a construÇÃo dos sentidos do processo de

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MERY HELEN ROSA A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS DO PROCESSO DE LETRAMENTO: pluralidade vivenciada no ensino fundamental público Universidade Federal de Goiás Regional Catalão Programa de Pós-Graduação em Educação 2014

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    MERY HELEN ROSA

    A CONSTRUO DOS SENTIDOS DO PROCESSO DE LETRAMENTO:

    pluralidade vivenciada no ensino fundamental pblico

    Universidade Federal de Gois

    Regional Catalo

    Programa de Ps-Graduao em Educao

    2014

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    MERY HELEN ROSA

    A CONSTRUO DOS SENTIDOS DO PROCESSO DE LETRAMENTO:

    pluralidade vivenciada no ensino fundamental pblico

    Dissertao apresentada como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de Mestre

    em Educao, comisso examinadora do

    Programa de Ps-Graduao em Educao

    da Universidade Federal de Gois/Regional

    Catalo.

    Orientadora: Profa. Dra. Selma Martines

    Peres

    Linha de Pesquisa: Prticas Educativas,

    Polticas Educacionais e Incluso

    Universidade Federal de Gois

    Regional Catalo

    Programa de Ps-Graduao em Educao

    2014

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    memria da minha me, Eliana Lenza de Oliveira Rosa.

    Pelo tempo que viveu, mesmo indo to jovem, deixou sentidos

    estampados em diferentes prticas dirias que ainda hoje

    participamos em face de ter-nos ensinado a sentir a vida. Grandes

    eventos de letramento foram realizados e assistidos na convivncia

    conosco, quando lia livros infantis, orientava na construo de

    listas de compras, ensinava diferentes atividades escolares e

    inmeras outras aes.

    Sua postura magnfica e aes repletas de maestria fazem

    com que o contedo desta pesquisa seja dedicado especialmente a

    voc, que com sensibilidade aflorada, jeito emotivo de mostrar

    como o sentido move as pessoas no mundo, fez com que o cotidiano

    dos sujeitos do seu universo de convivncia pudesse ser mesclado

    pelo desejo, estmulo, vontade, inclusive de estudar, aprender,

    desenvolver prticas de letramento em diferentes eventos, seja na

    escola ou em outros ambientes.

    Os valores, os costumes, os princpios, enfim, a cultura que

    apresentou, juntamente com outras pessoas do nosso meio, foi

    expresso de prticas de letramento que transcenderam o tempo de

    ocorrncia e hoje podem manifestar-se nos eventos nos quais

    formos nosenvolver, em outras prticas.

    A gnese deste estudo reflete voc e reluz toda a trajetria de

    vida e de ensinamentos que exponho nesta dissertao, sendo

    motivo de compreenses minhas que tambm so suas. O percurso

    da vida no oportunizou a voc testemunhar presencialmente esta

    minha conquista, mas tenho convico de que a ver de onde

    estiver. Guardarei lembranas e saudades eternas.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Dedicar-se a situaes de pesquisa certamente adentrar em um campo vasto

    de conhecimento atravessado por sabores e dissabores. transpor limites tericos e

    prticos, conhecer momentos inesperados, compreender realidades, emocionar-se diante

    dos fatos, desfazer preconceitos e, ao final de tudo, sentir o valor e a compensao de ter a

    tarefa cumprida. Diante disso, endereo agradecimentos a todos que, de forma direta ou

    indireta, alavancaram este processo de construo de pesquisa que culminou nesta

    conquista.

    Agradeo, em primeiro lugar, a Deus, mentor de grandes obras, por ter me

    concedido o dom da vida, sade, fora, coragem, persistncia, determinao e capacidade

    de sentir, para que pudesse resistir s adversidades que se fizeram presentes no percurso

    desta pesquisa, especialmente quanto s perdas inerentes condio humana.

    A minha famlia, da qual obtive sustentao, revelada em uma formao que

    me possibilitou vivenciar, ao longo dos anos, exemplos slidos e ntegros que

    sedimentaram o que hoje sou, fao e sinto.

    Aos meus irmos Silvia e Flvio, que embalaram comigo na caminhada da

    unio, no apoio desinteressado em momentos diversificados da vida. Por isso, dirijo a

    vocs meu agradecimento de modo enftico, estando certa de que acompanharam toda esta

    trilha, ancorada em esteio firme, onde o conhecimento acadmico tornou-se mais suave e

    passvel de deleite na convivncia harmoniosa, na ajuda mtua com relao a ns trs.

    Meus infinitos e profundos agradecimentos.

    memria da minha me, inspiradora desta pesquisa, e que tinha o sonho e o

    desejo de ver os filhos alcanando espaos cada vez maiores. Por ter sido um exemplo de

    sabedoria, humanidade, amor incondicional, simplicidade, humildade, luta e resilincia nas

    retas e curvas da vida. Cmplice do meu objeto de estudo, definido principalmente em

    razo da grandeza e repercusso dos seus ensinamentos e conhecimentos de mundo.

    Muitas saudades e lembranas.

    professora orientadora Selma Martines Peres, que atuando como

    companheira e parceira de trabalho, possibilitou o desenrolar desta pesquisa de forma

    tranquila, ao valorizar acertos, ensaios e tambm lidando com as incongruncias de

    maneira delicada, doce, generosa e humana, frente complexidade que efetivar pesquisa.

    Pelo esprito nobre e amigo, capacidade de olhar para alm do aparente, ver os fatos

  • 6

    segundo o vis dos sentidos, de fazer a diferena na vida das pessoas, de entender os seres

    humanos como so. Meus sinceros e honrosos agradecimentos.

    De modo especial, aos integrantes do PPGEDUC, coordenadora, professores,

    secretrios, a todos que se dedicam ao ofcio de produzir cincia e lev-la aos estudantes. E

    tambm aos que ficam nos bastidores, guiando questes tcnico-administrativas, zelando

    pelo funcionamento do programa.

    Aos meus colegas do Programa de Mestrado em Educao e a todos os

    profissionais que nele atuam, pelo compartilhamento de ideias e experincias. Agradeo

    especialmente Darciene, com quem tive um convvio mais intenso, afirmando que por

    trs desta colega h uma amiga mais que querida e companheira. Fui agraciada com os

    frutos da sua simplicidade, doao e bondade para com os outros. E vivenciamos embates

    advindos da presente formao acadmica e tambm alegrias que se instalaram no

    desenrolar do percurso delineado por uma convivncia agradvel.

    Maysa, com quem pude crescer intelectualmente a cada situao vivenciada

    e olhada no decurso da sua pesquisa. Pelas exposies reais de dvidas, posicionamentos,

    sinceridade e grande dedicao quanto aos afazeres universitrios.

    De um modo geral, aos integrantes da escola pesquisada, que aceitaram minha

    presena e atuao na condio de pesquisadora, na perspectiva de que se tornasse possvel

    a consumao deste intento. diretora, que abriu as portas da instituio, fornecendo as

    informaes de que precisava para contextualiz-la e permitindo minha estadia em

    cumprimento aos objetivos elencados. Tambm s professoras da sala de aula investigada,

    pela colaborao e compreenso, por terem possibilitado vivenciar um trabalho rico em

    aprendizagens. Professoras, esta pesquisa tambm pertence a vocs!

    Aos alunos da escola, que me acolheram com respeito e carinho. Com eles

    muito aprendi e experimentei a sensao de que os sentidos movem a atuao das pessoas,

    joga luz nas atividades e torna as prticas escolares mais vivas e reais, necessitando ser

    considerados na dimenso do ensino/aprendizagem e, por conseguinte, no contexto de vida

    das pessoas. Pela oportunidade de perceber que sujeitos singulares tm em comum modos

    prprios de viver, ser e pensar.

    s crianas que j foram minhas alunas e que povoaram o meu interesse

    sempre vivo e iluminado de participar do contexto delas, ensinando, aprendendo e

    semeando princpios de justia, em razo de acreditar que, por meio da educao escolar a,

    vida pode ser melhor e, assim, viabilizar que o desejo de ensinar e obter novos

  • 7

    conhecimentos mantenha aceso. Pelo convvio com suas histrias de vidas, modos de ver o

    mundo que se entrelaam uns nos outros para compor sentidos construdos coletivamente,

    no contexto de diferentes salas de aula.

    Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), pelo apoio financeiro prestado por

    meio da concesso de bolsa em expresso de incentivo pesquisa. Em razo de ter

    oportunizado a participao em eventos cientficos, que ocorreram em diversificadas

    universidades brasileiras, de modo favorecer o alargamento do campo dos conhecimentos

    acadmicos a partir da divulgao dos saberes construdos em simpsios, palestras,

    conferncias, comunicaes orais, e outros.

    Secretaria de Estado de Educao do Distrito Federal, pela concesso do

    afastamento, o que tornou possvel a realizao deste mestrado. Pelo empenho desprendido

    em termos de apoio no tocante qualificao dos profissionais da rede distrital de ensino.

    s professoras componentes da banca, Maria Zlia Versiani Machado e Maria

    Aparecida Lopes Rossi, que reunidas na qualificao e defesa desta pesquisa trouxeram

    relevantes sugestes e contribuies no sentido de enriquecer o trabalho a partir de outros

    olhares.

  • 8

    RESUMO

    O contexto social atual, envolto pela pluralidade de letramentos que atravessa sociedade grafocntrica, faz com que sejam necessrios diferentes domnios da escrita por parte das pessoas,

    em mltiplas instncias do fazer social. Assim, competncia lingustica, compreenses,

    interpretaes, dialogicidades, interaes em eventos comunicativos e prticas discursivas compem o cotidiano de espaos sociais especficos e particulares luz de eventos e prticas de

    letramento que diferem de lugar para lugar, de situao para situao. Dessa realidade advm a

    sintonia do processo de letramento com a busca de sentidos, considerando que na sociedade

    brasileira ainda se presencia prticas escolares muito escolarizadas, o que acarreta em dificuldades quanto ao desenvolvimento de prticas de letramento que abarquem a construo de sentidos por

    parte dos alunos. Dessa forma, este estudo teve como propsito compreender como os alunos do

    quarto ano do ensino fundamental de uma escola pblica municipal, situada na periferia da cidade de Ipameri, estado de Gois, constroem sentido aos eventos e s prticas de letramento dos quais

    participam no universo escolar. A pesquisa respaldou-se em abordagem qualitativa, do tipo

    etnogrfico, j que houve uma insero nas condies reais vivenciadas pelos alunos. As tcnicas de coleta das informaes suscitadas pela pesquisa consistiram em observao sistemtica de uma

    srie de eventos de letramento ocorridos na sala de aula e na sala colorida, os quais foram

    registrados em dirio de campo, e tambm por meio de entrevistas semiestruturadas com alunos.

