a compreensão da comunidade joanina em raymond e. brown

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Departamento de Teologia 1 A COMPREENSÃO DA COMUNIDADE JOANINA EM RAYMOND E. BROWN Aluno: Douglas Nascimento Orientador: Isidoro Mazzarolo Resumo A história da comunidade joanina depois do evangelho continua, nas epístolas. 1Jo não nomeia autor, nem indica o nome de seu destinário, apesar que desde cedo, fora considerada como obra do Apóstolo e Evangelista João e, para alguns, o prólogo ao Evangelho 1 . As epístolas 2Jo e 3Jo são cartas escritas por um homem que se designa como πρεσβύτερος (presbytero: 2Jo 1,1). E possuem um traço comum no que diz respeito ao seu conteúdo e ao estilo, o que nos permite assegurar duas coisas: a primeira, seriam provenientes do mesmo autor ou da mesma escola teológica 2 ; e a segunda, a crise que a comunidade enfrenta é algo que preocupa muito o autor, que sente que é “a última hora” (1Jo 2,18). Com isso, as epístolas têm como finalidade fortalecer, instruir e construir os cristãos joaninos. Mesmo que elas evidenciam o mal, o seu tom é positivo e construtivo 3 . A voz de uma dessas das alas dessa disputa se perpetuou como canônica e é conhecida por nós através da forma final que obteve o Quarto Evangelho (=QE) 4 e também das três epístolas atribuídas a João. A proposta da pesquisa atual, nesta pesquisa é investigar as duas últimas fases da comunidade joanina, reconstruindo-a partir das epístolas joaninas e o QE. Tendo em vista que, os seus tópicos antropológicos e sociológicos, representam elementos fundamentais da teologia cristã e da pregação da época. Introdução Apresentamos até a agora a concepção do biblista norte-americano Raymond Brown, em seu livro A comunidade do discípulo amado (2006), descrevemos a sua teoria a respeito da história da comunidade que estava ligada ao Quarto Evangelho (QE) e as três epístolas de João. Tendo, como base a sua reflexão, delimitamos a história da comunidade, nas seguintes etapas: Primeira fase, corresponde ao período pré-evangélico da história joanina consciente, que acontece entre 50-80 d.C., na Palestina (ou em algum próximo), o grupo compunha judeus de diferentes grupos, sendo eles: um discípulo que conhecera Jesus durante seu ministério (discípulo amado), samaritanos, seguidores de João Batista, opositores ao templo, prosélitos e gentios. 1 MAZARROLO, Isidoro. As três cartas de São João: exegese e comentário. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010, p.17. 2 BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado. São Paulo: Paulus, 2011, p. 100. 3 Ibdem, p.227. 4 Ao longo do trabalho usaremos esta sigla QE para referimo-nos ao texto evangélico joanino.

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  • Departamento de Teologia

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    A COMPREENSO DA COMUNIDADE JOANINA

    EM RAYMOND E. BROWN

    Aluno: Douglas Nascimento

    Orientador: Isidoro Mazzarolo

    Resumo

    A histria da comunidade joanina depois do evangelho continua, nas epstolas.

    1Jo no nomeia autor, nem indica o nome de seu destinrio, apesar que desde cedo, fora

    considerada como obra do Apstolo e Evangelista Joo e, para alguns, o prlogo ao

    Evangelho1. As epstolas 2Jo e 3Jo so cartas escritas por um homem que se designa

    como (presbytero: 2Jo 1,1). E possuem um trao comum no que diz

    respeito ao seu contedo e ao estilo, o que nos permite assegurar duas coisas: a

    primeira, seriam provenientes do mesmo autor ou da mesma escola teolgica2; e a

    segunda, a crise que a comunidade enfrenta algo que preocupa muito o autor, que

    sente que a ltima hora (1Jo 2,18). Com isso, as epstolas tm como finalidade

    fortalecer, instruir e construir os cristos joaninos. Mesmo que elas evidenciam o mal, o

    seu tom positivo e construtivo3.

    A voz de uma dessas das alas dessa disputa se perpetuou como cannica e

    conhecida por ns atravs da forma final que obteve o Quarto Evangelho (=QE)4 e

    tambm das trs epstolas atribudas a Joo. A proposta da pesquisa atual, nesta

    pesquisa investigar as duas ltimas fases da comunidade joanina, reconstruindo-a

    partir das epstolas joaninas e o QE. Tendo em vista que, os seus tpicos antropolgicos

    e sociolgicos, representam elementos fundamentais da teologia crist e da pregao da

    poca.

    Introduo

    Apresentamos at a agora a concepo do biblista norte-americano Raymond

    Brown, em seu livro A comunidade do discpulo amado (2006), descrevemos a sua

    teoria a respeito da histria da comunidade que estava ligada ao Quarto Evangelho (QE)

    e as trs epstolas de Joo. Tendo, como base a sua reflexo, delimitamos a histria da

    comunidade, nas seguintes etapas:

    Primeira fase, corresponde ao perodo pr-evanglico da histria joanina

    consciente, que acontece entre 50-80 d.C., na Palestina (ou em algum prximo), o grupo

    compunha judeus de diferentes grupos, sendo eles: um discpulo que conhecera Jesus

    durante seu ministrio (discpulo amado), samaritanos, seguidores de Joo Batista,

    opositores ao templo, proslitos e gentios.

    1 MAZARROLO, Isidoro. As trs cartas de So Joo: exegese e comentrio. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010, p.17. 2 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado. So Paulo: Paulus, 2011, p. 100. 3 Ibdem, p.227. 4 Ao longo do trabalho usaremos esta sigla QE para referimo-nos ao texto evanglico joanino.

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    Segunda fase, seria marcada pela rejeio do judasmo farisaico (Jmnia,

    aproximadamente 85 d.C) dirigida aos membros dessa comunidade, que j havia sido

    expulsos das sinagogas, mas que agora estavam sendo perseguidos (9,22;16,2-3). A

    insistncia numa alta cristologia torna as lutas com os judeus mais intensas, fazendo

    com que esta comunidade dirigisse aos judeus da dispora e aos gentios, situando-se

    definitivamente em territrio gentio (sia menor, provavelmente feso), neste perodo

    se d a principal redao do evangelho, aproximadamente no ano 90 d.C.

    Terceira fase, estabelece dentro da comunidade, uma luta entre dois grupos dos

    discpulos de Joo e que estava causando uma espcie de diviso (1Jo 2,19). Estes dois

    grupos esto interpretando o evangelho de maneiras opostas, no que se refere

    cristologia, tica, escatologia e pneumatologia. Os temores e o pessimismo

    presentes nas epstolas, faz nos entender, que os separatistas esto tendo maior sucesso

    numrico (1Jo 4,5) e o autor quer despertar os seus adeptos para se prevenir contra estes

    e seus ensinamentos (2,27; 2Jo 1,10-11).

    verdade que, no sabemos as argumentaes deste grupo separatista por meio

    de textos provindos de seu prprio movimento. Mas, atrs das oposies expressas nas

    epstolas joaninas, possvel identificar, pois todo pensamento tem seu avesso, ou o

    pensamento um espelho duplo e ambas as faces podem e devem ser ntidas e

    desempanadas5. neste tempo, que as epstolas sero escritas, aproximadamente no

    ano 100 d.C.

    Quarta fase, os dois grupos tiveram destinos diferentes, se dissolvendo em

    movimentos maiores e mais expressivos. A parcela da comunidade representada pela

    epstola entraria na Grande Igreja, ou no que Incio de Antioquia chama a Igreja

    catlica, o que demonstra a aceitao crescente da cristologia joanina da pr-existncia

    do (Verbo: Jo 1,1). No entanto, esta incorporao deve ter custado o preo da

    aceitao joanina da estrutura autoritria do ensino da Igreja6, porque o prprio

    princpio do como mestre (Parclito: Jo 14,26) no ofereceu a comunidade defesa suficiente contra os separatistas. O grupo dos separatistas teriam incorporado

    para o docentismo, o gnosticismo, o cerintianismo e o montanismo. Isto,

    aproximadamente no sc.II, depois que as epstolas foram escritas.

