a construção do argumento em creta de eudoro de souza
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Teodoro Renn Assuno*
A CONSTRUO DO ARGUMENTO NOENSAIO DIONISO EM CRETA DE
EUDORO DE SOUSA
*Faculdade de Letras da UFMG
Belo Horizonte Brasil.RESUMO:Este estudo breve visa apenas apresentar o modo
de construo do ncleo do argumento do ensaio Dioniso em
Creta de Eudoro de Souza, reservando-se ao faz-lo distn-
cia suficiente para uma eventual crtica ou problematizao.
PALAVRAS-CHAVE:construo, argumento, Dioniso em
Creta, Eudoro de Souza.
ABSTRACT:This brief study aims only at presenting the
manner of construction of the nucleus of the argument ofEudoro de Souzas essay Dioniso em Creta, reserving in so
doing enough distance to criticize or call it into question.
KEY-WORDS:construction, argument, Dioniso em Creta,
Eudoro de Souza.
Apartir da proposio histrica bsica deMartin Persson Nilsson, no apenas da origem pr-
-helnica da mitologia grega, mas tambm, e sobre-
tudo, da origem pr-helnica isto : creto-micnica
da religio grega, Eudoro de Souza se dispe a fazer
um ousado estudo de caso: o do deus grego Dioniso
em suas conexes com a cultura minica, ou seja,
com a civilizao cretense do segundo milnio a.C.
O argumento ou hiptese depender, por-
tanto, da interpretao dos achados arqueolgicos
em sua dimenso religiosa, isto , dos achados da
primeira metade do sculo XX em Cnosso, Festo,
Malia, Haghia Triada, Grnia, Palaikastro e Thera,
achados que no incluem documentos escritos,
constituindo assim, na expresso de M. P. Nilsson
citada por Eudoro, um livro de imagens sem texto
(SOUSA, 1973, p. 12).
Eudoro de Souza comea lembrando os
elementos mais caractersticos da vida religiosa
cretense (ou minica), alm da estrutura dos pal-cios, tais como elencados em sua reconstituio por
Martin P. Nilsson:
1) a freqentssima figurao plstica de cenas
culturais, em que intervm, com absoluto predomnio,
uma divindade feminina; 2) a no menos freqente
estilizao do bucrnio a que os ingleses chamam horus
ASSUNO, T. R. (2012). A Construo do argumento no en-saio Dionisio em creta de Eudoro de Sousa. Archai n. 8,jan-jun 2012, pp. 87-94.
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of consecration; 3) a lbrys ou bipene, machado de dois
gumes, que, sem dvida, foi instrumento de sacrifcio
do Touro Sagrado (...); e, finalmente, 4) os thloi ou
sepulturas circulares, cobertas por falsa abbada, com
acesso atravs de um drmos mais ou menos extenso.
(idem, p. 13).
Ora, como nota na sequncia Eudoro, s h
notcia de uma cultura calcoltica [i.e.da transio
do Neoltico para a Idade do Bronze] que parece
reunir, na mesma rea, esses quatro elementos
caractersticos: thlos, bucrnio, lbrys e dolos
femininos, a de Half-Arpatchiah, na bacia do Eu-
frates. (idem, p. 13). Esta cultura matriz, segundo
a hiptese de 1944, de Heinz Mode (emAs primeiras
culturas da ndia e suas relaes com o Ocidente),
citada por Eudoro, teria se difundido em dois ramos:
um para Oeste, dando origem s primeiras civiliza-es do Mar Egeu, e outro para leste, promovendo o
surto das civilizaes pr-arianas do Vale do Indo,
nomeadamente, Harappa e Mohenjo-Daro. (idem,
p. 13). E tambm na cultura de Half- Arpatchiah
que segundo Eudoro se presume haver nascido
o culto da grande deusa egeo-anatlica, que to
relevante papel desempenhou na religio, ou nas
religies, da Grcia pr-helnica. (idem, p. 14).
Mas, antes de ou para retomar a signifi-
cao religiosa dos quatro elementos caractersticos
j citados, Eudoro ir apresentar e interpretar a es-
trutura arquitetnica comum dos palcios minicos
cretenses: (...) na sua primeira fase, o palcio de
Cnosso era constitudo por blocos isolados e (...) a
nica relao entre aquelas insulae era o espao
retangular que, ao fim e ao cabo, viria a formar o
ptio central (idem, p. 14).
(...) na sua forma definitiva, a concepo arquitet-
nica que se singulariza em toda a regio egica , alm
da mencionada assimetria do conjunto, a funo doptio central, designadamente, o papel que desempenha
como centro, fixo e inaltervel, de um movente complexo
perifrico. (idem, p. 14-15).