    Utilizando-se desses procedimentos, discutiu-se sobre os sentidos do processo de letramento em contextos comunicativos, interativos e dialgicos expressos por aulas, contao de histria e

    palestras. Para tanto, a pesquisa teve respaldo terico especialmente nos estudos sobre letramento,

    sentidos, significaes, dialogismo bakhtiniano, enunciaes, eventos e prticas de letramento, fundamentando-se em autores como: Mari (2008); Bakhtin (1995, 2011); Marcuschi (2007); Sobral

    (2009); Hilgert (2012), Soares (2012), Kleiman (2005), Hamilton (2000a, b), Street (2010, 2012,

    2013, 2014); Barton e Hamilton (2000), Heath (1982) e outros. A anlise desses eventos de

    letramento permitiu afirmar que os sentidos do processo de letramento so percebidos quando h interao, dilogo expresso nas enunciaes dos alunos sob a tica de grupo, de coletividade. Nas

    aulas em que no se observou interao entre aluno-texto ou entre aluno-professor-texto, como nas

    atividades fundadas em perguntas e respostas descontextualizadas, geralmente presentes nos livros didticos trabalhados, foi inviabilizada a percepo e compreenso dos sentidos do processo de

    letramento. A construo dos sentidos, apesar de ter partido dos alunos em todas as ocasies,

    precisou tambm do sistema lingustico para se constituir no campo das significaes e/ou da histria, por abordar o social, de modo que possvel afirmar que sujeito-sistema-histria

    cooperam nesta construo. O contedo das entrevistas, realizadas com dois alunos e duas alunas

    pesquisados, revelou construes de sentidos sedimentadas em perspectivas mais individuais, em

    que, de um lado, estavam presentes interesses, desejos, atividades preferidas pelos alunos ao serem movidos, tocados e impulsionados a comentar sobre determinada realidade. De outro lado, faziam-

    se presente o no gostar, rejeitar, desconsiderar, elucidados em situaes que remetiam ao silncio,

    resistncia em expressar, desmotivao, dentre outros aspectos. Nos relatos, observou-se que determinadas atividades escolares no foram bem concebidas pelos alunos em razo da

    impossibilidade de lanarem mo de suas compreenses, de serem autores das suas produes, dos

    seus discursos. Sendo assim, h o indicativo de que a maioria das escolas ainda tm um desafio a enfrentar: a promoo de prticas de letramento apoiadas na dimenso dos sentidos.

    Palavras-chave: Eventos de letramento. Prticas de letramento. Leitura. Escrita. Sentidos.

  • 9

    ABSTRACT

    The current social context, surrounded by the plurality of literacies that crosses graphocentric

    society, makes them to be need different domains of writing by people in multiple instances of

    social Thus, language skills, understandings, interpretations, dialogicities, interactions in

    communicative events and discursive practices make up the daily life of specific social spaces and

    private in the light of events and literacy practices that differ from place to place, from situation to

    situation. Of this reality comes the tuning of the literacy process with the search of meaning,

    considering that in Brazilian society is still present very schooled school practices, resulting in

    difficulties in the development of literacy practices that cover the construction of meaning by

    students . Thus, this study has sought to understand how students in the fourth grade of elementary

    school of a public school, located on the outskirts of Ipameri, state of Gois, construct meaning to

    events and literacy practices of which participate in the universe of school. The research backed up

    on a qualitative approach, of ethnographic tipe, as there was an insert in the real conditions

    experienced by the students. The techniques of collection of information raised by research

    consisted of systematic observation of a series of literacy events in the classroom and in the

    colorful room, which were registered in a field diary, and also through semi-structured interviews

    with students. Using these procedures, it was discussed the meanings of literacy process in

    communicative, interactive and dialogical contexts expressed by classes, storytelling and lectures.

    Therefore, the research was theoretical supported especially in studies of literacy, senses,

    meanings, Bakhtin's dialogism, enunciations, events and literacy practices, basing on authors such

    as: Mari (2008); Bakhtin (1995, 2011); Marcuschi (2007); Sobral (2009); Hilgert (2012), Soares

    (2012), Kleiman (2005), Hamilton (2000a, b), Street (2010, 2012, 2013, 2014); Barton and

    Hamilton (2000), Heath (1982) and others. The analysis of these literacy events allowed us to

    affirm that the senses of the literacy process are perceived when there is interaction, dialogue

    expressed in the enunciations of the students in the group view, of collectivity. In classes where

    there was no interaction between student-text or between student-teacher-text, as in the activities

    based on questions and answers decontextualized, usually present in the textbooks worked, was

    unviable the perception and the understanding of the senses of the literacy process. The

    construction of the senses, despite having arisen of students in any occasions, also needed the

    linguistic system to be in the field of meanings and / or history, to say about the social, so that one

    can say that subject-system- history cooperate in this construction. The content of the interviews

    with two students and two students researched revealed buildings of sedimented senses experienced

    in more individual perspective, in which on one side, were present interests, desires, favorite

    activities by students as they were moved, touched and stimulated to comment about certain reality.

    On the other hand, were present the not liking, reject, ignore, elucidated in situations which

    referred to the silence, expressing resistance, demotivation, among other aspects. In the reports, it

    was observed that certain school activities were not well conceived by the students because of the

    impossibility of reaching out for their understanding, to be authors of their products, their speeches.

    Thus, there is the indication that most schools still have a challenge to confront: the promotion of

    literacy practices supported in the dimension of the senses.

    Keywords: Literacy events. Literacy practices. Reading. Writing. Senses.

  • 10

    LISTA DE SIGLAS

    Capes Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    ECA Estatuto da Criana e do Adolescente

    PNC Plano Nacional Comum

    PPP Projeto Poltico Pedaggico

    PNBE Programa Nacional Biblioteca da Escola

    PNLD Programa Nacional do Livro Didtico

    PNLEM Programa Nacional do Livro Didtico para o Ensino Mdio

  • 11

    LISTA DE APNDICES

    Apndice A Caracterizao da escola .............................................................................. 248

    Apndice B Termo de consentimento livre e esclarecido ................................................. 249

    Apndice C Consentimento da participao da pessoa como sujeito da pesquisa ............. 251

    Apndice D Termo de assentimento ................................................................................ 252

    Apndice E Autorizao para a coleta de dados (Contexto extraescolar).......................... 253

    Apndice F Autorizao para a coleta de dados (Diretora da escola) ............................... 254

    Apndice G Autorizao para a coleta de dados (Secretria Municipal de Educao) ...... 255

    Apndice H Roteiro de entrevistas .................................................................................. 256

  • 12

    SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................. 14

    CAPTULO I ARCABOUO METODOLGICO: OLHANDO PARA A ESCOLA E OS

    SUJEITOS DA PESQUISA ................................................................................................ 26

    1.1. A tecitura de um cenrio de observao ........................................................................ 26

    1.2. Interpretao qualitativa dirigida aos sujeitos e a escola: uma expresso de base do tipo

    etnogrfico ........................................................................................................................... 32

    1.3. A entrevista sob um prisma terico-metodolgico ........................................................ 37

    CAPTULO II LETRAMENTO: UM CAMPO PLURAL, MLTIPLO E DIVERSO ....... 47

    2.1. Leitura e escrita: dilogo e interseco com o letramento ............................................. 48

    2.2. Gneros discursivos/textuais: usos da linguagem e comunicao no quadro de processos

    interativos e dialgicos ......................................................................................................... 57

    2.3. Gnese, conceituaes interligadas ao letramento e suas dimenses .............................. 62

    2.4. Formas de letramento: construo de conceitos ............................................................ 76

    CAPTULO III EVENTOS E PRTICAS DE LETRAMENTO: USOS E

    FUNCIONALIDADES DA ESCRITA NO ENTREMEIO DAS PRTICAS SOCIAIS ...... 84

    3.1. Prticas de letramento e suas implicaes nos eventos de letramento ............................ 84

    3.2. Perspectivas socioculturais entrecruzando configuraes de letramento no contexto de

    suas prticas ....................................................................................................................... 100

    CAPITULO IV A ABRANGNCIA DO SENTIDO: UM OLHAR PARA O

    IMPREVISVEL, INESPERADO E IMENSURVEL ...................................................... 109

    4.1. Sentido, significado e significao: uma dinmica de inter-relao .............................. 109

    4.2. O campo do sentido: um olhar ancorado no mbito da linguagem, comunicao,

    interao, interpretao e compreenso .............................................................................. 115

    4.3. O sentido e suas dimenses constitutivas .................................................................... 124

    4.3.1. O sentido como construo sistmica ....................................................................... 126

    4.3.2. O sujeito na condio de construtor do sentido ........................................................ 128

    4.3.3. A histria impulsionando a construo do sentido ................................................... 132

  • 13

    CAPTULO V UNIVERSO DA ESCOLA PESQUISADA: VIVNCIAS, SENTIDOS E

    LETRAMENTO ................................................................................................................ 134

    5.1. Situando a escola na cidade e no bairro: contexto fsico e organizacional ................... 134

    5.2. Em foco a sala de aula: primeiras consideraes ......................................................... 140

    5.3. O cotidiano do grupo pesquisado: interaes e sentidos que se desdobram nos eventos e

    prticas de letramento ....................................................................................................... 143

    5.3.1. A palavra escrita como ponto de partida para os eventos e prticas de letramento .... 149

    5.3.2. Enunciados na composio dos eventos e das prticas de letramento no campo

    discursivo .......................................................................................................................... 155

    5.3.3. Usos e funes sociais da escrita: eventos e prticas de letramento ancoradas em

    diferentes gneros textuais ................................................................................................ 165

    5.3.4. Palestras: interpretando cientificamente os eventos e prticas de letramento ............. 177

    5.3.5. Histria infantil: texto literrio mediado por aes e interpretaes gestadas nos eventos

    e prticas de letramento ..................................................................................................... 184

    CAPTULO VI COMPREENSO DO LETRAMENTO MEDIANTE

    SINGULARIDADES DESENHADAS NOS RELATOS DOS SUJEITOS PESQUISADOS ...

