a crise do estado-naÇÃo e a teoria da soberania em hegel

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    A crise do estado-nao

    77Sociedade em Debate, Pelotas, 7(3):77-109, Dezembro/2001.

    A CRISE DO ESTADO-NAOE A TEORIA DA SOBERANIA EM HEGEL

    Agemir Bavaresco1

    RESUMO: O fenmeno da globalizao pe em crise a teoria da soberania moderna,porque o Estado-Nao forjado a partir da autonomia soberana no consegue maiscontrolar e proteger o seu territrio, bem como, garantir junto ao povo a legitimao desuas decises, para incrementar um projeto poltico.A soberania moderna foi elaborada a partir do Estado-Nao, fechado sobre si mesmo emseu territrio, e travando guerras de expanso contra outros Estados. H uma predomi-nncia da soberania interna, ocorrendo um eclipse da dimenso inter-estatal, enquantoque a soberania ps-moderna constri-se a partir do Imprio Mundial, que desconhece osEstados nacionais. H um deslocamento do poder para a soberania externa em detrimentoda afirmao nacional. Ora, tanto o primeiro como o segundo modelo de soberania caemnos extremos do silogismo, ou seja, no articulam a soberania interna e externa na relao

    da mediao. Hegel, a nosso ver, prope uma justa tenso mediadora entre os doismomentos da sua teoria sobre a soberania.

    PALAVRAS-CHAVE: Soberania moderna e ps-moderna, soberania interna e externa,Estado-Nao, teoria hegeliana.

    INTRODUO

    O fenmeno da globalizao pe em crise a teoria da soberaniamoderna, porque o Estado-Nao forjado a partir da autonomia soberanano consegue mais controlar e proteger o seu territrio, bem como,

    garantir junto ao povo a legitimao de suas decises, para incrementar

    ARTIGO

    1 Professor de Filosofia e Diretor do Instituto Superior de Filosofia da UCPEL/RS.Endereoautor: Rua Flix da Cunha, 412. 96010-000 - Pelotas/RS - e-mail:[email protected]

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    um projeto poltico.Os elementos clssicos que formaram o Estado-Nao, foram o

    territrio, o povo e a soberania. No entanto, a soberania que constituio elemento determinante entre os trs, pois comeando pela mesma sedecide em ltima instncia a ocupao do territrio e se afirma aidentidade de um povo como nao soberana.

    O territrio a extenso fsica necessria para o Estado localizar-

    se no espao terrestre, martimo ou areo. No existe Estado semterritrio. O territrio estabelece a delimitao da ao soberana doEstado. O princpio de impenetrabilidade afirma que o Estado tem omonoplio de ocupao de determinado espao.

    O povo o conjunto dos cidados do Estado. Todos os queintegram o Estado por meio da vinculao jurdica permanente, adquirema condio de cidados. A coincidncia do conceito de povo com a visopoltica nacional identifica o Estado com a nao - uma comunidade debase histrico-cultural - que integra todos os indivduos que nascem numcerto ambiente cultural formada de tradies e costumes, geralmenteexpresso numa lngua comum, tendo um conceito idntico de vida,

    dinamizado pelas mesmas aspiraes de futuro e os mesmo ideaiscoletivos 2 .

    Finalmente, a soberania una , indivisvel, inalienvel eimprescritvel. Ela una, porque no se admite num mesmo Estado aconvivncia de duas soberanias. indivisvel, porque se aplica univer-salidade dos fatos ocorridos no Estado, sendo inadmissvel a existnciade vrias partes separadas da mesma soberania. inalienvel, porqueaquele que a detm, desaparece, quando fica sem a mesma, seja o povo,a nao ou o Estado. imprescritvel, porque jamais seria superior, setivesse prazo certo de durao. Todo poder soberano aspira a existirpermanentemente e s desaparece, quando forado por uma vontade

    superior.2 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. So Paulo:

    Ed. Saraiva, 1998, p.74-95. No entender deste autor tem sido causa de grandeimpreciso o uso do conceito povo como sinnimo de nao.

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    A formao do Estado inicando pelos trs elementos - territrio,povo e soberania - pressupe um conceito de espao e tempo modernos.Ora, com o fenmeno da sociedade em rede, assistimos ao advento de umespao de fluxos e a um tempo virtual ps-modernos3. Isto implicamudanas profundas na constituio do Estado moderno, ou seja, aefetivao de uma nova figurao da soberania.