Ora, esta funo no seria a meramente ar-
quitetnica ou prtica de iluminao e arejamento,
pois, segundo Eudoro,
o ptio um dado prvio, um princpio dinmico,
e no apenas o espao que se mantm de reserva, no
meio de contnua ou intermitente edificao de blocos; o
ptio [cuja forma e grandeza seria a mesma em Cnosso,
Mlia e Festo] estaria para os edifcios circundantes em
anloga relao em que o centro est para a circunfe-
rncia descrita em torno dele. (idem, p. 15).
Eudoro de Souza resume e cita ento em it-
lico para aclarar esta funo a tese indita e
surpreendente do arquelogo ingls J. W. Graham
(American Journal of Archeology1957, p. 255 e ss.):
no interior, precisamente no ptio central, e no
em qualquer rea exterior, prxima ou distante dos
palcios, que se realizavam as tauromaquias cele-
brizadas por to elevado nmero de testemunhos figu-
rados. (SOUSA, 1973, p. 15-16), aduzindo tambm
a suspeita a partir de um comentrio de CharlesPicard (Rvue Archologique1958, p. 89-90) de
que as corridas de touro cretenses ultrapassassem
em muito, por sua importncia social nuclear, a mera
dimenso profana de simples prazer de ulicos ou
divertimento do povo. (SOUSA, 1973, p. 16).
Ora, a soluo religiosa de Eudoro para a
tauromaquia minica inovao ousada que no
se encontra nem em J. W. Graham nem em Charles
Picard ser simultaneamente uma soluo para um
elemento patente (e que poderia constituir problema)
da religio minica: o predomnio ou exclusividade da
grande divindade feminina (que Eudoro chama ento
de Magna Mater) e a ausncia nestes documentos
arqueolgicos de uma divindade masculina, ausncia
que segundo uma antecipao de Eudoro resulta-
ria, mais provavelmente, de que sua presena per-
manece oculta sob figuras simblicas. (idem, p. 16).
Eudoro retoma ento dois dos citados quatro
elementos caractersticos desta religio:
Entre tais figuras, a lbrys e o bucrnio trazem emsi a irresistvel fora da evidncia. No fcil furtar-
-nos suspeita de que a primeira fosse instrumento
de sacrifcio, e recusar-nos a vermos na segunda a
vtima sacrificada. As pinturas do famoso sarcfago de
Haghia Triada e alguns exemplares da glptica minica
so inequvocos testemunhos do sacrifcio do touro.
(idem, p. 16).
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a ento que Eudoro sem explicitar as
razes ou provas documentais do seu procedimen-
to transferir ou estender a sacralidade do ato
sacrificial (ou do seu destinatrio) para a vtima
do sacrifcio (o touro), que por analogia com o
exemplo de Cristo e o rito da comunho na missa
ele identificar divindade:
Consinta-se na impresso de intransponibilidade
dos obstculos que se nos deparam, querendo abolir a
diferena que aparta a vtima que se sacrifica a uma
divindade, da prpria divindade em cuja devoo ela
sacrificada. Do touro-oblato ao deus-touro, insupervel
se nos afigura a distncia, embora a religio crist sobre
bem mais fundo abismo tenha lanado a ponte que
diariamente atravessamos, mal apercebidos do Mistrio.
(idem, p. 16-17).
O salto, no entanto, ser ainda maior e mais
arriscado quando Eudoro tambm sem comprov-lo
e sem que saibamos como fizer da tauromaquia
nos ptios centrais dos palcios um grande rito de
sacrifcio do touro-deus (e mesmo do rei) com uma
presumvel funo bsica de renovao peridica da
vida social e natural:
Queremos (...) deixar claramente expressa a ideia
de que o grande ptio dos palcios de Creta, encimados
por enormes bucrnios e ornamentados com inmeras
e vrias estilizaes da lbrys, teria de constituir o
centro de todo o complexo arquitetnico, precisamente
porque nele se representava o grande ato de um drama,
mediante o qual, de tempos a tempos, se reinstitua na
hierarquia social o princpio ou a potncia divina que
lhe dera origem. Efetivamente, h motivos para crer
que, pelo menos em Cnosso, Minos era ttulo do rei e
nome do touro.(idem, p. 17).
Infelizmente, nenhuma nota de Eudoroexplicita quais so estes motivos e dando por
assentes suas hipteses ele passa de imediato
seguinte questo: ser possvel atribuir algum
nome grego, ou que uma vez grecizado se tenha
tornado corrente entre os gregos, ao deus-touro,
to celebrado no Mutus Liberda cultura minica?
(idem, p. 17).