    ............................................... ............................................................................................. 193

    6.1. Cotidiano dos alunos pesquisados: incluso da escola em prticas dirias, extraescolares e

    construo de sentidos ....................................................................................................... 193

    6.2. Fontes de leitura no ambiente familiar: adulto na condio de mediador da leitura ..... 201

    6.3. Lugares frequentados: letramento permeado por eventos e prticas ............................ 205

    6.4. Letramento no mbito escolar: buscando singularidades ............................................. 210

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................ 224

    REFERNCIAS ............................................................................................................... 232

    APNDICES ..................................................................................................................... 248

  • 14

    INTRODUO

    No contexto atual, as dimensesinterpretativa, argumentativa, interativa, dentre

    outras maneiras de estabelecer comunicao e atuar na sociedade, decorrem dos diferentes

    modos de utilizar a leitura e a escrita, que so cada vez mais necessrias em contextos

    sociais nos quais so disponibilizadas fontes escritas diversas, desde jornais, e-mails, at

    textos fundamentados em rigorosos conhecimentos tericos e cientficos. So observados

    discursos/registros elaborados em variadas instituies, por meio de prticas escritas e

    orais, os quais revelam formas sociais de expresso, principalmente em lngua escrita.

    Nesse cenrio, existem variados tipos de letramento, que respondem a objetivos

    especficos, visto que as pessoas usam a escrita com diferentes finalidades, e em um

    nmero variado de situaes interacionais que tm lugar na sua histria de vida

    (EUZBIO; CERUTTI-RIZZATTI, 2013).

    No conjunto das atividades que envolvem o fazer de sujeitos com diferentes

    papis sociais, a leitura, assim como o ato de escrever, so diversos, o que confere aos

    sujeitos a condio de letramento. Sendo os sentidos do processo de letramento a

    especificidade deste estudo, ressalta-se que, embora no seja a nica agncia de

    letramento, a instituio escolar, enquanto ambiente formador, quando respaldada por uma

    perspectiva educacional que no se limita a perceber a lngua apenas como meio voltado

    para a aquisio de habilidades de codificao e decodificao de diferentes materiais

    escritos, insere-se no campo do letramento.

    Euzbio e Cerutti-Rizzatti (2013) afirmam que a diversificao da leitura e da

    escrita levou a questionamentos acerca da viso monoltica do uso da escrita, que se

    comprometia exclusivamente com a erudio e escolarizao. Isso porque, em sentido

    diverso, entende-se que os cdigos lingusticos, ao serem usados na linguagem, expressam

    relaes sociais, interaes mltiplas, vises de mundo, experincias de vida. Em face

    disso, transmitem cultura, ao determinarem comportamentos, modos de ver e de pensar

    (SILVA, 2009).

    A insero efetiva das pessoas na cultura letrada requer que elas se apropriem

    da autoria dos seus prprios discursos e os comuniquem com a sociedade. Em razo das

    mencionadas diversificaes sociais, o letramento, por uma perspectiva educacional

    singular - desenvolvida h anos atrs, e que desconsiderava os diferentes domnios sociais

    referentes leitura e escrita - d lugar a uma composio plural, considerando-se que

  • 15

    existem letramentos, modos de ser letrado (ROJO, 2009) no universo de triangulao dos

    eixos: letramento, educao, escola (principalmente professores/alunos).

    Pela nova perspectiva, pensar os sentidos processo de letramento do sujeito diz

    respeito a considerar as especificidades de diferentes agncias e espaos de letramento - no

    caso desta investigao, a prioridade a instituio escolar - a partir de relaes

    estabelecidas em contextos scio-histrico-culturais que diferem quanto ao emprego da

    leitura e escrita em termos de propsitos e atuaes sociais.

    O presente estudo busca compreender os sentidos do processo de letramento de

    quatro crianas, que esto no quarto ano do ensino fundamental de uma escola da rede

    municipal de ensino, da cidade de Ipameri, estado de Gois. Ressalta-se que esta pesquisa

    apresenta um estudo do processo de letramento com um foco escolar, considerando

    tambm as abrangncias social, cultural e histrica que atravessam e caracterizam o

    letramento, pelo fato das pessoas trazerem consigo conhecimentos prvios e de mundo,

    advindos de vivncias extraescolares.

    O interesse por esta temtica decorre de uma inquietao de longa data, em

    razo de constituir uma questo que me causou preocupao tanto no ensino fundamental

    quanto no ensino mdio e, principalmente, nos primeiros anos do curso de Pedagogia. A

    graduao, de forma especial, foi um momento em que pude tomar conscincia, atravs de

    uma retrospectiva do meu passado escolar, de que o ensino, sob um ponto de vista geral e

    longitudinal, geralmente resumia-se a afazeres mecnicos, isentos de significaes vividas.

    O estudo acadmico no campo da Pedagogia, somado s prticas educacionais de nveis

    anteriores de ensino, permitiu constatar que o letramento escolar, expresso especialmente a

    partir da leitura e compreenso de textos variados, era pouco fluente no tocante a um

    nmero considervel de alunos. Notava-se a presena de textos que eram lidos,

    decodificados, porm, pouco significados. Assim, esses processos de leitura pouco

    significativas culminavam em produes escritas, em grande medida, tambm isentas de

    sentido. Nesse contexto, a leitura e a escrita eram tidas como ferramentas limitadas de

    comunicao individual e social. Portanto, da experincia pessoal que surge a inteno de

    perceber como os sentidos so construdos ao processo de letramento, pela tica de alunos.

    Diante desse interesse duradouro, foi realizado, na Especializao em

    Alfabetizao, um estudo monogrfico acerca do letramento, o qual foi intitulado: O

    papel da escola pblica na insero do aluno de 1 srie na cultura letrada: os usos e

    funes sociais da leitura e escrita (ROSA, 2003). A monografia realizada serviu de base

  • 16

    para este estudo, apesar de possuir outra abordagem, alusiva s demandas atuais por

    letramento no campo plural das significaes, quando so construdos sentidos letrados em

    respostas s prticas escolares, sejam elas letradas ou no. O enfoque do referido trabalho

    se d tendo em vista que, no espao discursivo da sala de aula, independentemente de se ter

    um texto escrito, emprico ou no, ou apenas um questionrio oral, sempre se tratar de

    eventos de letramento (JAEGER, 2003).

    A educao bsica, especialmente o ensino fundamental, verticalizao e

    especificidade deste estudo, tem similaridade com a educao superior, no sentido de esta

    tambm presenciar certas dificuldades quanto a entendimentos letrados por parte dos

    estudantes. Essa situao permite afirmar estarem os impasses que acometem os usos e

    funes sociais da leitura e escrita presentes em todos os nveis da educao: a comear

    pela educao infantil, estendendo-se, com maior expresso e visibilidade, ao ensino

    fundamental, e podendo se prolongar at o superior, em grau acentuado, devido ao maior

    rigor das exigncias em termos de conhecimentos no mbito da academia.

    Esta realidade, latente no cenrio educacional brasileiro, justifica a proposta de

    uma reflexo sobre o processo de letramento em prticas de letramento concretizadas em

    escolares pblicas, as quais, muitas vezes, dificultam que as pessoas possam construir

    conhecimentos letrados, bem como dar sentido a esses saberes. Assim, considera-se que o

    desafio, atualmente, ainda oportunizar uma educao pblica de qualidade para todos os

    brasileiros (SAVIANI, 2007).

    A pesquisa considera um universo sociocultural amplo (MARINHO, 2010b) e

    complexo, em razo de as pessoas estarem em processo constante de letramento em suas

    vidas cotidianas. Essa sistemtica de letramento se estende s instituies escolares, as

    quais so responsveis pela formao de sujeitos para atuarem em diferentes reas do

    conhecimento, o que justifica uma anlise do letramento em ambiente escolar

    (interseco). Vale ressaltar que, ao ter como foco a escola, especialmente a sala de aula,

    no se deixa de considerar a extenso e dimenso social do letramento, haja vista que os

    usos e funes sociais da leitura e da escrita contemplam prticas vivenciadas e gestadas

    no mbito de toda a sociedade.

    Na realidade educacional brasileira, ainda se percebe a utilizao da leitura e

    escrita cumprindo um papel isolado, a ponto de a intencionalidade escolar, em termos de

    conhecimentos difundidos, apresentar disparidade em relao aos saberes efetivamente

    necessrios para o exerccio da vida em sociedade. A nfase no aspecto escolar faz com

  • 17

    que a escrita deixe de ser um objeto social para ser um componente exclusivamente escolar

    (SILVA, 2009). O que se aprende na escola tem funomormente escolar, ao passo que a

    aprendizagem informal, por sua vez, pouco aproveitada dentro do espao da escola.

    Assim, o que se verifica, por vezes, a existncia de dois mundos distintos: o escolar e o

    social, alheio escola (ROJO, 2006). Por assim ser, nas prticas escolares de hoje,

    coexistem vises escolarizadas a respeito do letramento, bem como entendimentos

    pautados em interpretaes que abarcam a dimenso social do fenmeno.

    Quando envolto por uma perspectiva significativamente escolarizada, o

    letramento tende a se respaldar na mecanicidade que, segundo Soares (2003a), faz com que

    seu conceito esteja voltado para habilidades e prticas obtidas atravs de uma escolarizao

    burocratizante, que se resume a testes e provas de leitura e escrita. H, conforme defende a

    autora, um conceito de letramento reduzido, que est, muitas vezes, distante das

    habilidades e prticas de letramento que realmente acontecem fora do contexto escolar. A

    escola, dessa forma, acaba desqualificando o conhecimento adquirido no cotidiano, no

    trabalho, nas lutas do dia a dia, em razo de no validar esse conhecimento, tampouco

    atribuir mrito a quem o possui (SILVA, 2009).

