a constitucionalidade da compensaÇÃo em … · edvaldo brito anais do ix simpósio nacional de...
TRANSCRIPT
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
54
A CONSTITUCIONALIDADE DA COMPENSAÇÃO EM
DETRIMENTO DA ORDEM DE PAGAMENTO DOS
PRECATÓRIOS
CONSTITUTIONALITY OF COMPENSATION AT THE EXPENSE OF THE ORDER OF PAYMENT OF PRECATORIES
Edvaldo Brito1
Sumário: 1. Precatório. 1.1. Noção. 1.2. Pressuposto. 1.3. Características. Aspectos
inconstitucionais da emenda constitucional nº 62. 1.4. Origem. 1.5. As novas regras.
2. A compensação tributária em detrimento da ordem de pagamento dos precatórios.
2.1. O poder liberatório na prestação tributária. 2.2. Ofensa a princípios
constitucionais em detrimento da ordem de pagamento dos precatórios.
1 PRECATÓRIO
1.1 Noção
É uma ordem de pagamento de uma prestação, em dinheiro, expedida para o
órgão da Administração Pública devedor, pelo presidente do Tribunal de Justiça
competente em cujo âmbito foi proferida a decisão exequenda, já transitada em julgado.
1.2 Pressuposto
O precatório tem como seu antecedente necessário a existência de uma
decisão exequenda, cujos elementos constitutivos são:
1 Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, onde leciona no curso de pós-graduação
(Mestrado e Doutorado). Professor Emérito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo).
Professor Titular de Direito Civil e de Legislação Tributária, aprovado em concurso de provas e de
títulos na USP – Universidade de São Paulo. Doutor e Livre Docente na USP. Mestre em Direito
Econômico na UFBa. Advogado na Bahia e em São Paulo.
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
55
a) – trânsito em julgado;
b) – liquidez e certeza do objeto;
c) – dívida de quantia em determinado metal;
d) – inclusão no mapa de ordem cronológica – MOC.
a) – trânsito em julgado – consiste na transformação da decisão em coisa
julgada e, portanto, excluída do alcance da retroatividade, tal como dispõe a
Constituição2 , assim, aplicável ao legislador, inclusive o competente para a reforma
do texto constitucional, aqui, inserido o princípio da segurança jurídica cuja matriz é
a previsibilidade das normas; a sentença, por ser uma delas, participa desse
contexto, tendo de ser preservada da forma como foi proferida, se ela transita em
julgado.
Conclui-se, de logo, por uma primeira inconstitucionalidade da Emenda
Constitucional nº 62, de 09 de dezembro de 2009, por fazer retroagir situação não
pertinente por não ter sido contemporânea da irreformável sentença exequenda,
qual seja o direito de abatimento do valor de prestação, que seria devida ao sujeito
passivo do precatório, atribuída ao credor desta ordem de pagamento, tudo
mediante compensação.
b) – liquidez e certeza – implica em uma dívida cujo montante está
indiscutivelmente apurado, calculado (dívida líquida) e, por isso, o seu objeto é
inquestionável (dívida certa).
c) – dívida de quantia em determinado metal – fala-se, aqui, de uma
prestação pecuniária cujo objeto tem de ser dinheiro, mas, na única moeda
convencionada que, no caso, tem de ser aquela de curso legal e, também, forçado,
no Brasil. Ora, dívida de dinheiro não pode ser considerada prestação de coisas,
ainda quando tenha por objeto determinada espécie monetária. Assim, não poderá
ser satisfeita, senão pelo determinado metal, a moeda convencionada (GOMES,
2009). A emenda constitucional não tem o condão de transformar naturezas
jurídicas, ou seja, a essência de institutos, conceitos e categorias jurídicos formada a
2 cf. art. 5 º [...] XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada.
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
56
partir da sedimentação das instituições jurídicas. Afinal o direito não se confunde
com a forma de sua positivação. Ele, em essência, é a conduta humana quando na
sua interferência intersubjetiva, sendo a positivação, apenas, o pensamento dessa
conduta formulado em técnica normativa (COSSIO, 1964; 1954). Essa emenda
padece, também, desses vícios, porque substitui o pagamento pela compensação.
d) – inclusão no mapa de ordem cronológica – MOC – a determinação do
presidente do Tribunal para o pagamento deve ser recebida, pela Administração
Pública devedora, até 1º de julho do respectivo ano de sua expedição, a fim de que
seja incluída no mapa, pela ordem cronológica de chegada da indicação do valor
que comporá o total da verba a ser inscrita no Orçamento Público, a qual responderá
pelo cumprimento da prestação devida.
1.3 Características. Aspectos inconstitucionais da Emenda nº 62
1.3.1. Ato de presidente de Tribunal – Esta particularidade de ser uma ação
da autoridade maior da organização judiciária conduz à perquirição quanto à
natureza jurídica desse ato, se administrativa ou se jurisdicional.
É jurisdicional porque a) – determina um pagamento; b) – autoriza um
sequestro.
Todo ato cujo conteúdo exprime o poder de julgar de um magistrado
consiste em resolver pendências ditando o comportamento alheio. É a espécie. O
presidente do Tribunal, em cujo âmbito foi proferida a decisão que, então, executa-
se, tem, ao praticar esse ato, o poder de resolver o litígio entre a Administração
Pública e a parte que logrou a proteção do seu direito subjetivo que a si irroga. A
Constituição outorga-lhe a competência de determinar à autoridade administrativa o
pagamento integral da prestação pecuniária devida ao titular do crédito.
O ato presidencial reveste-se, também, de jurisdicionalidade porque autoriza
o sequestro do valor da prestação pecuniária, quando a autoridade administrativa
descumpre a determinação presidencial de pagamento, tal como será descrito infra.
1.3.2. Ato de execução de sentença – Remanesce a natureza jurisdicional
desse ato ao perscrutar-se o seu efeito: o de efetivar a execução de uma sentença
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
57
condenatória contra a Fazenda Pública, pois, ele integra o procedimento judicial
respectivo, desde que a requisição de pagamento, formulada pelo presidente do
Tribunal, tem origem no juiz do feito, em 1º (primeiro) grau, após a citação do
devedor para opor embargos e este não o faz no prazo legal. Um iter dessa natureza
não poderia ser completado por ato administrativo, ou seja, de mera gestão.
1.3.3. Ato irrecorrível – O ato de requisição é irrecorrível quanto ao mérito.
Ele não participa de processo cognitivo cuja essência é verificar elementos de fato e
o enquadramento jurídico deste, que conduz à certeza, de modo a que o magistrado
diga que a situação existe ou não (CARNELUTTI, [s.d.]).
Consequentemente, no processo de conhecimento, a sentença é ato que
participa do procedimento para dizer da certeza sobre a existência ou a inexistência
da situação colocada à busca de ser dirimida uma disputa entre as partes. Nesse
ponto, o da requisição de pagamento, cabe, apenas, cumprir uma solenidade e,
assim, somente sobre a forma é possível recorrer, se esta for inobservada.
Portanto, a requisição de pagamento é ato irrecorrível quanto ao mérito.
1.3.4. Ato solene – O exercício da função do presidente do Tribunal, no
particular, obedece a uma solenidade, a partir da solicitação do juiz do feito que
executa quantia certa contra a Fazenda Pública. Ela é, como dito supra,
subsequente à citação do devedor para opor embargos à execução e logo que, no
prazo legal, tal não ocorra opera-se o início do procedimento de requisição.
Tem, enfim, forma própria, não só pelos aspectos expostos, mas também,
pelos seus efeitos: a) – a responsabilidade da presidência do Tribunal, de ser
partícipe da efetivação da execução e b) – as sanções que lhe são cominadas pela
Constituição.
Efetivamente, não há alternativa para o presidente o Tribunal. Ele tem de
determinar o pagamento da prestação pecuniária, sob as penas capituladas pela
própria Constituição que lhe proíbe sequer de retardar a liquidação regular do
precatório.