    Antonio Negri e Michael Hardt expem, em seu livro oImprio,

    a tese, de que, hoje, h uma nova soberaniaexercida por um Imprio quese diferencia do conceito de imperialismo4. Segundo os autores, oimperialismo um fantasma do passado. Hoje, assiste-se ao domnio dosistema do Imprio, isto , a configurao que se adapta ao modelopoltico dos EUA hegemnico a partir de 1991, depois da queda do Murode Berlim. A diferena fundamental entre o imperialismo e o Imprioprecisa ser entendida na passagem da soberania moderna para a soberaniaps-moderna.

    a) A soberania moderna: O fenmeno do imperialismo a din-mica prpria do Estado-Nao, o qual se constitui como poder central,exercendo o monoplio da fora sobre um determinado territrio e sua

    populao. O imperialismo expande-se do poder nacional para outras

    3 CASTELLS, Manuel.A sociedade em rede. v. I, So Paulo: Paz e Terra, 1999. Cf.cap. 5: A cultura da virtualidade real, p. 352; cap. 6: O espao de fluxos: O espaode fluxos a organizao material das prticas sociais de tempo compartilhado quefuncionam por meio de fluxos. Por fluxos, entendo as seqncias intencionais,repetitivas e programveis de intercmbio e interao entre posies fisicamentedesarticuladas, mantidas por atores sociais nas estruturas econmica, poltica esimblica da sociedade, p. 436. No entender de Michael Hardt o trabalho nasociedade contempornea o trabalho imaterial, isto , trabalho que tem produtosimateriais, como comunicao, informao ou afeto. Cf. NEGRI, Antonio e HARDT,Michael.A nova soberania. In: Folha de So Paulo. Caderno MAIS!, 24.09.2000,p.8.

    4 Antonio Negri (ex-professor de cincia poltica na Universidade de Paris) e MichaelHardt (professor de literatura na Universidade Duke, nos Estados Unidos) so doismilitantes comunistas que escreveram o livro Empire (Imprio) de mais de 500pginas publicado h pouco nos EUA pela editora da Universidade de Harvard(Harvard University Press, 512 pp.) e com lanamento previsto no Brasil neste anopela Editora Record.

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    reas do planeta, as quais tambm so delimitadas por fronteiras rgidas.A dominao imperialista era exercida pela violncia destrutiva dossmbolos (trocar de bandeira) e da supresso da soberania, a tal ponto queo Estado conquistado passa a funcionar como uma extenso do Estadoconquistador.

    b) A soberania ps-moderna tem fronteiras flexveis, que seassemelham forma de dominao do Imprio romano, fenmeno da

    antigidade. Hoje, como naquele Imprio no existem mais Estadossoberanos capazes de ampliar sua riqueza e poder, simplesmente atravsda ocupao territorial. O Estado-Nao caracterizava-se por uma deli-mitao rgida do territrio, enquanto que para o fenmeno do Imprioesta condio fundamental no existe mais, porque o seu domnio e suarea de influncia urbi et orbis. O Estado nacional movimentava-separa o exterior, atravs do conflito armado, por meio da guerra imperia-lista, sendo esta uma caracterstica fundamental da soberania moderna.

    Os EUA so para os autores o atual Imprio do mundo, queefetivam a soberania ps-moderna. evidente a supremacia militar dosEstados Unidos sobre o resto do planeta depois que a Unio Sovitica

    deixou de existir ps um fim competio imperialista. O processo dedescolonizao iniciado aps a Segunda Guerra Mundial j havia colo-cado em marcha uma transformao da dinmica imperialista, antesmesmo que desaparecesse a nica potncia capaz de rivalizar com osEUA 5 .

    Enfim, no entender de Michael Hardt o Imprio ilimitado nosentido espacial, no h fronteiras para o seu domnio; no h nada deexterno a seu poder. O Imprio domina a totalidade; ilimitado no sentidotemporal, uma vez que seu domnio posto como necessrio e eterno, emvez de temporrio e transicional. Finalmente, o Imprio ilimitado emum sentido social, pois busca controlar toda experincia social; o objeto

    do Imprio a prpria forma de vida6

    . Ainda diz o mesmo autor no

    5 SINGER, Andr. O contra-imprio. IN: Folha de So Paulo. Caderno MAIS!,24.09.2000, p. 11.

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    Imprio, nenhum Estado-Nao pode funcionar como centro do poder,porque aps o desmonte do bloco sovitico, nada mais impediu osEstados Unidos de exercer, em nome da ONU, o papel de polcia da Terra,o que impede, hoje, o desenvolvimento de projetos imperialistas deexpanso territorial.