Para chegar a Dioniso como resposta, Eudoro
prope primeiro que se aceite, como no fantasiosa,
a localizao cretense do ritual de Zagreus, que se
nos depara em um discutido fragmento de Eurpides
e numa no menos discutida pgina de Firmicus
Maternus (idem, p. 17) ainda que, informados
apenas assim, no fique claro porque, segundo Eu-doro, teramos, por evidente, que o touro tambm
uma epifania de Dioniso , levando em conta tam-
bm que a combinao do mito de Zeus Kretagnes
com o de Europa resultaria em que o touro uma
epifania crtica do Soberano do Olimpo (idem, p.
17), o que porm no seria problema, uma vez que
os rficos sabiam que Zeus-Cretense e Dioniso
Zagreus podiam designar dois aspectos de uma mes-
ma divindade que nasce, morre e ressuscita, e que
ambos os aspectos coincidiam na mesma epifania
tauromrfica. (idem, p. 18).Em segundo lugar, Eudoro mesmo admitindo,
ao longo de sua bi-milenar histria, alguma absoro
pelo dionisismo grego de traos mais pertinentes
a divindades asiticas essencialmente afins (idem,
p. 18) prope com razo uma reviso crtica da
opinio comum (communis opinio) de que o culto de
Dioniso na Grcia s admitiria uma origem histrica
na Trcia ou na Frgia (idem, p. 18) [pois como
sabemos hoje, e j Eudoro sabia em seu tempo, a
decifrao do linear B por Michel Ventris mostrou
que o deus j era conhecido na civilizao micnica],
devendo-se tambm repensar, como sugere Eudoro,
uma adeso imediata aos testemunhos da tradio
literria, que, a partir de Homero, vm afirmando e
reafirmando que na Grcia o deus um intruso e,
em princpio, um indesejvel [ainda que sua ca-
racterizao como estrangeiro possa fazer parte do
seu modo mesmo de ser, podendo ele ser definido,
segundo uma sugesto de Marcel Detienne, como
um estrangeiro do interior (DETIENNE, 1986, p.
21-27)], fazendo parte de sua tradio (em vriasestrias alm das de Licurgo, contada no canto VI
daIlada, e de Penteu, contada nAs Bacantes) uma
resistncia difuso do culto bquico, que, como
sugere Eudoro citando Guthrie, poderia no ser mais
que um protesto da razo derrotada pelos elementos
de bestialityque ordinariamente dormem em cada
ser humano. (SOUSA, 1973, p. 18).
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Mas se para Eudoro nada obstaria a que ds-
semos o nome de Dioniso ao Touro Divino da ilha de
Creta, a questo decisiva outra: a de saber se,
em Creta, ao aclito ou paredro da grande divindade
feminina, cuja epifania o touro [hiptese que,
como vimos, ainda necessitaria ser demonstrada],
ns devemosatribuir o nome de Dioniso, com fun-damento na percepo de uma essencial identidade
entre o deus cretense e o deus grego. (idem, p. 19).
A chave para a positiva identificao do hi-
pottico deus-touro cretense com o Dioniso grego
est em uma (no estritamente filolgica) ideia de
Kernyi (exposta do artigo Dionysos Le Crtois,
Diogne 20, 1957, p. 2-27 e no livro Der frhe
Dionysos, Oslo, 1961), que seria confirmada pelas
interpretaes iconogrficas de conjunto da arte
minica por Friedrich Matz (sobretudo Gttererschei-
nung und Kultbild im minoischen Kreta, 1958) e H. A.Groenwegen-Frankfort (emArrest and Movement. An
Essay on Space and Time in the representational Art
of the ancient Near East, London, 1951), ideia que
Eudoro entusiasticamente qualifica como a mais ori-
ginal de quantas registra a Altertumswissenschaft,
resumindo-a assim (com o destaque do itlico):
a arte minica, a arte de Creta em conjunto, e no
apenas em tal ou tal objeto, em uma ou outra das suas
formas singulares, encontra-se toda ela impregnada
de dionisaco, daquele mesmo esprito de ebriedade
e loucura que transparece com to sombrio fulgor nos
versos das Bacantes. (SOUSA, 1973, p. 19-20).
Vemos, assim, nesta definio comparativa,
o quo essencial para o dionisismo (e suas poss-
veis origens cretenses) a interpretao dos dados
apresentados em uma obra literria consagrada
comoAs Bacantes. Ora, o esboo de interpretao
deste esprito de ebriedade e loucura que Eudo-
ro apresenta na sequncia demasiado sucinto(demandando, portanto, ulteriores explicitaes),
quando no resvala na simples parfrase condensada.