    Pela tica do letramento escolarizante, os aprendentes esto sujeitados a

    vivenciarem uma desconexo acarretada pela invalidao do seu processo de letramento

    anterior - construdo por meio dos conhecimentos de mundo e prvios, das experincias de

    vida que permeiam contextos sociais ou culturais em que vivem e atuam - pela sistemtica

    escolar. Essa ruptura leva os alunos a abandonarem, na atuao escolar, experincias

    letradas no institucionalizadas, no dando continuidade a esse processo de letramento, em

    razo de que a escola, geralmente, no o valoriza. Diante da acentuada escolarizao do

    letramento em aes de codificao e decodificao da lngua materna, torna-se

    perceptvel, nas produes escolares, que nem sempre dada aos estudantes a

    oportunidade de se expressarem a partir da construo de textos (orais ou escritos) em que

    se coloquem como autores do seu prprio dizer.

    Na condio de professora do ensino fundamental, em contato com a realidade

    de escolas pblicas municipais e distritais, sempre foi notria a preocupao de professores

    em relao interpretao e significao dos textos lidos por parte dos alunos.

    Predominavam, e ainda esto presentes, queixas como: o aluno l, mas no entende o

    que l; h decodificao das letras, porm em atividades interpretativas o aluno expressa

    entendimento e argumento restritos no conjunto de suas respostas. Sendo assim, a

  • 18

    construo de sentidos do processo de letramento se configura como uma possibilidade de

    compreender o percurso letrado de sujeitos, haja vista que este advm dos modos de

    participao empreendidos pelas pessoas em diferentes contextos sociais.

    Partindo da premissa de que os eventos e prticas de letramento demandam

    interao para que possam ser percebidas e compreendidas as construes de sentidos do

    processo de letramento, esta pesquisa aborda anlises de eventos de letramento em que h

    manifestaes de interao entre professoras e alunos. Portanto, eventos centrados no

    letramento autnomo no compem as anlises realizadas, em razo de no atenderem aos

    objetivos deste estudo.

    A pesquisa est fundamentada no seguinte problema: Como os alunos do

    quarto ano do ensino fundamental de uma escola pblica municipal, situada na periferia da

    cidade de Ipameri-GO, constroem sentido aos eventos e s prticas de letramento dos quais

    participam no universo escolar? Um questionamento apoia a problemtica mencionada: De

    que modo os materiais impressos, que correspondem a diversos gneros textuais, esto

    presentes no processo, na significao e nos sentidos do letramento dos sujeitos/alunos?

    Frente ao universo composto por textos orais, escritos e virtuais que perpassam

    a sociedade contempornea, a interpretatividade, o conhecimento lingustico e o uso de

    diferentes gneros textuais tornaram-se ferramentas indispensveis para as pessoas atuarem

    nos diversos espaos sociais. Partindo dessa premissa, a pesquisa visa a contribuir com as

    discusses no campo do letramento, em especial no que se refere aos sentidos do processo

    de letramento de crianas no espao escolar. E ainda, pretende-se que o contedo abordado

    e as fontes arroladas possibilitem fecundar novas investigaes.

    De modo geral, o objetivo desta investigao compreender o processo de

    letramento de alunos do quarto ano do ensino fundamental em uma escola pblica

    municipal perifrica da cidade de Ipameri-GO, na perspectiva de perceber como esses

    alunos constroem sentido aos eventos e s prticas de letramento das quais participam no

    universo escolar. De modo especfico, busca-se entender a leitura e escrita no campo do

    letramento,bem como perceber questes socioculturais que atravessam o processo de

    letramento em termos conceituais e prticos/cotidianos. Tambmse procura identificar as

    condies de leitura, os eventos de letramento e os sentidos que os alunos constroem s

    prticas de letramento na escola pesquisada. Busca-se, ainda, compreender como os

    sentidos do processo de letramento so construdos pelo olhar dos alunos na coletividade e

    na concretude da sala de aula. Por fim, intenta-se perceber as singularidades dos sujeitos

  • 19

    pesquisados, seus modos de vida e a forma de interpretarem os saberes escolares, a fim de

    retratar aspectos inerentes ao seu processo de letramento.

    No que compete ao aspecto terico, esta abordagem inclui literaturas que

    discorrem sobre diferentes questes, como letramento, alfabetizao, sentidos, e outras. O

    presente estudo respalda-se em autores que dedicam suas linhas de anlise especificidade

    da temtica, e tambmse ancora em estudiosos de reas afins, na busca de construir sentido

    ao letramento, possvel nas interpretaes humanitrias associadas educao escolar.

    Sendo assim, este trabalho encontra fundamento em estudiosos como: Kleiman (2005,

    1998, 1995), Rojo (2008, 2004, 2006), Soares (1998, 2002, 2003), Street (2010, 2012,

    2014), Hamilton (2000a, b), Terzi (1995), Tfouni (1988, 1995, 2002, 2010), Goulart

    (2006a, b), Mastrobuono (2007), Mari (2008), Marcuschi (2007, 2008), Bakhtin (1995,

    2011), dentre outros.

    Esse referencial aponta para o desafio que adentrar no universo do

    letramento, visto que requer leituras diferenciadas e que tenham significao na sociedade

    letrada. Isso ocorre pelo fato de o letramento estar em constante construo, a depender de

    recortes individuais (cognitivos), sociais, histricos e culturais entremeados na vida dos

    sujeitos. A grande abrangncia faz com que a conceituao do letramento seja complexa e

    mltipla, e, por isso, expressa a partir de constructos tericos diversificados.

    A fim de explicitar os trabalhos acadmicos que mais coadunam com a

    presente pesquisa, foi escolhido o Banco de Teses e Dissertaes da Coordenao de

    Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes), por se configurar como um rgo

    dedicado a divulgar nacionalmente pesquisas reconhecidas no universo acadmico. A

    busca lanou mo de palavras-chave como letramento, sentido e prticas de letramento, as

    quais possibilitaram um campo de alcance significativo em termos de estudos sobre a

    temtica pesquisada.

    No mbito da educao, o levantamento bibliogrfico efetivado na Capes

    possibilitou a identificao, em diferentes universidades do Brasil, de produes nas quais

    o letramento tem revelado reflexes assentadas em uma perspectiva ampla, plural e

    mltipla. Foram elencadas em torno de cento e cinquenta produes que, de algum modo,

    abordaram o letramento, incidindo desde a educao infantil at o nvel superior,

    abrangendo inclusive a educao inclusiva e a de jovens e adultos.

    Alm do campo da Educao, foram identificados, tambm, trabalhos em

    outras reas, como Matemtica, Fsica, Tecnologias de Formao e Comunicao, Teatro e

  • 20

    outras. Isso evidencia o letramento permeando investigaes em diferentes situaes de

    conhecimento, e, portanto, sendo muito mais motivado para debates diversos do que

    propriamente sendo concebido como objeto, o que o especifica enquanto campo de estudo.

    Constatou-se, tambm, no conjunto dessas produes, o sentido sendo adotado por

    professores de diferentes reas do conhecimento/disciplinas, como Qumica, Geografia,

    Fsica, Educao Ambiental, Cincias Biolgicas, Artes, Matemtica, e outras. Cabe

    ponderar que, em muitas das produes no campo do letramento, foi observada uma

    tendncia das discusses se voltarem para a associao entre letramento e alfabetizao, j

    que alfabetizar, na perspectiva da maioria dos pesquisadores, teve compreenses que

    caminharam junto com a necessidade de letrar.

    Ainda verificou-se que a construo de sentidos do processo de letramento

    como objeto de estudo pouco focalizada, e, assim, tambm minimamente considerada,

    do ponto de vista escolar (ensino/aprendizagem), pela tica dos alunos do ensino

    fundamental. Nas produes publicadas no portal da Capes, os sentidos do letramento

    estiveram relacionados, em grande parte, s compreenses estabelecidas por adultos. A

    ttulo de exemplificao, percebeu-se nos trabalhos a seguinte preponderncia: o sentido de

    ser professor como profissional do ensinar; a experincia de ser professor delineando o

    conhecimento de si na formao docente; a construo do significado de textos em

    estudantes universitrios e a mediao docente; a compreenso de sentidos por adultos, na

    escolarizao e nas trajetrias de vida; os sentidos do exerccio da docncia no ensino

    mdio; a produo de sentidos subjetivos dos professores ao enfrentarem as adversidades

    da docncia; os sentidos produzidos por professores a partir de diretrizes curriculares; a

    educao e o sentido da vida vistos por estudantes em formao docente; os sentidos da

    experincia escolar para os alunos por meio de lembranas da escola, e vrios outros.

    Esses dados evidenciam que os sentidos do letramento, alm de alargarem para

    diferentes domnios do saber, serem plurais e multifacetados, ainda tm sido mais

    enfatizados e compreendidos segundo a perspectiva de adultos. O presente estudo, por sua

    vez, apresenta outro vis, ao buscar os sentidos do processo de letramento a partir do olhar

    dos alunos do quarto ano do ensino fundamental, haja vista que se tem a pretenso de

    compreender o letramento conforme subjetividades, sentidos construdos por quem

    interage e aprende escolarmente.

  • 21

    A partir da pesquisa no banco da Capes, foi encontrada e examinada uma

    produo1 que mais se aproximou da perspectiva empregada neste trabalho, por apresentar

    enfoque nos sentidos do processo de letramento a partir da tica de alunos. A pesquisa

    apresentou como objetivo discutir como se constitui a oralidade nas relaes com a escrita

    nas prticas de letramento escolares. Tendo a oralidade como aspecto central, o estudo a

    relacionou com a escrita em eventos de letramento descritos e analisados, nos quais os

    alunos tiveram participao constante na produo de sentidos delineados na interao em

    sala de aula (SOTELO, 2009). Assim, duas salas de segunda srie do ensino fundamental

    de uma escola pblica municipal se configuraram como lcus de estudo, onde a

    dialogicidade e a interao compuseram o cenrio expresso pela produo de sentidos,

    mediante a relao entre oralidade e escrita. Alm dos eventos de letramento vivenciados

    em sala de aula, foram realizadas entrevistas com as professoras regentes (concepo sobre

    o trabalho com a oralidade) e anlise de documentos norteadores da prtica pedaggica,j

    que o objetivo pautou-se em discutir como se constitui a oralidade nas relaes com a

    escrita nas prticas de letramento escolares.

    oportuno destacar alguns aspectos que diferenciam esta pesquisa do estudo

    de Sotelo (2009), o que se manifesta com relao aos objetivos, metodologia e

    fundamentao terica. Na presente pesquisa, apoia-se nas interaes alunos/professora em

    sala de aula, com base em eventos de letramento apreendidos segundo observaes das

    aulas e que se ancoram na escrita. Alm disso, para fundamentar todo o processo de

    letramento via locuo/interlocuo por meio de sentidos construdos pelos alunos do

    ponto de vista do sujeito, do sistema e do aspecto histrico (MARI, 2008), faz-se o uso do

    campo conceitual que versa sobre enunciaes, dialogicidade (BAKHTIN, 2011;

    HILGERT, 2012; MARI, 2008; SOBRAL, 2009; BRAIT, MELO, 2013), ao invs de se

    apoiar na oralidade. Em complemento a isso, tem-se como suporte entrevistas realizadas

    com quatro alunos, com o propsito de perceber singularidades acerca de questes que

    atravessaram o processo de letramento de cada um na amplitude dos sentidos, com

    embasamento nas relevncias que cada qual elege como primordial de ser relatada.