    TERCEIRA FASE QUANDO FORAM ESCRITAS AS EPSTOLAS: LUTAS

    INTERNAS

    Gnero Literrio das Cartas

    Das 5.437 palavras diferentes no grego do NT, as trs epstolas de Jo s utilizam

    303 vocabulrios distintos7, com estilo direto, simples e com uma sintaxe muito

    elementar. A 1Jo no um escrito volumoso, um pouco mais que um stimo do QE,

    pouco menos de um quarto do Apocalipse. Todavia, oferece aos seus leitores alguns

    temais fundamentais de reflexo, que procuraremos detectar e elucidar. Teologicamente

    a 1Jo a mais importante, pois ela representa um dos pontos mais altos da teologia

    neotestamentria, razo pela qual esta no deve ser esquecida na teologia e nem na vida

    crist8 ela dedicaremos um interesse especial.

    5 BAKHTIN, Mikhail/VOLOSHINOV, Valetin. Freudismo. So Paulo: Perspectiva, 2009. 6 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado. So Paulo: Paulus, 2011, p. 22. 7 MARSHALL, I. H. The Epistles of John. The New International Commentary on the New Testament.

    Grand Rapids: Eerdmans, 1978. p. 02. 8 SCHREINER, Josef. Forma e Exigncias do Novo Testamento. So Paulo: Paulinas, 1977. pp.415-416.

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    1Jo considerada uma epstola, porm o seu escrito no tem a forma de uma carta

    antiga. Visto que no possui alguns elementos fundamentais, como: Nome do

    remetente, destinatrio, local dos destinatrios, saudao e bnos. Fugindo da

    caracterstica do estilo grego-romano, em que o autor e destinatrio so, normalmente,

    conhecidos. O que faz alguns autores acreditar que tais caractersticas seriam do Oriente

    Mdio (mundo semtico) 9. O vocabulrio de 1Jo muito repetitivo, e as 2Jo e 3Jo so

    os menores textos do Novo Testamento, todavia apesar de pequenas, elas possuem a sua

    importncia devido ao seu contexto prprio. Nessas duas epstolas o seu remetente,

    apresenta-se como o Presbtero (2Jo 1, 3Jo 1).

    H muitas semelhanas no estilo e no vocabulrio da 1Jo e o QE que sem dvida

    procedem da mesma tradio. 1Jo adquire melhor sentido se analisado como um escrito

    posterior ao perodo da apario do QE. 1Jo parece ser um escrito que se assemelha a

    um comentrio ao QE, uma espcie de carta pastoral a vrias igrejas em forma de

    instruo, de homilia10

    . Isto fica evidente, na forma relacional que o escritor interpela os

    seus leitores, com expresses afetuosas e familiares, sendo elas: filhinhos (2,14);

    amados (2,7;3,2.21); filhos queridos (2,1.12.28; 3,7.18; 4,4; 5,21); irmos (3,13); pais e

    jovens (2,13-14). 2Jo apesar da sua brevidade, segue o mesmo estilo e vocabulrio que

    1Jo. S na 3Jo, que ocorre uma distino com relao ao vocabulrio e temtica, que

    estaria mais prximo ao estilo paulino do que joanino11

    .

    Tais caractersticas so prprias do estilo joanino o que nos permite afirmar que a

    1Jo um escrito que fora elaborado no mesmo ambiente do QE12

    .As frases so

    entrelaadas com a conjuno kai ou so simplesmente justapostas. Existem poucos

    verbos compostos13

    . A linguagem e o estilo destes escritos se aproximam muito do QE,

    pois dos 298 lexemas das epstolas, 193 so comunis aos dois escritos14

    . Muitos dos

    termos cristolgicos caractersticos do QE se encontram tambm na 1Jo, vejamos

    alguns: (aplicado a Jesus: Jo 1,1), (verdade, dito pelo Esprito: 1Jo 5,6),

    (aplicado a Jesus: 1Jo 4,9), (salvador, predicado de Jesus: 1Jo 4,14),

    (1Jo 4,2).

    Aparecem vocbulos muito especficos do QE: conhecer (ginoskein), testemunho

    (martyria), dar testemunho (martyrein) pai (dito de Deus: pater), mundo (kosmos),

    guardar (terein), permanecer (menein), manifestar-se (phanerothenai). Se bem que

    existam tambm ausncias de expresses importantes e vocabulrios caractersticos do

    QE, como: lei (nomos), glria (doxa), glorificar (doxazein), subir e descer (anabainein e

    katabainein), elevar (hypsoun), julgar (krinein), etc.

    Embora haja semelhanas estilsticas e teolgicas profundas entre o evangelho e

    as epstolas, h tambm diferenas insignificantes que levantam dvidas se o autor das

    epstolas era o evangelista, ou seja, o escritor principal15

    . possvel que o autor das

    epstolas nem foi o evangelista, nem o redator, mas um dos colaboradores menores do

    evangelho, ou algum que no tenha em absoluto participado da redao do evangelho.

    9 MAZARROLO, Isidoro. A Bblia em suas mos. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2012, p.228. 10 GASS, Ildo Bohn. As comunidades crists a partir da segunda gerao. So Paulo: Paulus, 2010,

    p.134. 11 MAZARROLO, Isidoro. As trs cartas de So Joo: exegese e comentrio. Rio de Janeiro: Mazzarolo

    editor, 2010, p.15. 12 TUI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas catlicas. So Paulo: Ave

    Maria,1999. P.157-158. 13 TUI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas catlicas. So Paulo: Ave Maria,1999. P.157. 14 MAZARROLO, Isidoro. As trs cartas de So Joo: exegese e comentrio. Rio de Janeiro: Mazzarolo

    editor, 2010, p.19. 15

    BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 99.

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    Apesar, de no obtermos uma deciso determinante, haja vista que esta questo ainda

    est aberta, podemos supor que o autor de 1Jo pertence ao crculo mais estreito em torno

    do evangelista ou que ele dependa diretamente desse crculo16

    .

    E o fato de os mesmos pontos doutrinais e morais estarem sendo combatidos em

    1Jo e em 2Jo e tanto 2Jo quanto 3Jo estarem se ocupando da aceitao de instrutores

    itinerantes interligam as epstolas e torna provvel que todas as trs tenham provindo da

    mesma fase da histria joanina. Brown vai desenvolver uma tese de uma escola joanina

    de escritores que tinham em comum uma posio teolgica e um estilo17

    .

    Local da Comunidade Joanina

    A origem da comunidade joanina situa-se na Palestina, tendo o prprio Discpulo

    Amado seguido o movimento de Joo Batista (Jo 1,35-51), que consideramos fundador

    da comunidade joanina, manteve-se em contato com os crculos batistas e esforou-se

    por conquistar seus antigos companheiros na f crist (Jo 3,22-26). H uma adeso em

    certo momento de samaritanos (4,35-38), que contriburam com a teologia joanina18

    .

    Em certo momento, o Discpulo Amado deixa a Palestina (Jo 7,35) para a Dispora

    (provavelmente para feso).

    O movimento migratrio judaico remota poca da deportao para a Babilnia,

    no sculo VI a.C., e no cessou durante todos os sculos de dominao estrangeira na

    Judia, e intensificou na dominao romana. O perodo de grandes migraes foi o do

    assdio e da ocupao militar romana a partir do sculo 66 d.C. que concluiu com a

    destruio de Jerusalm quatro anos mais tarde. As facilidades representadas pelas

    estradas e navegaes proporcionadas por Roma coadjuvaram para migraes judaicas

    nas mais diversas direes especialmente em busca de um futuro melhor19

    . Eusbio

    tambm atesta a fuga dos cristos de Jerusalm para Pella, no momento da Guerra

    Judaica (66 70 d.C).

    [...] Tambm o povo da igreja de Jerusalm, por seguir um orculo

    enviado por revelao aos notveis do lugar, receberam a ordem de mudar de

    cidade antes da guerra e habitar certa cidade da Peria chamada Pella20

    .