Primeiramente, segundo Eudoro, a tempestade emo-
cional (...) em que o indivduo se distrai da prpria
individualidade e da razo pragmtica que o insere
na ordem social instituda, assim como o xtase,
loucura e embriaguez da vida de uma natureza que
no conhece o homem, e em que o homem no se
reconhece(...); e, em segundo lugar, esta parte de
sua definio de Dioniso:
deus mainmenos, enlouquecido e enlouquecedor,
que se compraz no tumultuoso tropel das Mnades e das
Bacantes, deus das mulheres que, percorrendo desvai-radas uma terra toda ela convertida em seio ubrrimo,
donde brotam o leite e o mel, cingidas de serpentes e
coroadas de hera, amamentam as bestas feras, para logo
as destroarem, por suas mos j esquecidas do gesto
vivificante; (...). (idem, p. 20).1
Mas apenas na imensa e decisiva nota 31
que encontraremos uma descrio a partir dos j
citados trabalhos de F. Matz e H. A. Groenwegen-
-Frankfort das leis da sintaxe ornamental da
arte minica que sugeriram a presena de Dionisoem Creta. Primeiramente, a definio do estilo
voluminal (do latim volvere) pelas trs caracte-
rsticas interconexas do movimento rodopiante,
da torso e do rapportinfinito, que nos aspectos
mais evidentes da pintura cermica e da figurao
sigilogrfica tendem respectivamente a se represen-
tar no esquema simples da dupla espiral, (...) na
disposio dos motivos obliquamente em relao ao
eixo do vaso (...) e a repetio simples de um s
motivo, ou alternada, de dois ou mais motivos, em
torno de toda a superfcie do vaso (...). (idem, p.
51). E, em segundo lugar, o que sugere uma longa
citao por Eudoro do penltimo captulo do livro
de Groenwegen-Frankfort dedicado aos afrescos
palaciais (e da qual faremos o seguinte recorte):
Ludwig Curtius, numa bela e potica parfrase s
cenas, caracterizou-as como berhaupt Leben, vida
absoluta. A frase bem podia servir de mote para qualquer
exposio sobre a arte cretense, pois o movimento mo-
vimento orgnico parece ser a verdadeira essncia dela:movimento no animal ou no homem, nas flores agitadas
pelo vento, com ptalas que se desprendem e caem, nos
troncos de trepadeiras que se retorcem subindo fragas, as
prprias rochas que parecem substncia mal solidificada.
(...) Se tivermos de caracterizar o tipo de movimento
fragmentariamente representado, o termo mobilidade
absoluta o que naturalmente nos sugerido: reco-
1. Para uma tentativa de
interpretao do xtase dionisaco
(para a qual aquaela do que
sugerido pela peaAs Bacantes
continua a ser essencial) ver o
artigo recente de Renate Schlesier
Lextase dionysiaque et lhistoire
des religions (SCHLESIER, 2007).
Obviamente esta indicao
extrapola o objetivo primeirodeste nosso breve ensaio e
no poderamos jamais exigir
absurdamente de Eudoro de Sousa
uma atualizao bibliogrfica
que ultrapassasse o tempo em
que o seu artigo foi escrito;
mas imaginar, por outro lado, o
quanto deve ter se modificado
desde ento o saber arqueolgico
(assim como o da histria das
religies) e o que isso traria
para uma avaliao de conjunto
das suas proposies poderia
nos lanar na oportuna vertigem
da percepo do quanto so
fatalmente datadas e circunscritas
historicamente mesmo aquelastentativas mais ousadas e que
pretendem transcender o seu
tempo, acenando para um
futuro indeterminado. Se nos
voltssemos, enfim, rapidamente,
para o tema maior em questo,
o deus grego Dioniso, seria
certamente inumervel a
bibliografia aparecida desde o
ano de publicao do ensaio
de Eudoro de Sousa (que ento
era certamente o que no
nem um pouco desprezvel
extremamente bem informado
bibliograficamente), o que nos
leva, portanto, a apenas quererlembrar de dois livros publicados
mais recentemente: Dionysos de
Richard Seaford (SEAFORD, 2006)
e Dionysos und das Dionysische in
der antiken und deutschen Literatur
de M. L. Baeumer (BAEUMER,
2006).
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nhecido paradoxo lgico que s poderia justificar-se,
tratando-se de uma ameba e de moluscos movendo-se
no meio sem resistncia dos mundos aquticos, ou (...)
no caso de pssaros voando. (...) Nas cenas de Creta,
o movimento parece no exigir esforo; a qualidade
que se resume no galope volante (a mais cretense das
invenes) e que se reconhece tambm nos danarinos
flutuantes, cujos ps pendem vacilando, em vo, de tal
maneira que as figuras balanam parecendo desligadas
da terra (...). (...) O mais notvel ainda, o fato de os
Cretenses muitas vezes pintarem os seus deuses expli-
citamente como criaturas nascidas no ar, cuja epifania
ocorre como a descida de um pssaro, com os cabelos
tendendo para o alto e os ps apontando para o solo.
