
complete no seacuteculo doze
TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London
Literatura de hekhalot
Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo
anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios
180
celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose
desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da
memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria
elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute
lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano
ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute
transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de
hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos
produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a
literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm
com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais
autoinduzidas
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4
5
6
7
8
9
Resumo
O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido
literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao
seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e
significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees
foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias
e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao
desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental
nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees
qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos
sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo
as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de
Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica
do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de
Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir
da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura
de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo
antigo
Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico
figura de Jesus cristianismo primitivo
10
Abstract
The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have
been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its
reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings
to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a
research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of
the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development
of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to
answer the following questions what was the historical context of this gospel its social
space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message
and what are the specific characteristics of language and experience in the early
Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the
historical understanding of the development of the Christian mental space in the first
century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a
new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian
movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social
contexts and geographical spaces of the ancient world
Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of
Jesus primitive Christianity
11
Agradecimentos
Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como
misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute
Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A
sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu
intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu
sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave
minha tatildeo doce Virgem Maria
Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades
maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza
ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus
e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado
com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele
o guarde eternamente
Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a
iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e
imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o
uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os
exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo
racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela
vontade do Pairdquo
Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2
12
Iacutendice
Introduccedilatildeo 14
1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19
2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20
Literatura Profeacutetica 21
Literatura Sapiencial Judaica 21
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24
Uniatildeo Nupcial no Templo 24
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36
Os Manuscritos 37
A Liacutengua Original de Tomeacute 37
A Data de Tomeacute 38
A Origem do Evangelho de Tomeacute 39
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65
A Gloacuteria do Trono 69
O Templo 70
A Merkavaacute 72
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92
6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo
simboacutelico 95
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97
Eacuteden 100
13
O Grande Mar 102
A Fonte da Vida 106
Os Rios do Paraiacuteso 108
O Veacuteu 110
Por Detraacutes do Veacuteu 114
A Grande Luz 118
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122
A Imagem e a Luz 125
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138
7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143
As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150
8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154
9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166
Bibliografia 175
14
Introduccedilatildeo
ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10
O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar
a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona
os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside
nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos
alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico
para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute
Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos
por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses
evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado
Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o
simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico
Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave
hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia
cristologia e protologia apresentada por Tomeacute
Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente
interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees
simboacutelicas do texto
Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o
panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem
valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual
Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma
linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial
no Evangelho de Tomeacute
Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese
apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico
No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a
metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da
cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo
pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas
do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute
15
Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para
contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve
discussatildeo dos conceitos religiosos do documento
No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na
histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no
espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que
influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma
importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do
Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e
serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais
judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento
No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a
compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da
linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do
proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio
Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo
fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um
mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos
dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas
satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais
da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1
Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal
a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia
humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se
manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por
este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do
evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso
de presenccedila interior
Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as
temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia
religiosa do evangelho de Tomeacute
1 Lohuizen Wali Van (2011) 3
16
No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico
que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria
forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as
realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos
cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos
siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o
processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho
eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser
humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas
afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma
produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave
sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo
O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo
no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute
a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas
atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um
gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere
facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica
Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de
Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta
exegese
Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios
mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto
de Tomeacute
Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma
realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta
conclusatildeo
Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho
de Tomeacute
O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no
pensamento do judaiacutesmo de II Templo
Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao
ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a
17
compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento
judaico e no Evangelho de Tomeacute
Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e
aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do
seu contexto
Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do
Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste
texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco
O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva
dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem
teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos
enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de
Taciano e Livro de Tomeacute
Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda
na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo
cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro
O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da
doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta
opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios
reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador
Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de
Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de
Ahiqar e textos sapienciais de Qumran
Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo
substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino
da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio
posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca
Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a
caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento
filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute
18
Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no
periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de
interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute
Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de
Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a
versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute
recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As
obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo
completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc
As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana
assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e
devidamente identificadas nas passagens traduzidas
19
1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia
As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa
seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos
influenciaram a textualidade de Tomeacute
Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute
Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo
Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos
de Joatildeo e Filipe
Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando
historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes
tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute
A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia
Hebraica e na Literatura Sapiencial
Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns
dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos
posteriores
Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como
Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos
pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos
Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos
textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais
no Evangelho de Tomeacute
20
2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo
A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre
Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que
envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano
As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar
num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico
Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como
marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma
realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o
retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do
matrimoacutenimo com o divino
Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O
que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa
leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de
Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo
da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino
Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a
imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano
uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se
com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4
Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo
recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de
Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos
inserem-se neste mesmo padratildeo
Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria
Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado
ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que
se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano
2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem
21
Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num
evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido
no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor
nas vidas das geraccedilotildees subsequentes
A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-
humano no final da histoacuteria
Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios
da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai
o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos
Literatura Profeacutetica
Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns
profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute
direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo
intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em
Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino
do Norte6
O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma
uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica
da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos
preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel
para com o proacuteximo
Literatura Sapiencial Judaica
No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da
Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus
identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora
Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas
vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e
6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26
22
amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma
sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante
A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial
apresentada pela literatura sapiencial
Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do
casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido
Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora
Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos
Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da
crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de
cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela
A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela
Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo
antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos
Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo
com o homem
Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave
cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas
dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre
Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a
uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial
Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no
tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura
Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento
no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e
pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico
dos Cacircnticos
Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara
Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe
9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29
23
Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo
ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel
fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente
transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo
para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11
Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de
simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado
com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal
redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia
sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da
eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden
Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente
associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais
frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da
criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por
Cristo o novo Adatildeo
Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o
Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os
temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro
casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13
Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os
nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com
que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao
estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes
no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de
Tomeacute
11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem
24
Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o
significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia
destas tradiccedilotildees
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai
Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por
um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo
do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel
No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio
pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo
Uniatildeo Nupcial no Templo
Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo
nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica
Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai
eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de
Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se
relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos
do batismo e da eucaristia
Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo
lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto
nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo
O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado
Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo
Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo
Testamento
A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no
templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento
14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do
Sinai
25
miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos
do batismo e da eucaristia15
Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara
Nupcial
Os templos de vaacuterios povos antigos
consideravam o Templo especialmente o
Santo dos Santos como o lugar
simboacutelico que representava a Cacircmara
Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como uma
atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai
O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para
perpetuar a teofania do Monte Sinai entre
o povo de Israel
O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo
de simbolismo coacutesmico sendo
considerado um microcosmos que
representava o universo inteiro Tambeacutem
eacute relevante a ideia antiga do homem
como microcosmo e templo uma ideia
encontrada no Novo Testamento onde o
fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o
ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece
entre o humano e o divino
O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a
fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar
onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do
divino na terra
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo
Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a
traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem
Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos
necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial
As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma
ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento
A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o
capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em
todas as ressonacircncias
15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56
26
O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura
personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se
a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)
Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte
feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina
Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica
O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo
da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos
tempos
Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria
encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo
A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)
ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo
Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca
ela se exalta diante do seu Poder
lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra
Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens
Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste
eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira
reinei sobre todos os povos e naccedilotildees
Junto de todos estes procurei onde pousar
e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo
Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico
da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma
ψυχὴν αὐτῆς)17
O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo
de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na
tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios
No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem
em Deus e a sua universalidade
Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo
Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a
palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde
17 Cf Villeneuve A (2016) 57
27
como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria
ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando
ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn
12)
O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica
que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19
Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central
do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e
terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma
reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu
O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna
que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo
e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22
A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave
coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23
Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as
mentes que estudam a virtuderdquo24
Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a
nuvem como uma ponte entre as duas esferas
A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua
identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a
paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de
sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas
caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25
Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens
primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo
A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo
18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na
referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl
987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19
28
O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o
termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a
escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo
(Gn 12)26
Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando
presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27
O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o
universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os
dois elementos do mar e da terra
Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar
especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo
Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo
dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos
de nota28
A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o
universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela
deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos
limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte
Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora
Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel
A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)
ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem
aquele que me criou armou a minha tenda e disse
lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo
Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio
e para sempre natildeo deixarei de existir
Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei
deste modo estabeleci-me em Siatildeo
e na cidade amada encontrei repouso
26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59
29
meu poder estaacute em Jerusaleacutem
Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria
no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo
Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o
ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens
Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da
sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de
Israel
No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que
habitasse em Israel
O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-
se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao
fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu
reino sobre a esfera espacial
ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo
(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu
processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo
Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)
ldquoCresci como o cedro do Liacutebano
Como o cipreste no monte Hermon
Cresci como a palmeira em Engadi
Como roseira em Jericoacute
Como formosa oliveira na planiacutecie
Cresci como plaacutetano
Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume
Como a mirra escolhida exalei bom odor
Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque
Como o vapor do incenso na Tenda
29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da
criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a
um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas
por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21
30
Estendi os meus ramos como o terebinto
Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila
Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos
E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo
A Sabedoria enraizou-se num povo honrado
A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra
de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos
Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva
localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos
Cacircnticos
No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o
palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)
associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413
A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do
rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)
Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se
trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute
associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30
A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)
tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a
noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)
Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no
Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica
O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)
Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)
As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios
satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)
A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora
Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden
30Cf Villeneuve A (2016) 63
31
O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)
ldquoVinde a mim todos os que me desejais
Fartai-vos de meus frutos
Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel
Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel
Os que me comem teratildeo ainda fome
Os que me bebem teratildeo ainda sede
Quem me obedece natildeo se envergonharaacute
Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo
Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete
sumptuoso para comerem os frutos que ela produz
Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o
vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu
vinho31
O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo
universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden
Monte Sinai e no Templo32
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos
Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros
pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no
primeiro seacuteculo da era comum
As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que
datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do
fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu
amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de
Deus participante na sua imortalidade
31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73
32
ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)
Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o
Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal
verdadeiramente seraacute imortalrdquo
Ode de Salomatildeo 35-8
A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser
humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana
para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi
considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)
Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou
beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do
Espiacuterito Santo33
ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro
de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)
Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o
jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre
aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa
nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-
9)
Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como
sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos
escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de
aacuteguas vivas
As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura
mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste
contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo
Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel
procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo
Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34
33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279
33
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute
Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder
a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute
Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados
e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns
elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e
posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver
O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho
de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo
textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico
reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute
Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio
unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de
um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si
Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira
encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados
(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem
hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que
eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que
se orerdquo
A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e
antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua
mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela
perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o
mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na
cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida
Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da
existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees
Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute
ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema
existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o
Reino dos Ceacuteus
34
Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma
identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser
fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho
o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e
responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo
natural do divino na consciecircncia)
O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em
termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz
A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das
palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte
Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano
espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua
boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos
melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos
revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando
colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto
Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e
o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos
canoacutenicos
Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos
canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o
retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar
em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada
E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso
O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus
Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos
do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo
entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz
e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios
Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque
para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo
interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por
este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial
35
No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada
um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico
Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na
eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo
duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de
comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o
disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica
eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus
Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do
misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo
menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval
A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou
divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre
dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de
duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos
sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais
simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo
A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso
trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na
experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves
manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de
misticismo mais tardias como a unio mystica
O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado
para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um
processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se
entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro
conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura
inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e
o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino
e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
36
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo35
A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a
explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica
no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo
completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo
de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra
nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem
Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com
profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que
acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute
O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo
Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra
O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua
reflexatildeo na audiecircncia que os escutava
A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa
investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode
ser interpretado legitimamente como tal36
A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos
gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel
defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute
Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe
Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito
No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de
Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -
ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo
Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o
Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto
35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43
37
O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do
cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de
Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente
heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias
Os Manuscritos
O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem
num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta
termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados
gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic
publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os
Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus
O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma
coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido
por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe
O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do
seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um
evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente
proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38
Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto
de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um
tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39
A Liacutengua Original de Tomeacute
A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta
onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo
do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria
dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41
38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by
Stevan
Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91
38
Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos
textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes
num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a
frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que
reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil
uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42
O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo
alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo
Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta
encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o
texto
Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos
manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a
liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em
manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de
Tomeacute
A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os
evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo
relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute
O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os
documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o
Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de
Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas
siriacuteacos43
Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de
manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem
originais siriacuteacos ou aramaicos
A Data de Tomeacute
41Cf Idem 91
42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97
39
Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa
complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser
datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito
onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo
em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta
e cinco dC
Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de
acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de
Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos
dC
Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave
confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71
O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus
ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos
de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila
para atestarmos esta dataccedilatildeo
A Origem do Evangelho de Tomeacute
Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute
A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito
Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em
Edessa
Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a
origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades
de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura
siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute
O nome Judas Tomeacute
44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria
40
Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo
aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute
Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma
particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo
eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo
geacutemeo de Jesus48
Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco
Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo
em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram
o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113
com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde
ocidental
O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria
da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5
Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em
siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49
O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo
encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego
aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um
apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50
Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido
provavelmente na Siacuteria
A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo
e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel
nalguma literatura maniqueiacutesta
Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos
As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca
48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10
41
ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os
vossos vestidos e os colocardes sob
os vossos peacuteshelliprdquo
Evangelho de Tomeacute 37b
As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes
nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as
Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma
literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande
Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se
na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de
ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)
O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que
Jesus disse a Judas Tomeacute
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute
Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma
problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o
seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo
do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de
radicalismo social51
Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um
misticismo unitivo ou um produto valentiano
No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada
escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das
lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios
termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees
O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a
sua teologia central
51Cf Gathercole Simon (2014) 144
ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto
que o manto da vergonha me foi
tiradordquo
Atos de Tomeacute 14
42
Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent
Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo
significativo agrave leitura de Tomeacute
A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da
linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior
ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53
Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto
pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a
ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente
seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1
Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do
judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade
tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras
continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em
Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia
Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes
divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas
da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem
No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros
disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para
lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo
A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte
onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel
desvelar novas realidades
Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente
na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos
tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as
instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai
A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21
vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o
como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)
52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145
43
O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg
57 76 96-99 133)
Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534
Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente
de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)
estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)
Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39
6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)
Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o
reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)
Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence
aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas
(lg 22 46)55
Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se
encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)
A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56
Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos
no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn
1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por
um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58
Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa
matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo
O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda
desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que
eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um
divisor (lg 72)
55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11
44
A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo
valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis
Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do
eleito
Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao
corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62
Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)
Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o
ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao
conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um
misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo
No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e
vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos
corpos
Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro
motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos
deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade
entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De
Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer
apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de
Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio
(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)
Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute
necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica
que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da
criaccedilatildeo65
O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada
acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute
repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute
62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148
45
O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que
proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para
cimardquo)
O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma
ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no
mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia
acrescentando ldquoespada e guerrardquo
Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual
os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg
110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo
O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o
reino se expande (lg 113)
O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo
contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro
Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu
maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma
posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)
Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla
dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem
fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)
Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma
oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute
A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute
encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como
ldquocarnerdquo (lg 28)
Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo
nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia
Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg
55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito
(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)
Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser
espiritual feminino (lg 105)
66Cf Idem 151
46
Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica
fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)
O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo
para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta
revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio
para escapar da morte
O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias
variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias
20 possuem um significado teoloacutegico68
Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As
referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado
defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees
psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo
do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70
A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no
Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais
como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de
ldquorepousordquo
Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg
59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)
A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica
assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute
O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das
tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado
Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento
religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia
de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos
comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este
evangelho
Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por
estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo
67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152
47
oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo
a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou
juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original
que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre
deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes
encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino
Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para
Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens
materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72
Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou
forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua
linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas
com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde
Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de
ensinamento religioso fornecido por Tomeacute
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo
O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua
composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o
misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar
quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal
heleniacutestico
A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar
iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso
Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do
sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno
do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito
assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo
O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas
mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo
71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)
48
Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os
Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o
Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as
elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da
Greacutecia claacutessica
Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os
nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas
cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma
profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com
a conquista islacircmica75
A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no
comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade
As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees
extensas incluindo franjas do deserto76
Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da
Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus
que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este
periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia
cultural persiste ateacute hoje
O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a
nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova
dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico
surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77
Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute
oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo
helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo
A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos
sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o
estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79
75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem
49
Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar
e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que
posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas
vezes esoteacutericas e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que
viaja com o viajante
De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste
meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma
revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual
Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e
traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do
Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como
eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas
religiosos deste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do
Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos
velhas crenccedilas e suposiccedilotildees
O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os
primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na
histoacuteria do livro ateacute Gutenberg
Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex
foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma
nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade
reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de
Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o
texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81
Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas
Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste
periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como
divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas
nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo
80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30
50
O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a
destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC
A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos
dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico
Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo
sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo
foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas
O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado
por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era
chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus
Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio
de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido
pela igreja dos primeiros seacuteculos
Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram
substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta
dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma
atitude miacutestica e interior da busca do divino
Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e
presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos
rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes
O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da
individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa
exegese interior
A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser
intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de
ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas
oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal
Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia
do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo
e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada
82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39
51
Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas
significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo
encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica
Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos
estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos
Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas
evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova
perspetiva sobre as tradiccedilotildees
A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original
natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria
original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado
ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a
narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo
O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da
histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os
evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute
O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes
documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as
comunidades tinham da figura de Jesus
Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando
recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu
kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria
Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus
num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de
ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do
impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam
relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e
ressurreiccedilatildeo
Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado
Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao
Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio
Eufrates
83Cf Patterson J S (2013) 10
52
A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos
que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser
completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84
Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo
comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se
encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute
parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates
Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na
grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a
norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura
literaacuteria antes do advento do cristianismo85
Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas
poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da
Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a
subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua
submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio
Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86
A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser
pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado
durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que
Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua
semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87
A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades
siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de
Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos
fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a
organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da
sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma
84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem
53
evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos
Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve
raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do
cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades
semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel
estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos
importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa
tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram
recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de
Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial
das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do
primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e
se misturaram90
Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria
ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos
primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura
intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo
de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto
oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas
feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial
do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros
ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de
quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os
pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo
Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um
entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da
tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida
88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42
54
como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu
manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da
sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos
poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta
experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram
no ocidente no outro lado do Eufrates
Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de
convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores
Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a
ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e
as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo
presentes em Tomeacute
Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes
para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a
leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso
natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica
entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de
violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus
se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente
harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos
O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de
cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que
desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da
vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e
valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo
O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de
interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel
da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o
futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da
identidade cristatilde
A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se
claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um
95 Cf Patterson J S (2013) 25
55
martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no
qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus
Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado
dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como
dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa
para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma
experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar
verdadeiramente a vida de Jesus97
No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo
um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos
pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes
eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o
Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este
Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o
ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se
encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado
A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-
se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia
de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar
da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si
proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante
diferente
O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do
segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu
pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e
cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da
criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da
crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de
pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do
periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os
quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil
96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30
56
O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que
esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais
unificadores99
O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo
A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e
o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos
cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma
platoacutenica100
Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute
notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia
centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo
geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as
vivecircncias em ambos os contextos
Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo
assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo
sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102
A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas
de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo
Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta
apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de
sabedoria
A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em
concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento
platoacutenico103
98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15
57
A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de
voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha
corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute
O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades
de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica
Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a
Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto
interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da
Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105
Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se
estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas
judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros
dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que
prosperava nestas cidades107
Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse
filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia
entre Platatildeo e Geacutenesis
Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1
na textualidade de Tomeacute
Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas
helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era
masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado
unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres
voltariam (lg 22)109
Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia
platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa
mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma
104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278
58
centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano
mortal (lg 29)110
Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido
dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e
para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111
O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao
reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo
originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)
ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg
50)112
O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no
ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma
perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e
perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres
passageiros113
O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de
vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria
contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo
Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e
os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de
Jesus em Edessa114
A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o
autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a
identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz
divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida
freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115
ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo
110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37
59
ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na
filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas
correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti
proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima
agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta
interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma
no iacutentimo do ser humano
Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de
Deus
Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois
seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e
Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o
iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte
divina ele conhecia o divino116
Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo
ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino
dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem
consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo
grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender
como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele
possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117
Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este
entendimento acerca da mesma maacutexima
ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi
feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os
fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do
universordquo118
116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)
60
Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos
platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os
aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada
Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-
se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as
perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-
se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus
suacutebditos
ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez
mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute
ouvidos a ti mesmorsquordquo 119
Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a
manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico
mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos
noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se
retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o
mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute
contemplaccedilatildeo daquele que eacute
Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este
ldquocasco de courordquo122
Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro
eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do
corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para
superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos
dois primeiros seacuteculos
Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o
risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute
Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem
O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo
empregando os termos teacutecnicos do platonismo123
119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477
61
Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de
descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam
tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente
O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute
Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza
humana e o seu destino
O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do
pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute
ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o
corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124
Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os
estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia
aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo
era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os
nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo
tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de
ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no
platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma
A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor
antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por
que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era
miseraacutevel
O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo
morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um
corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo
Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E
esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute
123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus
ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the
universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation
to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies
(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material
bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)
62
Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do
mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo
A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o
disciacutepulo mais digno do que o mundo
A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no
pensamento platoacutenico126
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo
A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese
apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a
investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um
montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho
judaico-cristatildeo127
Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo
apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de
Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde
(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos
judaico-cristatildeos
(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos
incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas
(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere
uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo
(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e
no cristianismo judaico
(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios
Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre
o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo
126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes
(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have
already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are
corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the
borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be
Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp
DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200
63
As seguintes passagens
(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV
963
(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145
(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad
Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3
(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514
Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da
Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute
a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada
Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de
Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute
Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos
estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute
O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do
nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras
de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado
como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128
Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto
porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9
(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo
ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)
Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c
7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio
Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo
Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho
Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o
judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos
128Cf Luomanen Petri (2012) 202
64
Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no
proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo
seacuteculo
A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e
duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e
quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo
Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma
cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos
Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma
exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso
A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra
aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o
repouso em Jesus
ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos
lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo
quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele
e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria
descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na
eternidaderdquo129
A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo
Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo
aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos
Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde
Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus
seguidores
Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma
voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter
dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho
dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus
129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322
65
ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-
me para a grande colina o Taborrdquo131
O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)
geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de
Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao
Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de
Jesus e a sua matildee verdadeira
ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132
Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente
nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma
teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute
- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e
ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas
Lg 24b
O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias
associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e
culturas
Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram
utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo
lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para
descreverem as suas experiecircncias133
Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas
experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou
lsquorevelaccedilatildeorsquo
A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como
visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma
131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2
66
viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas
preparaccedilotildees e rituais serem realizados
O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e
cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros
angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134
Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do
nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades
antigas para investigarmos a sua religiosidade
O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos
para denotar o fenoacutemeno cristatildeo
Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de
misticismo135
O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao
judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar
antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia
extaacutetica ou como praacutetica provocada
No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas
expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo
Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por
eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo
de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo
O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo
interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus
Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de
Tomeacute
Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque
pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um
texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute
presente no Judaiacutesmo do II Templo
A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria
do texto do Evangelho de Tomeacute136
134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7
67
O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios
ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica
Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros
trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica
Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos
formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do
templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a
realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees
As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na
literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria
na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da
Palestina de Yohanan ben Zakkai137
Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e
da especulaccedilatildeo hekhalot138
Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas
de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios
Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da
literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo
hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes
representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades
muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do
II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo
A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos
fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que
levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que
iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial
os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e
136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu
numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que
vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos
esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da
Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos
palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica
e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2
68
cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas
biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma
autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos
tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma
audiecircncia contemporacircnea
Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas
ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo
a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras
A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que
podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute
Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus
conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo
situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos
Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e
revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias
encobertas no interior das suas escrituras sagradas
Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia
Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica
A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta
tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10
40-48 Dn 7 e Is 6
Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura
produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos
A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e
na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos
Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de
temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da
evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em
textos de eacutepocas diferentes
139Cf De Conick A (2006) 7
69
Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta
as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute
associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140
A Gloacuteria do Trono
A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central
desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo
Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente
secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada
ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo
com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)
de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas
escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142
Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial
feito por dois querubins
No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute
apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos
Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias
histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute
sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos
O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite
brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo
assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta
veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado
Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras
cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co
44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus
que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-
140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8
70
23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do
templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144
O Templo
A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de
Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os
Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do
que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia
Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete
parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais
sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145
E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das
mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do
templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146
A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis
desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas
natildeo realizadas
As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da
criaccedilatildeo da humanidade
Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e
ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de
luz147
Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo
percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no
Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As
tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser
Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148
144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem
71
Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o
primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter
sido um reflexo da Kavod
Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico
Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do
que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de
encher todo o universo de um extremo ao outro150
ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]
pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel
b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o
despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro
lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse
Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a
oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151
Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do
pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos
cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave
transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos
conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da
ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e
tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de
forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152
Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da
morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente
Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os
Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as
epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades
envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no
momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na
149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21
72
liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias
ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153
Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais
antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute
15 19 37 50 59 83 84 108)
As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da
esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma
experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de
transfiguraccedilatildeo
Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os
ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees
de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de
uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no
trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154
A Merkavaacute
O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo
que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo
miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos
Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim
de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca
O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como
as fontes esoteacutericas mais tardias referem155
Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de
Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico
de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se
movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel
1014-15 com o querubim do Templo
153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30
73
Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave
presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-
se ao templo por outros meios156
A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel
encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe
mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma
ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25
Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em
duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio
de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos
Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus
identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser
vivente do profeta Ezequiel
A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus
o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o
universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-
se presente nesta literatura157
Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o
mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte
mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas
como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158
Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e
a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e
descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo
concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute
156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo
tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)
com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos
trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o
cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea
dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos
sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos
Santos
74
O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da
arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem
alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em
Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que
em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la
caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo
Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que
rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160
Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de
Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas
maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos
que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161
Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas
natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de
cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162
Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de
hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos
Cacircnticos do Sabbat163
Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e
recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era
necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos
que eram inscritos com os nomes secretos de Deus
As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o
templo e o cosmos eram estruturas opostas
As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo
a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para
o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande
santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas
planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e
da Sumeacuteria
160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170
163Cf Idem
75
Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo
era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem
quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F
Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com
a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos
praticantes de hekhalot
ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de
certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos
anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo
nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e
canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras
interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse
viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166
Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no
Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I
seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um
rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167
A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se
bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168
A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O
Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo
assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas
do caos no terceiro dia169
Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi
criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo
164Cf Idem 171
165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and
Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21
76
ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)
Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo
O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo
assim tu faraacutes o tabernaacuteculo
De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas
bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo
fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo
as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de
terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do
corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas
na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo
uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo
os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio
do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o
firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as
aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170
Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem
documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o
pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute
O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do
homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos
vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos
poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios
corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu
proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava
Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute
estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram
compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano
O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do
corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos
escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas
estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e
angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute
170Cf Midrash bereshit rabbati
77
frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome
divino171
Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o
miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na
presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se
entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem
Divina da Gloacuteria
O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o
autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo
este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica
No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com
este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na
atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o
puacuteblico a que se destinava
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute
O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e
interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite
definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica
Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por
si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda
Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo
primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no
final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis
descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim
Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
(Lg18)
A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo
que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial
que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas
dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que
171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175
78
representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias
a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos
primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)
Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses
por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia
de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que
estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para
ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se
ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)
Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais
respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se
vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu
de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem
sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem
qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)
Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia
visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus
disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco
aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas
caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)
Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos
miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa
esta realidade no jardim do Eacuteden
Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma
crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas
crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino
Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o
exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e
o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo (Lg 22)
79
Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as
vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um
tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco
No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os
disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te
revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como
as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo
temereisrdquo (Lg 37)
O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do
corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos
natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu
ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)
A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que
a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes
no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas
quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)
Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia
platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas
simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem
Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial
do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo
Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus
O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara
Nupcial
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37
ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos
Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos
vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os
espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo
80
Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que
apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais
1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver
o Filho de Deus sem ter medo
Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao
ceacuteu numa linguagem encratita172
Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora
comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo
baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321
Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de
peles e eles vestiram-nasrdquo
Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173
Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou
ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o
sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco
Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute
difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo
Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de
pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo
Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos
neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da
carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo
O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute
um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175
Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se
revestir destardquo176
Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9
que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas
E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra
172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem
81
E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim
E o Senhor renovou-me com a sua roupa
E me possuiu com a sua luz
E do alto me deu descanso imortal
E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos
E eu despi-me da escuridatildeo
E vesti a luz
E ateacute eu mesmo adquiri membros
Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento
E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito
E eu removi de mim as minhas vestes de pele
Porque a tua matildeo direita me ressuscitou
E fez com que a doenccedila passasse de mim177
Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um
ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de
libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus
Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica
Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de
pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo
A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus
anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou
selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando
vestida torna aceitaacutevel diante de Deus
Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo
com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal
No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de
Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o
ldquoselordquo no Nome178
Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-
se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo
ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E
eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo
177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126
82
Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e
transformado num anjo da face
ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele
[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para
ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181
Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram
uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA
nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do
corpordquo183
O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm
que ser despidas sem vergonha
O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis
Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e
Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os
olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha
Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que
ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se
sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos
O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito
especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que
o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu
ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma
criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era
controlado pelos impulsos sexuais184
A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual
deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-
caiacutedo ausente de vergonha
179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134
83
Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as
vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma
pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda
daacute outro elemento sobre o ser assexuado
ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o
interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num
soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando
fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de
um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como
sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo
Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que
era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a
idade adulta em primeiro lugar186
Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento
ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187
De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo
periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188
Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era
uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo
foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189
Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que
renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico
preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190
Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada
pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam
185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes
a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do
campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e
devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos
Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135
84
As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a
experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o
objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus
Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de
Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191
Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De
mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a
existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte
e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio
Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto
retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a
essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo
Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o
homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave
esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo
material
Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde
Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque
despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo
Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias
estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193
O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos
gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do
rosto de meu Deus para sempre194
Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas
ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar
o seu corpo
191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por
Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a
Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as
conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas
materiaisrdquo
192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10
85
O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu
nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia
visionaacuteria
No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque
que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes
celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico
Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-
escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra
sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho
de Filipe 1 34-35
ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo
Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo
total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta
forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho
transformando a sua alma
ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo
sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo
No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o
mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada
encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa
experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave
entidade divina que tinha visto
O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma
crenccedila antiga presente no mundo antigo196
195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42
86
Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua
experiecircncia religiosa
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50
ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz
procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens
Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se
vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um
repousordquo
O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um
fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na
interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis
perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria
Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se
manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era
segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz
A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada
primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo
Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn
13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus
tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja
luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus
sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes
da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham
o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a
sua proacutepria luz198
Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes
da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da
imagem do Logos
197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66
87
A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus
explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse
sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo
De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz
primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis
O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se
aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos
seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos
Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos
anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como
os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl
82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um
de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn
127)rdquo
O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o
homem agrave imagem dos anjosrdquo
Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126
que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva
Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante
tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de
ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo
A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma
forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no
nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200
Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse
ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma
substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e
tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se
assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto
como a forma do invisiacutevelrdquo201
199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443
88
O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas
letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado
de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas
eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer
1141 Epiph Pan 34 47)
Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome
divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial
manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram
pronunciados agrave sua imagem202
O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de
Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo
ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a
luz do universo
No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de
lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno
de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos
o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo
Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma
realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo
alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior
Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do
Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem
trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto
estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-
me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo
(12827-30)
O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo
filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo
regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)
Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176
89
Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que
regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser
porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no
Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo
O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de
Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco
aacutervores
Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do
Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204
Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que
constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute
o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco
virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo
alcanccedila virtude e imortalidade
As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando
vestes de luz
E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor
Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram
Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal
E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna
Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra
imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver
nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores
como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da
ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso
Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes
com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o
autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo
domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205
204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83
90
Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do
paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da
imortalidade
Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim
comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma
aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito
de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica
de coisas legiacutetimasrdquo (198)206
As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a
alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do
pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e
corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves
virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas
leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda
adacircmica
E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute
existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma
com as virtudes paradisiacuteacas
O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque
vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada
ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os
eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis
novamenterdquo
No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e
manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16
ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai
contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios
(monachos)rdquo
O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este
ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com
a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos
206Idem 85
91
Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo
diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207
Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos
ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus
Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono
celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe
ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade
Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma
situaccedilatildeo num hino samaritano lemos
Ele Deus permanece para sempre
Ele existe ateacute a eternidade
De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio
Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como
Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208
Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes
se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser
angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina
Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto
angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz
aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute
paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar
uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden
Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e
inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e
adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus
e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo
ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado
angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na
natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte
207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718
92
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59
Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica
encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a
manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o
miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o
A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem
cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este
encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser
alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo
desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria
ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o
vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo
(lg 83)
A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos
que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele
prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo
Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial
e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque
224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209
O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica
presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da
humanidade
Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir
por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo
209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a
93
relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido
no ventre de uma mulher
ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos
humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a
luz gera-se a si mesma
O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a
imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto
que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod
escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na
tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que
se revelava aos miacutesticos211
Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos
anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah
A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus
esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da
ldquoGrande Gloacuteriardquo
A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum
dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo
flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212
Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio
soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213
Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou
Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a
aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)
A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse
visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e
trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo
Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7
ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33
De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e
incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no
211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104
94
entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto
ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute
cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214
Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era
abrangida pela sua luz
Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte
verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma
alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo
pode ser percebida diretamente
Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg
83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute
oculta na sua proacutepria luz215
No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica
que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do
disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)
Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos
devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos
Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus
durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a
imortalidade
Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas
homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo
Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta
uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta
imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a
imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e
aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto
nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do
214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105
95
Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado
esquerdordquo (Hom306)216
Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute
paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma
experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como
diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria
luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu
interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um
corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve
ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o
conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre
as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino
5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no
seu mundo simboacutelico
Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara
Nupcial
Lg 75
Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas
ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em
Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia
visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o
conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto
A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o
maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente
levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta
Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de
Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um
fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem
216 Cf Maloney G A (1992) 191-192
96
O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de
Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e
cristatildeos numa fase emergente
As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as
encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de
Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar
Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a
natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo
Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a
sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o
peso e a grandeza desta memoacuteria
Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas
que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada
sem excessos ou divagaccedilotildees
Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas
uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial
Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a
investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as
mensagens contidas nos outros logia
A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos
do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico
A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do
Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden
O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do
percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado
nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial
Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos
que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas
Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam
as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos
Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus
criador e personagens com nomes hebraicos
Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas
questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos
97
Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que
antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de
Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental
As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave
obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao
Templo de Jerusaleacutem
O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do
Templo a niacutevel simboacutelico
O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era
transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram
os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes
conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo
deste processo revolucionaram as suas religiotildees
Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta
influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo
apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a
simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem
Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos
questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo
olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos
ciclos da vida
A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o
encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a
adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217
A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num
calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas
formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218
O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas
combinadas e sincronizadas
217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem
98
A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do
sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do
ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-
calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal
preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e
ciclo sacrificial221
A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais
complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute
traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito
memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222
Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do
Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento
simboacutelico da realidade do Templo
Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de
modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica
do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e
terrestre pelo serviccedilo sagrado223
O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do
Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos
escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se
Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e
reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa
Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo
fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo
ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos
ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a
redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade
centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224
219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio
vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de
cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6
99
Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da
inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-
se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de
tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do
calendaacuterio
A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo
canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do
Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria
viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e
Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque
Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos
anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada
dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou
sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua
marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que
descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos
sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos
soprar o shofar e prostrarem-se227
O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam
os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se
vivas
ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras
espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo
vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas
225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos
ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute
descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da
terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual
com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre
a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute
ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados
antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica
e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os
sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do
ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos
perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13
100
cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as
cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos
Santos (hellip)
As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das
maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da
cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas
com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo
vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta
dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-
todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228
Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o
cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos
separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O
espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de
uma realidade eterna
Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que
aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente
Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa
forma simboacutelica e narrativa229
Eacuteden
O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais
interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim
como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o
paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)
Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a
partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do
Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma
humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da
mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo
estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes
228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57
101
na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes
do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem
criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se
manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do
outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe
ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a
Origem do Mundo)230
A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute
a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao
Eacuteden
Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai
Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria
Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila
do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico
Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais
antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos
aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231
Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo
como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo
gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito
da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico
neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos
gnoacutesticos
Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos
constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram
Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que
tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram
Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o
significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem
deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)
230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103
102
O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser
considerado bom como o Eacuteden inicial
O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter
especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo
havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo
poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual
O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas
sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da
textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o
sentimento hebreu para com o Eacuteden
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim
Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o
iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e
natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)
ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa
expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai
estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)
O Grande Mar
A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os
israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era
apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma
descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido
O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar
do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente
considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo
unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da
montanha coacutesmica
O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o
firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze
enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da
largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente
representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio
103
era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair
que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos
Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita
para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232
Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o
mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o
maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b
Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio
Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem
afirmou que o paacutetio exterior representava o mar
Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e
entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos
Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos
Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos
homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)
Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo
associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel
que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon
de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior
O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade
estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo
2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece
entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do
criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees
que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os
mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)
sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu
povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve
o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)
mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema
natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da
criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste
232Citado em Barker Margaret (1990) 61
104
para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo
(Ecircxodo1517)
Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento
hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo
do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo
a partir dos mares primitivos
Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos
primordial233
O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das
visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel
de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de
entronizaccedilatildeo
Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas
surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram
autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)
Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus
antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e
derrotado (Isaiacuteas 519)
O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em
tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo
nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4
Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na
qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da
montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor
O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui
aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se
encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono
celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute
que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao
redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)
Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do
Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)
233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522
105
ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado
com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu
nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse
152)
O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o
firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo
O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o
jardim de Deus no livro de Ezequiel
Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal
do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim
seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em
mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo
material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre
necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia
O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era
frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado
Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha
sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em
que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro
Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa
(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o
poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234
Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas
explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade
disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo
quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)
Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua
vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do
Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no
Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava
simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira
como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo
234Cf Barker Margaret (1990) 61-69
106
De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios
querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e
uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo
Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do
templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo
numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras
(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel
4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-
12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em
outras partes da Biacuteblia Hebraica
A Fonte da Vida
Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz
Salmo 367-9
Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e
ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a
construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde
e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se
sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes
cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos
varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de
ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que
tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material
lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em
todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista
o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes
recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus
poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era
235Cf Ginzberg Louis (2003) 162
107
devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o
santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua
ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo
em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o
mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o
mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado
para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao
ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no
segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que
estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o
mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia
no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como
alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O
candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua
criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o
Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no
quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No
sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o
seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante
de seu Senhor e criadorrdquo236
A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo
VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado
em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes
colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para
o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor
dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)
Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da
fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade
ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem
prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)
236Cf Ginzberg Louis (2003) 150
108
Os Rios do Paraiacuteso
Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em
quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas
vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre
associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo
O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do
Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a
um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos
Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica
no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias
semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na
montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele
que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute
um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em
majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas
visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a
fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da
sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo
no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro
de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo
isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da
porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e
tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores
cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para
eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da
fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade
com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta
oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda
do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica
a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem
metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no
veratildeo como no inverno
109
E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome
um (Zacarias 148-9)
O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os
Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu
cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam
No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de
Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a
aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas
da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)
Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos
paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio
No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos
Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando
ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da
festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a
mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de
aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber
(Joatildeo 737 -9)
O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios
serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a
simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era
quase sinoacutenimo do Espiacuterito
Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham
adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de
Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis
12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria
foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)
Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a
com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele
(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de
especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum
onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)
A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e
como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o
110
Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a
luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)
Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea
para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e
como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o
meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar
(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios
do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque
confirmam esta associaccedilatildeo
Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono
Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada
completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho
do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante
ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque
dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem
de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele
(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor
descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e
vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)
O Veacuteu
ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos
dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a
esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram
reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser
tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]
antes do templo sagradordquo
Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)
Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono
dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo
que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas
Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da
experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido
111
uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como
saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido
As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente
tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu
representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as
vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava
Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da
encarnaccedilatildeo
O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o
lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo
visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade
As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como
parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos
e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia
do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo
Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado
Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos
dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos
alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do
templo
O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8
mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de
puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)
Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da
mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido
Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1
ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado
Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se
havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-
sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o
comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o
primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia
entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de
duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de
112
modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi
colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado
norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua
esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas
grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de
espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia
vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de
vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em
cada ano (Mishnah Shekalim 85)
Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e
sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila
forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para
a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este
veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de
Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias
descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia
haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada
por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)
Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade
viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus
despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que
a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde
um rabino do segundo seacuteculo a viu
Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose
Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas
satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)
No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado
ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica
com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma
habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico
tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da
terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo
113
Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma
que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama
dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)
Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual
Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave
sabedoria do templo ou era algo antigo
A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi
coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim
foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada
espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que
poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas
(Antiguidades Judaicas III124 126)
As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o
linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez
que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o
carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)
Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade
cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo
(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este
simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute
como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de
toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais
166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO
que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo
siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo
feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais
excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador
de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de
[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre
Ecircxodo 1185)
Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que
separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um
palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas
quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao
114
dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este
veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo
sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos
transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal
como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E
satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e
inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis
(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)
A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu
(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da
cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram
vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos
elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra
azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina
tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3
Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo
Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi
descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O
veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a
invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de
como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem
do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os
elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa
compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da
vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da
realidade subjacente ao tempo237
Por Detraacutes do Veacuteu
Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar
onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era
237Cf Barker Margaret (1990) 104-107
115
eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz
lm
Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram
apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores
descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu
toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele
O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto
que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha
sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente
Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial
Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do
Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo
impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar
ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo
da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir
Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel
quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees
ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)
O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma
visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu
ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava
Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o
verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das
vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o
escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do
veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)
Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do
veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus
Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os
profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica
da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos
agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para
um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram
116
pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1
Henoque 873-4)
A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre
como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu
posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute
e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a
visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda
visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda
espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)
Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram
patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado
simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio
Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o
paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)
O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos
Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do
segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o
santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)
As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre
o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou
retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti
e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque
34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o
mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido
deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e
se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as
extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que
estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)
A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de
Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da
Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no
modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-
lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o
117
nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo
das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)
O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material
e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da
presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do
Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais
esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute
chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar
que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que
fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)
Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel
para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O
debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi
construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses
mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238
ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e
o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)
Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano
Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees
simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o
proacuteprio Jesus
No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais
iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos
celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus
misteacuteriosrdquo (lg 62)
O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do
veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o
imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da
cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido
por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos
falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por
traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe
238Cf Barker Margaret (1990) 127-128
118
Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que
ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro
Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem
semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)
O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros
lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o
nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah
12b)
A Grande Luz
ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo
proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai
a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)
ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute
privado do Todordquo (loacuteg 67)
No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas
como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na
criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se
oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de
Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de
Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute
vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta
expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa
para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre
os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os
disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza
com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente
239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram
por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo
vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que
morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo
119
O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz
do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo
deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como
expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave
figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria
criando iluminando e penetrando todas as coisas
Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm
a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave
sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia
Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor
da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua
bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em
Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num
movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga
o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo
regressa
Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que
atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma
imanecircncia divina no mundo e no homem
Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a
procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado
para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um
aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da
criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31
Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca
primordial o tempo antes do tempo
A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que
encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg
19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido
242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26
120
O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o
termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2
da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244
A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee
mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que
existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e
77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as
coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser
humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no
interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de
Deus (lg 3)
A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida
em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em
que este se situa e estaacute presente
Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo
judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser
concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute
Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com
siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo
Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes
pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino
podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no
Evangelho de Tomeacute
O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz
em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute
244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute
necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de
um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros
do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o
Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios
entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos
conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3
121
O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do
Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor
lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que
Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo
(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-
nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)
Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que
andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque
vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo
cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua
gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)
A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma
das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC
Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo
(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute
desoladordquo (Daniel917)
A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os
raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono
dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este
simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao
templo
A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel
veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou
com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada
para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do
Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora
quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para
iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)
Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os
meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e
evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente
nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute
248Cf Barker Margaret (1990) 148-150
122
diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes
detentoras do conhecimento
Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo
encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute
tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo
Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos
pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes
da religiatildeo do primeiro templo
O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os
profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das
visotildees dos profetas
Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No
Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como
emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse
Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo
haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1
A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no
livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249
Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia
grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo
apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees
generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)
A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica
abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro
249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o
pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeus e Parmeacutenides
123
diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash
que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252
Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que
descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus
declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o
vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e
61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da
condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo
ldquodivididardquo privada da imagem divina
Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11
e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial
anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo
As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam
bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253
252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem
Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo
Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70
Para traccedilarmos a exegese do Evangelho
de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo
presentes em Geacutenesis devemos procurar
ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a
hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo
dispostos de forma aleatoacuteria
No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele
que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o
poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes
(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute
recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo
(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco
a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram
atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os
governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos
como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com
a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg
4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete
diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia
da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer
(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo
um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente
concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e
relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha
com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos
como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo
humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando
Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser
124
Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a
luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda
a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz
manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que
fala na primeira pessoa com uma voz humana
Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em
simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por
todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute
uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o
protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254
A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de
modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A
atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do
espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso
divino no seacutetimo dia
Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus
atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende
aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se
encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior
254Cf Pagels E H (1999) 484
singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o
homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e
fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo
causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando
chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas
eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia
presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a
unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz
125
ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os
disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta
dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute
ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas
oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela
sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo
conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor
pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico
que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a
humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina
Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos
duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo
A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a
fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos
era bastante comum no seu tempo
A Imagem e a Luz
ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Lg 22
A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas
da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada
pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida
Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho
de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes
conceitos
Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma
experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu
sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo
Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um
corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser
255Cf Idem
126
humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns
pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original
arquetiacutepica
Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no
com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido
o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257
Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de
Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele
argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo
sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos
evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do
judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem
quanto suportareisrdquo259
O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado
primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a
existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da
pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um
objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser
humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento
divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia
afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino
Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois
Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem
celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem
criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da
Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11
Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam
256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158
127
ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo
natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou
com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim
do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job
1420)rdquo
De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre
Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu
mudei261
Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como
cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo
brilhante que ateacute superou o brilho do sol262
Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus
criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da
queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda
Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b
O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O
espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele
O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a
Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263
Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que
foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem
(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma
interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a
sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo
luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que
imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado
No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe
uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem
De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden
entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo
261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18
128
tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz
eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo
Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou
no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso
63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e
viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem
estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante
delardquo266
Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que
encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente
vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que
tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do
pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que
estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido
da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute
perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja
claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva
Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267
O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um
processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como
resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem
Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica
um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava
retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106
ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois
um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial
A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem
ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma
ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos
265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223
Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do
trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais
antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o
homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160
129
dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a
Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se
depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e
adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268
Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim
necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem
quanto suportareisrdquo270
ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser
digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271
Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute
Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as
imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo
num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo
manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272
O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo
relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)
numa imagem (imagem) para entrar no Reino
No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem
da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das
imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo
pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-
nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo
inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo
Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees
coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se
268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63
130
manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a
imagem dessa luz273
Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes
conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos
que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)
esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as
outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser
humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a
luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que
falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e
condenado a provar a morte274
O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa
imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84
menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas
beatitudes nas lg 18b e 19a
ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a
morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276
Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial
ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277
ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na
Cacircmara Nupcialrdquo278
A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de
Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e
retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo
subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de
Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que
273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63
275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75
131
interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da
lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas
proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta
do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)
Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que
ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus
responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que
borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha
boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-
lhe-atildeo reveladasrdquo280
Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as
palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara
Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)
estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute
designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo
representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104
e cada alma unir-se-agrave a ele
Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um
estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado
por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial
estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o
casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa
o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da
histoacuteria
Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem
simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o
jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o
final dos tempos
Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do
estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em
279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487
132
que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis
saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)
Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de
unidade
Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e
por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs
grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo
transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute
a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a
uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de
Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre
o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem
procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas
Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial
primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e
ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute
natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se
oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o
disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas
se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle
disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz
e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)
Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz
oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial
O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento
salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante
Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos
lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que
estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem
Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da
experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo
de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de
preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe
instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais
133
No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura
analisada e aos evangelhos sinoacuteticos
O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora
acessiacuteveis a todos os que as buscarem
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo
Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave
porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca
de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles
transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)
134
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho
carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo
interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo
entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo283
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284
ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que
vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam
como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que
estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim
consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu
Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo
Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da
imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na
presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em
fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos
pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda
Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a
carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila
para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285
283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162
135
Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon
sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu
uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou
consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os
raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que
gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex
227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex
240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos
luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de
Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo
Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma
ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente
meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas
ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas
de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo
Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de
nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos
ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao
redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o
queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo
Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus
hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal
Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104
Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o
olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo
traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo
causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo
acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de
fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do
sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio
286Cf Idem 106
136
ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode
recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a
imortalidade (αθανασίας) (104)
No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda
muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim
conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente
transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento
esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por
meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia
Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser
deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287
Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave
experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem
natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do
que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que
a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas
sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288
Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus
estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o
fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa
Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se
encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute
perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial
Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento
central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos
Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute
ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da
imagem da luz do Pai
Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz
da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na
presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus
ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder
287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108
137
transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores
estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila
judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam
esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus
O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma
de misticismo transformacional
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289
Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a
revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos
como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte
da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os
sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os
justos os santos e os escolhidosrdquo
Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos
santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os
segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria
ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila
pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a
injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291
Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147
em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles
estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras
tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem
recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do
conhecimentordquo292
Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no
lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293
289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81
138
A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a
aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave
linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo
em 4 Esdras 1438-41
ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a
beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida
estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi
e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a
minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a
minha boca foi aberta e jamais fechadardquo
Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire
conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para
descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca
eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do
fogo
Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a
condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84
explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras
palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si
mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe
eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294
A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar
fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino
Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes
tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me
intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa
ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se
natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296
294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93
139
As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia
comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que
emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si
mesmo297
Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano
no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298
Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da
existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos
conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima
intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem
do corpo no Evangelho de Tomeacute299
O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e
antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus
supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito
O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte
de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se
aprisionada no corpo humano
O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na
qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica
interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes
(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em
Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo
Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo
sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo
cultural heleacutenico
Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta
temaacutetica
A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente
com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que
encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma
297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54
140
compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e
enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento
Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg
568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)
O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento
afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida
Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e
ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na
exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de
contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute
ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo
(Lg 112)
ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que
depende destes doisrdquo (Lg 87)
O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne
sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)
ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos
alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os
nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos
que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do
corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo
Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de
escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e
Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma
Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que
ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira
afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo
seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute
ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301
Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como
uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia
300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59
141
resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria
entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da
filosofia greco-romana302
O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma
condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo
que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois
corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta
interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303
Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um
corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever
Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de
Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural
Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma
plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende
do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo
universal
A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um
indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do
asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias
restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior
Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a
descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do
mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas
lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma
compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo
experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores
sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si
mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de
Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo
pessoal
ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que
conheceram o Pai em verdade
302 Cf Idem 60 303 Cf Idem
142
Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o
tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)
Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos
inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a
vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente
Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304
O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento
preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-
se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos
ldquomovimentos de Jesusrdquo
Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o
homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo
apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de
perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe
que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados
De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que
encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e
reinaraacute sobre o Todordquo
Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando
sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais
notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus
existem na sua forma concreta como um texto escrito
A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo
por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete
repetidamente no seu significado
ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo
corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)
304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273
143
Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo
Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual
seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo
esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta
eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a
realidade fiacutesica em termos de origem307
Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o
homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de
vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29
corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que
o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave
animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a
prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que
atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a
lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310
Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos
eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase
em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e
guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social
(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo
autorizadas
6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no
evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido
na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos
307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus
iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas
espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita
existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que
explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo
de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era
144
gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de
gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria
Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia
gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo
interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode
salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de
Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312
O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro
autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia
gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo
eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia
Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o
conhecimento de Deus
Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas
disponiacuteveis em Nag Hammadi
ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu
a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313
ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde
e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo
o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso
O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de
onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da
sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314
A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser
humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua
realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino
considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a
sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo
contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos
estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo
religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 149
145
Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a
iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as
realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo
O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees
no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo
de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as
ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo
Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como
a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de
escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas
geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes
que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes
livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de
interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram
deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315
Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas
uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual
As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram
comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da
antiguidade
Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental
influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel
transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado
apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas
Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como
verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees
O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em
concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos
leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega
315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus
146
Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a
novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo
da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido
Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no
autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender
que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo
Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros
revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam
entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam
assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual
A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual
gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute
agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a
difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento
distintas
Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica
Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita
no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se
encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma
ortodoxia definida
Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a
experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior
de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e
adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro
de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras
sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes
Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que
surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros
contextos
Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o
gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo
signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se
assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem
147
Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo
se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316
seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que
possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da
experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta
temaacutetica317
O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas
doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais
abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual
do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo
apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e
como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma
questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma
exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com
revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender
As variedades da experiecircncia gnoacutestica
Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem
pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do
conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do
segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito
(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a
interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a
descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da
histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador
dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos
Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o
gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem
algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da
mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no
pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo
316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)
148
este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a
alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento
evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas
Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma
conotaccedilatildeo positiva318
O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este
adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e
operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o
conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo
Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que
alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de
Deus e das verdades superiores
O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter
trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade
de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como
ldquoa gnose que nos foi dadardquo321
Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os
acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes
uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica
definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada
chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322
Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios
fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro
lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -
falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir
que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia
perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de
Valentino e a sua escola
318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem
149
Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos
valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as
doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325
Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo
especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos
O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma
designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria
Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo
num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria
Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo
ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo
era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes
conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus
Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento
gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque
preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais
corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as
manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos
gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326
No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos
espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo
mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro
lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se
a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327
A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por
gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim
como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328
Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de
situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade
foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a
325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12
150
designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos
orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo
perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados
para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma
particular de viver a vida
Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas
respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana
Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo
para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo
Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os
gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu
tempo
Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees
entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica
Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos
sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico
geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses
conhecimentos esoteacutericos
Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e
espiritualmente conhecimentos superiores
O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos
primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas
escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era
comum
Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico
isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o
gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram
329Cf Idem
151
problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava
separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens
deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar
de libertaccedilatildeo
Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos
tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso
O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o
conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas
No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano
nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a
salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus
Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm
conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em
Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente
A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos
descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para
voltar ao estado da imagem divina no corpo humano
No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz
gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de
iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto
perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo
Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito
gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico
O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de
pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de
conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente
O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a
lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura
encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza
gnoacutestica do evangelho de Tomeacute
O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem
humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino
satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico
152
Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou
na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu
pensamento
ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou
Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos
onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o
que constitui um renascimento [real]rdquo
- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782
Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos
do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo
A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua
mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve
em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas
Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332
ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes
da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial
apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do
antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde
todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo
330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash
Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e
dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo
encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma
criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos
apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de
Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo
primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio
metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-
lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o
pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim
e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis
153
de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo
com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que
chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz
primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo
retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua
substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que
superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)
recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos
(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo
humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu
no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo
estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de
facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira
pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos
os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma
emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e
a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos
disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um
movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos
inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis
dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que
interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina
dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar
Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a
questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina
334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o
procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e
ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24
154
o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo
146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a
luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao
homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua
imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem
divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos
nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo
para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma
parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a
forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no
quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo
pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a
exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335
Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua
ideologia religiosa
7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute
Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336
Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica
sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do
evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente
considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias
diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de
natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico
descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases
fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute
A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute
e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e
metafiacutesica entre o ser humano e o divino
335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27
155
A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos
tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos
fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do
nosso pensamento
No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da
unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por
excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma
correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e
antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia
ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o
conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades
superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser
unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que
natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo
aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da
gnose338
O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de
Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da
experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade
antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade
metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339
Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da
perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo
reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os
fenoacutemenos da existecircncia
Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus
quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial
Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas
vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de
gnose
337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem
156
Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de
solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o
processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a
solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo
dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral
Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo
gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa
Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a
um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute
os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o
conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial
Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado
atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os
temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo
associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial
A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute
eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)
Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de
pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este
padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho
O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da
tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de
Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal
No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema
da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus
correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340
Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico
essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus
Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que
a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a
Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma
mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria
340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817
157
ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo
abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis
A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e
penetrardquo342
Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita
com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a
Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela
aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do
Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e
transcendentes
A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria
e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da
qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu
aspeto de Sabedoria343
Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo
miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas
O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante
agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes
faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata
obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes
tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga
eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano
Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute
esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da
racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores
ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a
imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344
342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817
158
Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no
coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do
seu interior
Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor
da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes
exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna
possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar
a sabedoria e o conhecimento de Deus
O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura
intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado
idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia
paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de
separaccedilatildeo entre o divino e o humano
Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a
humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria
humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo
deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento
religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai
eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante
deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu
papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o
sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e
do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel
e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo
Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no
pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento
Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute
de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de
Tomeacute
Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu
pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a
escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma
realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse
159
Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro
estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas
doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como
conclusatildeo
Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos
as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de
Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora
nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses
A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial
assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo
Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da
linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca
Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-
existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo
(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e
fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)
Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de
todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa
evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo
eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara
nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser
humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No
dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que
fareisrdquo347
A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos
disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348
345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18
160
Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento
de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo349
Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar
no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu
pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio
A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se
alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave
eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos
atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no
conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente
A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o
inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da
compreensatildeo
A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua
lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino
conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade
Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da
interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio
Jesus Vivente
Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo
da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do
corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como
intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um
conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que
inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento
Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que
inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo
Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da
leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave
consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos
349 Log 1
161
Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos
duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede
de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria
Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um
reino de luz primordial em que o ser humano era majestade
O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o
humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se
unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24
61)
Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve
os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo
Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a
imagem e a luz
Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo
menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente
Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da
cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro
estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando
analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto
do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido
Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai
receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo
tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350
A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos
seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica
Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram
revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua
imortalidade
A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria
assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar
mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo
350 Log 19
162
mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma
interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo
A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir
para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o
casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade
Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar
forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do
divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de
pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as
implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias
Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente
em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo
como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu
interior o disciacutepulo salva-se (log 70)
Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o
exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece
sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade
alinha-se em conformidade com essa luz primordial
No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como
ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de
Israel
Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de
Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia
ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do
templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria
Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo
miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas
realidades celestiais
Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o
momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica
Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a
uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a
unir-se com o divino
163
No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos
evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas
religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do
saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351
A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais
sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades
a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma
privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do
Reino
O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido
como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos
laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os
que conheceram o pai de verdaderdquo352
O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo
ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353
A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita
a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o
terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua
memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de
unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica
expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua
organizaccedilatildeo
Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no
coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)
Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda
reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do
mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo
que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma
351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59
164
meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo
visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai
A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no
Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os
elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados
em Tomeacute
Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se
encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades
interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo
Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo
o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial
O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio
concreto onde ela se localize
Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute
um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de
quem a aborda ela expande-se ou contrai-se
Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da
minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas
ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354
A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia
o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo
A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo
que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem
Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de
Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591
165
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos
nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara
e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e
entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no
Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios
O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na
divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a
distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo357
356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82
166
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358
A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de
experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos
miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel
contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos
que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma
como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o
divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia
interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo
comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num
desejo de transcendecircncia
8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute
A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada
sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia
dos vaacuterios resultados apresentados
Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma
hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos
entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns
na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da
existecircncia humana a sua origem e o seu destino final
Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo
metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do
secreto
A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da
tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo
358Cf Deconick D April (1996) 105
167
Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o
evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na
Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da
literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas
Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso
sapiencial da Sabedoria
Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do
Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute
O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por
parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a
forma como o mesmo mito era interpretado
O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para
as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden
Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de
gnoacutesticos
A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis
aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois
mundos que convergiam neste debate
O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do
adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo
mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo
mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu
mestre
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)
Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus
A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste
loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos
de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila
divina interpretada com o simbolismo do templo
Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o
santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas
Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a
se transfigurar na mesma
168
A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes
da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese
facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do
significado da cacircmara nupcial no evangelho
Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde
existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua
redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em
Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo
celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto
encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do
evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do
templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica
Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental
na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na
tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em
oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do
evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a
sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada
como base ideoloacutegica360
No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne
onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era
impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o
proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade
Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens
afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra
Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como
uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)
Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na
cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde
tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio
poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai
tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um
359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274
169
reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas
teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como
Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto
Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para
entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos
Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso
de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza
divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino
Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos
outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute
A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a
unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus
A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para
integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo
A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion
22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o
de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino
natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de
um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em
lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da
transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362
Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo
com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma
imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363
No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a
Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas
seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a
imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que
361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os
humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres
humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser
divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente
fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438
170
concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem
divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que
Cristo eacute
Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg
22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho
natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser
assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser
transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)
A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no
evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos
dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um
chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma
natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no
seio da luz (lg 11)
Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa
situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave
identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute
estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a
derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o
mestre
ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele
e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito
ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de
Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica
da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que
entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)
O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira
instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos
ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de
traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes
leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida
Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente
descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que
Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores
171
Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho
por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes
Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de
compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus
textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees
orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que
estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos
apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos
Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de
Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque
Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo
grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus
textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden
que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem
Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe
permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam
despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se
ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que
prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos
processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que
era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute
A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria
possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma
que estes leitores consideravam adequada
No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na
variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira
interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364
Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon
descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras
ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo
Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e
isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo
364 Cf Levison (1999) 38
172
Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o
propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da
atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65
ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou
impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio
do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das
profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem
o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo
Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento
as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente
humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar
conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo
O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates
Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)
O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave
inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366
Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)
reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo
a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates
era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do
espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates
corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom
profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados
inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes
como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo
(2187)367
De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria
iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter
recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra
elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins
365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46
173
ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria
alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este
pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute
realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a
soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo
misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua
soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da
soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas
destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher
27-29)
A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor
afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com
estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua
experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior
expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior
dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento
elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)
as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala
(Som 2252)368
Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis
onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas
revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que
afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia
sobre os detalhesrdquo (588C)
A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o
inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo
sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de
revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem
naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca
pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da
368Levison (1999) 50
174
verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares
de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das
vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos
antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion
Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia
de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do
filho da luz
175
Bibliografia
Fontes Primaacuterias
Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim
Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora
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Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos
1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e
grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas
o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees
Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das
paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas
a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias
indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas
James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press
O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos
Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20
3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em
etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim
In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507
Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto
de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem
documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de
interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC
nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem
em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos
tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os
pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o
symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram
eco nestes manuscritos
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo
A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute
relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
177
A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas
antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias
camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text
Verlag Algred Toperlmann
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW
Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento
importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar
onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em
termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo
simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por
exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute
Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316
ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas
ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association
Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais
associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute
Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press
Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco
Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do
cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos
e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute
Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New
York Tampt Clark
Outros autores judeus
Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se
fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no
evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia
178
Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os
significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas
associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que
Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao
longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo
corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha
responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa
Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet
Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing
Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra
judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho
no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do
elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos
fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute
Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das
Assembleacuteias de Deus
Textos Rabiacutenicos
Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo
literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que
permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o
interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos
eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei
oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos
A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo
releeituras das tradiccedilotildees anteriores
Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo
da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a
sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados
homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo
sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico
que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave
escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos
179
Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford
Midrashim
Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do
quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de
pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente
textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso
destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma
circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese
responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos
ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para
explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua
antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo
histoacuterico em discussatildeo
Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The
Soncino Press
Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma
exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o
capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado
TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London
Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da
Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que
tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma
complete no seacuteculo doze
TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London
Literatura de hekhalot
Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo
anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios
180
celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose
desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da
memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria
elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute
lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano
ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute
transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de
hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos
produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a
literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm
com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais
autoinduzidas
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5
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Resumo
O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido
literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao
seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e
significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees
foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias
e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao
desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental
nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees
qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos
sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo
as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de
Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica
do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de
Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir
da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura
de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo
antigo
Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico
figura de Jesus cristianismo primitivo
10
Abstract
The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have
been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its
reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings
to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a
research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of
the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development
of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to