Por isso, as sanções para sua omissão ou para a sua ação de que resulte
não só o retardo, mas também a frustração do pagamento. Elas são de duas
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
58
espécies: 1ª – crime de responsabilidade; 2ª – responsabilidade funcional perante o
Conselho Nacional de Justiça.
1ª – O crime de responsabilidade, na verdade, não é uma ilicitude punida
com pena de natureza criminal. É uma infração sancionada com perda do cargo para
a qual não há, propriamente, restrição de liberdade.
Regula-o a lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, em cujo art. 2º estabelece
que assim se entendem os crimes, ainda quando simplesmente tentados, passíveis
da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de
qualquer função pública.
Argua-se, aqui, o “due process of law”. O devido processo legal não atina
somente com procedimentos estritos, legalmente, previstos, mas também, e dentro
deles, com a prática dos atos respectivos pela autoridade competente, incluída neles
a sentença do magistrado, quando for o caso.
Tudo isto vem a pelo porque a Constituição dispõe que o presidente do
Tribunal que retarda ou tenta frustrar a liquidação de precatórios incorrerá em
crime de responsabilidade. A lei que a regula, a de nº 1.079/1950, define que são
crimes de responsabilidade aqueles que ela específica, quais sejam os atos: a)
contra a existência da União; b) - contra o livre exercício dos poderes
constitucionais; c) – contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; d)
– contra a segurança interna do país; e) – contra a probidade na administração; f) –
contra a lei orçamentária; contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos; g)
– contra o cumprimento das decisões judiciárias.
Define, outrossim, os elementos constitutivos da infração, dentro da
tipicidade cerrada — princípio fundamental do direito de o Estado punir — quando,
então, discrimina cada “facti species”, estipulando-lhe o elemento subjetivo. Então,
os presidentes de Tribunais Superiores, dos Tribunais Regionais Federais, do
Trabalho e Eleitorais, dos Tribunais de Justiça e de Alçada dos Estados e do Distrito
Federal são discriminados, de modo explícito, como convém à hipótese, pela
inclusão que fez a lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, mas, para as condutas
previstas como crimes contra a lei orçamentária.
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
59
Ora, se a tipicidade cerrada exigiu tal procedimento legislativo, por que não o
há para a conduta do presidente de tribunais “que, por ato comissivo ou omissivo,
retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatórios”?
O questionamento prevalece, ainda que se argumente que essa conduta
ilícita já está contemplada no tipo do art.12, item 4, quando a lei nº 1.079/1950 traz a
cláusula genérica: “impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença
judiciária”, porque parece não ser, nesse caso, o presidente o destinatário dessa
norma. Enfim, cabe a dúvida que, aqui, pretende-se dirimida com as considerações
formuladas nas linhas antreriores.
2ª – A responsabilidade funcional perante o Conselho Nacional de Justiça foi
objeto, em 29 de junho de 2010, de Resolução desse órgão competente para o
controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, aprovada pela
maioria do colegiado. Foi da relatoria do conselheiro Ives Gandra Martins Filho, mas,
houve conselheiro questionando a sua constitucionalidade, face ao texto submetido
ao plenário, por isso, fala-se em maioria e não em unanimidade.
Efetivamente, a norma integrativa da Constituição, requerida através dos
termos da Emenda Constitucional nº 62, de 09 de dezembro de 2009, é uma lei
complementar, de modo específico, para estabelecer o regime especial para
pagamento de crédito de precatórios com a vinculação da receita corrente líquida.
A inconstitucionalidade que se poderia vislumbrar, à mingua do
conhecimento do autor deste trabalho quanto aos fundamentos adotados pela
minoria dos conselheiros, seria quanto a essa vinculação por ofensa à proibição
contida no item IV do art.167 da Constituição. Mas, antes disso a questão deveria
ser em torno da própria Emenda ao dispor sobre a receita corrente líquida, forma e
prazo de liquidação de precatórios estaduais, municipais e distritais, atingindo a
forma federativa de Estado, a partir de ofensa à autonomia assegurada pelo art.18
da Constituição nos termos plasmados pelo texto original, cuja incolumidade é
defeso à ação do legislador da reforma pela via da emenda.
É certo que nem toda matéria pode ser objeto de emenda, diante do núcleo
irreformável do § 4º do seu art. 60. E, parece, que esta mexe com a forma
federativa, quando, no acrescentado art.97 ao Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, dispõe sobre o referido regime ferindo a autonomia dos Estados,
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
60
Distrito Federal e Municípios, ditando-lhes o procedimento, com
sanções institucionais para o descumprimento.
É certo, também e porém, que, para argumentar, afaste-se a apreciação
dessa inconstitucionalidade da emenda, e se entenda a norma constitucional dela
decorrente como eficaz e, então, o problema resume-se na sua aplicabilidade.
A norma é eficaz quando emitida pela fonte a quem a convenção atribuiu o
poder (aptidão para gerar consequência: eficácia formal) e tem um relato como
mensagem a ser recebida pelo destinatário sem possibilidade de ele desconfirmá-Io
com sucesso (“eficácia” social ou, propriamente, efetividade), pois, no repertório
jurídico não pode haver a desconfirmação (BRITO, 1993).
Assim, trabalha-se na área da acepção ampla em que se reconhece, como
pressuposto, um mínimo de eficácia ao Direito e se pode distinguir eficácia e
efetividade e, com muito mais propriedade, adotar a lição de José Afonso da Silva
(1968) de que é premissa o enunciado: “não há norma constitucional alguma
destituída de eficácia. Todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando sempre
numa inovação da ordem jurídica preexistente a entrada em vigor da Constituição
que aderem, e na ordenação da nova ordem instaurada”.
Premissa de tal grandeza é incompatível com a doutrina tradicional da
norma programática, segundo a qual os direitos econômicos e sociais, debuxados
nas hipóteses normativas constitucionais, seriam, na realidade, conteúdos ético-
sociais ou econômico-sociais constitutivos de programas a serem posteriormente
implementados se e quando as autoridades competentes deliberarem fazê-lo. Por
isso, essas hipóteses normativas não seriam, propriamente, normas, mas, simples
enunciados sem natureza deôntica. Não há, neste sentido, norma programática.
Toda norma do tecido constitucional tem natureza jurídica e, por isso, participa de
todas as características desse tipo de regra.
Ruy Barbosa (1933) sepulta as dúvidas, afirmando que não há, numa
Constituição, cláusulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral de
conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela
soberania nacional ou popular aos seus órgãos.
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
61
A origem dessa ideia, a do valor programático de disposições
constitucionais, estaria nas transformações sociais do após-primeira-guerra mundial,
quando os textos legais desse nível começaram a agasalhar direitos sociais e
econômicos como compromisso entre as tendências que se chocam nos grupos
sociais: as progressistas e as conservadoras. Suas características não se
esgotariam nessa questão de mérito, mas também, no plano formal, porque seriam
normas dependentes de integração legislativa e, assim, teriam apenas função
eficacial negativa resultando em bloqueio para a atividade do poder público que,
tendo a faculdade de editá-las se e quando deliberar, não tem o direito de contrariá-
las.
Logo, enquanto faltasse lei integrativa, no mínimo essas normas não
irradiariam efeitos, salvo o de não poderem ser contrariadas pelo legislador infra
constitucional(?!).
Vezio Crisafulli (1985), há quase sessenta anos passados, elaborou
elucidativo estudo sobre o tema, recentemente republicado. Lembra que este
verdadeiro cavalo de batalha da doutrina que sustenta essa distinção entre a norma
a que chama de imediatamente preceptiva e a que denomina de norma
programática envolve a questão da entrada em vigor de uma nova Constituição e
das controvérsias consequentes, como, por exemplo, entre essa nova lei e as
normas legislativas anteriores em contraste com suas normas ditas programáticas
que geram dificuldades no campo da abrogação e da inconstitucionalidade
sucessiva ou hereditária.