    Sendo assim, em termos metodolgicos os sentidos do processo de letramento

    tm como respaldo investigativo uma base terico-metodolgica do tipo etnogrfico, que

    se assenta em observaes na escola pesquisada, em especial na sala de aula, e tambm em

    1Dissertao: A oralidade nas relaes com a escrita: formas de participao e produo de sentidos na

    interpretao em sala de aula. Universidade de So Francisco Itatiba/SP (SOTELO, 2009).

  • 22

    entrevistas com os alunos. O estudo do tipo etnogrfico , nos dizeres de Andr (2004),

    sustentado nas seguintes premissas: o pesquisador visto como instrumento principal na

    coleta e anlise dos dados; tem-se nfase no processo; h preocupao com o significado

    atribudo pelos sujeitos s suas aes; conta-se com o envolvimento de um trabalho de

    campo, dentre outras caractersticas. Com base nesses pressupostos, busca-se compreender

    os sentidos do processo de letramento a partir do que os sujeitos revelam por meio da

    entrevista.

    Tendo como recorte o ensino fundamental, destaca-se que nos anos iniciais

    deste nvel de ensino, o desafio alfabetizar letrando (MASTROBUONO, 2007; SOARES,

    2003a). Isso porque sabido que alfabetizar, na perspectiva do letramento, corresponde a

    um ato que proporciona aos alunos dominarem os mecanismos de leitura e escrita, ao de

    ensinar/aprender a ler e escrever (SOARES, 2003a). Esse domnio necessrio tendo em

    vista que a leitura e a escrita possuem uma funo na sociedade, e, ainda, atendem a

    propsitos e demandas exigidas socialmente (letramento). Alfabetizao e letramento,

    mesmo com conceituaes diferenciadas, entrecruzam-se, corroboram um com o outro e se

    complementam. Na prtica escolar, Soares (2003a) aponta que o ideal seria alfabetizar

    letrando, isto , ensinar a ler e escrever no contexto das prticas sociais da leitura e da

    escrita.

    Ao se referir aquisio da escrita e aos usos sociais que se faz a partir dela, a

    alfabetizao caminha na direo do letramento. Percebe-se que a aprendizagem de

    habilidades para a leitura, escrita e as chamadas prticas de linguagem conduz ao

    letramento, que, por sua vez, focaliza os aspectos scio-histricos quanto aquisio da

    escrita (TFOUNI, 2002). Tfouni (1995) salienta que a alfabetizao letrada significa

    encarnar as prticas de leitura e escrita, tanto pela sua insero em contextos cognitivos e

    comunicativos de experincia partilhada, quanto por sua associao a diversos portadores

    de texto.

    A introduo do letramento no campo da educao tem gerado interpretaes

    inadequadas quantoao processo de alfabetizao, por desconsiderar as particularidades do

    referido processo. Contudo, a aproximao entre ambos os conceitos necessria, porque

    no somente o processo de alfabetizao, com sua distino e especificidade, altera-se e se

    reconfigura no quadro do conceito de letramento, como tambm este dependente daquele

    (SOARES, 2003a).

  • 23

    De acordo com Mastrobuono (2007), aprender a ler e escrever, a codificar e

    decodificar a lngua escrita, no confere ao sujeito, necessariamente, um novo status. Nos

    dizeres da autora, se algum aprende a ler e escrever, mas no faz uso social dessas novas

    habilidades, no se comunica usando as novas ferramentas que adquiriu, por conseguinte,

    no toma posse verdadeiramente dessa nova condio, e,assim, diz-se que ele no se

    letrou.

    Pode-se dizer que os estudos sobre letramento buscam analisar a questo do

    desenvolvimento social que permeia a expanso dos usos da escrita. Kleiman (1995)

    afirma que o fenmeno do letramento adotado pelas instituies que se encarregam de

    introduzir com formalidade os sujeitos no mundo da escrita. notrio que o letramento

    vem se mostrando cada vez mais necessrio em um pas como o Brasil, empreendedor do

    termo alfabetizao, ainda muito relacionado a uma viso de aprendizagem enquanto um

    processo de codificao/decodificao de sons em letras, e vice-versa (GOULART,

    2006a).

    Cumpre destacar que, nas sociedades modernas, no existe o iletramento em

    grau zero. Tfouni (1988) esclarece que existem so graus de letramento, sem haver a

    pressuposio da sua inexistncia. Portanto, o que h so diferentes tipos e nveis de

    letramento, dependendo das necessidades, das demandas do indivduo e de seu meio, bem

    como do contexto social e cultural (SOARES, 2003a). Nesse sentido, o letramento

    configura-se como um processo cuja natureza scio-histrica, podendo atuar

    indiretamente, influenciando at mesmo culturas e indivduos que no dominam a escrita

    (TFOUNI, 2002). Para a autora, enquanto os sistemas de escrita so um produto cultural, o

    letramento tambm o , em decorrncia de ser um processo que contempla a aquisio de

    um sistema escrito.

    Percebe-se que a cultura abarca questes relacionadas ao letramento, em face

    da sua complexidade e, por conseguinte, da sua finalidade, na perspectiva de oportunizar

    um entendimento global de questes e situaes que permitam o encontro do saber

    emprico com o cientfico. Assim, possvel levar para a sociedade aes que no revelem

    saber/letramento nico, porm, a possibilidade da leitura de mundo singular/autnoma

    (KLEIMAN, 2005; SOARES, 2012; JAEGER, 2003).

    A questo sociocultural tambm contempla o letramento. Conforme enfatiza

    Marinho (2010a), o termo letramento parece ter facilitado o campo das pesquisas,

    principalmente por recobrir aspectos alm dos especficos, expressos nas habilidades de ler

  • 24

    e escrever. Por essa via, configura-se como um dispositivo terico para se compreender um

    fenmeno sociocultural, a partir dos modos e das condies por meio das quais a sociedade

    brasileira lida com a escrita.

    Para desenvolver a presente pesquisa, so apresentados seis captulos. O

    primeiro captulo, Arcabouo metodolgico: olhando para a escola e os sujeitos da

    pesquisa, dedica-se a tratar dos procedimentos terico-metodolgicos que conduzem a

    investigao. Os sentidos do processo de letramento so concebidos a partir de um estudo

    do tipo etnogrfico, por meio do qual se observa a escola pesquisada e se realiza

    entrevistas com quatro alunos.

    O segundo captulo, intitulado Letramento: um campo plural, mltiplo e

    diverso, tem como foco contextualizar as discusses acerca do letramento em conjunturas

    plurais trazidas pela sociedade de hoje. Alm disso, aborda a leitura e a escrita, de modo a

    dialogarem e promoverem interseco com o letramento. Os gneros textuais/discursivos

    fazem-se presentes no contexto de diferentes discursividades, no mbito de interaes e

    dilogos. Pontua-se, ainda, sobre formas de letramento, expressas nos modelos autnomo e

    ideolgico, sendo a questo da autonomia referente desconsiderao dos contextos

    sociais e culturais que atravessam o letramento. Por outro lado, o aspecto ideolgico

    mostra variao de caso para caso, perante a identificao de poder nas ideias de grupos

    sociais. Para tanto, ancora-se em uma teorizao dos Novos Estudos do Letramento (NLS),

    que envolve discusses acerca dos eventos e prticas de letramento, pormenorizados

    noprximo captulo.

    No terceiro captulo, denominado Eventos e prticas de letramento: usos e

    funcionalidades da escrita no entremeio das prticas sociais, eventos e prticas de

    letramento so abordados a partir de uma perspectiva conjunta e correlacionada na

    dimenso de aes letradas em diferentes contextos de vida. O letramento considerado

    uma prtica social de ordem sociocultural. Nessa medida, diferenciam-se os eventos das

    prticas, sendo os primeiros observveis e os ltimos envoltos pelo invisvel, abstrato, que

    no se mensura e nem v. A focalizao dos eventos e as prticas de letramento objetiva

    possibilitar uma anlise posterior desses eventos e prticas, luz da compreenso do

    processo de letramento dos sujeitos pesquisados, sob a perspectiva dos sentidos, contedo

    a ser expresso no quinto captulo.

    O quarto captulo, A abrangncia do sentido: um olhar para o imprevisvel,

    inesperado e imensurvel, trouxe para o campo do debate a questo do sentido como

  • 25

    sendo um quesito que viabiliza interpretaes subjetivas, permitidas por intermdio de

    apreenses sensveis, sentidas e manifestas pelos sujeitos sociais. Os valores e a expresso

    da cultura presentes nas prticas de letramento, e que no so passveis de mensurao,

    constituem suportes principais para o alcance da compreenso dos sentidos do processo de

    letramento dos sujeitos da pesquisa, pelo fato de tais suportes adentrarem em questes

    abstratas, elucidadas pelas prticas de letramento, condutoras dos sentidos desse processo.

    No quinto captulo, Universo da escola pesquisada: vivncias, sentidos e

    letramento, tem-se a expresso do contexto em que foi desenvolvido o trabalho de campo,

    o delineamento do cenrio da escola pesquisada. A observao participante permite

    examinar eventos e analis-los a partir das prticas de letramento que se fundamentam no

    coletivo de alunos, em interaes e comunicaes possibilitadas no contexto da sala de

    aula, segundo interpretaes e compreenses dos eventos e prticas de letramento olhados

    individual, cultural e socialmente, em diversificadas utilizaes da linguagem.