(idem, p. 52-53).
Aps a citao, Eudoro comenta que esta
passagem introduz, no final, uma smula da tesede F. Matz de
que em pocas ainda isentas de influxos culturais
do continente europeu ou asitico, no existem figuras
plsticas das divindades cultuadas, e que as represen-
taes existentes so as de lugares consagrados pelas
epifanias de deuses, cuja apariose d ao fim e ao
cabo de uma preparao do xtase propiciatrio (pela
dana?, pelo uso do pio e do vinho?, por ambos os
meios simultaneamente?). (idem, p. 53).
Ora, o que no explicitado por Eudoro que
parece proceder por uma tcita analogia formal
sugerida apenas pela mera justaposio de dados
a conexo precisa entre o esprito de ebriedade
e loucura que transparecenasBacantes (tambm
definido algo rapidamente por Eudoro) e primei-
ro o movimento rodopiante e a torso que
caracterizam o estilo voluminal (perguntamo-nos:
seria algo dos gestos, mais especificamente da dana
executada pelas Mnades em transe? mas onde entonas Bacantesencontraramos uma indicao de ou
aluso a um tal tipo de movimento precisamente?)
e em segundo lugar a mobilidade absoluta (ou
movimento orgnico) reconhecvel como padro
formal para as cenas dos afrescos palaciais mini-
cos (tambm nos perguntamos: seria a mobilidade
constante e um certo desenraizamento de estran-
geiro como sugere M. Detienne em Dionysos
ciel ouvert(DETIENNE, 1986) uma caracterstica
tanto de Dioniso quanto das Bacantes na pea que
tem este ltimo nome?).
Restaria, enfim, demonstrar o que tambm
no nada bvio como podem ser aproximados ou
identificados dois planos ou duas ordens de fenme-no bem distintos: o esprito de ebriedade e loucura
marcadamente ritualstico das Bacantes na pea ho-
mnima e a sintaxe ornamental da arte minica com
padres formais como o movimento rodopiante e
a torso, ou ainda a mobilidade absoluta em
cenas que no necessariamente representam rituais
religiosos afins a este deus. Tambm a afirmao de
Kernyi, aduzida na sequncia, continua a demandar
uma semelhante explicitao das conexes entre o
conjunto da arte minica e o deus Dioniso:
(...) a impresso de dionisaco que a arte minica
nos comunica pode ser composta em elementos concre-
tos que na Grcia s o culto de Dioniso rene de forma
similar: (...) como deus do vinho, deus touro e deus
das mulheres, deus, igualmente, das divindades de
carter exttico, das quais a maior foi Ria, Me dos
Deuses. (idem, p. 21).
tambm de se suspeitar a demasiado ge-
nrica associao entre o naturalismo minico
como a arte de pintores e escultores fascinados
pelo elemento lquido e o reino vegetal tal como
definida por W. Schadewaldt em O mundo das ima-
gens homricas e a arte creto-micnica (1943) e
a seguinte definio do deus pelo prprio Eudoro:
Deus do elemento lquido, que, perseguido por Licur-
go, se lana no mar, depsito imenso e inesgotvel do
princpio que, como seiva ou sangue ou smen, sustenta
toda a vida vegetal e animal; deus da rvore, dendri-
tes ou ndrendos, e deus phloios consubstanciado nasplantas verdes e nas flores das rvores frutferas (...).
(SOUSA, 1973, p. 20).
Alm da assimilao do mar (com que o deus
est conectado em alguns episdios ou ritos) com
o princpio que, como seiva ou sangue ou smen,
sustenta toda a vida vegetal e animal, ou seja: um
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mido vital tal como reconhecido por Walter F. Otto
(OTTO, 1969, p.169-179) mas que dificilmente se
confundiria com o lquido salgado e estril (cf. o
epteto homrico atrgetos) do mar, tambm de se
estranhar que o elemento lquido (sobretudo o ma-
rtimo) e o reino vegetal que fascinaram os artistas
minicos mas que podem tambm por sua amplidoestar presentes em vrias outras artes que no a
creto-micnica sejam identificados precisamente
como dionisacos, quando, por exemplo, o mar tam-
bm poderia (dependendo da cena) ser associado ao
deus Posseidon (a que, coincidentemente, tambm
o touro era associado), assim como o reino vegetal
(segundo o tipo da cena) a divindades como Demter
ou rtemis. Ser, pois, necessariamente dionisaca,
como o quer Eudoro, aquela indiscutvel presena
da gua no afresco dos delfins ou num vaso pintado
no exclusivo propsito de fixar os movimentos deum polvo em seu elemento natural (SOUSA, 1973,
p. 22)? Ou, ainda, necessariamente dionisaca a,
digamos assim, existncia vegetativa das flores (...)
em afrescos como a colheita do aafro e o pssaro
azul (idem, p. 22) ou mesmo a figura conhecida
do Prncipe da Coroa de Penas pelo fato de que
parea ondular ao vento, como o caule dos lrios
em seu redor (idem, p. 22)?