    A nova soberania do Imprio constitui-se diferena do ImprioRomano, a comear de uma nova dinmica de dominao. A nova ordem

    mundial, produto de uma nova forma de soberania, baseada no poderioeconmico, no monoplio da arma final e na ampliao da velocidadee quantidade da troca de informao em nvel global, constitui-se 7 .

    Est colocada a oposio entre duas figuraes de soberania:moderna e ps-moderna. A moderna, construda sobre o modelo doimperialismo expansionista de dominao territorial, ope-se sobera-nia ps-moderna elaborada pelo modelo do Imprio que flexibiliza asfronteiras e domina a cultura e o mercado partindo do espao de fluxose do tempo virtual.

    Em nosso entender, nenhum dos dois modelos resolve a contradi-o da soberania, isto , a capacidade de decidir autonomamente tanto em

    nvel interno, como externo. Ou seja, como garantir a insero soberanade todos os Estados na nova soberania global, de tal modo que todos elespossam autoafirmar-se interna e externamente? Qual a originalidade dateoria da soberania hegeliana?

    A soberania moderna foi elaborada a partir do Estado-Nao,fechado sobre si mesmo em seu territrio, e travando guerras de expansocontra outros Estados. H uma predominncia da soberania interna,ocorrendo um eclipse da dimenso inter-estatal, enquanto que a sobera-nia ps-moderna constri-se a partir do Imprio Mundial, que desconhe-ce os Estados nacionais. H um deslocamento do poder para a soberania

    6 Entrevista com NEGRI, Antonio e HARDT, Michael.A nova soberania. In: Folha deSo Paulo. Caderno MAIS!, 24.09.2000, p. 7.

    7 TSU, Victor Aiello. A nova soberania. In: Folha de So Paulo. Caderno MAIS!,24.09.2000, p. 6.

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    externa em detrimento da afirmao nacional. Ora, tanto o primeiro comoo segundo modelo de soberania caem nos extremos do silogismo, ou seja,no articulam a soberania interna e externa na relao da mediao.Hegel, a nosso ver, prope uma justa tenso mediadora entre os doismomentos da sua teoria sobre a soberania.

    Primeiramente, ns expomos a formao da soberania moderna e,em seguida, a crise da mesma, diante dos desafios da globalizao,

    segundo a anlise de J. Habermas. Finalmente, descrevemos a teoria dasoberania em Hegel como uma proposta de atualizao de seu pensamen-to, para encontrar uma sada para o problema da soberania, que afeta onosso cenrio mundial.

    1 - A SOBERANIA MODERNA

    A soberania sinnimo de independncia no sentido de no sersubmissa a qualquer potncia estrangeira. Ou ainda, a soberania comoexpresso de poder jurdico mais alto - o Estado - o que tem o poder de

    deciso em ltima instncia, sobre a eficcia de qualquer norma jurdica.O conceito poltico-jurdico de soberania indica o poder de mando

    em ltima instncia, numa sociedade poltica. Ela a racionalizaojurdica do poder, no sentido da transformao da fora em poderlegtimo, do poder de fato em poder de direito. So diferentes as suasformas de caracterizao, porque so diferentes as formas de organizaodo poder que ocorreram na histria humana. Porm, em todas elas possvel sempre identificar uma autoridade suprema, embora esta auto-ridade se exera de modos bastante diferentes. 8 O termo soberania, emsua significao moderna, aparece no final do sculo XVI juntamentecom o de Estado. Este termo indica o poder estatal, enquanto sujeito nico

    e exclusivo da poltica. Tal conceito poltico permite ao Estado moderno

    8 BOBBIO, N. et alii.Dicionrio de Poltica. 12 ed., v. 2, Braslia: UnB, 1999.

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    opor-se organizao medieval do poder, representada pelo papado epelo imprio. O Estado acentua a soberania com a finalidade de concen-trar o poder numa nica instncia e, assim, manter o monoplio da foranum determinado territrio, sobre um povo e realizar a mxima unidadee coeso poltica.