    Por fim, o sexto captulo, Compreenso do letramento mediante

    singularidades desenhadas nos relatos dos sujeitos pesquisados, versa sobre as

    singularidades e particularidades observadas nas falas dos sujeitos pesquisados, no

    momento das entrevistas. O propsito traar um panorama do letramento atravessando as

    prticas dirias dos sujeitos pesquisados nos contextos de suas vidas, de modo a

    compreender como eles constroem sentidos aos eventos e s prticas de letramento que

    vivenciam.

  • 26

    CAPTULO I

    ARCABOUO METODOLGICO: OLHANDO PARA A ESCOLA E

    OS SUJEITOS DA PESQUISA

    Cada um l com os olhos que tem. E interpreta a

    partir de onde os ps pisam. Todo ponto de vista

    a vista de um ponto (Leonardo Boff).

    Este captulo expresso do recorte metodolgico que sustenta o desenrolar

    das anlises e compreenses expostas, sendo o fio condutor da pesquisa. Ele se detm a

    uma abordagem dos procedimentos adotados para se apreender os sentidos do processo de

    letramento dos sujeitos focalizados, a partir de uma investigao do tipo etnogrfica, de

    carter qualitativo, que se assenta em observaes na escola pesquisada e em entrevistas

    com os alunos. Tem-se, com esses modos metodolgicos, a inteno de perceber como os

    referidos sujeitos constroem sentido aos eventos e s prticas de letramento dos quais

    participam no universo escolar, j que o letramento corresponde, aqui, a um processo. O

    estudo, em termos metodolgicos, est ancorado em Laville e Dionne (1999), Andr (1992,

    2004, 2010), Tezani (2004), Laperrire (2012), Poupart (2012), Sarmento (2003) e outros

    que se dedicam metodologia de pesquisa no campo abordado.

    1.1. A tecitura de um cenrio de observao

    A inteno de adentrar em uma escola pblica municipal, na cidade de Ipameri,

    estado de Gois, trouxe para o campo dos procedimentos um mergulho na observao de

    diferentes ambientes que perpassam a instituio. A pesquisa trata de eventos e prticas de

    letramento vivenciados por alunos do quarto ano do ensino fundamental, de forma que a

    observao possui um carter abrangente, referindo-se a uma variedade de eventos que

    tiveram a participao das crianas.

  • 27

    O enfoque de anlise concernente a uma escola pblica2 decorre da realidade

    brasileira de que a maioria da populao encontra-se inserida em escolas dessa esfera

    administrativa. Ressalta-se, ainda, que a opo por investigar uma escola situada em uma

    regio perifrica se deve, em geral, ao fato de que as crianas moradoras dessas localidades

    so as que mais necessitam de uma instruo formal de qualidade, em razo de fazerem

    parte de um contexto marginal, com poucas oportunidades de crescimento social e

    humano. Ressalta-se que nos pases em desenvolvimento, com divises sociais marcantes,

    os padres de letramento so, de algum modo, influenciados pelas escolas, e ocorrem de

    acordo com o status social e/ou econmico do aluno (SOARES, 2003a).

    Conforme as exigncias e o teor do estudo, foram realizadas visitas escola

    durante o perodo de um ms. As visitaes ocorreram durante quatro semanas, sendo que

    em cada uma houve trs visitas em dias sequenciados, o que totalizou doze observaes.

    Os alunos foram observados desde a entrada na escola at sua sada, em um intervalo de

    tempo de cinco horas dirias, sendo as observaes iniciadas s 13 horas e encerradas s 18

    horas de cada dia letivo.

    A sequncia estabelecida para a ida a campo, geralmente ininterrupta, tornou-

    se necessria para que no houvesse quebra nas observaes, no sentido de buscar uma

    apreenso quanto abrangncia dos eventos e prticas de letramento. Esse tempo foi

    necessrio haja vista que, inserir no campo dos sentidos construdos ao processo de

    letramento dos alunos requer observaes mais integrais, para que possam ser percebidas

    comunicaes e interaes neste processo, que est imerso no social e cultural.Teve-se,

    com isso, a finalidade de perceber quais os eventos e prticas de letramento os alunos

    vivenciam, bem como apreender suas especificidades nos afazeres escolares.

    A vivncia na escola, ocorrida a partir de experincias aliceradas no contato

    direto com a comunidade escolar, abrangeu interaes com os alunos da turma de quarto

    ano pesquisada, na qual foram observadas trinta e quatro aulas. Na escola, houve o

    acompanhamento de atividades em que os participantes estavam inseridos, como aulas de

    diferentes disciplinas, alm de idas ao recreio e demais espaos do ambiente escolar.

    Ressalta-se que as observaes, conversas informais, interpretaes, percepes, bem

    como impresses, tudo foi registrado em um dirio de campo, de modo descritivo,

    2Entendida a partir de uma tica heterognea, a escola pblica, no mbito brasileiro, apresenta-se, hoje, de

    maneira diversificada, a depender do contexto social e cultural de que faz parte, bem como dos grupos de

    pessoas, os quais atende. Neste estudo, a escola pesquisada, em geral, atende alunos oriundos de condio

    socioeconmica baixa, que moram em bairros perifricos da cidade de Ipameri, estado de Gois, e tambm

    em localidades rurais situadas no municpio.

  • 28

    detalhado e pormenorizado, incluindo os dizeres, gestos, expresses e sentimentos dos

    sujeitos. Desse modo, o contexto da observao demanda que o observador tenha como

    principal auxiliar o dirio de campo, no qual se dedica a fazer anotaes completas e

    precisas, alusivas aos variados momentos da pesquisa, incluindo suas incertezas,

    indagaes e perplexidade (TURA, 2003, p. 189).

    A entrada na escola (momento da fila), o caminhar para a sala de aula, as

    atividades desenvolvidas dentro da classe, o momento do lanche e do recreio (as

    brincadeiras e as diferentes situaes de interao), o trmino da aula e a sada

    compuseram o eixo central em que os sentidos do processo de letramento puderam ser

    construdos pelos alunos de forma rotineira e cotidiana. Nesse ponto, a observao

    constitui um modo privilegiado de contato com o real, ao permitir que as atividades

    cotidianas das pessoas possivelmente ofeream exemplos que deixam espao observao

    (LAVILLE; DIONNE, 1999). A partir das observaes, houve o registro da dinmica

    escolar no dirio de campo, enquanto dado relevante para a pesquisa.

    A observao, no mbito desta pesquisa, assume um carter amplo e complexo

    por adentrar nos eventos e prticas de letramento que esto sedimentados principalmente

    em relaes interpessoais entre os alunos e as professoras. Essas relaes atravessaram a

    concretude da sala de aula, quando foi possvel perceber singularidades e subjetividades

    em uma perspectiva do grupo, de modo a desvelar sentidos e significados em termos de

    interao. Isso posto, Trivios (1987) esclarece que:

    Observar, naturalmente, no simplesmente olhar. Observar destacar de um

    conjunto(objetos, pessoas, animais etc.) algo especificamente, prestando, por

    exemplo, ateno em suas caractersticas (cor, tamanho etc.). Observar um

    fenmeno social significa, em primeiro lugar, que determinado evento social,

    simples ou complexo, tenha sido abstratamente separado de seu contexto para

    que, em sua dimenso singular, seja estudado em seus atos, atividades,

    significados, relaes etc. Individualizam-se ou agrupam-se os fenmenos dentro

    de uma realidade que individual, essencialmente para descobrir seus aspectos

    aparenciais e mais profundos, at captar, se for possvel, sua essncia numa perspectiva especfica e ampla, ao mesmo tempo, de contradies dinamismos,

    de relaes etc. (TRAVIOS, 1987, p. 153).

    Assim como a entrevista, a observao, segundo Ldke e Andr (2013, p.

    30),ocupa lugar privilegiado nas novas abordagens de pesquisa educacional, pois viabiliza

    o contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenmeno estudado. Decorre disso a

    experincia direta que, para as autoras, o melhor teste de verificao da ocorrncia de

    determinado fenmeno. A observao direta possibilita que o observador chegue mais

    perto da perspectiva dos sujeitos, haja vista que acompanha in loco suas experincias

  • 29

    dirias, quando busca apreender a sua viso de mundo. Em outras palavras, a observao

    direta tem o propsito de abarcar o significado que as pessoas atribuem realidade

    circundante e tambm s suas prprias aes.

    O contato com o campo estabelece base de conhecimento do real. Deslauriers e

    Krisit (2012) assinalam que a nfase da pesquisa qualitativa, no que se refere ao campo,

    no se resume a reservatrio de dados, mas tambm se configura enquanto fonte de novas

    questes. Nessa direo, os autores esclarecem que:

    O pesquisador qualitativo no vai a campo somente para encontrar respostas para

    suas perguntas; mas tambm para descobrir questes, surpreendentes sob alguns

    aspectos, mas, geralmente, mais pertinentes e mais adequadas do que aquelas

    que ele se colocava no incio. Alm disso, a prpria logstica da abordagem

    qualitativa (campo de pesquisa, observao participante, entrevistas no

    dirigidas, relatos de vida) obriga o pesquisador a um contato direto com o vivido

    e as representaes das pessoas que ele pesquisa (DESLAURIERS; KRISIT, 2012, p. 148).

    A experincia do pesquisador em campo est para alm das respostas s

    perguntas elaboradas. Em face disso, estar inserido no trabalho de campo condiz com o

    fato de o pesquisador estar sujeito s imprevisibilidades, a situaes inesperadas,

    divergentes em relao ao que projetou inicialmente, porm, que se revelam convergentes

    com o desenrolar da pesquisa.

    importante considerar que, no mbito do local e/ou situao de observao, a

    contextualizao do meio observado necessria. Assim, Jaccoud e Mayer (2012)

    salientam que a escolha do local ou situao dependente de abordagens tericas, sociais e

    prticas. Um quadro geral para observao, independente do meio a que se refira,

    proposto por Angers (1992apud JACCOUD; MAYER, 2012), sugerindo cinco eixos de

    observao3, expressos na resposta a cinco questes padro.

    1)Onde ns estamos? a descrio do local (descrio do lugar, dos objetos, do

    ambiente); 2) Quem so os participantes? a descrio dos participantes (seu

    nome, sua funo, suas caractersticas, etc.); 3) Por que os participantes esto a?

    a descrio das finalidades e dos objetivos (as razes formais ou oficiais de sua

    presena nesse local, os outros motivos, etc.); 4) O que se passa? a descrio

    da ao (os gestos, os discursos, as interaes, etc.); 5) O que se repete e desde quando? a descrio da durao e da frequencia (histria do grupo, frequencia

    da ao, etc.) (ANGERS, 1992 apud JACCOUD; MAYER, 2012, p. 267-268).