H, enfim, um ltimo e importante elemen-
to a ser considerado por Eudoro neste complexo
religioso minico-grego: o xtase como fenmeno
cultural elemento que, por sua vez, lanar a
questo conclusiva do ncleo do ensaio que a da
relao de Dioniso (enquanto paredro) com a grande
divindade feminina (a Magna Mater) recorrentemente
atestada em Creta. Eudoro, comeando, diz assim:
Fora do quadro, portanto, s resta o carter ext-
tico, comum religio cretense e pr-helnica e
religio grega e dionisaca. Que o xtase, natural
ou provocado, , digamos, a prpria substncia de
ambos os cultos, parece fato indiscutvel. (idem,p. 22). E ento corta abrupto: Mas, da por diante,
cessa toda a analogia. (idem, p. 22). Mas, apesar da
reserva presente no uso da negao, Eudoro como
as longas e cuidadas notas 44 e 45 parecem tambm
confirmar parece, na sequncia, estar considerando
seriamente a possibilidade de um xtase provocado
pelo pio nos cultos minicos:
J no falamos, sendo o xtase provocado, em que
as portas da percepo (44) se abrem sob a ao
entorpecente do vinho, na Grcia, e do pio, em Creta
(45). Com efeito, as cpsulas de Papaver Somniferum,
daquela espcie de papoula que adorna a cabea do
dolo de Gazi, ostentam o golpe efetuado para a extra-
o do alcalide, e na expresso fisionmica do dolo
reconhecem-se os traos caractersticos do opimano.
Porm, repare-se, o dolo de Gazi feminino, como os
demais dolos de Creta; por conseguinte representaria ou
uma deusa farmacopica ou uma hipstase farmacopica
da nica deusa de Creta. (idem, p. 22-23).
A expresso com aspas portas da percepo
mobiliza a nota 44, espao da nica discusso
neste ensaio do efeito anmico da embriaguez (e,
analogicamente, do xtase) provocado por drogas.2
A expresso que de William Blake uma
referncia ao ttulo do conhecido livro de Aldous
Huxley sobre seus experimentos com a mescalina
(que obviamente pode se distinguir muito, enquanto
alucingeno, de drogas como o vinho e o pio).
Mas o que Eudoro capta no ensaio de Huxley como
operao anmica bsica desta droga pode mesmo
se distinta da do vinho mas talvez nem tanto da
do pio eventualmente se aproximar em algo da
ruptura com o estabelecido implcita na entrega a
uma divindade transgressora e desindividualizante
como Dioniso.
Em Huxley, segundo Eudoro, o entorpecen-
te age (...) como eliminador da razo pragmtica.
(idem, p. 53). E ele cita ento esta demonstrativa
passagem do prprio Huxley: Embora o intelecto
nada sofra e a percepo seja grandemente au-
mentada (sob a ao do entorpecente) a vontade
experimenta uma grande transformao para pior.
O indivduo que ingere mescalina no v razo para
fazer seja o que for, e considera profundamente
injustificvel a maioria das causas que, em circuns-tncias normais, seriam suficientes para motiv-lo
a agir. Elas no o preocuparo, pela simples razo
de ter ele melhores coisas em que pensar. (idem,
p. 54). E, associando-a tambm ao xtase ritual
dionisaco, Eudoro lembra da descrio de Ludwig
Klages (de preferncia de Bergson) do xtase
provocado por entorpecentes:
2. Talvez coubesse aqui uma
breve nota sobre a importncia
estrutural das notas (no caso,de fim de texto) no ensasmo
de Eudoro de Souza, onde elas
desempenham no s a funo
bibliogrfica bsica de informao
quanto s referncias, mas
tambm aquela de suporte
argumentao com a apresentao
circunstanciada das hipteses
por meio de citaes maiores
dos autores convocados assim
como da apreciao crtica
destes. Diramos, pois, sem medo
da banalidade, que a erudio
de Eudoro jamais meramente
ornamental ou recurso vazio e
de aparato para a autorizaoacadmica cf. as irnicas
consideraes sobre a assim
chamada the Wilamowitz
Footnote no lcido artigo de
Steve Nimis Fussnoten: das
Fundament der Wissenschaft
(NIMIS, 1984, p. 114-130). Por
vezes, temos mesmo a estranha
impresso que inverte um pouco
a perspectiva meramente utilitria
no uso deste recurso de que
algo de essencial ao argumento
foi deslocado para as notas, que
assim no poderiam de modo
nenhum deixar de ser lidas. O
desconcertante efeito retroativo
de uma tal percepo seria figuraro prprio texto do artigo como
uma imensa nota autnoma e
prioritria em relao a um texto
inexistente.