    Ficou estabelecido que muitos judeu-cristos se instalaram em feso e suas

    proximidades, mais ou menos nesta poca. Numa carta do Polcrates, bispo da igreja de

    feso a Vtor, bispo de Roma (cerca de 190 d.C.) podemos perceber isto:

    Os bispos da sia, por outro lado, com Polcrates frente, seguiam

    insistindo com fora que era necessrio guardar o costume primitivo que lhes

    fora transmitido desde antigamente. Polcrates mesmo, numa carta que dirige a Victor e igreja de Roma, expe a tradio chegada at ele com estas palavras:

    Ns, pois, celebramos intacto este dia, sem nada juntar nem tirar. Porque

    tambm na sia repousam grandes luminrias, que ressuscitaro no dia da vinda do Senhor, quando vier dos cus com glria e em busca de todos os

    santos: Felipe, um dos doze apstolos, que repousa em Hierpolis com duas

    filhas suas, que chegaram virgens velhice, e outra filha que, depois de viver no Esprito Santo, descansa em feso. E tambm Joo, o que se recostou sobre o

    16 KMMEL, Werner G. Sntese Teolgica do Novo Testamento. So Paulo: Teolgica, 2003. p. 316. 17 Ibdem, p. 100. 18 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p.61. 19 ARENS, Eduardo. sia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Joo. So Paulo: Paulus, 1997.p. 158. 20 CESARIA, Eusbio de. Histria Eclesistica. So Paulo: Novo Sculo, 2002. III.V.III

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    peito do Senhor e que foi sacerdote portador do ptalon, mrtir e mestre; este

    repousa em feso. E em Esmirna, Policarpo, bispo e mrtir. E Traseas, tambm

    ele bispo e mrtir, que procede de Eumenia e repousa em Esmirna. E que falta faz falar de Sagaris, bispo e mrtir, que descansa em Laodicia, assim como o

    bem-aventurado Papirio e de Meliton, o eunuco, que em tudo viveu no Esprito

    Santo e repousa em Sardes esperando a visita que vem dos cus no dia em que ressuscitar de entre os mortos? Todos estes celebraram como dia da Pscoa o da dcima quarta lua, conforme o Evangelho, e no transgrediram, mas seguiam

    a regra da f. E eu mesmo, Polcrates, o menor de todos vs, (fao) conforme a

    tradio de meus parentes, alguns dos quais segui de perto. Sete parentes meus foram bispos, e eu sou o oitavo, e sempre meus parentes celebraram o dia

    quando o povo tirava o fermento. Portanto, irmos, eu com mais de sessenta e

    cinco anos no Senhor, que conversei com irmos procedentes de todo o mundo e que recorri toda a Sagrada Escritura, no me assusto com os que tratam de

    impressionar-me, pois os que so maiores do que eu disseram: Importa mais

    obedecer a Deus do que aos homens." Logo acrescenta isto que diz sobre os bispos que estavam com ele quando escrevia e eram da mesma opinio: Poderia

    mencionar os bispos que esto comigo, que vs pedistes que convidasse e que

    eu convidei. Se escrevesse seus nomes seria demasiado grande seu nmero.

    Eles, mesmo conhecendo minha pequenez, deram seu assentimento a minha carta, sabedores de que no em vo que levo meus cabelos brancos, mas que

    sempre vivi em Cristo Jesus. 21

    "

    Podemos ento falar que uma boa porcentagem das comunidades crists das quais

    emanou a maioria dos escritos do Novo Testamento encontrava-se na sia Menor22

    .

    Calcula-se que pelo menos dois teros dos judeus viviam no sculo I na dispora, longe

    da Judia, porcentagem que cresceu consideravelmente a partir da dcada de 70 d.C.

    Segundo Flon de Alexandria em sua apologia perante Roma, diz:

    Os judeus so to numerosos que no podem ser contidos num s

    pas, e por isso se instalaram em muitos dos pases prsperos da Europa e

    da sia23

    .

    A excluso dos judeu-cristos repercute at no livro do Apocalipse, onde se falar

    . (Ap 2.9). A comunidade joanina, dedicou-se a proclamar a f

    crista num contexto helenista (Jo 3,16-17), mostrando que a f crist era a resposta

    aspirao da Verdade fundamental24

    . Como diz G. MacRae:

    Que Joo pode ter sido unicamente universalista ao apresentar Jesus

    numa grande quantidade de vestes simblicas, procurando faz-lo atraente para

    21 O testemunho de Polcrates sobre as grandes luminrias que ilustram a sia - CESARIA, Eusbio de. Histria Eclesistica. So Paulo: Novo Sculo, 2002. V.XXIV. I-VIII. Demonstra o apego pelas tradies dos bispos, a celebrao da Pscoa, e o desenvolvimento das concepes milenaristas que so sinais que revelam a importncia das contribuies judeu-crists na sia Menor. 22 ARENS, Eduardo. sia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Joo. So Paulo: Paulus, 1997.p. 157. 23 Flon de Alexandria, sendo citado em: ARENS, Eduardo. sia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Joo. So Paulo: Paulus, 1997.p. 159. 24 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p.62.

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    homens e mulheres de todas as classes e tradies e culturas, de modo a fazer

    entender que Jesus transcende a todas as ideologias 25

    .

    Contexto das Epstolas

    O prlogo da 1Jo comea com a apresentao do , como contedo da

    tradio e razo do testemunho que esta comunidade recebeu.

    , , ,

    , .

    (1Jo 1,1)

    O que era desde o princpio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos

    olhos, o que temos contemplado, e as nossas mos tocaram da Palavra da Vida.

    (1Jo 1,1)

    O autor das epstolas apresenta-se como testemunha fidedigna da tradio que

    recebeu (1Jo 1,1-4). Se a Carta data do final do sculo I d.C. pouco provvel que

    houvesse algum discpulo vivo. No entanto, possvel que ele tenha sido da segunda

    gerao, visto e conhecido muitos resultados da ao de Jesus e dos que foram as

    testemunhas oculares, como apstolos e discpulos26

    . Ele quer, portanto, elucidar que o

    seu contedo no fruto da reflexo ou da especulao intelectual, mas da experincia

    de vida e da comunho da comunidade com o , e que s possvel atingir esse

    mistrio pela f (1Jo 1,2)27

    .

    A carta assume caractersticas da convivncia fraterna, alicerada no amor, nos

    compromissos da vida. Tais relaes afetuosas so pautadas pelo

    (Novo Mandamento: Jo 13,34) que integra os discpulos a amar, que est acima de

    qualquer outro conceito. Esta nova famlia pode ser a biolgica ou tambm a prpria

    comunidade, onde se d a convivncia e o respeito alteridade, pois esto todos numa

    nica perspectiva (At 2,42-46), utilizando-se do mesmo ensinamento que a do

    (1Jo 2,20.27). Segundo Schnackenburg, afirmao da opo pelo amor

    fraterno implica diretamente numa outra opo que a rejeio ao mal28

    . passar da

    treva do mal para a luz verdadeira que o prprio Cristo (1Jo 2,8-11). O amor na nova

    famlia diferente do amor mundano (1Jo 2,16), pois a dinmica do amor no admite a

    convivncia com as trevas, o pecado ou a mentira, pois ele capaz de restabelecer a Luz

    entre os irmos29

    , fazendo-os viver na dimenso de uma nova realidade mais construtiva

    (1Jo 2,5) onde o amor e o perdo encontram lugar privilegiado. Os cristos so filhos de

    Deus, que devem obedecer aos mandamentos de Deus, santificao e ao amor de Deus

    e dos irmos.