    Nas observaes, foi possvel olhar a realidade escolar a partir da ao dos

    sujeitos pesquisados, no caso os alunos, em um dado espao e contexto situacional.

    3Ressalta-se que esses eixos sero pormenorizados no captulo V, quando se realiza a anlise dos dados que

    compem este estudo, momento em que apresentada a descrio dos pontos relevantes da escola

    pesquisada, assim como dos sujeitos focalizados.

  • 30

    Entretanto, preciso considerar os limites do tempo nesta pesquisa, especialmente no que

    se refere percepo de repeties, durao e frequncia de aes, pelo fato de

    compreender apenas um ms de convvio no local pesquisado. Entretanto, mesmo levando

    em considerao o limite temporal, foi possvel perceber, por meio das observaes que

    ocorreram no quarto ano pesquisado, que desde o princpio esteve presente a nfase no

    trabalho com o livro didtico4, o que se estendeu durante todo o perodo das observaes,

    sendo que, em apenas dois momentos distintos no se verificoua utilizao desse recurso

    escrito: no bingo de verbos e na contao de histria.

    Vale lembrar que o observador entendido, neste estudo, como sendo quem

    busca compreender e descrever a situao, ao revelar seus mltiplos significados. Assim,

    cabe ao leitor decidir se as interpretaes so passveis ou no de generalizaes, a partir

    de sua sustentao terica do trabalho e tambm com base na plausibilidade do mesmo

    (ANDR, 1992).

    Na escola pesquisada, o cotidiano foi observado a fim de se coletar dados que

    possibilitassem perceber e compreender como os alunos constroem sentido aos eventos e

    s prticas de letramento presentes neste universo escolar. Ressalta-se que a observao

    cientfica no pura ou objetiva, j que o observado se insere dentro de uma matriz que

    constitui marco referencial que perpassado pelos interesses, valores, atitudes e crenas da

    pessoa que investiga, dando sentido subjetivo ao que observado (GURDIN-

    FERNNDEZ, 2007).

    Os pontos observados foram registrados em um dirio de campo e constituram

    objeto de anlise. Esses dados, somados s entrevistas realizadas com duas crianas do

    sexo feminino e duas do sexo masculino, escolhidas mediante sorteio, oportunizaram a

    compreenso do processo de letramento, a partir dos argumentos desses sujeitos. Estar com

    esses alunos na escola favoreceu a compreenso do processo de letramento, no sentido de

    entender as condies de leitura e as prticas a ela relacionadas e desenvolvidas no mbito

    da instituio, para a gerao de dados subsidiada em observao participante.

    A observao participante, um dos instrumentos da pesquisa qualitativa,

    permite estudos de momentos privilegiados do cotidiano da sala de aula, nos quais emerge

    o sentido de um fenmeno social (DESLAURIERS; KERISIT, 2012). Laville e Dione

    (1999, p. 181) apontam que a observao participante possibilita ver longe, considerando

    4A anlise dos eventos de letramento que partiram das situaes escritas, a saber, palavras escritas,

    enunciados, variados gneros textuais, que revela a presena significativa do livro didtico no contexto da

    sala de aula, foi desenvolvida no captulo V.

  • 31

    as mltiplas facetas de uma situao, as quais esto interligadas no conjunto de anlise.

    Nessa perspectiva, os autores pontuam que esse tipo de observao permite entrar em

    contato com os comportamentos reais dos atores, com frequncias diferentes dos

    comportamentos verbalizados, e extrair o sentido do que eles lhe atribuem.

    No que compete ao aspecto metodolgico, a observao participante tem

    viabilidade em pesquisa do tipo etnogrfico, haja vista que d voz aos participantes e

    permite que eles sejam ouvidos, ao registrar suas observaes e sensaes, bem como suas

    entrevistas. Mas conveniente lembrar que os dados so sempre inacabados e a situao

    suscita ser compreendida a partir dos seus vrios significados (TEZANI, 2004).

    Para Oliveira (2002), nessa forma de observao includa na pesquisa

    qualitativa, os investigadores imergem no mundo dos sujeitos observados na busca de

    entender o comportamento real dos informantes, suas prprias situaes e como constroem

    a realidade a partir da qual atuam. Diretamente no campo, ocorrem observaes que

    respaldam a observao participante. Essas observaes so complementadas pelas

    anotaes feitas in loco, podendo ser realizadas ainda entrevistas.

    Na observao, o dia a dia investigado para que se possa compreender a rede

    de relaes e interaes presentes na prtica escolar. Tezani (2004, p. 10) destaca que,

    analisando o conjunto e suas relaes dinmicas que se pode detectar os ngulos novos

    do problema, as interaes do sujeito com o meio, dimenses pessoal, institucional e scio-

    cultural e descrevendo seus significados, analisamos as relaes de parceria entre

    pesquisador e agentes escolares.

    A observao participante pode assumir formas diversas enquanto aspecto

    classificatrio proposto por Ldke e Andr (2013): o participante total; o participante como

    observador; o observador como participante; o observador total. Nesta pesquisa foi adotada

    a classificao de observador como participante, que expressa uma situao em que o

    observador participa de relaes breves e superficiais, nas quais a observao se

    desenvolve de maneira mais formal.

    Muitas vezes so utilizadas entrevistas como complemento das observaes

    (LIMA et al., 1999; DESLANDES, 1994). Neste estudo, foram necessrias observaes e

    entrevistas para que se pudesse abranger, com propriedade, os desdobramentos da situao

    pesquisada. Duarte (2002) ainda ressalta que, eventualmente, preciso um retorno do

    pesquisador ao campo para esclarecer dvidas, recolher documentos, ou coletar novas

  • 32

    informaes acerca dos acontecimentos e das circunstncias relevantes que no puderam

    ser exploradas de modo significativo nas entrevistas.

    A utilizao da observao participante nesta pesquisa, a partir da insero em

    relaes e interaes perceptveis no ambiente escolar e, especificamente, nas prticas

    observadas na sala de aula do quarto ano, configurou-se como um procedimento

    metodolgico que permitiu captar detalhes e fazer descries pormenorizadas. Nessa

    perspectiva, os sentidos do processo de letramento puderam ser construdos pelos alunos,

    ao expressarem o que no se percebe apenas atravs do olhar, mas o que se conjuga com

    modos de sentir diferentes situaes, emocionar-se diante delas, interpretar o que

    vivenciado, emitir opinio, argumentar. A referida observao revelou, tambm, um

    mergulho no campo dos valores, crenas, no cotidiano que expresso do social, ilustrada

    na maneira de viver e perceber a realidade pelos alunos.

    1.2. Interpretao qualitativa dirigida aos sujeitos e a escola: uma expresso de base

    do tipo etnogrfico

    Tendo em vista que este estudo se insere na rea do letramento, houve a

    necessidade, ao se tratar o espao escolar em que esto os sujeitos da pesquisa, de que a

    metodologia fosse desenvolvida com abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa se

    insere em um campo de dados: descries detalhadas de pessoas, situaes,

    acontecimentos, alm de incluir transcries de entrevistas e de depoimentos, fotografias,

    desenhos e extratos de vrios tipos de documentos, em prol de compreender os indivduos

    em seus prprios termos, bem como a situao estudada (LDKE; ANDR, 2013).

    Ressalta-se que nesta pesquisa no foram utilizados como instrumentos fotografias,

    desenhos e documentos, pelo fato de as observaes (descries pormenorizadas das aes

    das crianas nos eventos e prticas de letramento) e entrevistas permitirem a percepo dos

    sentidos do processo de letramento.

    Ldke e Andr (2013) elucidam que, na abordagem qualitativa de pesquisa, h

    uma maior preocupao com o processo do que com o produto.O pesquisador, ao estudar

    um problema especfico, tem o interesse de verificar como a problemtica se manifesta nas

    atividades, nos procedimentos e nas situaes cotidianas.Nesses termos, o letramento

    empreendido, neste estudo, como um processo que tem sentido amplo, j que atravessa o

    cotidiano dos alunos, faz parte dos diferentes domnios sociais que frequentam, das

  • 33

    mltiplas situaes que participam. Por essa via, o letramento que acontece em espaos

    escolares apresenta traos de prticas sociais vivenciadas em domnios extraescolares, em

    razo de constituir um processo amplo e estar presente em diversificados campos da vida.

    Em termos de caracterizao, para Bogdan e Biklen (1994, p. 48), a pesquisa

    qualitativa envolve cinco aspectos basilares. Porm, os estudos que recorrem observao

    participante e entrevista em profundidade so exemplos que no elucidam a abrangncia

    desses aspectos. Na pesquisa qualitativa, tem-se como fonte direta de dados o ambiente

    natural e o investigador constitui instrumento principal, que passa tempo significativo nas

    escolas, famlias, bairro e outros locais, a fim de revelar questes educativas.

    A descrio, segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 49), que tambm caracteriza a

    pesquisa qualitativa, observada na coleta dos dados descritivos, momento em que os

    investigadores qualitativos abordam o mundo de forma minuciosa, com o propsito de

    que nenhum detalhe escape ao escrutnio. O interesse dos investigadores mais pelo

    processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos. Assim, o realce qualitativo no

    processo de pesquisa demonstra utilidade na investigao educacional ao viabilizar o

    entendimento de como as atividades ocorrem nos lcus de pesquisa, revelando as

    configuraes de determinados procedimentos e interaes dirias.

    Vale ponderar, em conformidade com Martins (2010, p. 55), que, nas Cincias

    Humanas, os conceitos so produzidos pelas descries, quando se tenta focalizar o que

    surge a partir do interior da linguagem na qual o homem se insere. Nesse caso, os conceitos

    so percebidos no modo pelo qual o homem representa a linguagem para si mesmo ao

    falar, tendo por base o sentido das palavras ou proposies, ao obter uma representao da

    prpria linguagem. Dessa maneira, os indivduos representam palavras para si mesmos,

    lanando mo de suas formas de significados, e, assim, compem discursos reais, revelam

    e ocultam neles o que esto pensando ou dizendo, [...] deixam um conjunto de traos

    verbais daqueles pensamentos que devem ser decifrados e restitudos, tanto quanto

    possvel, na sua vivacidade representativa.