answer the following questions what was the historical context of this gospel its social
space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message
and what are the specific characteristics of language and experience in the early
Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the
historical understanding of the development of the Christian mental space in the first
century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a
new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian
movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social
contexts and geographical spaces of the ancient world
Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of
Jesus primitive Christianity
11
Agradecimentos
Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como
misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute
Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A
sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu
intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu
sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave
minha tatildeo doce Virgem Maria
Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades
maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza
ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus
e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado
com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele
o guarde eternamente
Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a
iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e
imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o
uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os
exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo
racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela
vontade do Pairdquo
Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2
12
Iacutendice
Introduccedilatildeo 14
1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19
2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20
Literatura Profeacutetica 21
Literatura Sapiencial Judaica 21
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24
Uniatildeo Nupcial no Templo 24
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36
Os Manuscritos 37
A Liacutengua Original de Tomeacute 37
A Data de Tomeacute 38
A Origem do Evangelho de Tomeacute 39
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65
A Gloacuteria do Trono 69
O Templo 70
A Merkavaacute 72
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92
6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo
simboacutelico 95
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97
Eacuteden 100
13
O Grande Mar 102
A Fonte da Vida 106
Os Rios do Paraiacuteso 108
O Veacuteu 110
Por Detraacutes do Veacuteu 114
A Grande Luz 118
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122
A Imagem e a Luz 125
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138
7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143
As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150
8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154
9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166
Bibliografia 175
14
Introduccedilatildeo
ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10
O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar
a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona
os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside
nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos
alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico
para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute
Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos
por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses
evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado
Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o
simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico
Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave
hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia
cristologia e protologia apresentada por Tomeacute
Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente
interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees
simboacutelicas do texto
Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o
panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem
valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual
Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma
linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial
no Evangelho de Tomeacute
Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese
apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico
No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a
metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da
cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo
pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas
do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute
15
Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para
contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve
discussatildeo dos conceitos religiosos do documento
No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na
histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no
espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que
influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma
importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do
Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e
serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais
judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento
No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a
compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da
linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do
proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio
Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo
fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um
mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos
dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas
satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais
da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1
Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal
a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia
humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se
manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por
este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do
evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso
de presenccedila interior
Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as
temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia
religiosa do evangelho de Tomeacute
1 Lohuizen Wali Van (2011) 3
16
No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico
que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria
forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as
realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos
cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos
siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o
processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho
eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser
humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas
afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma
produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave
sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo
O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo
no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute
a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas
atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um
gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere
facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica
Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de
Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta
exegese
Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios
mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto
de Tomeacute
Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma
realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta
conclusatildeo
Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho
de Tomeacute
O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no
pensamento do judaiacutesmo de II Templo
Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao
ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a
17
compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento
judaico e no Evangelho de Tomeacute
Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e
aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do
seu contexto
Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do
Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste
texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco
O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva
dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem
teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos
enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de
Taciano e Livro de Tomeacute
Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda
na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo
cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro
O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da
doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta
opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios
reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador
Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de
Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de
Ahiqar e textos sapienciais de Qumran
Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo
substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino
da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio
posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca
Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a
caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento
filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute
18
Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no
periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de
interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute
Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de
Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a
versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute
recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As
obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo
completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc
As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana
assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e
devidamente identificadas nas passagens traduzidas
19
1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia
As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa
seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos
influenciaram a textualidade de Tomeacute
Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute
Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo
Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos
de Joatildeo e Filipe
Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando
historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito
O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes
tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute
A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia
Hebraica e na Literatura Sapiencial
Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns
dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos
posteriores
Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como
Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos
pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos
Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos
textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais
no Evangelho de Tomeacute
20
2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo
A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre
Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que
envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano
As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar
num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico
Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como
marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma
realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o
retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do
matrimoacutenimo com o divino
Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O
que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa
leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de
Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo
da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino
Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a
imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano
uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se
com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4
Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo
recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de
Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos
inserem-se neste mesmo padratildeo
Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria
Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado
ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que
se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano
2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem
21
Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num
evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido
no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor
nas vidas das geraccedilotildees subsequentes
A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-
humano no final da histoacuteria
Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios
da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai
o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos
Literatura Profeacutetica
Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns
profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute
direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo
intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em
Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino
do Norte6
O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma
uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica
da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos
preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel
para com o proacuteximo
Literatura Sapiencial Judaica
No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da
Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus
identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora
Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas
vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e
6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26
22
amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma
sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante
A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial
apresentada pela literatura sapiencial
Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do
casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido
Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora
Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos
Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da
crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de
cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela
A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela
Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo
antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos
Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo
com o homem
Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave
cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas
dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre
Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a
uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino
Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial
Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no
tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura
Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento
no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e
pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico
dos Cacircnticos
Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara
Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe
9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29
23
Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo
ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel
fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente
transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo
para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11
Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de
simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado
com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal
redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia
sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da
eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden
Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente
associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais
frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da
criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por
Cristo o novo Adatildeo
Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o
Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os
temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro
casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13
Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os
nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com
que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao
estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes
no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de
Tomeacute
11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem
24
Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o
significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia
destas tradiccedilotildees
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai
Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por
um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo
do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel
No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio
pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo
Uniatildeo Nupcial no Templo
Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo
nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica
Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai
eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de
Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se
relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos
do batismo e da eucaristia
Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo
lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto
nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo
O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado
Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo
Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo
Testamento
A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no
templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento
14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do
Sinai
25
miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos
do batismo e da eucaristia15
Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara
Nupcial
Os templos de vaacuterios povos antigos
consideravam o Templo especialmente o
Santo dos Santos como o lugar
simboacutelico que representava a Cacircmara
Nupcial
O Tabernaacuteculo e o Templo como uma
atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai
O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para
perpetuar a teofania do Monte Sinai entre
o povo de Israel
O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo
de simbolismo coacutesmico sendo
considerado um microcosmos que
representava o universo inteiro Tambeacutem
eacute relevante a ideia antiga do homem
como microcosmo e templo uma ideia
encontrada no Novo Testamento onde o
fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o
ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece
entre o humano e o divino
O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a
fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar
onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do
divino na terra
Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo
Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a
traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem
Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos
necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial
As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma
ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento
A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o
capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em
todas as ressonacircncias
15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56
26
O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura
personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se
a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)
Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte
feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina
Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica
O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo
da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos
tempos
Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria
encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo
A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)
ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo
Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca
ela se exalta diante do seu Poder
lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra
Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens
Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste
eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira
reinei sobre todos os povos e naccedilotildees
Junto de todos estes procurei onde pousar
e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo
Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico
da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma
ψυχὴν αὐτῆς)17
O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo
de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na
tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios
No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem
em Deus e a sua universalidade
Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo
Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a
palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde
17 Cf Villeneuve A (2016) 57
27
como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria
ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando
ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn
12)
O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica
que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19
Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central
do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e
terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma
reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu
O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna
que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo
e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22
A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave
coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23
Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as
mentes que estudam a virtuderdquo24
Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a
nuvem como uma ponte entre as duas esferas
A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua
identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a
paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de
sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas
caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25
Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens
primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo
A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo
18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na
referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl
987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19
28
O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o
termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a
escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo
(Gn 12)26
Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando
presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27
O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o
universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os
dois elementos do mar e da terra
Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar
especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo
Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo
dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos
de nota28
A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o
universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela
deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos
limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte
Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora
Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel
A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)
ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem
aquele que me criou armou a minha tenda e disse
lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo
Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio
e para sempre natildeo deixarei de existir
Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei
deste modo estabeleci-me em Siatildeo
e na cidade amada encontrei repouso
26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59
29
meu poder estaacute em Jerusaleacutem
Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria
no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo
Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o
ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens
Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da
sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de
Israel
No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que
habitasse em Israel
O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-
se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao
fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu
reino sobre a esfera espacial
ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo
(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu
processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo
Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)
ldquoCresci como o cedro do Liacutebano
Como o cipreste no monte Hermon
Cresci como a palmeira em Engadi
Como roseira em Jericoacute
Como formosa oliveira na planiacutecie
Cresci como plaacutetano
Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume
Como a mirra escolhida exalei bom odor
Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque
Como o vapor do incenso na Tenda
29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da
criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a
um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas
por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21
30
Estendi os meus ramos como o terebinto
Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila
Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos
E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo
A Sabedoria enraizou-se num povo honrado
A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra
de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos
Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva
localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos
Cacircnticos
No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o
palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)
associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413
A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do
rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)
Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se
trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute
associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30
A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)
tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a
noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)
Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no
Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica
O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)
Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)
As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios
satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)
A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora
Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden
30Cf Villeneuve A (2016) 63
31
O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)
ldquoVinde a mim todos os que me desejais
Fartai-vos de meus frutos
Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel
Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel
Os que me comem teratildeo ainda fome
Os que me bebem teratildeo ainda sede
Quem me obedece natildeo se envergonharaacute
Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo
Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete
sumptuoso para comerem os frutos que ela produz
Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o
vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu
vinho31
O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo
universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden
Monte Sinai e no Templo32
O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos
Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros
pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no
primeiro seacuteculo da era comum
As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que
datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do
fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu
amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de
Deus participante na sua imortalidade
31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73
32
ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)
Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o
Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal
verdadeiramente seraacute imortalrdquo
Ode de Salomatildeo 35-8
A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser
humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana
para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi
considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)
Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou
beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do
Espiacuterito Santo33
ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro
de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)
Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o
jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre
aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa
nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-
9)
Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como
sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos
escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de
aacuteguas vivas
As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura
mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste
contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo
Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel
procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo
Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34
33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279
33
Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute
Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder
a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute
Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados
e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns
elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e
posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver
O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho
de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo
textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico
reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute
Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio
unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de
um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si
Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira
encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados
(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem
hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que
eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que
se orerdquo
A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e
antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua
mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela
perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o
mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na
cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida
Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da
existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees
Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute
ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema
existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o
Reino dos Ceacuteus
34
Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma
identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser
fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho
o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e
responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo
natural do divino na consciecircncia)
O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em
termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz
A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das
palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte
Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano
espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua
boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos
melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos
revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando
colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto
Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e
o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos
canoacutenicos
Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos
canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o
retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar
em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada
E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso
O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus
Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos
do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo
entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz
e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios
Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque
para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo
interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por
este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial
35
No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada
um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico
Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na
eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo
duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de
comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o
disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica
eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus
Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do
misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo
menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval
A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou
divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre
dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de
duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos
sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais
simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo
A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso
trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na
experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves
manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de
misticismo mais tardias como a unio mystica
O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado
para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um
processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se
entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro
conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura
inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e
o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino
e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
36
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo35
A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a
explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica
no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo
completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo
de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra
nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem
Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com
profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que
acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor
3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute
O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo
Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra
O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua
reflexatildeo na audiecircncia que os escutava
A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa
investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode
ser interpretado legitimamente como tal36
A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos
gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel
defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute
Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe
Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito
No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de
Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -
ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo
Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o
Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto
35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43
37
O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do
cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de
Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente
heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias
Os Manuscritos
O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem
num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta
termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados
gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic
publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os
Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus
O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma
coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido
por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe
O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do
seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um
evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente
proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38
Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto
de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um
tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39
A Liacutengua Original de Tomeacute
A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta
onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo
do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria
dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41
38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by
Stevan
Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91
38
Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos
textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes
num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a
frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que
reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil
uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42
O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo
alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo
Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta
encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o
texto
Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos
manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a
liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em
manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de
Tomeacute
A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os
evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo
relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute
O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os
documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o
Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de
Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas
siriacuteacos43
Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de
manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem
originais siriacuteacos ou aramaicos
A Data de Tomeacute
41Cf Idem 91
42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97
39
Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa
complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser
datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito
onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo
em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta
e cinco dC
Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de
acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de
Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos
dC
Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave
confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71
O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus
ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos
de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila
para atestarmos esta dataccedilatildeo
A Origem do Evangelho de Tomeacute
Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute
A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito
Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em
Edessa
Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a
origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades
de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura
siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute
O nome Judas Tomeacute
44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria
40
Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo
aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute
Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma
particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo
eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo
geacutemeo de Jesus48
Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco
Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo
em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram
o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113
com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde
ocidental
O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria
da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5
Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em
siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49
O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo
encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego
aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um
apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50
Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido
provavelmente na Siacuteria
A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo
e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel
nalguma literatura maniqueiacutesta
Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos
As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca
48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10
41
ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os
vossos vestidos e os colocardes sob
os vossos peacuteshelliprdquo
Evangelho de Tomeacute 37b
As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes
nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as
Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma
literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande
Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se
na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de
ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)
O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que
Jesus disse a Judas Tomeacute
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute
Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma
problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o
seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo
do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de
radicalismo social51
Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um
misticismo unitivo ou um produto valentiano
No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada
escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das
lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios
termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees
O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a
sua teologia central
51Cf Gathercole Simon (2014) 144
ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto
que o manto da vergonha me foi
tiradordquo
Atos de Tomeacute 14
42
Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent
Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo
significativo agrave leitura de Tomeacute
A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da
linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior
ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53
Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto
pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a
ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente
seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1
Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do
judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade
tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras
continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em
Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia
Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes
divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas
da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem
No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros
disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para
lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo
A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte
onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel
desvelar novas realidades
Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente
na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos
tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as
instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai
A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21
vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o
como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)
52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145
43
O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg
57 76 96-99 133)
Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534
Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente
de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)
estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)
Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39
6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)
Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o
reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)
Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence
aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas
(lg 22 46)55
Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se
encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)
A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56
Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos
no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn
1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por
um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58
Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa
matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo
O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda
desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que
eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um
divisor (lg 72)
55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11
44
A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo
valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis
Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do
eleito
Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao
corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62
Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)
Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o
ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao
conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um
misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo
No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e
vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos
corpos
Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro
motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos
deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade
entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De
Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer
apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de
Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio
(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)
Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute
necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica
que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da
criaccedilatildeo65
O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada
acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute
repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute
62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148
45
O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que
proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para
cimardquo)
O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma
ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no
mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia
acrescentando ldquoespada e guerrardquo
Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual
os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg
110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo
O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o
reino se expande (lg 113)
O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo
contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro
Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu
maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma
posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)
Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla
dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem
fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)
Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma
oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute
A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute
encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como
ldquocarnerdquo (lg 28)
Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo
nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia
Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg
55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito
(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)
Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser
espiritual feminino (lg 105)
66Cf Idem 151
46
Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica
fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)
O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo
para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta
revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio
para escapar da morte
O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias
variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias
20 possuem um significado teoloacutegico68
Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As
referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado
defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees
psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo
do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70
A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no
Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais
como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de
ldquorepousordquo
Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg
59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)
A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica
assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute
O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das
tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado
Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento
religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia
de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos
comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este
evangelho
Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por
estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo
67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152
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oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo
a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou
juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original
que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre
deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes
encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino
Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para
Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens
materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72
Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou
forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua
linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas
com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde
Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de
ensinamento religioso fornecido por Tomeacute
4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo
O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua
composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o
misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar
quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal
heleniacutestico
A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar
iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso
Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do
sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno
do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito
assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo
O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas
mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo
71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)
48
Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os
Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o
Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as
elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da
Greacutecia claacutessica
Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os
nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas
cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma
profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com
a conquista islacircmica75
A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no
comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade
As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees
extensas incluindo franjas do deserto76
Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da
Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus
que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este
periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia
cultural persiste ateacute hoje
O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a
nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova
dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico
surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77
Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute
oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo
helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo
A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos
sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o
estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79
75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem
49
Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar
e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que
posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas
vezes esoteacutericas e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que
viaja com o viajante
De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste
meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma
revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual
Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e
traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do
Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como
eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas
religiosos deste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do
Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos
velhas crenccedilas e suposiccedilotildees
O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os
primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na
histoacuteria do livro ateacute Gutenberg
Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex
foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma
nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade
reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de
Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o
texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81
Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas
Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste
periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como
divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas
nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo
80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30
50
O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a
destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC
A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos
dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico
Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo
sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo
foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas
O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado
por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era
chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus
Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio
de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido
pela igreja dos primeiros seacuteculos
Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram
substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta
dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma
atitude miacutestica e interior da busca do divino
Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e
presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos
rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes
O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da
individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa
exegese interior
A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser
intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de
ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas
oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal
Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia
do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo
e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada
82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39
51
Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas
significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo
encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica
Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos
estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos
Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas
evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova
perspetiva sobre as tradiccedilotildees
A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original
natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria
original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado
ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a
narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo
O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da
histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os
evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute
O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes
documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as
comunidades tinham da figura de Jesus
Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando
recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu
kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria
Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus
num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de
ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do
impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam
relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e
ressurreiccedilatildeo
Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado
Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao
Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio
Eufrates
83Cf Patterson J S (2013) 10
52
A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos
que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser
completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84
Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo
comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se
encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute
parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham
Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates
Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na
grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a
norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura
literaacuteria antes do advento do cristianismo85
Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas
poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da
Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a
subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua
submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio
Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86
A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser
pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado
durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que
Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua
semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87
A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades
siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de
Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos
fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a
organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da
sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma
84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem
53
evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos
Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve
raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do
cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades
semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel
estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos
importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa
tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram
recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de
Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial
das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do
primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e
se misturaram90
Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria
ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos
primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura
intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo
de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto
oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas
feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial
do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros
ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de
quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os
pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo
Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um
entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da
tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida
88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42
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como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu
manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da
sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos
poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta
experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram
no ocidente no outro lado do Eufrates
Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de
convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores
Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a
ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e
as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo
presentes em Tomeacute
Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes
para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a
leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso
natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica
entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de
violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus
se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente
harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos
O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de
cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que
desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da
vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e
valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo
O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de
interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel
da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o
futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da
identidade cristatilde
A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se
claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um
95 Cf Patterson J S (2013) 25
55
martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no
qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus
Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado
dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como
dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa
para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma
experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar
verdadeiramente a vida de Jesus97