    O autor de 1Jo deixa alerta a grande responsabilidade com as igrejas no lugar

    onde se encontravam. Pelas cartas joaninas possvel entender que a unidade havia sido

    amenizada e que se tinha perdido em parte. E o foco do autor de 1Jo ciso interna da

    comunidade, isto devido aos problemas pastorais que os cristos joaninos estavam

    vivenciando: havia falsos mestres, muitos opositores e manipuladores da verdade. O

    25 Brown citando G. MacRae em seu livro: BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discpulo Amado,

    So Paulo: Paulus, 1999, p. 60. 26 Ibdem,p.48. 27 CHARPENTIERP, Etienne. Para Leer el Nuevo Testamento. Navarra: Verbo Divino, 1990. p.133. 28 SCHNACKENBURG, R. Cartas de San Juan Version, introducin y comentario. Barcelona: Herder,

    1980.p. 121. 29 MAZARROLO, Isidoro. A pedagogia na famlia segundo 1Jo 2,12-14. Estudos Bblicos, Petrpolis, v.

    85, p. 90-102, 2005.

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    autor de 1Jo escreve com tanta urgncia no porque esperasse que esses falsos profetas

    (4,1) lesse sua obra e se convertesse, mas sim porque tais lderes empregava um esforo

    missionrio permanente para minar a adeso de seguidores. O autor espera que, atravs

    da sua obra, ele detenha o xito que estes falsos profetas esto tendo, pois todo o mundo

    est lhes escutando (4,5) 30

    . Esta resistncia oferecida pelos opositores do Evangelho e

    seus anunciadores, dificultava a implantao da mensagem evanglica. Desde modo, o

    autor vai identificar tais pessoas, como sendo (anticristo: 1Jo 4,3). Por isso

    o autor vai advertir que os cristos no permitam que tais atravessem a porta de sua

    casa-igreja (2Jo 1,10).

    Nos aspectos teolgicos que a epstola vai acentuando, percebemos: a clareza que

    Jesus veio na carne (4,2). Com o intuito de repreender as tendncias que negavam a

    encarnao de Jesus Cristo e pretendiam separar Jesus divino de Jesus crucificado,

    isto tambm presente no prlogo do QE. Em 1Jo 5,6 diz que: Jesus no veio s pela

    gua, mas tambm pelo sangue, sobretudo se percebemos que o tema da f em

    Cristo est ligado ao amor de Deus. Em 1Jo5,4 diz que: e a vitria que vence o mundo

    a nossa f, destacando a nova formulao faz verdades crists. Neste sentido a

    epstola ajudou a Igreja a manter-se fiel sua essncia e ao seu esprito 31

    .

    Em 2Jo o presbtero tem uma grande preocupao com os pregadores itinerantes

    ou visitantes ocasionais, que anunciavam falsas doutrinas aos discpulos de Jesus Cristo,

    e confundiam as novas comunidades e os cristo imaturos (2Jo 1,12). As epstolas 1Jo e

    2Jo so escritas a diferentes igrejas distantes do autor, que pretende visit-las (2Jo 1,12;

    3Jo 1,14). Percebemos que esta carta est ligada a uma igreja (v.13)32

    , mas que escreve

    instrues para outra (v.1: A Senhora eleita e a seus filhos) o que nos d entender que

    a comunidade joanina no se encontrava numa mesma rea geogrfica, mas em

    diferentes cidades. Podemos entender que isto possvel j que os cristos primitivos se

    reuniam em casas familiares que se tornavam igrejas, que no poderiam ter muitos

    membros33

    .

    A primeira apario de Jesus, logo aps a morte, se d a portas fechadas, na casa

    onde eles se encontravam por medo dos judeus (Jo 20,19). Em Pentecostes, eles

    estavam tambm reunidos a portas fechadas, de uma casa, e receberam o Esprito Santo

    (At 2,1-2). As comunidades no tinham instituio jurdica, ritos e formulas, mas um

    espao fsico onde se celebrava a f e faz a memria dos ensinamentos recebidos. As

    Igrejas, como espaos oficiais, suntuosos e pblicos, s aparecem no incio do IV

    sculo, quando o cristianismo assumido como religio oficial do Imprio Romano34

    .

    As primeiras Igrejas crists nascem num sinnimo de muitas sinagogas, isto

    porque, o cristianismo vivia sendo perseguido pelos judeus e logo depois pelo imprio

    romano, assim os cristos faziam suas reunies em casas particulares, a fim de

    sobreviver e no serem identificados pelos perseguidores. As Igrejas eram as pessoas,

    no os ambientes fsicos. Onde estiverem dois ou mais reunidos em meu nome, ali

    estou no meio deles (Mt 18,20). Nos tempos de Paulo, essas Igrejas no tinham

    prdios, no tinham manuais, pouqussimos textos, ausncia total de rituais. Tinham a

    pregao e a memria dos mestres para debater, discutir ou discernir, divididos,

    30 BROWN, R. E. Las Iglesias que ls Apostoles nos dejaron. Bilbao: Desclee de Brouwer,1986,p. 108. 31 THUSING, Wilhelm. As Epstolas de So Joo. Petrpolis: Vozes, 1983.p. 10. 32 O termo igreja justificado pelo uso em 3Jo 6.9.10, cito aqui: BROWN, R. E. A Comunidade do

    Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 97. 33 O Apstolo Paulo visitava numerosas casas-igreja na comunidade romana (Rm 16,5.14-15), e talvez em Tessalnica tambm (1Ts 5,27). 34 MAZARROLO, Isidoro. Filemon, a carta da alforria. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2011, p.61.

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    8

    provavelmente, em dois momentos: a. a orao; b. a beno e frao do apo (1Co 11,17-

    34). As pregaes eram feitas nas casas, nas praas das cidades, nos lugares onde o

    povo se encontrava, nos centros de transito e comrcio. Um dos locais usados como

    ponto de partida eram as sinagogas (At 13,6.14;14,1). Outro eram os lugares pblicos,

    onde debatiam as teses com o publico ou com estudiosos religiosos, caso fossem

    convidados (At 17,19ss), ou nas praas e lugares de comrcio (At 17,17)35

    .

    Diferente das outras epstolas, em 3Jo, o presbtero escreve a Gaio elogiando-o

    juntamente com seus filhos (comunidade) que so fiis a Verdade e pela sua

    hospitalidade para com os missionrios itinerantes (vv.1,5-8). Igualmente, Demtrio

    recebe louvor pelo seu testemunho e desempenho (v.12). O presbtero se dirige a Gaio,

    porque na carta anterior Igreja (v.9) no foi aceita por Ditrefes que ambiciona o

    primeiro lugar na Igreja. Este se recusa a receber quaisquer missionrios e est

    expulsando da Igreja todos os que o fazem (v.10), ignorando assim a acolhida que deve

    ser ter com os enviados (Jo 13,20), pois estes representavam aquele que os enviou.

    Nestas cartas o presbtero promete fazer uma visita o mais depressa possvel, mas em

    3Jo ele diz que cuidar da hostilidade de Ditrefes contra ele (v.14). As cartas joaninas,

    portanto, so uma resposta a essa nova situao crtica dentro da prpria comunidade36

    .

    Escola Joanina

    No final do sculo I em muitas reas estava se desenvolvendo uma estrutura

    eclesial na qual um grupo de presbteros eram responsveis pela administrao e pelo

    cuidado pastoral da Igreja, presente no Novo Testamento (At 14,23; 20,17.28-30; 1Pd

    5,1; Jd 5,14; 1Ts 3,1-7; 5,17-22; Tt 1,5-11). O termo presbtero pode ser usado para

    designar a gerao de instrutores depois das testemunhas, ou seja, pessoas que podiam

    ensinar numa cadeia de autoridade, porque elas tinham visto e ouvido outras pessoas

    que, por sua vez, tinham visto e ouvido Jesus37

    .

    O Parclito, Esprito Santo, o mestre por excelncia (Jo 14,26;16,13) da

    comunidade. E o mestre humano, mesmo o Discpulo Amado, por sua vez, seria aquele

    que agiria como uma testemunha da tradio que o Paraclito interpreta (Jo 19,35;21,24;

    1Jo 2,27). A comunidade joanina aquela que percebe na atuao do Discpulo Amado

    a existncia do Parclito, que estava em plena atividade atrs da interpretao da

    tradio que era transmitida pelo Discpulo Amado. Depois da morte do Discpulo

    Amado, a comunidade entendeu que a obra do Parclito continuava nos discpulos do

    Discpulo Amado que transmitiu a tradio e ajudou a formul-la.