    A construo de sentidos aos eventos e s prticas de letramento por parte dos

    alunos, no mbito desta pesquisa, faz com quea linguagem seja considerada a partir de

    comunicaes, enunciaes, discursos advindos de palavras, enunciados e gneros textuais

    que podem ser compreendidos em prticas discursivas e dialgicas. Essa condio viabiliza

    a insero no campo dos sentidos, de modo que, ao pensarem, verbalizarem, os alunos

    podem construir sentido ao que tratado a partir de compreenses e interpretaes de

  • 34

    cunho subjetivo e intersubjetivo, o que geralmente requer inferncias na perspectiva de

    perceber como os sentidos so construdos.

    Outro aspecto da pesquisa qualitativa a tendncia de se analisar os dados de

    forma indutiva. Conforme argumentam Bogdan e Biklen (1994, p. 50), os investigadores

    qualitativos no recolhem dados ou provas com a inteno de confirmar ou infirmar

    hipteses elaboradas de modo prvio. Em decorrncia disso, as abstraes so construdas

    medida que os dados particulares que foram recolhidos se vo agrupando. Tendo vital

    importncia na abordagem qualitativa, o significado diz respeito ao interesse dos

    investigadores qualitativos quanto ao modo como diferentes pessoas do sentido s suas

    vidas. Nota-se, pois, a busca de apreenso das perspectivas dos participantes, j que a

    investigao qualitativa revela a dinmica interna das situaes.

    A pesquisa qualitativa tem como um dos objetos privilegiados o sentido que

    adquire a ao da sociedade na vida e tambm os comportamentos dos indivduos, bem

    como o sentido da ao individual, ao ser traduzida em ao coletiva (DESLAURIERS;

    KRISIT, 2012, p. 130). Assim, o objetivo de uma pesquisa com essa tipificao pode ser

    o de dar conta das preocupaes dos atores sociais, tais quais elas so vividas no

    cotidiano.

    Desse modo, a atuao dos alunos do quarto ano no cenrio escolar pesquisado

    e suas vivncias cotidianas refletem qualitativamente no sentido de suas aes, segundo

    influncia do social. A construo de sentidos no que se refere ao processo de letramento,

    portanto, parte de situaes e contextos presentes em eventos de letramento por meio das

    quais os alunos lanam mo de alguma forma de sensibilidade para perceberem situaes,

    acontecimentos, fatos que fizeram parte de suas vidas, ao se adentrarem nas prticas de

    letramento. Esse olhar, que subjetivo e individual do ponto da construo de sentidos,

    prprio de pessoas distintas e singulares, atravessado por aspectos coletivos nas

    interaes sociais que ocorrem em diferentes contextos. Nota-se que o individual

    composto no quadro do social e vice-versa.

    Partindo dessa perspectiva, foram abordados, nesta pesquisa, os sentidos do

    processo de letramento de quatro crianas do quarto ano do ensino fundamental de uma

    escola municipal, localizada na periferia do municpio de Ipameri-GO. A opo pelo

    referido ano escolar relaciona-se possibilidade de, na faixa etria que compreende esses

    alunos de nove a dezesseis anos - eles j terem sido alfabetizados, por se tratar do ano

    seguinte ao ciclo de alfabetizao (1, 2 e 3 anos) e tambm por no estarem nos

  • 35

    extremos dos anos iniciais do ensino fundamental (1 e 5 ano), que so momentos em que

    se focalizam grande parte das pesquisas na rea educacional. A escolha desse grupo de

    alunos ainda se deu pela capacidade dos alunos de se expressarem, por escrito e

    verbalmente, o que constitui uma possibilidade para a aquisio de dados relevantes quanto

    ao entendimento do processo de letramento desses sujeitos.

    pertinente recorrer a Gurdin-Fernandez (2007) ao sublinhar que h trs

    condies para a produo do conhecimento na perspectiva qualitativa: a recuperao da

    subjetividade como espao de construo da vida humana; a reivindicao da vida

    cotidiana como cenrio bsico para compreender a realidade sociocultural e histrica; a

    intersubjetividade e o consenso como sendo veculos para ascender o conhecimento vlido

    da realidade humana. Assim, o subjetivo, o intersubjetivo, o significativo e o particular so

    vistoscomo prioridades de anlises a fim de compreender a realidade social. Diante disso,

    conforme a autora, na investigao qualitativa o sujeito tem relevncia e participao

    inditas. Em decorrncia disso, ele pratica uma ao e tem uma conscincia, haja vista que,

    ao ser construtor do mundo, elabora e reelabora, desenhando a cada dia construes

    subjetivas desse espao no qual vive e atua.

    O cotidiano escolar, no contexto da presente investigao, percebido a partir

    de um conjunto de atividades realizadas e refletidas, em que a pessoa vista como sujeito

    concreto, social e histrico, sendo a vida cotidiana a vida de todo homem (HELLER,

    1989). Por essa concepo, trazido que a vida cotidiana coincide com a vida do homem

    inteiro, que participa desta vida com aspectos de sua individualidade e personalidade,

    colocando em funcionamento seus sentidos, capacidades intelectuais, habilidades

    manipulativas, sentimentos, paixes e ideologias.

    Os sujeitos, crianas, podem falar de sua realidade e de suas vivncias (SILVA,

    2009). Isso decorre do fato de que, em estudos qualitativos, h uma tendncia de apreender

    a perspectiva dos participantes, ilustrada atravs da maneira como os informantes encaram

    as questes que esto sendo focalizadas. Os alunos so vistos como sujeitos ativos que,

    cotidianamente, desenvolvem prticas letradas ao re(significarem) a realidade da qual

    participam.

    Nas pesquisas em Cincias Humanas, possvel perceber atuaes ativas do

    homem no meio em que se insere, haja vista que elas permitem encontrar aquilo que se

    perde quando o homem transformado em objeto e suas histrias so esquecidas

    (KRAMER, 2003). Alm disso, o corte temporal-espacial que faz parte da pesquisa

  • 36

    qualitativa define o campo e a dimenso, a partir dos quais o trabalho ser desenvolvido,

    ou seja, o territrio a ser mapeado (NEVES, 1996). A descrio tambm de fundamental

    importncia no estudo qualitativo, por se tratar de um mecanismo atravs do qual se coleta

    os dados (MANNING, 1979 apud NEVES, 1996).

    No que se refere questo da descrio, a pesquisa em foco abordou um

    mapeamento geral da escola, ao descrever sua caracterizao em termos fsicos e tambm

    quanto a aspectos humanos e pedaggicos. Abordar os sentidos do processo de letramento

    dos alunos do quarto ano implica em adentrar no contexto real e cotidiano em que eles

    desenvolvem afazeres escolares, revelam sentimentos, deixam fluir afetividades, gostos,

    sensaes e emoes, ao se seduzirem frente a ocasies diversas, a partir do que prprio

    do sentir pessoal.

    A contextualizao da escola, as aes dos sujeitos investigados, conversas

    informais com docentes e diretora, dentre outros aspectos, deram forma a registros em

    dirio de campo, os quais foram imprescindveis no decurso das anlises de dados alusivas

    aos sentidos letrados. Assim entendido, o letramento corresponde a um processo que est

    ligado agncia formativa institucional que a escola, e em face disso, o processo e os

    seus sentidos so empreendidos quando se insere na cultura escolar, em tempo e espao

    determinados.

    A pesquisa do tipo etnogrfico, segundo Andr (2010), caracterizada

    essencialmente por um contato direto e prolongado do pesquisador com a situao e as

    pessoas ou grupo selecionados. Nesta pesquisa, o contato teve durao de quinze horas

    semanais, somando sessenta horas no perodo de um ms, que foi o tempo de durao da

    pesquisa no ambiente escolar, especialmente no espao da sala de aula. A vivncia na

    instituio escola incluiu um contato constante com os alunos, desde a entrada at a sada

    da escola, sendo que houve participao do pesquisador em todas as aulas e atividades

    escolares desenvolvidas no tempo de observao. Esse esclarecimento pertinente tendo

    em vista que Andr (2010) assinala a necessidade de explicao, por parte do pesquisador,

    do seu grau de envolvimento ou participao na situao pesquisada. Sobre isso, a autora

    explica:

    A intensidade do envolvimento pode variar ao longo do processo de coleta

    dependendo das exigncias e especificidade do prprio trabalho de campo. O que

    parece fundamental que o pesquisador tenha muito claro em cada momento por

    que certo grau de participao e no outro est sendo assumido e saiba avaliar

    prs e contras desta ou daquela opo (ANDR, 2010, p. 42).

  • 37

    Conforme Oliveira e Gomes (2005), a exigncia de um trabalho de campo na

    pesquisa do tipo etnogrfico, quando se tem como foco o processo educativo, faz com que

    o pesquisador descreva tudo o que envolve o espao escolar, como: localidade, espao

    fsico, materiais empregados, formao docente, alunos, funcionrios, recreio, ptios,

    ajuntamentos, festas, pblico atendido, projetos desenvolvidos, participao da

    comunidade, dentre outros aspectos que compem o cenrio. As autoras frisam que o

    pesquisador vai escrever de tal forma que o leitor do seu trabalho sinta-se no local da

    pesquisa.

    A presente investigao, conforme ilustra os novos estudos de letramento,

    prope, dentro da base qualitativa, o trabalho do tipo etnogrfico como opo

    metodolgica produtiva no que se refere compreenso/ressignificao do que as pessoas

    fazem com a escrita, assim como para a compreenso/ressignificao dos sentidos dessa

    modalidade da lngua em suas vidas (CERUTTI-RIZZATTI, 2009). Em conformidade com

    o exposto, esta pesquisa, na perspectiva de compreender os sentidos que so construdos ao

    processo de letramento, a partir dos eventos e das prticas dos quais participam, contou

    com identificao dos materiais escritos com os quais as crianas tinham acesso, tanto no

    ambiente escolar quanto em suas prticas dirias externas escola.

    Neste estudo, a insero no campo dos valores, da cultura e do social permitiu

    compreender os sentidos do processo de letramento a partir de prticas que se sustentaram

    em eventos de letramento, expressos por diferentes aulas voltadas para contedos

    diversificados. O referido processo esteve ligado a aes, interaes de alunos e

    professoras nas variad