Os limites deste trabalho não comportam o aprofundamento deste aspecto,
mas, ele serve para demonstrar quão saliente é adotar, ou não, a ideia aqui referida,
tendo em vista identificar qual a função eficacial das normas do tipo inventado. Os
limites deste trabalho, pois, vão admitir, apenas, apreciá-las sob a ótica da revisão
constitucional: se elas existirem, podem constituir princípios federativos, direitos e
garantias, etc. que não possam ser alterados? Por outro lado, elas inibem as normas
infraconstitucionais preexistentes, que lhe são contrárias? O próprio Crisafulli, à p.
56 do livro citado, oferece conclusão favorável à juridicidade do conteúdo dessas
normas, ajudando, assim, a responder as questões formuladas, ao asseverar:
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
62
1) – o reconhecimento da eficácia normativa, também, das dispoções
constitucionais exclusivamente programáticas, as quais enunciam verdadeiras
normas jurídicas, tão preceptivas quanto qualquer outra, ainda que se dirijam
originária e diretamente, apenas, aos órgãos do Estado, de modo especial, aos
legislativos;
2) – o reconhecimento, no ordenamento vigente, da natureza propriamente
obrigat6ria do vínculo derivado da norma constitucional programática, aos órgãos
legislativos, como consequência da eficácia formal prevalente da sua fonte (a
Constituição) em relação às leis infraconstitucionais;
3) – o reconhecimento, por isso, da invalidade da lei sucessiva que disponha
em contrário da norma constitucional programática e, segundo a corrente doutrinaria
que parece preferível, também, a invalidade da disposição de lei preexistente, e
enquanto com ela contraste:
Esta festejada conclusão desse autor italiano forra a aqui exposta, quanto à
inexistência de norma programática, no sentido, em contrário, defendido pela
doutrina que o adote; cuja origem, está no fato de que as transformações sociais do
após-primeira-guerra mundial, agasalhadas nos textos constitucionais coevos, não
ensejaria normas jurídicas, mas sim, meras diretrizes destituídas de sanção ou dita
origem está na natureza dessa norma tida como proposição que enunciasse essas
transformações no texto, e, assim, essa norma não seria materialmente
constitucional, mas, não há, também, norma que, estando inserida na Constituição,
não seja matéria de sua típica disciplina (BRITO, 1993).
Logo, todas as normas do texto constitucional são normas com juridicidade;
a natureza jurídica dessas normas, todas elas, é a de norma constitucional.
Partind8o daí, é que se enfrenta o problema da eficácia da norma constitucional e da
sua aicabilidade. Todas, sem exceção, são eficazes, porque todas irradiam efeito,
após a promulgação do texto; apenas, a sua aplicabilidade, às vezes, fica
relacionada com lei integrativa requerida pela própria Constituição, tal como lição de
Crisafulli, entre nós adotada por José Afonso da Silva (1968) , considerando uma
tríplice característica dessas normas, discrimina-as nas seguintes categorias:
I - normas constitucionais de eficácia plena e de aplicabilidade direta,
imediata e integral;
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
63
II - normas constitucionais de eficácia contível e de aplicabilidade direta,
imediata, mas não integral;
III - normas constitucionais de eficácia limitada e de aplicabilidade indireta,
mediata e reduzida.
É importante fixar essa categoria porque, para que seja eficaz, é necessário
que a norma seja aplicável, porque a aplicabilidade e a qualidade que uma norma
tem de incidir. E a norma somente pode incidir se ela é eficaz, se ela gera efeito. Daí
a classificação ser feita, de um lado, quanto à eficácia e, de outro, quanto à
aplicabilidade.
Assim, se a eficácia é plena, os efeitos são irradiados imediatamente. Se e
contível, os efeitos, também, são irradiados imediatamente, mas, poderão ser
contidos pelo legislador infraconstitucional, nas condições autorizadas pelo
constituinte. Já a eficácia limitada, embora esteja irradiando efeitos inibidores de
disposições em contrário, tem a aplicabilidade mediata porque a norma
constitucional, assim categorizada, pede uma lei futura que regule os seus limites,
mas, nada impede, exatamente, por ser eficaz, que o juiz aplique-a quando se
configure situação correspondente ao seu relato.
Consequentemente, a eficácia e a aplicabilidade das normas envolvem a
questão das leis integrativas de que dependeriam a eficácia e a aplicabilidade das
chamadas normas programáticas e suas relações com certas garantias: mandado de
injunção, ação de inconstitucionalidade por omissão, etc.
Toda norma constitucional de eficácia plena não precisa de nenhuma lei
integrativa para ser aplicável. Toda norma de eficácia contível ou de eficácia limitada
carece de lei integrativa. Portanto, na contível, a lei integrativa é para reduzir-lhe a
aplicabilidade que, até o seu surgimento, está sendo integral. É evidente que,
também, pode não reduzir. Só não pode, porém, é aumentar; é óbvio. Na eficácia
limitada, a lei integrativa é toda necessária, porque sem ela ainda não se pode dar
aplicabilidade à norma, salvo se acontecer o fato descrito pela norma constitucional,
hipótese em que o aplicador há de fazê-la incidir, diretamente, face a sua natureza
eficaz, fonte de direitos subjetivos.
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
64
Consequentemente, dada a sua eficácia, a falta de lei integrativa não impede
a aplicação da norma constitucional, tanto mais a partir do texto de 1988 que lista,
entre os direitos subjetivos públicos, o de impetrar mandado de injunção (art. 5º,
LXXI) toda vez que a falta de lei integrativa esteja impedindo que o seu titular exerça
os direitos e liberdades que a Constituição lhe outorga, bem assim as prerrogativas
inerentes à cidadania, tal como essa situação do não pagamento dos precatórios.
A discussão, segundo a qual o mandado de injunção deve ser impetrado
para forçar o legislador a emitir a norma, é descabida. A sua finalidade é assegurar o
exercício de um direito de que é titular o impetrante face à ausência da lei
integrativa. Opera, assim, efeitos limitados ao impetrante. O mandado de injunção
resolve a questão da aplicabilidade das normas constitucionais, na medida em que
não haja lei integrativa e a pessoa titular do direito subjetivo, esteja impedida de
exercê-lo por causa dessa inércia legislativa. O juiz, assim, não substitui o legislador,
mas, sim, aplica, diretamente, a norma constitucional fonte imediata desse direito.
Dessa forma, no Brasil, nem há espaço para admitir que haja norma constitucional
com conteúdo simplesmente ético-social, sem qualquer juridicidade.
É nesse contexto jurídico que opera a Resolução do Conselho Nacional de
Justiça. Admitida como válida a Emenda Constitucional nº 62/2009, se se puder
superar a circunstância de ela mexer com a forma federativa de Estado, ao dispor
sobre a receita corrente líquida, forma e prazo de liquidação de precatórios
estaduais, municipais e distritais, então, não haveria vício para a dita Resolução que
opera na inércia legislativa, passados que foram os 90 (noventa) dias, para a edição
de lei complementar integrativa, fixados pelo art. 3º da dita Emenda para a
implantação do regime de pagamento criado pelo art. 97, por ela incluído no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias.
Enfim, o art. 39 dessa Resolução dispõe sobre a abertura de procedimento
administrativo adequado, por omissão na adoção das medidas nela previstas, por
parte do presidente do Tribunal, sem prejuízo da punição por crime de
responsabilidade.