    A soberania acha-se relacionada com a realidade primordial eessencial da poltica: a paz e a guerra. Na Idade Moderna cabe ao

    soberano vigiar pela paz dentro das fronteiras territoriais do seu Estado,bem como uni-lo para a defesa e o ataque contra o inimigo estrangeiro. o soberano o nico que pode intervir e decidir em ltima instncia,dentro e fora de seu territrio. Disso decorrem dois nveis da soberania:o interno e o externo.

    1) Em nvel interno, o soberano procura eliminar os conflitos,mediante processos administrativos e polticos, constituindo organismosintermedirios e a autonomia mediadora entre o indivduo e o Estado;

    2) Em nvel externo, o soberano quem decide acerca da guerrae da paz. Ora, isto implica um sistema de Estados que no tm juiz acimade si prprios, quer seja o papa ou o imperador. Os Estados equilibram

    suas relaes atravs de tratados, do direito internacional ou da guerra.O soberano encontra nos outros soberanos seus iguais. Eles esto todos,portanto, numa posio de igualdade, enquanto que em nvel interno, osoberano se encontra numa posio de absoluta supremacia, uma vez quetem abaixo de si os sditos, obrigados obedincia.

    As teorias sobre a soberania seguem diversas tendncias, deacordo com o aspecto a ser destacado. Assim, ns temos duas grandestendncias:

    a) A tendncia da soberania absoluta: Para Hobbes, o soberano temo monoplio da fora ou da coero fsica. Ele encontra a legalizaodeste monoplio na coero fsica do contrato social.

    b) A tendncia da soberania legal: O jurista J. Bodin identifica aessncia da soberania no poder de fazer e de anular as leis. O soberano temo monoplio do direito atravs do poder legislativo. A identificao dasoberania com o poder legislativo foi levada ao extremo por Rousseau

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    com o conceito de vontade geral. O soberano s pode elaborar leis geraise no, decretos individuais. Para Bodin, cabe ao soberano o seguintepoder: decidir acerca da guerra e da paz, nomear os chefes militares e osmagistrados, emitir moeda, suspender impostos, conceder indultos eanistias e julgar em ltima instncia. Se desaparecessem estas prerroga-tivas, o soberano legal, apesar do monoplio da lei, achar-se-ia reduzido impotncia.

    O jurista mencionado considera a soberania um poder originrioque no depende de outros e tem como fim o bem pblico. Ela apresentaas seguintes caractersticas: absoluta, perptua, indivisvel, inalienvel eimprescritvel. A soberania absoluta,por no sofrer limitaes por partedas leis, uma vez que essas limitaes somente seriam eficazes, sehouvesse uma autoridade superior que as fizesse respeitar; perptua,porque um atributo intrnseco ao poder da organizao poltica e nocoincide, a rigor, com as pessoas fsicas. No caso da monarquia, elapertence Coroa e no ao rei; a soberania inalienvele imprescritvel,porque no uma propriedade privada, mas um poder pblico que temuma destinao pblica; indivisvel,como o ponto da geometria, porm,

    essa caracterstica no aceita pacificamente; a teoria do Estado mistopostula a diviso da soberania entre o rei, os nobres e as comunas; paraos tericos ortodoxos da soberania, esta pode pertencer a uma nicapessoa, no caso o rei, ou a uma assemblia.

    Essa tese ressalta o carter unitrio do mando, quando se trata damonarquia; porm, a lgica da indivisibilidade do poder, isto , aafirmao da unidade soberana choca-se com a teoria surgida no sculoXVIII, que prope a separao dos poderes: contraposto ao executivo -ao rei possuidor do monoplio da fora - est o legislativo, titular de umafuno autnoma e independente encarregado de elaborar as leis. Oexerccio da unidade do soberano aparece nos perodos de guerra interna

    ou externa, em que o Estado misto ou a separao dos poderes sosuperados em seu isolamento.Enfim, o conceito de soberania como poder absoluto e perptuo

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    de uma repblica - J. Bodin,A Repblica- foi forjado pelos legistas. Esteconceito num certo sentido, o emblema do absolutismo do sculo XVIque se impe para fazer face ordem poltica, social e religiosa feudal.A soberania consiste no poder absoluto e incontestvel de tomar deciso,porque algum tem o a unicidade e a universalidade do poder dedeciso.