    O segundo sentido de presbtero, modificado pela tica joanina, poderia explicar

    porque o presbtero das epstolas joaninas fala como parte de um coletivo ns que d

    testemunho do que fora visto e ouvido desde o princpio (1Jo 1, 1-2), e isto os leva ao

    ponto principal da escola joanina38

    .

    provvel que no tempo do Discpulo Amado estabeleceu-se um crculo, cuja

    importncia se reforou aps sua morte. Este crculo de telogos e mestres seguiu

    cultivando e estudando suas tradies, deste grupo surgiram os escritos joaninos que

    percebemos nas afirmaes, no plural: Sabemos que seu testemunho verdadeiro (Jo

    21,24; 1Jo 1,2-3). Estabelece-se aqui, portanto, uma ligao entre o passado e o comeo

    e o presente da pregao, num esforo evidente para vincular a tradio e transmitir o

    que fora recebido: O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos (1Jo 1,3).

    35 MAZARROLO, Isidoro. Filemon, a carta da alforria. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2011, p.61-62. 36 GASS, Ildo Bohn. As comunidades crists a partir da segunda gerao. So Paulo: Paulus, 2010. p.132. 37

    BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 105. 38

    Ibdem, p. 104-105.

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    Desenvolveu-se um cultivo e uma cultura da tradio, que est relacionada com essa

    escola39

    . R. A. Culpepper estende o termo escola a toda comunidade joanina, pois

    para ele, todos participam da tradio que veio do Discpulo Amado e do testemunho

    (Jo 15,27)40

    .

    Brown, no entanto, percebe que h um esforo em demonstrar um discipulado

    joanino que fosse democrtico, pois muita das vezes o autor est se incluindo ao mesmo

    nvel que seus leitores que so seus (irmos: designao que aparece quinze

    vezes em 1Jo), contudo, em outras ocasies seu ns representa os transmissores e

    intrpretes da tradio que so distintos de um vs que so os receptores da

    mensagem (1Jo 1,1-5).

    Inevitavelmente, alguns teriam estado mais prximos historicamente do Discpulo

    Amado, porque alguns eram mais ativos em escrever e dar testemunho. para este

    grupo ento, que Brown designa o termo escola joanina dentro de uma comunidade

    mais ampla. Estes incluem o evangelista, o redator do evangelho, e quaisquer outros

    escritores envolvidos, o autor das epstolas, e os transmissores da tradio41

    .

    O presbtero fala como representante desta escola joanina (1 Jo 1,1) , no porque

    ele mesmo tenha sido uma testemunha ocular, mas por causa da aproximao da escola

    joanina de discpulos do Discpulo Amado. Assim, podemos dizer que Jesus tinha visto

    Deus, o Discpulo Amado tinha visto Jesus, e a escola joanina participa de sua tradio.

    No perodo em que o evangelho foi escrito, o testemunho do Discpulo Amado era

    suficiente, e a comunidade estava unida em aceitar esse testemunho. Mas, no perodo

    em que as epstolas foram escritas, notamos que h grupos interpretando a tradio do

    Discpulo Amado. Destaca assim, a atuao do presbtero que tenta corrigir seus

    adversrios como parte de uma escola joanina de discpulos que possuem a doutrina

    correta, que realmente conhecem o pensamento do Discpulo Amado, e estes, portanto

    so suas testemunhas (1Jo1,1).

    Cisma Joanino

    A redao desta epstola foi feita pela voz joanina, para o grupo que ficou. Desde

    o primeiro captulo percebemos a maneira como o autor utiliza-se do discurso do outro

    grupo para corrigir as supostas distores consideradas herticas dos dissidentes e

    apascentar o grupo que permaneceu na comunidade, de forma a evitar que outros se

    levantassem com o mesmo discurso. Desta maneira, elas constituem este corpo de

    pensamento, e nas pginas que seguem, os temas predominantes so: cristologia, tica,

    escatologia, pneumatologia (dos separatistas joaninos), vistas atravs dos olhos do autor

    de 1Jo42

    .

    Brown apresenta o ponto de vistas dos separatistas mostrando que eles possuem

    uma lgica e um carter persuasivo, dadas as suas pressuposies. Nas diversas

    tentativas de delinear um substrato que explique a teologia separatista, tem se colocado

    uma influncia externa que levou os cristos a se desviarem do verdadeiro evangelho

    joanino. comum acreditar que os separatistas tivessem ligaes com um movimento

    hertico do segundo sculo, conhecido como gnosticismo. No podemos negar, que o

    pensamento reconstitudo dos adversrios de 1Jo tem certas semelhanas com o

    pensamento gnstico que conhecemos. K. Weiss chamou a ateno para o fato de que a

    39 GNILKA, Joachim. Teologa Del Nuevo Testamento. Madrid: Editorial Trotta, 1998. p. 325. 40 R. A. Culpepper sendo citado por: BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 106. 41 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 106. 42 Ibdem, p. 108.

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    maior parte das marcas caractersticas dos sistemas gnsticos falta completamente no

    pensamento dos separatistas, o qual, de fato, contm caractersticas s quais se

    opuseram os ltimos gnsticos43

    . Um requinte da teoria gnstica que os separatistas

    eram docetas que negavam a realidade da humanidade de Jesus44

    . Cerinto tinha sido

    proposto como seu chefe, com base em tradies do final do sculo segundo de que ele

    era inimigo de Joo, filho de Zebedeu45

    .

    Para Brown, o pensamento separatista reconstitudo no se enquadra exatamente

    nem no pensamento doceta, nem no pensamento cerintiano, paralelos mais perfeitos

    encontra-se no pensamento dos adversrios de Incio de Antioquia, que podemos

    perceber reconstituindo a critica que ele faz de seus adversrios. Uma vez que Incio

    estava diante de situaes eclesiais somente uns dez anos depois que as epstolas foram

    escritas46

    .

    Examinando a tese de que as ideias separatistas peculiares provieram de um grupo

    que tinha sido admitido na comunidade joanina. Algumas vezes joga-se a culpa num

    influxo de pagos ou gentios, frequentemente com a suposio errnea de que no havia

    gentios na comunidade joanina quando o evangelho foi escrito. Outros pensam num

    grupo judeu de lngua grega cujas ideias conteriam uma mistura de religio filosfica

    helenista, em virtude da meno de falsos profetas (1Jo 4,1) e da exigncia por parte do

    autor de testar os espritos, outros ainda pensaram numa invaso de carismticos

    errantes. No h como desaprovar tais hipteses, porm elas no passam de

    suposies47

    .

    Brown acredita que tanto o autor das epstolas quanto os separatistas conheciam o

    quarto evangelho, mas a interpretavam diferentemente. Os adversrios no eram

    estranhos denunciveis comunidade joanina, mas produto do prprio pensamento

    joanino, justificando suas posies com o evangelho joanino e suas implicaes48

    . No

    est se afirmando que o evangelho joanino levou inevitavelmente sua posio nem

    posio do autor, tampouco claro que ambas as posies sejam uma distoro total do

    evangelho joanino. Subsequente a Igreja, aceitando 1Jo no cnon da Escritura, mostrou

    que aprovou a interpretao do autor e no a dos seus adversrios.