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
65
1.4 Origem
1.4.1. Regime constitucional - A trajetória da disciplina jurídica do precatório
revela que o seu regime jurídico sempre teve ambiência constitucional. Surgiu,
inserido nas Disposições Gerais da Constituição de 1934, como a regra do art.182,
mas, com determinação para os pagamentos devidos pela Fazenda federal, ainda
que o entendimento corrente fosse o da sua extensão compreensiva às
condenações das Fazendas estadual e municipal (NUNES, 1960). Aí está o embrião:
pagamento de acordo com a ordem de apresentação dos precatórios; à conta dos
créditos consignados pelo Poder Executivo ao Poder Judiciário; proibição da
designação de caso ou de pessoas nas verbas legais; sequestro por preterição.
1.4.2. Causas dessa regência constitucional – O agasalho da regra a esse
nível normativo deveu-se ao princípio da moralidade administrativa, porque o
procedimento, dessa forma, impediria a “advocacia administrativa que se
desenvolvia no antigo Congresso para obtenção de créditos destinados ao
cumprimento de sentenças judiciárias. Não raro, deputados levaram o seu
desembaraço ao ponto de obstruírem o crédito solicitado, entrando no exame das
sentenças, prática viciosa” [...] de examinar “os fundamentos destas e, se lhe não
agradavam, negava o crédito solicitado. Assim se sobrepunha um julgamento
político ao Judiciário; era um poder exautorado no exercício pleno de suas funções”
(NUNES, 1960). Nessas circunstâncias, melhor foi vedar a designação de caso ou
de pessoas nas dotações orçamentárias.
1.4.3. As Constituições sucessivas – A de 1937 tem redação igual, art. 95,
mas, a inserção é apropriada na parte do Poder Judiciário. A de 1946 mantém
redação idêntica (art. 204), porém, já inclui referência expressa às Fazendas
estadual e municipal e, assim, não fala em audiência do Procurador Geral da
República e sim do chefe do Ministério Público. Coloca a regra de volta às
Disposições Gerais. O texto primitivo da Constituição de 1967 mantém redação igual
ao de 1946, volta a ser disciplinado na parte do Poder Judiciário e cria a
obrigatoriedade de inclusão de verba orçamentária necessária ao pagamento de
todos os precatórios apresentados até 1º (primeiro) de julho (art. 112 e §§ 1º e 2º). O
texto de 1967, resultante da Emenda nº 1/1969, é “ipsis literis”.
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
66
1.4.4. A Constituição de 1988 – O texto primitivo, contido no seu art.100,
inova em relação ao de sua antecedente, apenas, para acrescentar que o
pagamento teria de ser feito até o final do exercício seguinte.
Restaria, então, o pagamento do estoque. Por isso, na forma de sua
natureza jurídica de direito intertemporal, o Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias estabeleceu no seu art. 33 que, ressalvados os créditos de natureza
alimentar, os precatórios judiciais pendentes poderiam ser pagos com juros e
correção monetária, em prestações anuais, no prazo máximo de oito anos, a partir
de 1º de julho de 1989, conforme decisão que teria de tomar o Poder Executivo em
até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição (até 03.04.1989), podendo
emitir, em cada ano, títulos de dívida pública não computáveis para efeito do limite
global de endividamento.
O tema sugere o estudo da natureza jurídica do Ato das Disposições
Transitórias, tal como o autor deste trabalho fez às ps. 67 a 70 do seu livro citado na
nota de rodapé nº 2, a fim de, identificando o seu conteúdo típico, saber-se da
possibilidade, ou não, de alterá-lo.
O Ato é um conjunto de normas-regra, logo, não acolhe princípios. É que, a
par de sua natureza normativa, a matéria de que cuida participa do regime próprio
dos preceitos que constituem o chamado direito transitório ou direito intertemporal.
Por isso, já se advirta com Josapaht Marinho (1992) que nem tudo, por exemplo, que
está no ato do texto de 1988, tem as suas características específicas; são, no seu
dizer, verbas testamentárias, tais como exemplifica: deliberações concessivas de
vantagens funcionais, de benefícios previdenciários, de efetivação de servidores de
plano; dispensa de correção monetária nos empréstimos feitos por bancos e
instituições financeiras a pequenos e médios empresários e produtores rurais entre
1986 e 1987. Assumem feição de liberalidade de testamento.
Os preceitos de direito transitório operam o efeito integrativo e, no caso do
ato, as suas disposições assim se comportam porque é necessário conciliar a
eficácia imediata da nova ordem constitucional com as pendências herdadas como
efeitos futuros dos fatos pretéritos submetidos ao seu domínio, até porque essas
pendências, as mais das vezes, são veiculadas por normas de nível legal que não
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
67
podem conviver com a nova ordem constitucional por incompatibilidade e, por isso,
não recebidas (princípio da recepção).
Essas disposições transitórias impõem-se, pelo que já foi dito. Todas as
Constituições incorporam-nas, exceção, obviamente, da de 1824, porque não havia
ordem constitucional precedente a que ela tivesse de fazer integração.
Contudo, nem sempre foi pacífica a sua incorporação no texto. Na
Constituinte de 1946, Gustavo Capanema ofereceu emenda, de nº 3.616,
pretendendo substituir o Ato por um texto autônomo, uma lei constitucional especial,
com o nome de lei de transição, inspirado pelo projeto de Kelsen para a Constituição
federal da Áustria, de 1920, justificando essa sua proposta no fato de que não seria
de boa técnica incorporar ao texto constitucional, destinado a vigorar
indefinidamente, preceitos de curta duração que, logo, deixariam de ter aplicação
(DUARTE, 1947). Essa reminiscência vem a pelo para que se fixe bem a natureza
das normas do ato, a de “lei transitória” que, nas lições de Roubier (1960), tem por
finalidade estabelecer um regime intermediário entre duas outras leis, permitindo a
conciliação das situações jurídicas pendentes com a nova ordem legislativa.
A Constituição jurídica, como toda outra lei, tem como regra geral a eficácia
imediata de suas normas, isto as torna, obviamente, obrigatórias, desde o momento
de sua promulgação, pondo-as, potencialmente, em conflito com aquelas que, na
ordem anterior, regulavam a matéria por outro modo. É, como acentua Clóvis
Bevilaqua (1955), o conflito das leis no tempo, que se resolve pelas regras do direito
intertemporal. Portanto, o ato é uma das convenções da Ciência do Direito
Constitucional, destinado a solucionar antinomias que ocorreriam, se ele não
existisse, face a que a nova ordem constitucional atingiria atos e fatos pretéritos, já
submetidos à ordem anterior; atingiria efeitos já consumados de atos e fatos
pretéritos; atingiria efeitos contemporâneos da nova ordem e futuros, ambos
decorrentes de atos e fatos pretéritos. Ao atingi-los, a nova ordem tem a
possibilidade de agravá-los criando situações subjetivas gravosas não previstas,
nem previsíveis, à época em que tais atos e fatos submeteram-se a uma outra
disciplina jurídica sob a égide da ordem constitucional anterior. As Constituições, em
razão disto, contêm, na parte final, determinações de caráter não permanente, mas,
na ocasião, necessárias para entrarem em execução certas disposições
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
68
constitucionais, para se ressalvarem certos direitos que, sem isso, entender-se-iam
suprimidos (BARBALHO, 1924).
Face a esta natureza, é possível, como lembra João Barbalho, que
disposições com este caráter transitório achem-se na própria parte dogmática como
eventual aspecto de uma regra permanente, ou que se achem, nessa parte final, sob
o titulo de transitórias, disposições que não o sejam, por exemplo, os arts. 72 e 82
do ato do texto de 1891, ou os arts. 2º, 43, § 4º, 69, § 4º, 83 e 91 da parte dogmática
desse mesmo texto que têm a natureza transitória. Somadas essas observações às
de Josaphat Marinho, cumpre cuidar de identificar no ato o que lhe é próprio,
porque, aquilo que o for, não pode, por natureza, ser objeto de qualquer alteração,
sob pena de desvio de competência.