    O pensamento moderno de Estado identificou simplesmente re-

    presentao e soberania, transferindo ao soberano o poder de representaro conjunto das propriedades do povo representado. Na monarquia, pode-se dizer que o rei o povo. Esta idia de representao soberana ope-se interpretao de representao enquanto ato de delegar que serdefendido pelos adversrios do absolutismo.

    Na perspectiva de Hobbes, o soberano representa o povo no,enquanto recebe deste um poder ou mandato para tal, mas porque eleinstitui o ser mesmo do povo representado, isto , ele a identidadeexistente da soberania. Os indivduos contraem o pacto entre eles,formando uma vontade no seio da comunidade. Na teoria hobbesiana, orepresentante (o soberano) cria o representado. O soberano a identidade

    representativa que se autoconstitui. A corrente absolutista perde suahegemonia durante o sculo XIX pela concepo de representao, sendoSieys um dos precursores ao lado de Thomas Paine, Hamilton eMadison.

    Ora, este conceito de soberania que se constitui um dos fundamen-tos do Estado moderno, est em crise face ao fenmeno da globalizaoe, segundo J. Habermas, os governos no tm mais poder, para tomardecises internas, devido fora de outros atores externos, que deslocamo espao pblico de deciso.

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    2 - A CRISE DE SOBERANIA NO ESTADO MODERNO 9

    Segundo Habermas, a crise de soberania do Estado modernoformula-se da seguinte forma: Alm dos Estados nacionais, num planosupranacional e global, o poder destrutivo ecolgico, social e cultural docapitalismo planetrio pode ser posto sob controle? 10

    De um lado, verdade que a Europa no ps-guerra e os Estados

    capitalistas nacionais atravs do Estado social (Welfare State) consegui-ram controlar um sistema econmico altamente produtivo partindo daidia de progresso e desenvolvimentismo; defenderam a promessa repu-blicana da incluso igualitria de todos os cidados; criaram a idia deautolegislao, isto , os destinatrios das leis so os seus autores; enfim,ampliaram a dimenso poltica da sociedade, atuando sobre si mesma.

    De outro lado, verifica-se que o Estado nacional, no contextomodificado da economia e das sociedades mundiais chega ao limite desua eficincia, pois a domesticao poltica do capitalismo global e ademocracia apresentam problemas de funcionamento.

    9 HABERMAS, Jrgen.Nos limites do Estado. In: Folha de So Paulo. Caderno Mais!18/07/99, p 4-6.

    10 Esta a pergunta que o socilogo liberal R. Mnch formula em seu livro:Dinmicaglobal e universos de vida local. (Globale Dynamik, Lokale Lebenswelt). Frankfurt/M., 1998. A humanidade est fazendo um saque a descoberto sobre os recursosnaturais da Terra. Estudo divulgado pela organizao no-governamental WWF(Fundo Mundial para a Natureza) mostra que o uso de recursos pelo homem excedeuem 42,5 a capacidade de renovao da biosfera. O relatrio tambm confirma odesequilbrio no uso dos recursos naturais entre o Norte e o Sul. Os pases mais ricos,como os EUA, j consomem mais do que o dobro de seu quinho ambiental. Se todomundo tivesse o padro americano de consumo, seriam necessrios pelo menos maisduas Terras. O padro de consumo dos pases ricos acaba esgotando os recursos dospobres, diz Kliejunas Cludio Angelo.Humanidade precisa de mais meia Terra.In: Folha de So Paulo. Folha Cincia. 21.10.2000, p. A 18.

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    2.1 - O Estado nacional e a democracia

    O Estado nacional defronta-se com uma economia transnacional,isto , h o rompimento de fronteiras da economia, da sociedade e dacultura que tinham sido erigidas sobre bases territoriais desde o sculoXVII. Mais ainda, h um desfuncionamento na poltica e no sistema

    jurdico; um desequilbrio na circulao econmica; um desmonte das

    tradies nacionais, tais como tinham sido elaboradas dentro das frontei-ras do Estado territorial.