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Em todo o caso, afigura-se-nos que na obra de Klages
a descrio do xtase, como libertao do composto, ou
melhor, da complementaridade corpo-alma, das garras
vampirescas do esprito (inteligncia e vontade pragm-
ticas que deixam, em cada vivente humano, os sulcos
indelveis a que chamamos personalidade), se avantaja
enormemente outra, que constitui o xtase em liber-
tao do esprito, do crcere corpreo. (idem, p. 54).
Podemos duvidar, no entanto, de que os
efeitos do vinho e do pio sejam anlogos e de
que ambos poderiam provocar um mesmo tipo de
xtase (chamado ento de dionisaco), pois se nos
lembramos do que sugere comparativamente Baude-
laire nos Paradis artificiels (BAUDELAIRE, 1973, p.
377-398), enquanto o vinho socializante, excita
a dramaticidade e opera uma abertura para o outro
prpria festa, o haxixe (e, por extenso, o pio),apesar (ou pelo fato) de potenciar a acuidade sen-
sorial e metafsica, enfraquece a vontade e indispe
paranoicamente o indivduo para o contato social.
Assim, pois, tanto pelos testemunhos do linear B
[em que Dioniso (diwonisojo) j aparece associado
ao vinho (wonowatisi senhor do vinho), segundo
a revelao de J. W. Graham em The Palaces of Crete
de 1962, citada por Eudoro na nota 45] quanto pe-
los testemunhos literrios e etnolgicos da idade
arcaica e clssica (cf., por exemplo, o fragmento
120 W de Arquloco eAs Bacantes), no h porque
duvidar da associao tradicional do deus ao vinho,
mas estend-la ao pio que no entra no repertrio
do deus grego nos parece um passo arriscado e
indemonstrvel, sobretudo se o testemunho icono-
grfico minico o opimano dolo de Gazi se
apresenta isolado (e no em grupo) em uma cena
que no necessariamente tem conotaes ritualsti-
cas precisas e que, ademais, no se integra em uma
srie maior de cenas do mesmo tipo.
Restaria, enfim, apresentar rapidamente asoluo de Eudoro para o problema suscitado pelo
carter feminino do opimano dolo de Gazi da pre-
dominncia da deusa-me na Creta minica e da sua
relao com o deus-paredro (no caso, Dioniso-Touro,
segundo a hiptese de Eudoro). Pois, como Eudoro
o formula, todos os monumentos nos inclinam a
considerar a Grande-Deusa da Ilha de Minos como
figura muito mais poderosa e importante que o Touro
ou o Arbusto divinos, mesmo que lhe possamos ou
devamos dar o nome de Dioniso. (SOUSA, 1973,
p. 23). Mas considerada esta koincultural do II
milnio a. C., que abrange todo o Egeu e o Oriente
Prximo, e vai do Indo ao Adritico e do Helesponto
ao Vale do Nilo, koin onde uma grande deusa sempre acompanhada de um deus menor o que
mais impressiona Eudoro
verificar que, por um lado, no ritual da paixo, morte
e ressurreio do deus, cuja epifania uma planta, a
Grande-Deusa no parece haver exercido papel condigno
do tal poder e importncia que lhe atribuem; e que, por
outro lado, s vezes ela mesma quem protagoniza o
prprio drama da paixo o caso, por exemplo, de
Demter-Persfone, na Grcia, e de Innana-Ishtar, na
Macednia. (idem, p. 26).
Ora, esta aparentemente insolvel contradio
poderia ser resolvida pelo seguinte e desenvolto
passo de Eudoro:
proponhamos (...) que a maior importncia e o maior
poder ou em conceituao menos vaga e menos abs-
trata a imortalidade de Demter, Cibele, Anat, Astart,
sis e Ishtar, diante da mortalidade de seus assessores
e aclitos, traduz simplesmente um fenmeno de con-
taminao. (...) Persfone, tis, Baal, Adnis, Osris,
Tammuz e, talvez, Dioniso, mantendo a maior parte
de suas originais caractersticas de divindades-dema,
encontram-se, por fim, subordinados a uma deusa-me,
na qualidade de filhos ou amantes; de qualquer modo,
como aclitos ou paredros. (idem, p. 28).