Com efeito, as normas transitórias realizam a sua função quando atuam,
integrativamente, na solução das antinomias ora como lei de conflito, ora como lei de
transição, para usar expressões clássicas de Roubier. O objeto do direito transitório
é o conflito de normas jurídicas no tempo e a sua respectiva solução que pode estar
na própria lei que o provoque ou pode estar numa lei particularmente editada para
isto.
Modernamente, as leis contêm, elas próprias, com frequência, regras desse
gênero, sob o nome de disposições transitórias, na sua parte final, como precauções
para assegurar a ligação com a lei anterior.
Essas disposições organizam um regime especial para as situações
intermediárias e são chamadas por Roubier de lei de transição, diferentemente,
daquelas a que denomina de leis de conflito que decidem pela aplicação, no tempo,
das normas antigas ou das novas.
Ora, as disposições transitórias nas Constituições brasileiras,
tradicionalmente, ocupam a sua parte final e contêm, não só normas típicas do
direito intertemporal, mas também, outras estranhas à sua natureza, tal como já foi
advertido.
Certamente, que estas podem ser objeto de alterações; aquelas, ao
contrário, não se prestam a tal, porque ou o emissor discerne sobre qual norma é
aplicável (a da velha ou a da nova ordem constitucional); ou concede, aos titulares
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
69
de direitos, um certo prazo para conformá-los às disposições da nova lei (tempus
vacationis); ou outorga competência aos órgãos do Estado incumbidos do exercício
das mais diversas funções públicas (de governo ou de administração) para o
cumprimento de atribuição na linha da solução dos conflitos dessas normas no
tempo; ou estabelece procedimentos que, ao serem observados, exaurem situações
jurídicas atinentes ao ajuste das duas ordens normativas.
Consequentemente, estas normas típicas do direito transitório não são
alteráveis porque fazem parte da técnica jurídica em que o próprio legislador que
emite as normas novas, expedem-nas para solucionar conflitos com as normas
antigas conciliando problemas dos chamados efeito imediato e efeito retroativo que
elas irradiam. Alterá-las, insista-se, resulta em desvio de competência. Toda
competência é limitada porque quem a outorga dá a medida do seu exercício
(BRITO, 1993). Esse desvio avulta se se considerar uma modificação para atribuir
direitos, prerrogativas, munus, ônus, deveres, etc. a quem não tenha,
originariamente, titularidade ou sujeição; ou uma modificação que infirme os
princípios, ou o regime, ou os preceitos ostentados no preâmbulo e na parte
dogmática.
O legislador competente para a reforma da Constituição não tem sido
obediente, porque não vem observando este procedimento. Isto leva à lembrança de
que há distinção entre potência e competência o que faz chegar ao “jogo de lógica” a
que alude a autorreferência de Alf Ross nos seus estudos que remontam a 1929
(ROSS, 1963; 1969).
Pois bem: uma fonte normativa é potência quando representa uma
autoridade suprema cujas atribuições não derivam de nenhuma outra autoridade. Ao
contrário, é competência, quando derivam.
Por ser potência, o poder constituinte tem atribuições diferentes de entes
que exercem competência, v.g., o legislador que emenda e o que revisa a
Constituição jurídica. O seu procedimento, também, não é, previamente, estipulado.
Os seus titulares são indicados pelas circunstâncias dentro das quais as forças reais
de poder manifestam as suas condições de plena consecução do seu objeto que é a
criação de uma ordem nova. Logo, na oportunidade de uma emenda ou de uma
revisão do texto da Constituição jurídica não há exercício do poder constituinte.
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
70
Essas duas formas de alteração revelam funções distintas, entre si; e entre elas e o
poder constituinte. Este é origem, é causa, por isso, é titular de prerrogativas, ou
seja, tem atribuições próprias. É potência. Diversamente, os entes a que incumbe a
emenda ou a revisão da Constituição jurídica têm competência.
À semelhança de Kelsen, Alf Ross, nas obras e páginas citadas, explica que
a competência para emitir normas não está, geralmente, limitada a uma única
autoridade. Parte do direito que é criado mediante leis, consiste em novas normas
de competência que, por sua vez, constituem novas autoridades, também,
competentes para estabelecer outras autoridades, surgindo, assim, um complexo
sistema de autoridades de diversos níveis, obviamente, ocupando sempre o nível
mais baixo aquela cuja competência está determinada por normas criadas pela
última. Gozam do mesmo status autoridades que têm suas competências criadas
pela mesma autoridade superior.
Assim, é uma característica fundamental de uma ordem jurídica a de que a
maioria das regras que a constituem seja estabelecida mediante um ato de criação,
quer dizer, mediante uma decisão humana, conforme outras regras jurídicas,
chamadas regras de competência, as quais prescrevem as condições para que um
ato de criação seja válido e, por isso, tenha força normativa. Essas condições
classificam-se em três tipos: 1º) condições que indicam a pessoa ou as pessoas
qualificadas para realizar o ato de criação; 2º) aquelas que descrevem o
procedimento de criação; 3º) as que limitam a matéria objeto da regra que há de ser
criada por estas pessoas e segundo este.procedimento. Consequentemente, toda
regra de competência (c) constitui uma autoridade (A), o que permite esquematizá-
la, assim:
A¹ é autoridade suprema do sistema
A¹ cria C² e, portanto, cria A²
A² cria C³ e, portanto, cria A³
e, sucessivamente, vão-se constituindo as autoridades, ressalvando-se A¹
que, sendo a autoridade suprema do sistema, teve origem em norma pressuposta
que juridiciza o fato fundamental fonte das atribuições dessa autoridade. Por isso, no
plano da Lógica, é impossível que uma norma de competência determine as
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
71
condições para a sua própria criação, ou que uma proposição possa referir-se a si
mesma.
As normas que constituem uma autoridade (no exemplo, A² e A³) e em
competência, são, ao mesmo tempo, as que determinam o procedimento de como
pode ser reformado o direito criado pela autoridade criadora ou constituinte que,
dessa forma, estabelece as condições para a validez das normas subordinadas.
Consequentemente, as normas constituintes regulam tanto a emissão,
quanto a reforma das normas subalternas e, por isso, constituem a própria
autoridade que irá emiti-las. A Constituição jurídica, por exemplo, que opera o efeito
de norma que institui o processo legislativo, indica em que forma pode ser reformada
uma lei e, inversamente, as normas que nela regulam o procedimento especial para
a sua reforma, são, ao mesmo tempo, normas que estabelecem uma autoridade
reformadora distinta daquela que emite as leis conforme o procedimento comum.
Teran (1967) examina essa estrutura hierarquizada das fontes, para explicar
que a subordinação destes elementos opera a partir de uma esfera de maior
generalidade para esferas de menor, obedecido o escalonamento que consiste em
um processo derivativo ou seja a delegação de jurisdição ou competência que é uma
prerrogativa que o seu titular entrega a outrem, em parte, para que seja exercida em
determinada esfera. De referência ao poder constituinte, esclarece que ele não
baseia seus atos em qualquer Constituição, porque ele tem de ser, como
constituinte, originário. Toda esta construção doutrinária aqui desfilada, prova que as
reflexões dos cientistas do Direito resultam na afirmação de que o poder constituinte
é um conceito em cujos elementos insere-se a circunstância de ser absolutamente
livre para criar uma nova ordem jurídica, enfim, de ser uma potência. Daí porque, se
essa potência estabeleceu a competência para a reforma (emenda ou revisão) da
Constituição jurídica ela descreveu as três condições antes faladas: quem é o
outorgado dessa faculdade jurídica ou desse um múnus ou, até, de um poder-dever;
que conteúdo tem essa outorga; que procedimento deve ser observado pelo
outorgado.
Juridicamente, pois, não pode o outorgado alterar essas condições dentro do
sistema de direito legislado, sob pena de romper com a hipótese inicial e, então, já
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
72
se encontrará no campo dos fenômenos extrassistemáticos regado pelas mudanças
fáticas.