No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo
um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos
pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes
eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o
Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este
Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o
ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se
encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado
A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-
se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia
de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar
da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si
proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante
diferente
O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do
segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu
pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e
cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da
criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da
crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de
pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do
periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os
quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil
96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30
56
O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que
esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais
unificadores99
O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo
A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e
o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos
cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma
platoacutenica100
Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute
notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia
centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo
geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as
vivecircncias em ambos os contextos
Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo
assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo
sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102
A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas
de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo
Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta
apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de
sabedoria
A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em
concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento
platoacutenico103
98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15
57
A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de
voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha
corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute
O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades
de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica
Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a
Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto
interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da
Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105
Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se
estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas
judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros
dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que
prosperava nestas cidades107
Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse
filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia
entre Platatildeo e Geacutenesis
Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1
na textualidade de Tomeacute
Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas
helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era
masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado
unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres
voltariam (lg 22)109
Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia
platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa
mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma
104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278
58
centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano
mortal (lg 29)110
Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido
dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e
para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111
O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao
reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo
originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)
ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg
50)112
O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no
ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma
perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e
perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres
passageiros113
O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de
vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria
contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo
Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e
os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de
Jesus em Edessa114
A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o
autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a
identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz
divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida
freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115
ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo
110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37
59
ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na
filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas
correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti
proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima
agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta
interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma
no iacutentimo do ser humano
Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de
Deus
Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois
seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e
Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o
iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte
divina ele conhecia o divino116
Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo
ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino
dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem
consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo
grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender
como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele
possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117
Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este
entendimento acerca da mesma maacutexima
ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi
feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os
fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do
universordquo118
116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)
60
Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos
platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os
aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada
Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-
se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as
perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-
se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus
suacutebditos
ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez
mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute
ouvidos a ti mesmorsquordquo 119
Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a
manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico
mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos
noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se
retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o
mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute
contemplaccedilatildeo daquele que eacute
Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este
ldquocasco de courordquo122
Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro
eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do
corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para
superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos
dois primeiros seacuteculos
Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o
risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute
Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem
O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo
empregando os termos teacutecnicos do platonismo123
119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477
61
Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de
descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam
tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente
O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute
Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza
humana e o seu destino
O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do
pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute
ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o
corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124
Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os
estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia
aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo
era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os
nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo
tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de
ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no
platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma
A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor
antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por
que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era
miseraacutevel
O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo
morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um
corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo
Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E
esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute
123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus
ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the
universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation
to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies
(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material
bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)
62
Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do
mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo
A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o
disciacutepulo mais digno do que o mundo
A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no
pensamento platoacutenico126
O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo
A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese
apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a
investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um
montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho
judaico-cristatildeo127
Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo
apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de
Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde
(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos
judaico-cristatildeos
(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos
incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas
(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere
uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo
(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e
no cristianismo judaico
(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios
Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre
o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo
126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes
(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have
already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are
corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the
borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be
Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp
DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200
63
As seguintes passagens
(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV
963
(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145
(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad
Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3
(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514
Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da
Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute
a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada
Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de
Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute
Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos
estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute
O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do
nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras
de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado
como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128
Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto
porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9
(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo
ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)
Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c
7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio
Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo
Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho
Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o
judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos
128Cf Luomanen Petri (2012) 202
64
Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no
proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo
seacuteculo
A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e
duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e
quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo
Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma
cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos
Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma
exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso
A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra
aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o
repouso em Jesus
ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos
lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo
quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele
e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria
descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na
eternidaderdquo129
A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo
Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo
aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos
Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde
Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus
seguidores
Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma
voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter
dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho
dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus
129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322
65
ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-
me para a grande colina o Taborrdquo131
O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)
geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de
Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao
Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de
Jesus e a sua matildee verdadeira
ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132
Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente
nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma
teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute
5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute
- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e
ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas
Lg 24b
O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias
associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e
culturas
Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram
utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo
lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para
descreverem as suas experiecircncias133
Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas
experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou
lsquorevelaccedilatildeorsquo
A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como
visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma
131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2
66
viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas
preparaccedilotildees e rituais serem realizados
O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e
cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros
angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134
Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do
nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades
antigas para investigarmos a sua religiosidade
O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos
para denotar o fenoacutemeno cristatildeo
Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de
misticismo135
O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao
judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar
antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia
extaacutetica ou como praacutetica provocada
No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas
expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo
Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por
eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo
de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo
O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo
interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus
Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de
Tomeacute
Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque
pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um
texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute
presente no Judaiacutesmo do II Templo
A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato
da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria
do texto do Evangelho de Tomeacute136
134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7
67
O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios
ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica
Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros
trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica
Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos
formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do
templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a
realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees
As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na
literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria
na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da
Palestina de Yohanan ben Zakkai137
Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e
da especulaccedilatildeo hekhalot138
Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas
de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios
Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da
literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo
hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes
representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades
muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do
II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo
A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos
fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que
levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que
iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial
os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e
136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu
numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que
vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos
esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da
Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos
palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica
e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2
68
cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas
biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma
autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos
tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma
audiecircncia contemporacircnea
Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas
ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo
a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras
A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que
podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute
Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus
conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo
situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos
Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e
revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias
encobertas no interior das suas escrituras sagradas
Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia
Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica
A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta
tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10
40-48 Dn 7 e Is 6
Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura
produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos
A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e
na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos
Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de
temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da
evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em
textos de eacutepocas diferentes
139Cf De Conick A (2006) 7
69
Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta
as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute
associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140
A Gloacuteria do Trono
A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central
desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo
Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente
secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada
ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo
com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)
de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas
escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142
Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial
feito por dois querubins
No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute
apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos
Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias
histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute
sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos
O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite
brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo
assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta
veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado
Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras
cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co
44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus
que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-
140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8
70
23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do
templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144
O Templo
A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de
Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os
Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do
que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia
Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete
parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais
sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145
E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das
mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do
templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146
A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis
desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas
natildeo realizadas
As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da
criaccedilatildeo da humanidade
Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e
ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de
luz147
Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo
percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no
Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As
tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser
Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148
144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem
71
Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o
primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter
sido um reflexo da Kavod
Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico
Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do
que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de
encher todo o universo de um extremo ao outro150
ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]
pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel
b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o
despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro
lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse
Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a
oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151
Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do
pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos
cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave
transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos
conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da
ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e
tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de
forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152
Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da
morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente
Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os
Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as
epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades
envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no
momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na
149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21
72
liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias
ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153
Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais
antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute
15 19 37 50 59 83 84 108)
As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da
esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma
experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de
transfiguraccedilatildeo
Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os
ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees
de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de
uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no
trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154
A Merkavaacute
O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo
que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo
miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos
Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim
de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca
O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como
as fontes esoteacutericas mais tardias referem155
Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de
Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico
de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se
movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel
1014-15 com o querubim do Templo
153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30
73
Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave
presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-
se ao templo por outros meios156
A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel
encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe
mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma
ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25
Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em
duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio
de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos
Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus
identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser
vivente do profeta Ezequiel
A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus
o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o
universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-
se presente nesta literatura157
Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o
mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte
mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas
como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158
Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e
a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e
descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo
concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute
156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo
tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)
com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos
trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o
cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea
dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos
sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos
Santos
74
O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da
arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem
alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em
Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que
em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la
caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo
Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que
rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160
Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de
Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas
maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos
que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161
Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas
natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de
cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162
Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de
hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos
Cacircnticos do Sabbat163
Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e
recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era
necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos
que eram inscritos com os nomes secretos de Deus
As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o
templo e o cosmos eram estruturas opostas
As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo
a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para
o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande
santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas
planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e
da Sumeacuteria
160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170
163Cf Idem
75
Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo
era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem
quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F
Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com
a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos
praticantes de hekhalot
ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de
certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos
anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo
nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e
canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras
interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse
viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166
Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no
Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I
seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um
rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167
A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se
bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168
A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O
Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo
assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas
do caos no terceiro dia169
Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi
criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo
164Cf Idem 171
165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and
Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21
76
ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)
Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo
O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo
assim tu faraacutes o tabernaacuteculo
De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas
bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo
fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo
as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de
terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do
corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas
na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo
uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo
os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio
do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o
firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as
aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170
Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem
documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o
pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute
O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do
homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos
vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos
poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios
corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu
proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava
Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute
estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram
compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano
O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do
corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos
escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas
estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e
angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute
170Cf Midrash bereshit rabbati
77
frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome
divino171
Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o
miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na
presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se
entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem
Divina da Gloacuteria
O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o
autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo
este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica
No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com
este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na
atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o
puacuteblico a que se destinava
O Misticismo do Evangelho de Tomeacute
O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e
interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite
definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica
Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por
si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda
Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo
primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no
final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis
descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim
Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
(Lg18)
A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo
que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial
que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas
dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que
171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175
78
representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias
a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos
primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)
Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses
por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia
de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que
estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para
ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se
ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)
Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais
respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se
vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu
de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem
sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem
qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)
Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia
visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus
disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco
aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas
caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)
Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos
miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa
esta realidade no jardim do Eacuteden
Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma
crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas
crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino
Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o
exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e
o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja
feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo
e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no
Reinordquo (Lg 22)
79
Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as
vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um
tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco
No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os
disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te
revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos
envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como
as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo
temereisrdquo (Lg 37)
O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do
corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos
natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu
ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)
A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que
a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes
no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas
quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)
Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia
platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas
simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem
Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial
do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo
Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus
O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara
Nupcial
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37
ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos
Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos
vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os
espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo
80
Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que
apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais
1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver
o Filho de Deus sem ter medo
Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao
ceacuteu numa linguagem encratita172
Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora
comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo
baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321
Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de
peles e eles vestiram-nasrdquo
Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173
Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou
ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o
sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco
Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute
difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo
Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de
pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo
Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos
neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da
carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo
O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute
um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175
Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se
revestir destardquo176
Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9
que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas
E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra
172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem
81
E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim
E o Senhor renovou-me com a sua roupa
E me possuiu com a sua luz
E do alto me deu descanso imortal
E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos
E eu despi-me da escuridatildeo
E vesti a luz
E ateacute eu mesmo adquiri membros
Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento
E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito
E eu removi de mim as minhas vestes de pele
Porque a tua matildeo direita me ressuscitou
E fez com que a doenccedila passasse de mim177
Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um
ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de
libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus
Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica
Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de
pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo
A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus
anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou
selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando
vestida torna aceitaacutevel diante de Deus
Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo
com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal
No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de
Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o
ldquoselordquo no Nome178
Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-
se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo
ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E
eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo
177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126
82
Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e
transformado num anjo da face
ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele
[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para
ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181
Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram
uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA
nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do
corpordquo183
O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm
que ser despidas sem vergonha
O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis
Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e
Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os
olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha
Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que
ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se
sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos
O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito
especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que
o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu
ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma
criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era
controlado pelos impulsos sexuais184
A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual
deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-
caiacutedo ausente de vergonha
179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134
83
Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as
vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma
pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda
daacute outro elemento sobre o ser assexuado
ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o
interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num
soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando
fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de
um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como
sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo
Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que
era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a
idade adulta em primeiro lugar186
Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento
ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187
De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo
periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188
Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era
uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo
foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189
Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que
renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico
preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190
Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada
pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam
185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes
a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do
campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e
devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos
Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se
nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135
84
As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a
experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o
objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus
Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de
Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191
Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De
mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a
existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte
e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio
Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto
retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a
essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo
Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o
homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave
esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo
material
Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde
Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque
despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo
Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias
estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193
O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos
gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do
rosto de meu Deus para sempre194
Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas
ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar
o seu corpo
191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por
Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a
Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as
conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas
materiaisrdquo
192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10
85
O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu
nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia
visionaacuteria
No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque
que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes
celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195
O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico
Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-
escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra
sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho
de Filipe 1 34-35
ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo
Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo
total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta
forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho
transformando a sua alma
ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo
sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo
No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o
mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada
encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa
experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave
entidade divina que tinha visto
O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma
crenccedila antiga presente no mundo antigo196
195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42
86
Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua
experiecircncia religiosa
Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50
ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz
procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens
Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se
vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um
repousordquo
O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um
fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na
interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis
perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria
Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se
manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era
segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz
A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada
primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo
Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn
13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus
tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja
luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo
Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus
sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes
da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham
o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a
sua proacutepria luz198
Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes
da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da
imagem do Logos
197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66
87
A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus
explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse
sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo
De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz
primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis
O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se
aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos
seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos
Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos
anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como
os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl
82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um
de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn
127)rdquo
O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o
homem agrave imagem dos anjosrdquo
Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126
que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva
Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante
tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de
ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo
A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma
forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no
nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200
Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse
ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma
substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e
tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se
assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto
como a forma do invisiacutevelrdquo201
199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443
88
O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas
letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado
de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas
eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer
1141 Epiph Pan 34 47)
Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome
divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial
manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram
pronunciados agrave sua imagem202
O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de
Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo
ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a
luz do universo
No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de
lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno
de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos
o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo
Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma
realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo
alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior
Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do
Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem
trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto
estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-
me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo
(12827-30)
O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo
filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo
regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)
Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176
89
Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que
regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser
porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no
Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo
O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de
Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco
aacutervores
Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do
Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204
Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que
constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute
o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco
virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo
alcanccedila virtude e imortalidade
As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando
vestes de luz
E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor
Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram
Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal
E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna
Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra
imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver
nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores
como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da
ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso
Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes
com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o
autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo
domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205
204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83
90
Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do
paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da
imortalidade
Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim
comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma
aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito
de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica
de coisas legiacutetimasrdquo (198)206
As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a
alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do
pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e
corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves
virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas
leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda
adacircmica
E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute
existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma
com as virtudes paradisiacuteacas
O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque
vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada
ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os
eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis
novamenterdquo
No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e
manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16
ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai
contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios
(monachos)rdquo
O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este
ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com
a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos
206Idem 85
91
Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo
diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207
Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos
ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus
Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono
celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe
ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade
Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma
situaccedilatildeo num hino samaritano lemos
Ele Deus permanece para sempre
Ele existe ateacute a eternidade
De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio
Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como
Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208
Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes
se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser
angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina
Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto
angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz
aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo
Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute
paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar
uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden
Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e
inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e
adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus
e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo
ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado
angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na
natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte
207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718
92
Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59
Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica
encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a
manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o
miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o
A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem
cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este
encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser
alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo
desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria
ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o
vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo
(lg 83)
A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos
que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele
prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo
Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial
e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque
224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209
O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica
presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da
humanidade
Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir
por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo
209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a
93
relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido
no ventre de uma mulher
ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos
humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a
luz gera-se a si mesma
O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a
imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto
que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod
escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na
tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que
se revelava aos miacutesticos211
Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos
anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah
A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus
esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da
ldquoGrande Gloacuteriardquo
A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum
dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo
flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212
Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio
soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213
Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou
Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a
aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)
A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse
visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e
trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo
Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7
ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33
De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e
incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no
211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104
94
entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto
ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute
cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214
Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era
abrangida pela sua luz
Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte
verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma
alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo
pode ser percebida diretamente
Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg
83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute
oculta na sua proacutepria luz215
No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica
que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do
disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)
Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos
devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos
Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus
durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a
imortalidade
Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas
homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo
Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta
uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta
imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a
imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e
aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto
nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do
214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105
95
Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado
esquerdordquo (Hom306)216
Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute
paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma
experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como
diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria
luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu
interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um
corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve
ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o
conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre
as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino
5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no
seu mundo simboacutelico
Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara
Nupcial
Lg 75
Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas
ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em
Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia
visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o
conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto
A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o
maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente
levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta
Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de
Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um
fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem
216 Cf Maloney G A (1992) 191-192
96
O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de
Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e
cristatildeos numa fase emergente
As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as
encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de
Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar
Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a
natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo
Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a
sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o
peso e a grandeza desta memoacuteria
Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas
que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada
sem excessos ou divagaccedilotildees
Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas
uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial
Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a
investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as
mensagens contidas nos outros logia
A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos
do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico
A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do
Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden
O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do
percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado
nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial
Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos
que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas
Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam
as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos
Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus
criador e personagens com nomes hebraicos
Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas
questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos
97
Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que
antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de
Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental
As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave
obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao
Templo de Jerusaleacutem
O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do
Templo a niacutevel simboacutelico
O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era
transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram
os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes
conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo
deste processo revolucionaram as suas religiotildees
Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta
influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo
apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a
simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute
O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem
Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos
questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo
olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos
ciclos da vida
A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o
encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a
adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217
A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num
calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas
formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218
O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas
combinadas e sincronizadas
217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem
98
A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do
sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do
ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-
calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal
preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e
ciclo sacrificial221
A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais
complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute
traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito
memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222
Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do
Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento
simboacutelico da realidade do Templo
Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de
modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica
do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e
terrestre pelo serviccedilo sagrado223
O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do
Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos
escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se
Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e
reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa
Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo
fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo
ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos
ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a
redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade
centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224
219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio
vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de
cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6
99
Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da
inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-
se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de
tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do
calendaacuterio
A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo
canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do
Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria
viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e
Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque
Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos
anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada
dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou
sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua
marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que
descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos
sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos
soprar o shofar e prostrarem-se227
O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam
os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se
vivas
ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras
espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo
vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas
225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos
ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute
descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da
terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual
com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre
a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute
ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados
antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica
e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os
sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do
ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos
perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13
100
cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as
cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos
Santos (hellip)
As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das
maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da
cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas
com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo
vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta
dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-
todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228
Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o
cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos
separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O
espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de
uma realidade eterna
Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que
aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente
Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa
forma simboacutelica e narrativa229
Eacuteden
O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais
interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim
como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o
paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)
Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a
partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do
Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma
humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da
mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo
estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes
228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57
101
na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes
do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem
criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se
manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do
outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe
ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a
Origem do Mundo)230
A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute
a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao
Eacuteden
Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai
Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria
Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila
do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico
Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais
antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos
aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231
Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo
como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo
gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito
da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico
neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos
gnoacutesticos
Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos
constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram
Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que
tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram
Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o
significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem
deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)
230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103
102
O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser
considerado bom como o Eacuteden inicial
O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter
especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo
havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo
poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual
O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas
sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da
textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o
sentimento hebreu para com o Eacuteden
ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim
Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o
iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e
natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)
ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa
expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai
estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)
O Grande Mar
A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os
israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era
apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma
descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido
O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar
do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente
considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo
unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da
montanha coacutesmica
O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o
firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze
enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da
largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente
representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio
103
era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair
que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos
Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita
para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232
Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o
mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o
maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b
Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio
Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem
afirmou que o paacutetio exterior representava o mar
Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e
entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos
Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos
Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos
homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)
Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo
associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel
que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon
de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior
O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade
estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo
2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece
entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do
criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees
que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os
mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)
sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu
povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve
o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)
mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema
natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da
criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste
232Citado em Barker Margaret (1990) 61
104
para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo
(Ecircxodo1517)
Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento
hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo
do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo
a partir dos mares primitivos
Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos
primordial233
O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das
visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel
de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de
entronizaccedilatildeo
Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas
surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram
autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)
Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus
antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e
derrotado (Isaiacuteas 519)
O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em
tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo
nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4
Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na
qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da
montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor
O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui
aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se
encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono
celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute
que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao
redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)
Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do
Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)
233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522
105
ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado
com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu
nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse
152)
O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o
firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo
O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o
jardim de Deus no livro de Ezequiel
Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal
do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim
seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em
mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo
material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre
necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia
O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era
frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado
Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha
sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em
que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro
Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa
(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o
poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234
Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas
explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade
disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo
quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)
Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua
vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do
Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no
Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava
simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira
como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo
234Cf Barker Margaret (1990) 61-69
106
De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios
querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e
uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo
Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do
templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo
numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras
(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel
4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-
12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em
outras partes da Biacuteblia Hebraica
A Fonte da Vida
Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz
Salmo 367-9
Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e
ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a
construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde
e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se
sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes
cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos
varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de
ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que
tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material
lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em
todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista
o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes
recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus
poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era
235Cf Ginzberg Louis (2003) 162
107
devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o
santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua
ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo
em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o
mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o
mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado
para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao
ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no
segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que
estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o
mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia
no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como
alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O
candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua
criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o
Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no
quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No
sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o
seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante
de seu Senhor e criadorrdquo236
A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo
VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado
em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes
colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para
o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor
dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)
Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da
fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade
ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem
prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)
236Cf Ginzberg Louis (2003) 150
108
Os Rios do Paraiacuteso
Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em
quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas
vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre
associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo
O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do
Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a
um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos
Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica
no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias
semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na
montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele
que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute
um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em
majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas
visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a
fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da
sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo
no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro
de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo
isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da
porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e
tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores
cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para
eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da
fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade
com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta
oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda
do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica
a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem
metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no
veratildeo como no inverno
109
E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome
um (Zacarias 148-9)
O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os
Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu
cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam
No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de
Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a
aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas
da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)
Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos
paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio
No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos
Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando
ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da
festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a
mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de
aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber
(Joatildeo 737 -9)
O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios
serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a
simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era
quase sinoacutenimo do Espiacuterito
Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham
adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de
Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis
12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria
foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)
Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a
com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele
(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de
especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum
onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)
A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e
como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o
110
Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a
luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)
Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea
para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e
como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o
meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar
(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios
do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque
confirmam esta associaccedilatildeo
Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono
Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada
completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho
do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante
ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque
dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem
de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele
(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor
descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e
vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)
O Veacuteu
ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos
dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a
esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram
reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser
tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]
antes do templo sagradordquo
Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)
Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono
dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo
que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas
Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da
experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido
111
uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como
saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido
As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente
tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu
representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as
vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava
Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da
encarnaccedilatildeo
O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o
lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo
visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade
As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como
parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos
e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia
do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo
Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado
Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos
dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos
alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do
templo
O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8
mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de
puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)
Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da
mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido
Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1
ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado
Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se
havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-
sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o
comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o
primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia
entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de
duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de
112
modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi
colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado
norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua
esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas
grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de
espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia
vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de
vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em
cada ano (Mishnah Shekalim 85)
Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e
sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila
forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para
a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este
veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de
Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias
descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia
haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada
por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)
Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade
viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus
despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que
a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde
um rabino do segundo seacuteculo a viu
Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose
Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas
satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)
No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado
ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica
com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma
habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico
tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da
terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo
113
Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma
que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama
dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)
Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual
Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave
sabedoria do templo ou era algo antigo
A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi
coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim
foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada
espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que
poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas
(Antiguidades Judaicas III124 126)
As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o
linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez
que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o
carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)
Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade
cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo
(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este
simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute
como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de
toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais
166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO
que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo
siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo
feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais
excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador
de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de
[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre
Ecircxodo 1185)
Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que
separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um
palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas
quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao
114
dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este
veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo
sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos
transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal
como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E
satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e
inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis
(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)
A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu
(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da
cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram
vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos
elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra
azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina
tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3
Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo
Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi
descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O
veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a
invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de
como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem
do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os
elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa
compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da
vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da
realidade subjacente ao tempo237
Por Detraacutes do Veacuteu
Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar
onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era
237Cf Barker Margaret (1990) 104-107
115
eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz
lm
Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram
apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores
descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu
toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele
O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto
que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha
sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente
Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial
Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do
Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo
impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar
ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo
da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir
Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel
quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees
ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)
O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma
visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu
ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava
Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o
verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das
vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o
escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do
veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)
Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do
veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus
Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os
profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica
da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos
agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para
um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram
116
pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1
Henoque 873-4)
A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre
como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu
posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute
e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a
visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda
visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda
espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)
Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram
patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado
simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio
Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o
paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)
O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos
Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do
segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o
santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)
As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre
o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou
retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti
e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque
34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o
mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido
deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e
se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as
extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que
estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)
A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de
Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da
Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no
modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-
lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o
117
nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo
das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)
O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material
e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da
presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do
Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais
esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute
chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar
que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que
fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)
Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel
para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O
debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi
construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses
mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238
ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e
o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)
Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano
Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees
simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o
proacuteprio Jesus
No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais
iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos
celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus
misteacuteriosrdquo (lg 62)
O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do
veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o
imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da
cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido
por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos
falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por
traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe
238Cf Barker Margaret (1990) 127-128
118
Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que
ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro
Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem
semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)
O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros
lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o
nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah
12b)
A Grande Luz
ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo
proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai
a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)
ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute
privado do Todordquo (loacuteg 67)
No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas
como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na
criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se
oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de
Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de
Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute
vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta
expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa
para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre
os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os
disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza
com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente
239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram
por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo
vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que
morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo
119
O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz
do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo
deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como
expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave
figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria
criando iluminando e penetrando todas as coisas
Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm
a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave
sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia
Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor
da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua
bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em
Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num
movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga
o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo
regressa
Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que
atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma
imanecircncia divina no mundo e no homem
Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a
procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado
para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um
aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da
criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31
Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca
primordial o tempo antes do tempo
A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que
encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg
19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido
242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26
120
O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o
termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2
da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244
A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee
mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que
existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e
77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as
coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser
humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no
interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de
Deus (lg 3)
A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida
em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em
que este se situa e estaacute presente
Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo
judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser
concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute
Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com
siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo
Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes
pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino
podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no
Evangelho de Tomeacute
O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz
em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute
244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute
necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de
um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o
Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros
do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o
Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios
entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos
conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3
121
O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do
Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor
lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que
Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo
(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-
nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)
Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que
andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque
vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo
cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua
gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)
A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma
das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC
Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo
(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute
desoladordquo (Daniel917)
A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os
raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono
dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este
simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao
templo
A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel
veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou
com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada
para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do
Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora
quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para
iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)
Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os
meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e
evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente
nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute
248Cf Barker Margaret (1990) 148-150
122
diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes
detentoras do conhecimento
Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo
encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute
tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo
Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos
pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes
da religiatildeo do primeiro templo
O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os
profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das
visotildees dos profetas
Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No
Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como
emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse
Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo
haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)
A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1
A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no
livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249
Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia
grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo
apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees
generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)
A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica
abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro
249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o
pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeus e Parmeacutenides
123
diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash
que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252
Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que
descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus
declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o
vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e
61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da
condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo
ldquodivididardquo privada da imagem divina
Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11
e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial
anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo
As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam
bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253
252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem
Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo
Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70
Para traccedilarmos a exegese do Evangelho
de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo
presentes em Geacutenesis devemos procurar
ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a
hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo
dispostos de forma aleatoacuteria
No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele
que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o
poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes
(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute
recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo
(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco
a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram
atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os
governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos
como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com
a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg
4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete
diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia
da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer
(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo
um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente
concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e
relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha
com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos
como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo
humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando
Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser
124
Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a
luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda
a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz
manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que
fala na primeira pessoa com uma voz humana
Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em
simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por
todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute
uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o
protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254
A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de
modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A
atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do
espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso
divino no seacutetimo dia
Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus
atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende
aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se
encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior
254Cf Pagels E H (1999) 484
singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o
homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e
fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo
causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando
chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas
eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia
presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a
unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz
125
ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os
disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta
dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute
ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas
oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela
sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo
conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor
pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico
que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a
humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina
Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos
duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo
A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a
fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos
era bastante comum no seu tempo
A Imagem e a Luz
ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
Lg 22
A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas
da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada
pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida
Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho
de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes
conceitos
Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma
experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu
sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo
Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um
corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser
255Cf Idem
126
humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns
pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original
arquetiacutepica
Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no
com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido
o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257
Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de
Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele
argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo
sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos
evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do
judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem
quanto suportareisrdquo259
O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado
primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a
existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da
pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um
objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser
humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento
divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia
afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino
Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois
Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo
De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem
celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem
criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da
Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11
Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam
256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158
127
ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo
natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou
com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim
do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job
1420)rdquo
De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre
Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu
mudei261
Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como
cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo
brilhante que ateacute superou o brilho do sol262
Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus
criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da
queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda
Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b
O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O
espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele
O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a
Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263
Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que
foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem
(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma
interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a
sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo
luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que
imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado
No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe
uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem
De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden
entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo
261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18
128
tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz
eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo
Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou
no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso
63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e
viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem
estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante
delardquo266
Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que
encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente
vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que
tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do
pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que
estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido
da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute
perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja
claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva
Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267
O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um
processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como
resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem
Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica
um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava
retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106
ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois
um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial
A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem
ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma
ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos
265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223
Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do
trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais
antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o
homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160
129
dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a
Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se
depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e
adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268
Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim
necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes
ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269
ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as
vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem
quanto suportareisrdquo270
ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser
digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271
Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute
Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as
imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo
num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo
manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272
O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo
relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)
numa imagem (imagem) para entrar no Reino
No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem
da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das
imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo
pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-
nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo
inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo
Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees
coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se
268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63
130
manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a
imagem dessa luz273
Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes
conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos
que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)
esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as
outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser
humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a
luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que
falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e
condenado a provar a morte274
O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa
imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84
menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas
beatitudes nas lg 18b e 19a
ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a
morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276
Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino
Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial
ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277
ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na
Cacircmara Nupcialrdquo278
A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de
Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e
retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo
subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de
Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que
273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63
275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75
131
interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da
lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas
proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta
do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)
Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que
ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus
responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que
borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha
boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-
lhe-atildeo reveladasrdquo280
Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as
palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara
Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)
estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute
designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo
representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104
e cada alma unir-se-agrave a ele
Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num
processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um
estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado
por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial
estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o
casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa
o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da
histoacuteria
Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem
simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o
jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o
final dos tempos
Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do
estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em
279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487
132
que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis
saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)
Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de
unidade
Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e
por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs
grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo
transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute
a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a
uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de
Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre
o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem
procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas
Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial
primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e
ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute
natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se
oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o
disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas
se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle
disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz
e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)
Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz
oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial
O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento
salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante
Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos
lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que
estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem
Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da
experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo
de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de
preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe
instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais
133
No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura
analisada e aos evangelhos sinoacuteticos
O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora
acessiacuteveis a todos os que as buscarem
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo
Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave
porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca
de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles
transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)
134
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho
carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo
interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo
entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo283
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284
ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que
vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam
como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que
estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim
consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu
Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo
Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da
imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na
presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em
fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos
pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda
Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a
carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila
para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285
283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162
135
Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon
sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu
uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou
consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os
raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que
gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex
227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex
240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos
luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de
Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo
Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma
ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente
meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas
ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas
de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo
Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de
nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos
ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao
redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o
queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo
Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus
hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal
Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104
Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o
olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo
traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo
causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo
acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de
fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do
sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio
286Cf Idem 106
136
ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode
recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a
imortalidade (αθανασίας) (104)
No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda
muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim
conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente
transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento
esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por
meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia
Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser
deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287
Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave
experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem
natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do
que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que
a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas
sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288
Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus
estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o
fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa
Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se
encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute
perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial
Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento
central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos
Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute
ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da
imagem da luz do Pai
Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz
da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na
presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus
ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder
287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108
137
transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores
estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila
judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam
esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus
O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma
de misticismo transformacional
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289
Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a
revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos
como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte
da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os
sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os
justos os santos e os escolhidosrdquo
Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos
santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os
segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria
ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila
pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a
injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291
Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147
em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles
estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras
tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem
recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do
conhecimentordquo292
Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no
lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293
289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81
138
A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a
aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave
linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo
em 4 Esdras 1438-41
ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a
beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida
estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi
e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a
minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a