    Habermas aponta trs aspectos da privao do poder ou da sobe-rania do Estado nacional:

    a) Perda da capacidade de controle estatal e da autonomia, pois oEstado isolado no consegue defender os seus cidados contra efeitosexternos e decises de outros atores fora de suas fronteiras. H umatransposio espontnea de fronteira.

    b) Crescentes dficits de legitimao no processo decisrio: Asdecises democrticas no coincidem com os que so afetados pelasmesmas; as polticas so subtradas formao democrtica da opinio

    e da vontade; deslocamento das agremiaes nacionais de deciso paraas comisses interestatais, compostas de representantes do governo.

    c) Progressiva incapacidade de dar provas, com efeito legitimador,de aes de comando e de organizao: restrio da capacidade interventivado Estado nacional, em estabelecer uma poltica social legitimadora,como estimular o crescimento ou recolher tributos da economia interna.

    Face a esse desmantelamento do Estado nacional e odesfuncionamento da democracia, Habermas afirma existirem quatropossveis respostas polticas.

    2.2 - As 4 respostas polticas frente a estes desafios

    Estas so as quatro sadas apontadas pelo autor dentro do cenrioglobal:

    a) A favor da globalizao: segue a ortodoxia neoliberal; reco-

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    Agemir Bavaresco

    menda a subordinao incondicional do Estado ao imperativo daintegrao social planetria por meio dos mercados;

    b) Contra a globalizao e a desterritorializao que motiva a buscapor uma terceira via em duas variantes: uma mais defensiva eoutra mais ofensiva;

    c) A terceira via mais defensiva parte do pressuposto de que ocapitalismo, sem barreiras mundiais, no pode ser domado, mas

    apenas amortecido nacionalmente; no h como anular a subordi-nao da poltica ao imperativo de uma sociedade mundial integra-da pelo mercado; deve mudar-se a relao entre risco e segurana,para desenvolver uma sociedade de apostadores responsveis -responsible risk takers- nas esferas do governo, das empresas e domercado de trabalho; fim da sociedade de pleno emprego; o ethosde uma forma de vida orientada pelo mercado, isto , reconhecerem cada cidado um empresrio de seu prprio capital humano;

    d) A terceira via mais ofensiva insiste na fora plasmadora de umapoltica que se sobrepe aos mercados sem rdea no planosupranacional: afirma o primado da poltica em relao lgica do

    mercado.

    No entender de Habermas, esta ltima variante lembra ovoluntarismo, pois consta de um postulado normativo, que no pode sersolucionado dentro dos moldes nacionais. A sada a constituio deunidades polticas maiores e regimes transnacionais, sem romper com alegitimao democrtica e compensando a perda de funes do Estadonacional. A poltica ter precedncia sobre os mercados globalizados,quando produzir na poltica interna, a longo prazo, uma slida infra-estrutura no desvinculada dos processos democrticos de legitimao.Para Habermas, os mercados no podem ser democratizados, pois aque-

    les tm uma poltica auto-referente. Na medida em que h umadesregulamentao dos mercados, h tambm uma despotencializaoou uma autolimitao do poder poltico, para implementar decisescoletivas vinculantes.

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    O conceito de soberania do Estado moderno, assim como foiexposto acima, se encontra em crise. Ser que a teoria hegeliana dasoberania, enquanto mediao da soberania interna entre os poderes e arelao soberana, em nvel externo como os outros Estados, podeoferecer-nos uma sada para este problema? Vejamos como Hegelelabora a sua teoria e depois confrontemo-la com a crise atual.

    3 - A TEORIA DA SOBERANIA HEGELIANA

    Constatamos que a crise do Estado moderno atinge o conceito desoberania, tendo conseqncias sobre a funo do territrio e a identidadede um povo. O advogado e poltico francs Jean Bodin (1530-1596), aoescreverLesSix livres de la Rpublique(publicado em 1576) lanou osfundamentos do Estado-Nao, enquanto rgo de poder poltico internoe externo mximo que se tornou hegemnico duzentos anos depois coma Revoluo Francesa. A teoria poltica e a lei constitucional construrama justificao do Estado soberano que se organiza em poder executivo,

    legislativo, tribunais, servio diplomtico, foras armadas nacionais etc.Depois da Segunda Guerra Mundial, organizaram-se quase 200 pasesque nasceram dos antigos imprios coloniais, segundo o modelo deEstado-Nao soberano. No entender de Peter Drucker, desde o fim daSegunda Guerra Mundial o Estado-Nao soberano vem perdendo suaposio como rgo nico de poder, porque, internamente, os pases setransformam em sociedades pluralistas; e externamente, algumas dasfunes governamentais tornam-se transnacionais, outras regionais eoutras esto sendo tribalizadas 11 . Segundo este autor, o Estado-Naono ir desaparecer, porm ele no ser mais indispensvel, porque ele irdividir cada vez mais seu poder com outros rgos, outras instituies,

    outras entidades criadoras de polticas.