A conclusão é a de que o outorgado não pode ditar as condições para
reforma da outorga recebida, porque essas condições foram ditadas pela autoridade
suprema do sistema, a qual criou a regra (de competência) da emenda ou da
revisão, inserida na Constituição jurídica, por isso, Ross demonstra que somente há
uma forma possível de impugnar esse raciocínio expresso no esquema
anteriormente apresentado: poderia sustentar-se que autoridade suprema A¹ pode
ser estabelecida em norma emitida por ela mesma, o que equivale a dizer que é
possível que uma norma determine as condições para a sua própria emissão,
incluindo a maneira pela qual ela pode ser reformada. Uma “reflexibilidade” deste
tipo, porém, é uma impossibilidade lógica, tal como o reconhecem os lógicos. Uma
proposição não pode referir-se a si mesma.
Assim, a regra da revisão ou a da emenda é regra de competência e se
submete aos limites consubstanciados nos três tipos de condições que dão validez a
um ato de criação dessa natureza (C).
A diversidade de natureza entre as funções do poder constituinte e daquelas
que ele incumbe aos entes competentes para emendar e para revisar a Constituição
jurídica, conduz à diversidade de natureza entre esse poder e esses entes e à das
alterações nessa Constituição, demonstrando que, para elaborá-la, originariamente,
as funções são ilimitadas, mas, para alterá-la há limites, quais sejam os estatuídos
pela autoridade que cria a regra de competência respectiva, seja a da emenda, seja
a da revisão.
Conclua-se, enfim: é defeso mexer na parte dogmática da Constituição e,
pior ainda, no Ato das Disposições Transitórias, tal como se tem feito e se fez, no
caso sob exame, acrescentando esse art. 97 estatuindo o regime especial, para
pagamento de precatórios estaduais, municipais e distritais, atentatório ao princípio
federativo.
A matéria precatório constitui, por outro lado, um direito individual do tipo
subjetivo público porque atina com a propriedade protegida, constitucionalmente,
como direito fundamental. Assim, é infensa às alterações constitucionais, a que foi
submetida, por essa emenda nº 62.
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
73
Mas, já que tal procedimento irregular ocorreu, cabe examiná-lo, com essa
ressalva. A parte dogmática sofreu no seu art. 100, três emendas, as de
nºs.30/2000, 37/2002 e 62/2009. Cada uma pior do que a outra para a incolumidade
desse direito individual. O Ato das Disposições Transitórias não ficou atrás. Foi
emendado pelas mesmas três modificações, com idêntica péssima qualidade. A
Emenda nº 62/2009 consolidou o texto do art100 com a absorção de todas as
antecedentes. Já o Ato tem os arts. 33 e 78 (Emenda nº 30/2000) submetidos às
novas regras da Emenda nº 62/2009, mas, a regra dos seus arts.86 e 87 (Emenda
nº 37/2002) deverá ser interpretada em comum com as da Emenda nº 62/2009,
porque esta não trata inteiramente a matéria disciplinada por aquela.
1.5 As Novas Regras
1.5.1 Conteúdo
1.5.1.1. Manutenção da classificação dos precatórios pela natureza do
crédito – O crédito de natureza alimentícia é o resultante do trabalho
compreendendo aqueles decorrentes de contraprestação arrolada pelo dispositivo (§
1º do art. 100); porém, repete-se, no mérito, a redação anterior, razão pela qual não
se deve entender que abrange somente a remuneração resultante de relação de
emprego, desde que o Supremo Tribunal Federal compreendeu como alimentares os
honorários resultados do trabalho sem vínculo empregatício, como o são o dos
profissionais liberais, por exemplo (RE146.318-0, rel. Min. Carlos Velloso, 2ª T.
04.04.97).
1.5.1.2. Idosos – O credor idoso, aquele com 60 anos ou mais, prefere aos
alimentares, qualquer que seja a natureza, mas, até o valor de um triplo do chamado
de “pequeno valor”.
1.5.1.3. Pequeno valor – é o precatório de valor mínimo igual ao do maior
benefício do regime geral da previdência social, fixado pelas respectivas leis próprias
dos entes federados, na ausência das quais — que seriam editadas até 09.06.2010
— será adotado o correspondente a 40 (quarenta) salários mínimos para Estados e
Distrito Federal e 30 (trinta) para os Municípios.
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
74
1.5.1.4. Inclusão e pagamento obrigatórios – Todos os precatórios
apresentados até 1ª de julho serão obrigatoriamente incluídos no orçamento; o
pagamento terá de ser feito até o final do exercício seguinte, com atualização
monetária, apurada nessa ocasião e com juros moratórios, excluídos os
compensatórios.
1.5.1.5. Pagamento da compra de imóveis – O precatório tem poder
liberatório na compra de imóveis públicos do respectivo ente federado, conforme
estabelecido em lei de sua edição. Mas, na ausência desta, valem os fundamentos
já expendidos, neste trabalho, para regular essa omissão.
1.5.1.6. Cessão de crédito – O titular do precatório pode ceder, total ou
parcialmente, sem necessidade da concordância da Fazenda devedora, o crédito
nele instrumentalizado, porém, sem as preferências reconhecidas a esse titular se
ele for idoso ou se o seu precatório for enquadrado como de pequeno valor.
1.5.1.7. Compensação tributária – é outra inovação objeto de análise nas
linhas infra, tal como o regime especial.
1.5.2. O regime especial – Traz novas regras, na medida em que dispõe, de
modo diverso, sobre as antigas e em que cria novas situações jurídicas. Enfim, o
regime especial normatiza o pagamento de crédito de precatórios de Estados,
Municípios e Distrito Federal vinculando-o à respectiva receita corrente líquida
desses entes federados. É regrado pela própria Emenda nº62/2009, ainda que
requeira uma lei complementar a ser editada em noventa dias dessa promulgação
da alteração constitucional e, como tal não ocorreu, o Conselho Nacional de Justiça
supriu a omissão com uma Resolução que, no seu próprio seio, foi questionada
quanto à constitucionalidade e que, neste trabalho, busca-se validar pelos
fundamentos já expendidos, linhas supra.
Esse regime tem dois objetivos: 1º - o efetivo pagamento do crédito de
precatório; 2º - a garantia desse pagamento, mediante a vinculação do cumprimento
dessa prestação à respectiva receita corrente líquida.
Tomara que dê certo e não resulte nas frustrações que a história dos
precatórios registra.
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
75
Começa pela omissão legislativa, pois passou “in albis” o período de noventa
dias e se não fosse o Conselho Nacional de Justiça, constitucionalmente ou não,
agindo, não se teriam as regras de efetivação desse pagamento, ressalvado o
disposto no acrescentado art. 97, ao ato, pela própria Emenda, determinando que,
até a edição da lei complementar instituindo o regime especial, o ente federado que
esteja em mora com o pagamento de precatórios terá de fazê-lo ou adotando o
regime especial, tal como disciplinado pela própria Emenda, ou mediante o depósito
mensal, em conta especial, de 1/12 (um doze avos) do valor calculado
percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas, apuradas no
segundo mês anterior ao mês de pagamento.
Se o ente opta, expressamente, pelo regime especial, terá de adotá-lo por
ato do respectivo Poder Executivo, para viger por quinze anos; deverá depositar,
anualmente, na conta especial, sob pena de sequestro, o valor do saldo total dos
precatórios devidos, acrescido do índice oficial de remuneração básica da caderneta
de poupança e de juros simples no mesmo percentual e juros incidentes sobre a
caderneta de poupança para fins de compensação da mora, diminuído das
amortizações e dividido pelo número de anos restantes no regime especial de
pagamento.
Admitido, pois, o regime especial, as suas regras estipulam critérios
diferentes para os Estados, para o Distrito Federal e para os Municípios,
considerando-se o estoque de precatórios pendentes.