Nesta assimilao final que no consegue de
modo algum, nos termos mesmos da formulao,
apagar as ntidas diferenas entre dois tipos distin-
tos de divindade, Eudoro tentar arrematar assim:
(...) julgamos que no seja por demais audacioso
asseverar que radical, ou seminal, no seria a diferena
que separa a Grande Deusa minica do deus fitomrfico
ou tauromrfico, ao qual conviria a o nome de Dioni-
so. Por isso, sempre se poderia repartir entre as duas
divindades, originariamente afins, o carter exttico
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que, em pocas mais recentes, continua aderindo ao
culto da Ria-Cibele anatlica e do Dioniso helnico.
(idem, p. 29).
Enfim, para concluirmos esta breve apre-
sentao da construo do ncleo do argumento
de Dioniso em Creta (pensada, a princpio, parauma comunicao de no mximo meia hora, em
um evento comemorativo acontecido em junho de
2008), gostaramos apenas de lembrar que com ela
rendemos uma justificada e modesta homenagem
erudio imaginativa de Eudoro de Souza, atravs
dos bsicos recortes e da montagem de vrias
citaes que do prazerosamente voz a este autor
cujo vasto repertrio de informaes (sobretudo as
arqueolgicas) confessamos no estar em condies
de avaliar criticamente, mas que tambm tentamos
ao problematizar certas proposies e o modomesmo de construo das hipteses nos distanciar
minimamente do autor para tentar pensar com algum
recuo os seus procedimentos, o que certamente
um modo de homenagem menos evidente e que, em
sua radical liberdade (mais atenta ao discurso e a
seu objeto do que sua autoria), sempre corre o
incmodo risco do mal-entendido. Se, ento, como
uma ltima palavra, nos fosse permitido ousar um
rpido balano crtico desta tentativa de Eudoro de
Souza, talvez o que primeiro questionaramos fosse
a excessiva importncia atribuda origem como via
privilegiada de acesso a um fenmeno (pressuposto
metdico que no deixa de remeter, por exemplo,
ao Nietzsche dA origem da tragdia ou s especu-
laes etimolgicas do segundo Heidegger), quando
o fenmeno enquanto tal, no caso o deus Dioniso,
dado como compreendido em suas documentaes
mais conhecidas comoAs Bacantesde Eurpides3
restaria a mesmo ainda a ser pensado e discutido
com mais calma e preciso.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BAEUMER, M. L. (2006). Dionysos und das Dionysische inder antiken und deutschen Literatur. Darmstadt: Wissen-schaftliche Buchgesellschaft.
BAUDELAIRE, C. (1973). Du vin et du hachisch, comparscomme moyens de multiplication de lindividualit. In:Les paradis artificiels. In: uvres compltes I. Paris, Gal-limard, p. 377-398.
BOLLACK, J. (2005). Dionysos et la tragdie: Le Dieu hommedans les Bacchantes dEuripide. Paris, Bayard.
DE SOUZA, E. (1973). Dioniso em Creta. In: Dioniso emCreta e outros ensaios. So Paulo, Duas Cidades, p. 7-71.
DETIENNE, M. (2000). Dionysos ciel ouvert. Paris: Ha-chette, 1986. FRANKLIN, D. Euripides, Bacchae. A NewTranslation and Commentary. Cambridge, CambridgeUniversity Press.
NIMIS, S. (1984). Fussnoten: das Fundament der Wissen-schaft,Arethusa, Baltimore, vol. 17-2, p. 105-134.
OTTO, W. F. (1969). Dionysos: le mythe et le culte (trad.Patrick Lvy). Paris, Mercure de France.
SCHLESIER, R. (2007). Lextase dionysiaque et lhistoiredes religions, Savoirs et clinique, Paris, no 8, p. 181-188.
SEAFORD, R. (2006). Dionysos. London/New York, Rout-ledge.
SEGAL, C. (1982). Dionysiac Poetics and Euripides Bacchae.Princeton, Princeton University Press.
Recebido em novembro de 2011.Aprovado em dezembro de 2011.
De uma grande bibliografia sobre
esta pea (e, particularmente,
sobre o papel de Dioniso nela)
gostaramos apenas de lembrar
trs ttulos significativos
publicados aps o ensaio de
Eudoro de Souza: Dionysiac Poetics
and Euripides Bacchaede Charles
Segal (SEGAL, 1982), Euripides,
Bacchae. A New Translation
and Commentaryde D. Franklin
(FRANKLIN, 2000) e Dionysos et la
tragdie: Le Dieu homme dans les
Bacchantes dEuripidede Jean
Bollack (BOLLACK, 2005). Para a
modesta funo informativa desta
presente nota (que eventualmente
a tornaria um justo alvo da j
citada crtica de Steve Nimis), ver
o que j foi dito na nota 1.