    11 Cf. DRUCKER, Peter. Sociedade ps-capitalista(Post-capitalist Society, 1993). 7ed., So Paulo: Pioneira, 1999, p. 19.

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    A crtica tradicional rotula Hegel como o apologista do Estadoprussiano, ou ainda o profeta do estatismo. Ser que estas crticas sesustentam e so ainda vlidas? 12 Cabe lembrar que os fundamentosfilosficos da poltica hegeliana no permitem uma aplicao direta emecnica do aforisma que encontramos no prefcio da Filosofia do

    Direito13 : O que racional efetivo, e o que efetivo racional. indispensvel distinguir efetivo de existncia; nem tudo o que existe

    efetivo. O existente efetivo s em parte. Hegel no justifica qualquerrealidade, sem que ela corresponda, efetivamente, ao seu conceito. Ouainda, a crise do Estado moderno prova que uma figura histrica chegoua sua imediao e agora se exige uma nova efetivao do conceito deEstado. Da, no se pode justificar, a partir da teoria hegeliana do Estado,os megaestados, ou qualquer forma de totalitarismo que elimine a justarelao das mediaes internas, que compem a lgica do Estado, taiscomo a soberania e a representao.

    A soberania e a representao so conceitos centrais no pensamen-to moderno de Estado. Por isso, eles tm uma importncia determinanteem Hegel. Na teoria hegeliana do Estado, a concepo de soberania se

    adapta s exigncias de uma poltica especulativa, isto , que estabeleaa mediao recproca do social e do poltico, sendo o poder do prncipeneutro e intermedirio. A articulao entre soberania e representaoorganiza, em primeiro lugar, a constituio poltica a partir da racionalidadeespeculativa do poder. Para Hegel, a diviso dos poderes em seusmomentos universal(legislao),particular(governo, administrao) esingular(deciso do prncipe) corresponde organizao e estrutura doconceito lgico. Aqui, cada um dos momentos - universal, particular esingular - contm em si ao mesmo tempo o todo e sua especificidadeprpria 14 .

    12 Cf. WEIL, Eric.Hegel et ltat. Paris: Vrin, 1985.

    13 HEGEL, G. W. F. Principes de la philosophie du Droit. Paris: Vrin, 1993, p. 55. Ascitaes desta obra sero, de agora em diante, traduo do prprio autor do texto.

    14 HEGEL, G.W.F. Science de la Logique. V. III, Paris: Aubier, 1981, p. 68.

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    Em segundo lugar, preciso compreender a soberania e a represen-tao em relao com o conceito de povo. Confundir este conceito comomultido aditiva de indivduos parece ser a transposio esfera polticadas determinaes da sociedade civil, e resulta de uma confuso docidado e do burgus. O tomo social (o ator econmico) ou poltico (ocidado eleitor) abstrato. Assim, essa teoria da representao polticasofre a mesma insuficincia especulativa que a viso puramente econ-

    mica da sociedade civil: uma e outra desconhecem o carter mediado dasingularidade. A explicitao lgico-especulativa do conceito distinguedois estatutos: o abstrato e o concreto, o imediato e o mediato, tanto dasingularidade, quanto da universalidade. Democratas e liberais, partid-rios do sufrgio universal e do sufrgio censitrio partilham da mesmacrena de um raciocnio econmico. Segundo este, o sujeito poltico seriaum indivduo na sua abstrao ou na sua imediatez. Eles esquecem queo indivduo na sua imediatez constitudo pela mediao das figurassociais e polticas do universal, ou seja, pelas instituies que lhe tornampossvel o ser individual. A anlise hegeliana da representao polticamuda completamente a questo: o problema no saber em que condi-

    es um indivduo habilitado politicamente, mas como constituda aindividualidade poltica bem como social, e como estes dois tipos deindividualidade - a do burgus e a do cidado - se articulam uma com aoutra 15.