A Emenda define como receita corrente líquida o somatório das receitas
tributárias + as receitas patrimoniais + as receitas industriais + as receitas
agropecuárias + as receitas de contribuições + as receitas de serviços + as
transferências correntes + outras receitas correntes + as receitas da participação no
resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo ou de gás
natural ou de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros
recursos minerais no respectivo território, na plataforma continental, no mar territorial
ou na zona econômica exclusiva; este somatório diminuído das duplicidades e
deduzidas as parcelas entregues aos Municípios por determinação constitucional e a
contribuição dos servidores para custeio do seu sistema de previdência e assistência
social, bem assim as receitas provenientes da compensação financeira recíproca
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
76
dos diversos regimes de previdência social em razão da aposentadoria resultante da
contagem do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada.
Esta formulação assegura uma efetiva receita como base de cálculo para o
pagamento dos créditos de precatórios e para o cumprimento da prestação por parte
do ente federado devedor.
As contas especiais de depósito serão administradas pelo Tribunal de
Justiça e os recursos não poderão retornar para a Fazenda depositante. 50%
(cinquenta por cento), no mínimo serão utilizados para o pagamento dos precatórios
constantes do MOC (mapa de ordem cronológica), respeitadas as preferências. Os
recursos restantes destinar-se-ão:
I) – ao pagamento dos precatórios por meio de leilão, sob procedimento
regido pela própria Emenda nº 62/2009;
II) – a pagamento a vista de precatórios não incluídos nas duas hipóteses
anteriores, em ordem única e crescente de valor por precatório;
III) – a pagamento por acordo direto com os credores, na forma estabelecida
por lei da própria da entidade devedora que poderá prever forma de funcionamento
de câmara de conciliação.
O descumprimento dos deveres decorrentes do regime especial gera
sanções pessoais para o chefe do Poder Executivo, na forma da legislação de
responsabilidade fiscal e de improbidade administrativa e, enquanto perdurar a
omissão, também, sanções institucionais, pois, a entidade devedora: a) – não
poderá contrair empréstimo externo ou interno; b) – ficará impedida de receber
transferências voluntárias; c) – os Estados, o Distrito Federal e os Municípios terão
retidos, pela União, os respectivos Fundos de Participação, que serão depositados
nas contas especiais já referidas.
2 A COMPENSAÇÃO TRIBUTÁRIA, EM DETRIMENTO DA ORDEM DE PAGAMENTO DOS PRECATÓRIOS, É UMA DAS INCONSTITUCIONALIDADES
A Emenda nº 62/2009 admite a forma de extinção do crédito tributário
mediante a compensação com valores constantes de precatórios: a) – no momento
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
77
da expedição do precatório; b) – quando o precatório participar de leilão; c) – no
caso de não liberação tempestiva dos recursos destinados às contas especiais.
Cada hipótese tem sua própria regra:
a) – compensação no momento da expedição do precatório ocorre,
independentemente de regulamentação, com o abatimento do valor correspondente
aos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o
credor original, tudo feito pela Fazenda Pública devedora do precatório, sem o
necessários contraditório, incluídas as parcelas vincendas de parcelamentos,
ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação
administrativa ou judicial. Ora, se não há a inscrição em dívida ativa, não há liquidez
e certeza, nem mesmo por presunção relativa. Consequentemente, não pode ser
objeto de compensação.
O Tribunal deverá solicitar à Fazenda Pública devedora, antes da expedição
do precatório e para resposta em até 30 (trinta) dias, sob pena de perda do
direito de abatimento, informação sobre os débitos que preencham tais condições as
quais se encontram estabelecidas no § 9º do art. 100 com a redação da Emenda nº
62/2009.
O dispositivo ao mencionar débitos constituídos contra o credor, refere-se,
sem dúvida, àquele que corresponda ao chamado crédito tributário exigível, ou seja,
já apurado mediante a atividade administrativa de lançamento tributário, tanto que —
embora de modo errado — a emenda dispensa a inscrição em dívida ativa, ato que o
transformaria em crédito tributário exequível.
A relação jurídica tributária efetiva-se pelo crédito tributário. O direito
tributário brasileiro tem-no — pode-se dizer — como o céu cerne. Ele tem um regime
jurídico diverso daquele adotado pelo legislador para a obrigação tributária de cuja
estrutura participa, como o seu lado ativo, mas, em relação à qual sobrevive, mesmo
quando a relação obrigacional extinga-se (GOMES, 2009). É neste sentido que a lei
estabelece que a vida do crédito, quanto à sua modificação, efeitos, extensão,
garantias ou privilégios, não afeta a da obrigação de que faz parte.
A consequência deste regime próprio está nas diversas fases pelas quais
passa o crédito, podendo-se, por isso, denominá-las, tal como anunciado supra, em:
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
78
Crédito existente
Crédito exigível
Crédito exequível
Crédito existente, em uma fórmula matemática, é igual à hipótese legal do
fato gerador realizada pelo acontecimento por ela tipificado como origem da
obrigação tributária: crédito existente = lei + fato gerador. Pressupõe, com efeito, o
cumprimento exato da regra de competência, a partir da formulação constitucional,
feito pelo sujeito ativo titular da atribuição para exigir o tributo. Lembre-se com Alf
Ross (1963) que toda regra de competência comporta três critérios ditados pela
autoridade suprema do sistema normativo, conforme visto linhas supra.
Ora, cada vez que o acontecimento, descrito pelo legislador, ocorrer na vida
real, realizará o tipo contido na hipótese legal do fato gerador da obrigação tributária
e, então, o crédito tributário é existente. Nem por isso, o sujeito ativo, seu titular, está
apto a cobrá-lo. Necessita, então, transformá-lo em crédito tributário exigível. Assim:
Crédito tributário exigível é o existente que foi submetido à atividade
administrativa de lançamento tributário, assim entendida a operação realizada pela
autoridade, privativamente, competente para, além de outros procedimentos,
também, “liquidar a obrigação”, ou seja, tornar exato o valor da prestação tributária
compulsória, isto é, do tributo.
A liquidação da obrigação é operação somente deferida ao juiz, nunca ao
credor, nas hipóteses de
a) – inadimplemento da obrigação porque este torna incerto o valor da
prestação, face à incidência dos seus consectários: juros, multas, atualização
monetária, etc.;
b) – obrigação delitual, porque nesta há de mensurar-se o dano.
O lançamento é uma exceção a essa regra, certamente, pela nota de
soberania que carrega. É por essa circunstância, que o operador, a autoridade
administrativa, também, não tem o privilégio admitido para as demais situações
jurídicas administrativas, nas quais há a presunção de legitimidade e a auto-
executoriedade dos atos por ela praticados. Por isso, tornado o crédito exigível, a
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
79
legitimidade da prática respectiva há de ser examinada pelo juiz, bem como a
execução forçada do crédito não é “interna corporis” da Administração terá de ser
perante o juiz, também.
O crédito somente estará constituído — para que assim se atenda ao
disposto no § 9º do art. 100 da Constituição, com a redação da emenda — quando
submetido ao lançamento, passando, então a exigível. Porém, com esse
procedimento administrativo, ele, ainda, não é exequível e, portanto, é passível de
discussão, não tendo liquidez e certeza que é requisito da compensação,
advertindo-se que, para isso, não bastará, apenas, a atuação unilateral da
Administração que conduziria à informação referida no §10 desse mesmo artigo
constitucional.
Crédito tributário exequível é a etapa final legalmente exigida para que
possa haver a execução forçada. Consiste no crédito exigível inscrito como dívida
ativa, na repartição competente, depois de esgotado o prazo fixado, para
pagamento, pela lei ou por decisão final proferida em processo regular.
A inscrição há de conter o nome das pessoas que ocupam o polo passivo da
obrigação tributária, a quantia devida, origem e natureza do crédito, data da
inscrição e número do processo de que se origina o crédito.