    43 Brown citando K. Weiss em seu livro: BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 110. 44 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p. 175: Antes de tudo, temos de nos lembrar do postulado que sustentava toda a filosofia grega desde Plato: a perfeio consiste nas ideias invisveis e eternas; as realidades histricas contingentes trazem, pelo contrrio, a marca da corrupo. A partir deste estado de esprito, a mensagem evanglica era inaceitvel como se apresenta. No se podia conceber um Deus perfeito que se d a conhecer sob traos de homem limitado a um pas, a uma poca e submetido, sem dvida, s transformaes e morte. Na poca helenista, podemos ver forte corrente dualista opor a matria ao esprito, de tal forma que o homem procura a salvao pelo desapego de tudo o que o conserva preso s coisas da terra; assim sendo, no convinha a Cristo Salvador subjugar-se ao corpo humano , se o fez para permitir que o vissem e o ouvissem, convinha estabelecer as distines necessrias para que seu ser profundo no fosse atingido. Jesus teria somente a aparncia da natureza fsica. 45 Conhecemos o nome deste homem e as ideias que professava, atravs de Ireneu (Adversus Haereses, livro 1, 26,1). 46 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 110. 47 Ibdem, p.111. 48 Ibdem, p.111.

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    Na tradio havia textos de ambos os lados do problema. Assim, cada uma das

    partes disputantes alegava que sua interpretao do evangelho era a verdadeira. No

    estilo de argumentao do autor, ele no nega as afirmaes principais de seus

    adversrios, mas as qualifica. Se as afirmaes principais de seus adversrios so tiradas

    da tradio joanina, elas so tambm verdadeiras para o autor. E assim ele deve procurar

    mostrar que seus adversrios no esto se atentando s implicaes destes princpios

    (1Jo 2,4.6.9s). Algumas aluses, absolutamente explcitas aos adversrios da f,

    caracterizam duas sees (2,18-26; 4,1-6); em outra passagem, podemos perceber ser

    ainda retomada e condenada a pretenso deles, como por exemplo, em 1,8: Se

    dissermos que no temos pecado, enganamo-nos a ns mesmos e a verdade no est em

    ns, ou em 2,9: Aquele que diz estar na luz, mas odeia seu irmo est nas trevas at

    agora 49

    .

    As advertncias sobre os inimigos fazem, alguns exegetas, acreditarem serem os

    mesmos combatidos por Incio de Antioquia, na poca, se salientaram Cerinto e os

    Nicolatas como opositores das teses crists. Esses inimigos viscerais do Evangelho

    eram conhecidos como anticristos (1Jo 2,18.22;4.3;2Jo 1,7), pois, como Paulo fala,

    eram tambm inimigos da cruz de Cristo (Fl 3,17-21), e podem ser os mesmos do

    ambiente do Ap 2,2-4, onde eram denunciados os que se diziam apstolos mas no o

    eram, eles no passavam de mentirosos visto que se infiltravam nas comunidades crists

    ensinando coisas diferentes, exigindo a observncia de costumes judaicos concernentes

    aos alimentos e ritos (um exemplo disso aconteceu na Antioquia, relatado em Gl 2, 1-

    14), de modo anlogo, os Nicolatas, representantes da insubmisso e oposio

    autoridade e de rituais de sacrificios no cristos (Ap 2,20). Outra corrente de perigos

    vinha pela gnose, com aqueles que se dizem dos nossos, mas no o so (2,19),

    rompendo com a fidelidade da comunidade. Nunca pertenceram comunidade, mas de

    fato quem so eles? O que eles ensinam na est dito no texto, mas se percebe que no

    reconhecem e no confessam Jesus como o Cristo, e, por isso, o autor os denomina de

    anticristos (1Jo 2,18;4,3). Eles tambm so caracterizados como mentirosos e

    enganadores (1Jo 2,21.22.26-27;3,7).50

    Entre os esses inimigos estavam certamente os

    docetistas, os gnsticos e os poderosos do imprio que espalhavam teorias dualistas,

    ficcionistas e fantasiosas a respeito da paixo e da ressurreio de Jesus51

    . Eusbio,

    citando Ireneu, afirma que a Besta ou anticristo j era conhecido de todos na poca:

    "Ns pois, no nos arrisquemos a manifestarmo-nos de maneira segura

    sobre o nome do anticristo, porque, se houvesse sido necessrio na presente

    ocasio proclamar abertamente seu nome, ter-se-ia feito por meio daquele que

    tambm tinha visto o Apocalipse, j que no faz muito tempo que foi visto, mas quase em nossa gerao, ao final do imprio de Domiciano.

    52"

    49 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p.170. 50 TILBORG S. van. Primeira Carta de Joo, in: TEVSEN, G. et alii. Cartas de Pedro, Joo e Judas. So Paulo, Loyola, 1999.p. 187. 51 MAZARROLO, Isidoro. As trs cartas de So Joo: exegese e comentrio. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010, p.23. 52 CESARIA, Eusbio de. Histria Eclesistica. So Paulo: Novo Sculo, 2002. V.VIII. VI

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    A crise na comunidade de Joo comea quando os falsos mestres se levantam e

    ensinam novas teorias, diferentes das postuladas pela tradio joanina (1Jo 1,4;2,7ss)53

    .

    Esses falsos mestres no so dos nossos (1Jo 2,19). Podemos perceber, que o autor est

    em desvantagem em sua argumentao, e suas refutaes so curiosamente indiretas. Os

    seus adversrios poderiam dar a impresso que de conhecer o evangelho joanino, mas,

    em sua opinio, eles esto distorcendo precisamente porque ignoram a tradio que

    constitui o seu substrato54

    . O autor preocupado com a situao considera de extrema

    importncia escrever a comunidade, a fim de que fiquem firmes no ensinamento dos

    apstolos e naquilo que ele mesmo havia ensinado55

    .

    I- AS REAS DE DEBATE

    Segundo Brown56

    , as reas de cristologia, de tica, de escatologia, e

    pneumatologia, foram os principais pontos de conflito entre o autor e seus adversrios.

    Descreveremos ento a posio dos separatistas para ver se ela pode ter sado do

    evangelho joanino, e tambm a interpretao do autor que se ope as separatistas. O que

    est em jogo no diretamente a conduta moral, mas, antes de tudo, a prpria definio

    do cristianismo, a autenticidade do novo relacionamento entre Deus e os homens

    institudos por Jesus Cristo57

    .

    A. Cristologia

    Uma cristologia muito elevada foi o ponto central das lutas histricas da

    comunidade joanina com os judeus e com os outros cristos, na poca em que o

    evangelho foi escrito. A crena na preexistncia do Filho de Deus foi chave da

    contenda joanina de que o verdadeiro crente possua a prpria vida de Deus, e o QE foi

    escrito par fortalecer a f dos cristos joaninos sobre este ponto (20,31).

    O autor insiste claramente que Jesus o Cristo (Messias), o Filho de Deus; e todo

    aquele que negar isto mentiroso e um anticristo (2,22). O autor que cr que a Vida

    eterna que estava com o Pai nos apareceu (1Jo 1,2), que o Filho de Deus se

    manifestou (3,8), que Deus enviou o seu Filho unignito ao mundo (4,9), que o Pai

    enviou seu Filho como Salvador do mundo (4,14), que Jesus aquele que veio

    (5,5.20), e que Jesus o verdadeiro Deus (5,20). Contudo, o autor desafiar as

    concluses erradas que seus adversrios tiraram desta teologia encarnacional

    comumente admitida, e assim ele tem o cuidado de acompanhar as afirmaes que

    implicam a preexistncia com outras afirmaes que salientam a carreira do Verbo-

    feito-carne, uma nfase mais formal e explcita do que se encontra no QE58

    .

    No prlogo de 1Jo e o prlogo do QE, aparecem os mesmos termos (princpio,

    palavra, vida), mas com uma significao diferente. Enquanto para o QE (1,1) o

    princpio antes da criao , para a epstola (1,1) o que era desde o princpio

    53 Uma crise semelhante a esta pode ser encontrada em Filipos (Fl 1,16-17) e na Galcia (Gl 1,6-9), onde aparecem falsos missionrios infiltrados nas comunidades e criando confuses nos ensinamentos de Paulo. 54 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 112. 55 MARSHALL, H. The Epistles of John,p.14 56 Daqui para frente iremos basear nossa pesquisa no livro: BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discpulo Amado, So Paulo: Paulus, 1999, pp. 114-171. 57 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p.171. 58 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 125.