minha boca foi aberta e jamais fechadardquo
Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire
conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para
descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca
eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do
fogo
Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a
condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84
explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras
palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si
mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe
eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294
A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar
fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino
Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes
tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me
intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295
Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa
ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se
natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296
294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93
139
As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia
comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que
emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si
mesmo297
Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano
no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298
Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da
existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos
conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima
intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem
do corpo no Evangelho de Tomeacute299
O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e
antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus
supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito
O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte
de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se
aprisionada no corpo humano
O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na
qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica
interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes
(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em
Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo
Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo
sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo
cultural heleacutenico
Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta
temaacutetica
A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente
com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que
encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma
297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54
140
compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e
enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento
Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg
568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)
O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento
afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida
Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e
ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na
exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de
contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute
ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo
(Lg 112)
ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que
depende destes doisrdquo (Lg 87)
O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne
sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)
ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos
alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os
nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos
que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do
corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo
Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de
escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e
Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma
Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que
ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira
afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo
seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute
ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301
Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como
uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia
300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59
141
resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria
entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da
filosofia greco-romana302
O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma
condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo
que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois
corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta
interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303
Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um
corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever
Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de
Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural
Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma
plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende
do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo
universal
A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um
indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do
asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias
restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior
Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a
descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do
mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas
lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma
compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo
experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores
sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si
mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de
Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo
pessoal
ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que
conheceram o Pai em verdade
302 Cf Idem 60 303 Cf Idem
142
Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o
tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)
Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos
inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a
vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente
Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304
O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento
preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-
se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos
ldquomovimentos de Jesusrdquo
Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o
homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo
apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de
perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe
que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados
De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que
encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e
reinaraacute sobre o Todordquo
Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando
sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais
notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus
existem na sua forma concreta como um texto escrito
A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo
por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete
repetidamente no seu significado
ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo
corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta
grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)
304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273
143
Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo
Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual
seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo
esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta
eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a
realidade fiacutesica em termos de origem307
Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o
homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de
vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29
corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que
o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave
animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a
prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que
atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a
lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310
Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos
eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase
em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e
guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social
(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo
autorizadas
6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no
evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido
na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos
307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus
iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas
espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita
existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que
explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo
de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era
144
gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de
gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria
Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia
gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo
interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode
salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de
Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312
O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro
autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia
gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo
eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia
Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o
conhecimento de Deus
Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas
disponiacuteveis em Nag Hammadi
ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu
a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313
ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde
e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo
o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso
O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de
onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da
sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314
A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser
humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua
realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino
considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a
sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo
contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos
estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo
religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos
(2005) 149
145
Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a
iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as
realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo
O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees
no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo
de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as
ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo
Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como
a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de
escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas
geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes
que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes
livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas
A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de
interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram
deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315
Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas
uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual
As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram
comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da
antiguidade
Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental
influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel
transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico
A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado
apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas
Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como
verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees
O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em
concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos
leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega
315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus
146
Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a
novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo
da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido
Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no
autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender
que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo
Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros
revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam
entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam
assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual
A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual
gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute
agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a
difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento
distintas
Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica
Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita
no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se
encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma
ortodoxia definida
Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a
experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior
de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e
adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro
de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras
sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes
Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que
surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros
contextos
Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o
gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo
signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se
assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem
147
Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo
se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316
seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que
possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da
experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta
temaacutetica317
O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas
doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais
abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual
do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo
apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e
como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma
questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma
exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com
revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender
As variedades da experiecircncia gnoacutestica
Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem
pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do
conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do
segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito
(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a
interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a
descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da
histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador
dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos
Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o
gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem
algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da
mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no
pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo
316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)
148
este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a
alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento
evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas
Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma
conotaccedilatildeo positiva318
O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este
adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e
operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o
conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo
Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que
alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de
Deus e das verdades superiores
O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter
trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade
de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como
ldquoa gnose que nos foi dadardquo321
Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os
acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes
uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica
definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada
chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322
Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios
fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro
lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -
falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir
que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia
perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de
Valentino e a sua escola
318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem
149
Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos
valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as
doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325
Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo
especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos
O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma
designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria
Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo
num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria
Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo
ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo
era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes
conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus
Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento
gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque
preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais
corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as
manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos
gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326
No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos
espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo
mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro
lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se
a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327
A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por
gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim
como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328
Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de
situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade
foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a
325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12
150
designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos
orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329
O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico
Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo
perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados
para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma
particular de viver a vida
Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas
respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana
Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo
para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo
Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os
gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu
tempo
Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees
entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica
Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos
sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico
geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses
conhecimentos esoteacutericos
Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e
espiritualmente conhecimentos superiores
O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos
primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas
escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era
comum
Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico
isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o
gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram
329Cf Idem
151
problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava
separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens
deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar
de libertaccedilatildeo
Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos
tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso
O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o
conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas
No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano
nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a
salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus
Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm
conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em
Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente
A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos
descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para
voltar ao estado da imagem divina no corpo humano
No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz
gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de
iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto
perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo
Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito
gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico
O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de
pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de
conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente
O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a
lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura
encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza
gnoacutestica do evangelho de Tomeacute
O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem
humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino
satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico
152
Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou
na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu
pensamento
ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou
Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos
onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o
que constitui um renascimento [real]rdquo
- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782
Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos
do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo
A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua
mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve
em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3
A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas
Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332
ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes
da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial
apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do
antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde
todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo
330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash
Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e
dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo
encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma
criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos
apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de
Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo
primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio
metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-
lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o
pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim
e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis
153
de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo
com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que
chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz
primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo
retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua
substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que
superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)
recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos
(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo
humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu
no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo
estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de
facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira
pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50
que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma
Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma
emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a
falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos
os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma
emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e
a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos
disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um
movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos
inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis
dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que
interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina
dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar
Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a
questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina
334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o
procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e
ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24
154
o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo
146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a
luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao
homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua
imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem
divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos
nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo
para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma
parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a
forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no
quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo
pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a
exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335
Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua
ideologia religiosa
7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute
Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336
Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica
sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do
evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente
considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias
diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de
natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico
descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases
fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute
A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute
e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e
metafiacutesica entre o ser humano e o divino
335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27
155
A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos
tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos
fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do
nosso pensamento
No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da
unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por
excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma
correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e
antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia
ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o
conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades
superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser
unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que
natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo
aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da
gnose338
O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de
Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da
experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade
antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade
metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339
Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da
perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo
reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os
fenoacutemenos da existecircncia
Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus
quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial
Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas
vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de
gnose
337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem
156
Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de
solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o
processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a
solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo
dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral
Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo
gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa
Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a
um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute
os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o
conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial
Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado
atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os
temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo
associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial
A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute
eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)
Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de
pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este
padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho
O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da
tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de
Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal
No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema
da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus
correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340
Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico
essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus
Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que
a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a
Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma
mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria
340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817
157
ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo
abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis
A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e
penetrardquo342
Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita
com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a
Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela
aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do
Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e
transcendentes
A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria
e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da
qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu
aspeto de Sabedoria343
Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo
miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas
O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante
agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes
faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata
obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes
tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga
eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano
Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute
esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da
racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores
ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a
imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344
342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817
158
Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no
coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do
seu interior
Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor
da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes
exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna
possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar
a sabedoria e o conhecimento de Deus
O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura
intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado
idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia
paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de
separaccedilatildeo entre o divino e o humano
Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a
humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria
humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo
deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento
religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai
eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante
deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu
papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o
sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e
do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel
e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo
Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no
pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento
Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute
de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de
Tomeacute
Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu
pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a
escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma
realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse
159
Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro
estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas
doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como
conclusatildeo
Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos
as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de
Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora
nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses
A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial
assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo
Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da
linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca
Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-
existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo
(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e
fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)
Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de
todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa
evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo
eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara
nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser
humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No
dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que
fareisrdquo347
A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos
disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o
comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que
se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348
345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18
160
Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento
de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo
saborearaacute a morterdquo349
Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar
no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu
pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio
A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se
alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave
eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos
atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no
conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente
A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o
inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da
compreensatildeo
A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua
lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino
conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade
Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da
interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio
Jesus Vivente
Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo
da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do
corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como
intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um
conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que
inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento
Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que
inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo
Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da
leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave
consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos
349 Log 1
161
Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos
duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede
de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria
Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um
reino de luz primordial em que o ser humano era majestade
O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o
humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se
unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24
61)
Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve
os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo
Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a
imagem e a luz
Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo
menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente
Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da
cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro
estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando
analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto
do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido
Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai
receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo
tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350
A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos
seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica
Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram
revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua
imortalidade
A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria
assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar
mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo
350 Log 19
162
mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma
interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo
A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir
para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o
casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade
Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar
forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do
divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de
pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as
implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias
Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente
em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo
como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu
interior o disciacutepulo salva-se (log 70)
Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o
exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece
sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade
alinha-se em conformidade com essa luz primordial
No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como
ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de
Israel
Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de
Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia
ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do
templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria
Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo
miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas
realidades celestiais
Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o
momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica
Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a
uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a
unir-se com o divino
163
No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos
evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas
religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do
saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351
A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais
sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades
a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma
privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do
Reino
O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido
como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos
laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os
que conheceram o pai de verdaderdquo352
O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo
ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus
ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e
procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353
A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita
a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o
terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua
memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de
unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica
expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua
organizaccedilatildeo
Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no
coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)
Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda
reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do
mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo
que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma
351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59
164
meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo
visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai
A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no
Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os
elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados
em Tomeacute
Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se
encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades
interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo
Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo
o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial
O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio
concreto onde ela se localize
Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute
um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de
quem a aborda ela expande-se ou contrai-se
Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da
minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas
ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354
A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia
o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo
A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo
que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem
Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de
Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355
Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de
deificaccedilatildeo
No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem
fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os
homens natildeo o veem (lg 113)
354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591
165
O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto
gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano
Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no
interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que
borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus
e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos
nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara
e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e
entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no
Jesus Vivente sendo seres repletos de luz
Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo
hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direccedilatildeo
O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a
Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas
imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo
destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes
quatro reflexos ou metaacuteforas
Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua
luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas
A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute
pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios
O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na
divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a
distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)
ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe
de mim estaacute longe do Reinordquo357
356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a
estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82
166
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo
miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico
encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358
A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de
experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos
miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel
contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos
que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma
como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o
divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia
interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo
comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num
desejo de transcendecircncia
8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute
A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada
sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia
dos vaacuterios resultados apresentados
Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma
hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos
entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns
na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da
existecircncia humana a sua origem e o seu destino final
Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo
metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do
secreto
A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da
tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo
358Cf Deconick D April (1996) 105
167
Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o
evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na
Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da
literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas
Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso
sapiencial da Sabedoria
Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do
Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute
O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por
parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a
forma como o mesmo mito era interpretado
O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para
as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden
Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de
gnoacutesticos
A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis
aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois
mundos que convergiam neste debate
O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do
adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo
mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo
mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu
mestre
ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)
Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus
A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste
loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos
de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila
divina interpretada com o simbolismo do templo
Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o
santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas
Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a
se transfigurar na mesma
168
A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes
da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese
facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do
significado da cacircmara nupcial no evangelho
Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde
existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua
redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em
Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo
celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto
encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do
evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do
templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica
Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental
na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na
tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em
oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do
evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a
sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada
como base ideoloacutegica360
No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne
onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era
impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o
proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade
Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens
afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra
Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como
uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)
Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na
cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde
tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio
poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai
tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um
359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274
169
reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas
teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como
Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto
Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para
entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos
Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso
de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza
divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino
Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos
outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute
A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a
unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus
A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para
integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo
A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion
22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o
de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino
natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de
um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em
lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo
A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da
transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362
Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo
com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma
imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363
No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a
Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas
seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a
imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que
361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os
humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres
humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser
divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente
fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438
170
concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem
divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que
Cristo eacute
Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg
22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho
natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser
assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser
transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)
A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no
evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos
dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um
chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma
natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no
seio da luz (lg 11)
Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa
situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave
identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute
estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a
derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o
mestre
ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele
e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito
ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de
Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica
da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que
entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)
O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira
instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos
ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de
traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes
leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida
Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente
descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que
Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores
171
Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho
por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes
Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de
compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus
textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees
orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que
estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos
apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos
Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de
Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque
Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo
grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus
textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden
que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem
Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe
permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam
despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se
ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que
prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos
processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que
era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute
A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria
possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma
que estes leitores consideravam adequada
No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na
variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira
interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364
Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon
descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras
ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo
Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e
isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo
364 Cf Levison (1999) 38
172
Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o
propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da
atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65
ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou
impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio
do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das
profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem
o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo
Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento
as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente
humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar
conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo
O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates
Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)
O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave
inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366
Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)
reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo
a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates
era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do
espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates
corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom
profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados
inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes
como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo
(2187)367
De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria
iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter
recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra
elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins
365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46
173
ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria
alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este
pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute
realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a
soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo
misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua
soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da
soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas
destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher
27-29)
A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor
afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com
estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua
experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior
expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior
dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento
elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)
as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala
(Som 2252)368
Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis
onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas
revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que
afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia
sobre os detalhesrdquo (588C)
A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o
inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo
sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de
revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem
naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca
pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da
368Levison (1999) 50
174
verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares
de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das
vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos
antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion
Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia
de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do
filho da luz
175
Bibliografia
Fontes Primaacuterias
Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim
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Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos
1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e
grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas
o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees
Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das
paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas
a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias
indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas
James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press
O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos
Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20
3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em
etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim
In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507
Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto
de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem
documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de
interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC
nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem
em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos
tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os
pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o
symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram
eco nestes manuscritos
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo
A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute
relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
177
A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas
antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso
Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford
Oxford
Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias
camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text
Verlag Algred Toperlmann
Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW
Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento
importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar
onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em
termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo
simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por
exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute
Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press
Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316
ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas
ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association
Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais
associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute
Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press
Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco
Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do
cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos
e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute
Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New
York Tampt Clark
Outros autores judeus
Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se
fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no
evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia
178
Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os
significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas
associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que
Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao
longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo
corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha
responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa
Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet
Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing
Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra
judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho
no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do
elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos
fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute
Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das
Assembleacuteias de Deus
Textos Rabiacutenicos
Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo
literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que
permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o
interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos
eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei
oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos
A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo
releeituras das tradiccedilotildees anteriores
Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo
da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a
sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados
homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo
sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico
que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave
escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos
179
Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford
Midrashim
Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do
quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de
pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente
textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso
destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma
circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese
responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos
ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para
explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua
antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo
histoacuterico em discussatildeo
Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The
Soncino Press
Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma
exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o
capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado
TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London
Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da
Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que
tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma
complete no seacuteculo doze
TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London
Literatura de hekhalot
Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do
espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo
anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios
180
celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose
desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da
memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria
elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute
lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano
ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute
transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de
hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos
produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a
literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm
com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais
autoinduzidas
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