Daí, extrai-se o título executivo extrajudicial que é a certidão de dívida ativa,
gozando o seu conteúdo de presunção relativa, isto é, sob prova em contrário.
Por conseguinte, a compensação estabelecida no § 9º do art. 100, para
efetivar-se, bastaria o débito corresponder ao crédito tributário exigível e que o
devedor da Fazenda Pública contra a qual se expediu o precatório, seja o credor
original deste. Logo, mesmo se não tivesse os defeitos, aqui, apontados, não pode
essa compensação ser feita em relação ao cessionário, de referência a débitos
deste.
Observe-se, afinal, que a norma abrange “parcelas vincendas de
parcelamento”, para o que o Código Tributário Nacional, no parágrafo único do seu
art. 170, perfeitamente, aplicável na hipótese, prevê a apuração do seu montante,
não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente aos juros de 1%
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
80
(um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do
vencimento.
b) – compensação quando o precatório participar de leilão é permitida, por
iniciativa do Poder Executivo, com débitos líquidos e certos, inscritos ou não em
dívida ativa e constituídos contra o devedor originário pela Fazenda Pública
devedora, até a data da expedição do precatório, ressalvados aqueles cuja
exigibilidade esteja suspensa ou os que já tenham sido objeto do abatimento referido
na hipótese supra, em relação à qual foram feitas observações que cabem aqui,
inclusive quanto ao cessionário.
c) – compensação automática, no caso de não liberação tempestiva dos
recursos destinados às contas especiais, constituir-se-á, alternativamente, por
ordem do presidente do Tribunal requerido, em direito líquido e certo, auto-aplicável
e independentemente de regulamentação e será feita com débitos líquidos lançados
pela respectiva Fazenda contra o titular do precatório, não havendo, nesta hipótese
restrição ao cessionário.
Conclua-se: a compensação regida pela emenda, conquanto revista-se
da espécie chamada de legal, ofende a essência dessa categoria jurídica e — repita-
se, por necessário — emenda constitucional não tem o condão de transformar
naturezas jurídicas, ou seja, a essência de institutos, conceitos e categorias jurídicos
formada a partir da sedimentação das instituições jurídicas. Afinal o direito não se
confunde com a forma de sua positivação. Ele, em essência, é a conduta humana
quando na sua interferência intersubjetiva, sendo a positivação, apenas, o
pensamento dessa conduta formulado em técnica normativa (COSSIO, 1964; 1954).
Essa emenda padece, também, desses vícios, porque substitui o pagamento pela
compensação.
2.1 O Poder Liberatório na Prestação Tributária
O poder liberatório vem sendo reconhecido por alguns tribunais, inclusive
para cessionários. A Emenda nº 62/2009 é explícita, mas, relativamente, ao caso de
não liberação tempestiva, pela Fazenda devedora de precatório, dos recursos
referentes ao regime especial, quando ocorra a compensação automática descrita
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
81
linhas acima, feita com débitos líquidos lançados pela Fazenda respectiva contra
credores de precatórios — originários ou cessionários — porque, havendo saldo em
favor destes, o valor terá automaticamente poder liberatório do pagamento de
tributos, até onde se compensarem.
O Código Tributário Nacional é integrativo dessa norma constitucional
porque o seu art. 3º estabelece a alternativa de que um valor, legalmente admitido,
possa exprimir moeda, assim entendida a instituição social de natureza pública,
objeto de monopolização pelo Estado, com curso legal e/ou forçado no respectivo
território, razão porque exerce influência sobre a Economia, considerando que ela é
um dos meios pelos quais o Estado intervém nas relações econômicas. Tem duas
funções: a) é intermediária nas trocas e b) tem poder liberatório que decorre do
curso forçado, circunstância que impossibilita a sua rejeição, sob pena de
contravenção (BRITO, 1982), pois qualquer devedor pode liberar-se de uma
prestação — se a obrigação não for pecuniária — com a entrega de quantidade
suficiente de moeda ao credor.
2.2 Ofensas a Princípios Constitucionais em Detrimento da Ordem de Pagamento dos Precatórios
O legislador da emenda constitucional exerce competência e, por isso, as
suas funções têm os limites descritos supra (cf. item 1.4.4) impostos pelo ente que
tem potência o qual estabeleceu a vedação à ofensa a direitos e garantias
individuais. Um desses direitos, o de propriedade, está frontalmente atingido pela
Emenda nº 62, pois, com a compensação compulsória, desapossa bem que
somente o seu titular poderia dispor, ou seja, o credor originário do precatório é
proprietário do bem por ele expresso ou nele contido: o valor em dinheiro. Se o
legislador da emenda não pode alterar a essência dessa categoria jurídica, então, da
maneira como ele a regrou, está transformando-a em pagamento antecipado ou
mesmo na imputação de pagamento, categoria que não se confunde com a
compensação, mesmo a compulsória (GOMES, 2009; FREITAS, 1983).
Além desse princípio constitucional, considerando a mexida que a emenda
faz no MOC – mapa da ordem cronológica – a Doutrina arrola, com razão, a ofensa
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
82
aos seguintes: segurança jurídica, irretroatividade, coisa julgada, reserva da lei
complementar tributária, devido processo legal, contraditório e ampla defesa,
isonomia, razoável duração do processo, proporcionalidade, dignidade da pessoa
humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAPTISTA, Luiz Olavo. Comentários à constituição federal brasileira: coligidos e ordenados por
Homero Pires. II vol. São Paulo: Livraria Acadêmica e Saraiva & Cia., 1933, p. 489.
BARBALHO, João. Constituição federal brasileira: comentários. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia.
Editores, 1924.
BEVILAQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Atualizado por Achiles Bevilaqua e Isaias
Bevilaqua. 7. ed. Rio: Livraria Francisco Alves – Editora Paulo de Azevedo Ltda. 1955, p.17.
BRITO, Edvaldo. Limites da revisão constitucional: Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1993.
BRITO, Edvaldo. Reflexos jurídicos da atuação do Estado no domínio econômico:
desenvolvimento econômico, bem estar social. São Paulo: Saraiva, 1982.
CARNELUTTI, Francesco. Instituciones de processo civil. Vol. 1. Trad. Santiago Sentis Melendo.
Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America. s.n.
CARRIÓ, Genaro R. Sobre el derecho y la justicia. Trad. Genaro R. Carrió. Buenos Aires: EUDEBA
– Editorial Universitária de Buenos Aires, 1963, ps.78 e segs. e El concepto de validez y otros
ensayos. Buenos Aires: Centro Editorial de América Latina S.A. 1969, p. 49 e ss.
COSSIO, Carlos. La valoracion juridica y La ciência del derecho. Buenos Aires: Ediciones Arayú,
1954.
COSSIO, Carlos. La teoria egologica del derecho y El concepto jurídico de libertad. 2. ed.
Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1964.
CRISAFULLI, Vesio. Stato, popolo, governo: Illusioni e delusioni costituzionali. Milão: Dott. A.
Giuffré Editore. 1985, p. 55 e s.
DUARTE, José. A constituição brasileira de 1946, 3º v. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947.
GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed., 4. tir., revista, atualizada e aumentada, de acordo com o
Código Civil de 2002, por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
MARINHO, Josaphat. À margem da constituinte. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1992.
p.106.
NUNES, Castro. Da fazenda pública em juízo. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Freitas
Bastos S/A, 1960.
ROSS, Alf. Sobre el derecho y la justicia. Buenos Aires: EUDEBA – Editorial Universitária, 1963.
ROUBIER, Paul. Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2. ed. Paris: Editions Dalloz
et Sirey, 1960.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1968.
TEIXEIRA DE FREITAS. Código Civil – Esboço. vol. 1. Brasília: Ministério da Justiça. Departamento
de Imprensa Nacional. Coedição com a Universidade de Brasília, 1983.
TERAN, Juan Manuel. Filosofia del derecho. 3. ed. México: Editorial Porrua S.A., 1967.