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    paralelo ao o que ouvimos...o que vimos...o que contemplamos... e nossas mos

    apalparam, em outras palavras, o princpio do ministrio, quando Jesus comeou o seu

    primeiro relacionamento com os seus discpulos. Em outras palavras para o autor da

    epistola a Palavra da vida a mensagem evanglica da carreira vivificante de Jesus

    entre os homens. o autor est tentando eliminar seus adversrios insistindo numa

    confisso pblica de que este envio ou esta vinda foi em carne humana (1Jo 4,2; 2

    Jo1,7). Sem esta modalidade humana, o autor afirma, a vida eterna no se teria

    manifestada a ns (1,1-2)59

    .

    B. tica

    Se a cristologia foi o primeiro campo de batalha entre o autor e os separatistas,

    houve tambm escaramuas sobre as implicaes da cristologia no comportamento

    cristo.

    1- Intimidade com Deus e impecabilidade

    Em 1Jo 1,8 e 10 h uma afirmao dupla dos adversrios de ausncia de pecado,

    que a primeira vista ser estranha a tradio joanina. Os separatistas estavam baseando-

    se no QE para justificar a sua ausncia de pecado, numa analogia entre os cristos e

    Jesus. Jesus o Filho de Deus, e os que creem nele so filhos de Deus (Jo 1,12). Os

    separatistas podem ter afirmado que, tornando-se filhos de Deus, eles ficariam sem

    pecado, exatamente como o Filho de Deus era sem pecado (8,46) e que o Esprito que

    eles receberam dava-lhes o poder sobre o pecado (20,22)? Que aquele que crer no Filho

    no ser julgado (3,18; 5,24)? Os adversrios, no seu perfecionismo, vem a ausncia de

    pecado como realidade e no como uma obrigao. O autor ento na sua afirmao

    associa o desafio da ausncia do pecado com o fato de ter nascido de Deus (1Jo 3,5-6;

    3,9). O autor ento v a ausncia do pecado como a prpria implicao da gerao

    divina e por isso uma obrigao do cristo. Entendendo, que o seu cometer pecado

    significa no cometer consequentemente pecado, pois noutra parte ele reconhece que

    os cristos podem pecar, refutando o perfecionismo dos seus adversrios (1Jo 2,1)60

    .

    2- Observncia dos mandamentos

    Outra maneira de como o autor de 1Jo contesta o perfecionismo dos adversrios

    relacion-lo com a observncia dos mandamentos (2,3;3,22 e 24:5,2-3). Sem mais

    cerimnias ele chama de mentiroso quem disser: Eu conheo Deus sem observar os

    mandamentos (2,4). A explicao mais plausvel para da atitude dos separatistas diante

    dos mandamentos que eles no do nenhuma importncia salvadora ao

    comportamento tico, e que esta posio tenha derivado da sua cristologia. O autor

    ento apela para o exemplo geral da vida terrena de Jesus como modelo da vida dos

    cristos, argumento que est em harmonia com a diferena entre a sua cristologia e a de

    seus adversrios, mas se torna necessrio ento permanncia de andar exatamente

    como Cristo andou (1Jo 2,6), de purificar-se para ver Deus (1Jo 3,3) e de agir assim

    como ele justo (1Jo 3,7)61

    .

    3- Amor Fraterno

    Na tradio joanina s existe um nico mandamento que inclua todos os outros

    mandamentos, a exigncia de amar (Jo 13,35; 15,12). O autor da epistola tambm,

    59 Ibdem, p. 128. 60 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, pp. 131-132. 61 Ibdem, pp.133-136.

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    embora fale de mandamentos (no plural), traduz tudo em amor fraterno (3,22-

    24;4,21;5,3). Consequentemente, o nico pecado que especifico que o autor menciona,

    quando ataca os separatistas e seu descaso em observar os mandamentos, no amar os

    irmos (2,9-11; 3,11-18; 4,20). A chave do problema est na definio de irmos.

    Para o autor da comunidade joanina que estavam em comunho (koinnia) com ele e

    que aceitavam a sua interpretao do evangelho joanino. Os separatistas tinham-se ido e

    j no eram irmos, eles so demonacos, anticristos, falsos profetas e encarnam a

    malignidade escatolgica ou a iniquidade (1Jo 2,18.22; 4,1-6; 3,4-5). Com efeito, a sua

    prpria separao era sinal de falta de amor pelos irmos do autor (1Jo 4,20)62

    .

    C. Escatologia

    Como o autor das epstolas fiel a tradio, no h nenhuma surpresa que ele

    tambm professasse uma escatologia realizada (1Jo 1-3.7.14; 2,5.9-10; 3,1;4,15) o autor

    toma as duas medidas para prevenir que esta escatologia realizada encoraje seus

    adversrios. Em primeiro lugar ele vincula uma necessidade tica de exigncia de

    escatologia realizada (1,7; 2,5. 10; 3,10). Em segundo lugar, ele apela para a escatologia

    futura (3,3), ou seja, ele est acentuando bnos futuras porque elas dependem da

    maneira como os cristos vivem (1Jo 2,28; 3,18-19), e a escatologia futura pode,

    portanto ser empregada como um corretivo tico dos separatistas63

    .

    D. Pneumatologia

    O autor de 1Jo assegura que a seus ouvintes: No tendes a necessidade de que

    algum vs ensine (2,27) e adverte como muitos falsos profetas vieram ao mundo,

    eles devem examinar os espritos para ver se so de Deus (4,1). Isto nos leva a

    suspeitar que os adversrios devem ter-se arvorado em doutores e profetas e devem ter

    afirmado que falavam sob a orientao do Esprito. O sucesso lhes teria provado que

    eles eram a verdadeira comunidade joanina que realizava orao de Jesus que previu

    uma cadeia de converses (Jo 17,20). Eles estariam convencidos de que convertidos

    eram o dom do Pai a Jesus que est assim tornando o seu nome conhecido como um

    sinal ao mundo (17,23 e 26). No lado desfavorvel das estatsticas, o autor v o sucesso

    de seus adversrios sob outra luz. Como o Parclito o Esprito da Verdade, que o

    mundo no pode acolher, porque no o v nem o conhece (Jo 14,17), e o Esprito que

    julga que o mundo culpado (Jo 16,8-10), o sucesso dos separatistas no mundo sinal

    de que eles no examinaram os espritos. O esprito deles no o Esprito da Verdade;

    eles pertencem ao Prncipe deste mundo, Jesus havia ordenado os seus seguidores (Jo

    15, 18-19). O sucesso um sinal de que os adversrios no pertencem a Cristo, um

    sinal que se junta convico pessimista do autor de que a ultima hora est prxima

    (1Jo 2,18)64

    .

    QUARTA FASE DEPOIS DAS EPSTOLAS: DISSOLUES JOANINA

    O autor das epstolas parece ter sido proftico quando afirmou que a diviso entre

    seus adeptos e os separatistas marcava a ultima hora. Os escritos joaninos e alguns

    elementos do pensamento joanino so confirmados no sculo segundo, mas depois das

    epstolas no h mais nenhum vestgio de uma comunidade joanina distinta e separada.

    No se pode negar a possibilidade de ter sobrevivido realmente uma comunidade que

    62 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, pp. 136-141. 63 Ibdem, pp.141-144. 64 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, pp. 144-150.

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    procedia quer dos adeptos do autor, quer dos separatistas (ou comunidades provinientes

    de ambos), mas esta comunidade no deixou nenhum vestgio na histria. Alis, muito

    mais provvel que os dois grupos fossem absorvidos respectivamente pela Grande

    Igreja e pelo movimento gnstico. Os adeptos do autor teriam dado a sua prpria

    contribuio joanina Grande Igreja. Os separatistas teriam dado a sua contribuio ao

    gnosticismo. Mas em ambos os casos a comunidade joanina adptara de tal modo a sua

    prpria herana em favor do grupo mais amplo, que a identidade peculiar do

    cristianismo joanino, que conhecemos pelo QE e pelas epstolas, teria deixado de

    existir.

    Se parte da comunidade joanina do autor se fundiu gradualmente com os cristos

    apostlicos integrando-se a Grande Igreja, levou consigo a alta cristologia joanina da

    preexistncia, precisamente porque, na sua luta contra os separatistas, o autor das

    epstolas tinha salvaguardado aquela cristologia contra qualquer interpretao que

    levasse o docetismo ou ao monofisitismo. Contudo, o prprio fato de que uma

    eclesiologia centralizada no Parclito no oferecia nenhuma proteo real contra os

    cismticos fez, em ltima anlise, com que seus seguidores aceitassem a estrutura de

    magistrio autoritria de bispo presbtero, a qual no sculo segundo se tornou

    dominante na Grande Igreja, mas era inteiramente estranha tradio joanina. Os

    separatistas, privados desta influencia moderadora que os adeptos do autor poderiam ter

    apresentado, se no tivesse acontecido o cisma, foram mais alm na sua cristologia

    ultra-elevada em direo do verdadeiro docetismo. Tendo pensado que a carreira terrena

    de Jesus no tinha uma importncia salvfica real, deixaram ento de pensar nela como

    real. Rendo pensado de si mesmos que eram filhos de Deus atravs da f em Jesus

    Cristo pela escolha do Pai, eles comearam ento a colocar esta escolha antes de suas

    vidas terrenas e pensaram que eles prprios eram divinos por sua origem, imitao de

    Jesus Cristo. Como o Filho, eles tambm vieram ao mundo, mas eles perderam o seu

    caminho, enquanto ele, no, e era agora a sua misso mostrar-lhes o caminho para a

    casa, o cu.

    O fato de estes separatistas trazerem o evangelho joanino com eles, oferecia aos

    docetas e gnsticos, de cujo pensamento agora eles participavam, uma nova base sobre

    a qual construir uma teologia, na verdade, servia como catalisador para o crescimento

    do pensamento gnstico cristo. A Grande Igreja tinha aceitado elementos da tradio

    joanina, quando aceitou os cristos joaninos que compartilhavam dos pontos de vista do

    autor, no comeo teve muita cautela com o QE porque ele tinha dado origem a erros e

    estava sendo usado em apoio dos erros. Eventualmente, contudo, tendo juntado as

    epstolas ao evangelho, como um guia de interpretao correta, a Grande Igreja (pela

    voz de Irineu, aproximadamente no ano 18 d.C.) defendeu o evangelho como ortodoxo

    contra os intrpretes gnsticos65

    .

    Concluso

    O grande avano que podemos notar desta pesquisa que o QE foi redigido em

    etapas, concomitantes com os momentos mais conflitivos da historia da comunidade

    unidade em torno da tradio do discpulo amado. Estas redaes se sucederam numa

    trajetria que foi desde a formao da comunidade ainda no marco institucional do

    judasmo, ao longo perodo entre o ministrio de Jesus e a Guerra Judaica (compilao

    de tradies bsicas autnomas), passando pela ruptura dolorosa com a instituio

    sinagogal no perodo ps-guerra (primeira e mais importante redao do Evangelho),

    seguindo por um perodo de tenso ainda maior, em virtude de perseguio vivenciada

    65 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado. So Paulo: Paulus, 2011. pp. 151-153.

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    no contexto do imprio romano e sem a mediao amortecedora da sinagoga (segunda

    edio, revista e ampliada, do Evangelho), e concluindo no confronto da comunidade

    joanina com as comunidades apostlicas em vias de institucionalizao (edio, reviso

    e pequena ampliao, com a juno progressiva das trs Epstolas, em vista da

    harmonizao do QE com as representaes mentais das comunidades apostlicas).

    A comunidade do Discpulo Amado teve conflitos com grupos inimigos ou

    diferentes da comunidade, mas tambm viu conflitos dentro da prpria comunidade. Na

    comunidade e na tradio do discpulo amado nasceu uma tendncia helenizante e (pr)

    gnstica, que fez uma interpretao espiritualista do evangelho. As assim chamadas

    cartas de Joo so escritas para corrigir esta tendncia dissidente. O autor das trs cartas

    tem uma interpretao do evangelho contraposta interpretao dos dissidentes

    helenizantes e espiritualistas.

    A primeira carta uma espcie de comentrio do evangelho, que o interpreta a

    partir da tradio do Discpulo A mado (oque era desde o princpio...), para combater

    a interpretao errada dos dissidentes espiritualistas. Os dissidentes levaro consigo o

    evangelho e o difundiro nos ambientes gnsticos do sculo II. O comentrio mais

    antigo do evangelho do gnstico Heracleo (160-180 d.C.). At o dia de hoje existe

    esta interpretao gnstica, helenizante e espiritualista do Quarto Evangelho. Por isso a

    importncia desta primeira carta para resgatar o esprito autntico e original da tradio

    do discpulo amado e da comunidade. O ponto fundamental de conflito, dentro da comunidade com os dissidentes, era a

    cristologia. Os dissidentes acentuavam a divindade de Jesus e davam pouco valor a sua

    humanidade. Fazem uma leitura unilateral do evangelho. O Jesus histrico sua vida e

    suas obras, inclusive sua morte na cruz no era importante para os dissidentes. Esta

    posio espiritualista e helenizante encontrava em certo sentido um fundamento no

    prprio evangelho, pois este apresenta um Jesus transfigurado, revelador da glria do

    Pai. Sua prpria morte apresentada como uma glorificao, como uma ida ao Pai. O

    problema que, quando escrito o evangelho, a humanidade de Jesus era o bvio, o que

    todos aceitavam. O que era preciso provar era sua divindade. Por isso, o evangelho

    acentua a divindade. Na poca posterior, quando ocorre o problema com os dissidentes

    e se escreve a carta, a acentuao da divindade de Jesus leva supervalorizao de sua

    humanidade. A preocupao central do evangelho mostrar que Jesus homem era Filho

    de Deus. Agora a preocupao da primeira carta demonstrar que o filho de Deus o

    homem Jesus.

    O segundo ponto de conflito com os dissidentes era a tica, sobretudo o amor ao

    prximo. Os dissidentes espiritualistas pretendiam ter tal intimidade com Deus que

    pensavam ser perfeitos e sem pecado; descuidavam o cumprimento dos mandamentos,

    sobretudo o do amor mtuo. Por isso a primeira carta insiste tanto no amor fraterno

    (3,14). O amor de Deus no permanece naquele que fecha seu corao ao irmo que

    padece necessidade (cf. 3,17) ou naquele que tem a arrogncia do dinheiro (2,16).

    Um terceiro ponto de conflito era a escatologia. Os dissidentes defendiam uma

    escatologia realizada: eles j estavam na luz, possuam a vida eterna, estavam em Deus.

    A primeira carta no desconhece esta realizao, mas a condiciona a guardar sua

    Palavra, prtica do amor fraterno, confisso dos pecados. A carta introduz um

    esprito apocalptico, chamando ateno sobre a ltima hora antes do fim, quando o

    crente deve fazer um discernimento entre os crentes e os anticristos (3,18-28), entre os

    que confessam Jesus vindo em carne e os falsos profetas (4,1-6). Outro ponto de

    conflito era a pneumatologia. Os dissidentes seguem a mestres e profetas que dizem

    possuir o Esprito. O autor da carta no se ope a eles com um eu autoritrio e sim

    lembrando que todos os crentes so mestres, com o Esprito e no Esprito (2,20.27).

  • Departamento de Teologia

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    O autor deixa transparecer a conscincia de uma grande responsabilidade com a

    comunidade, as questes pastorais na poca no eram tranquilas: haviam muito falsos

    mestres, muitos opositores e manipuladores da verdade. Por isso, acompanhando as trs

    composies de Jo (1Jo,2Jo e 3Jo, sendo esta um pouco separada das outras duas),

    percebemos a dificuldade e a resistncia oferecidas pelos opositores. Em virtude dessa

    resistncia dos anticristos, o autor precisa afirmar seu crdito e sua autoridade como

    testemunha ocular da tradio joanina (1Jo 1,1-3).

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