    Aps estes esclarecimentos iniciais sobre a soberania e a represen-tao tratemos, especificamente, da soberania na sua dimenso interna.Vejamos como Hegel compreende o conceito de soberania, depoisapresentemos a atualizao do mesmo, para fazer face aos desafios quea globalizao lana ao Estado nacional. Ou seja, o que continua sendodomnio do Estado-Nao? Como o Estado soberano se relaciona com asinstituies autnomas interna (local) e externamente (transnacional)?

    15 Cf. KERVGAN, Jean-Franois.Hegel, Carl Schmitt: le politique entre spculationet positivit. Paris: PUF, 1992, p. 293-292.

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    3.1 - A soberania interna do Estado

    Hegel, na 3 seo da Filosofia do Direito16 , expe os momentosda idia do Estado. Partindo da realidade imediata deste, trata-se dodireito poltico interno no que diz respeito ao exerccio da soberaniainterna do mesmo (FD, 272-320). Depois o Estado passa a relacionar-se com os outros Estados, trata-se do direito poltico externo, ou seja, a

    soberania face ao mundo externo (FD, 321-329).No que diz respeito soberania interna, esta se constitui das

    funes e dos poderes que compem o Estado, mantidos na unidade e naidentidade.

    a) As razes da soberania interna: As funes e os poderesparticulares do Estado no tm existncia independente e fixa, nem porsi, nem pela vontade particular dos indivduos, mas eles tm sua raizprofunda na unidade do Estado como em sua identidade simples: estasso as duas determinaes que lhe constituem a soberania (cf. FD, 278).As razes da soberania do Estado so, portanto, a unidade dos vriospoderes e a identidade simples que est materializada no prncipe e na

    constituio.A constituio poltica a vida orgnica do Estado. A constituio

    racional, na medida em que o Estado distingue e determina suaatividade, segundo a natureza do conceito. Assim, cada poder atotalidade, porque ele contm em si os outros momentos (cf. FD, 272).H uma falsa diviso dos poderes que a do entendimento abstrato queconcebe uma independncia absoluta dos poderes.

    b) A diferena da soberania na monarquia feudal e no Estadomoderno: o papel da constituio. A diferena fundamental que noEstado moderno h, ao mesmo tempo, a construo da soberania interna,ampliando-se face ao exterior, enquanto que na antiga monarquia feudal,

    o Estado era certamente soberano face ao exterior; em relao, porm, ao

    16 HEGEL, G.W.F. Principes de la Philosophie du Droit. Vrin: Paris, 1982, 259.Abreviaremos esta obra assim: FD.

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    interior, a soberania no era exercida nem pelo monarca e nem peloEstado. De um lado, os assuntos e poderes do Estado e da sociedade civilestavam distribudos nas corporaes e comunidades independentes,assim o todo resultava mais num agregado do que num organismo; deoutro lado, aqueles assuntos e poderes eram propriedade privada deindivduos, e assim o que devia ser feito pelos mesmos em favor do todotinha a marca de sua opinio, capricho e interesse privado.

    Enfim, no despotismo temos uma situao em que no h lei, ondea vontade particular como tal vale como lei, quer se refira do monarcaou do povo. Pelo contrrio, numa situao legal e constitucional quea soberania se constitui no elemento da idealidade das esferas e dosnegcios particulares. Por isso a soberania no pode ser confundida comdespotismo. A idealidade dos poderes, como simples momentos datotalidade estatal, constitui a soberania poltica. Esta no se realiza namonarquia patriarcal - soberania no poltica - nem na monarquia feudal- poltica sem soberania - mas somente na monarquia constitucional, poisa leia subordina ao fim universalas esferas e atividades particulares.17

    Portanto, o que caracteriza a monarquia constitucional a constituio,

    enquanto instrumento que organiza o Estado interna e externamente demodo orgnico.

    c) A idia de soberania e a unidade das partes e do todo: Hegelutiliza um pressuposto epistemolgico de matriz biolgica, isto , ofuncionamento do organismo, para poder explicar a idia de soberania.O idealismo que constitui a soberania, semelhante ao modelo de umorganismo, as partes no so isoladas, mas membros organicamenteunidos ao todo.

    Assim, a soberania constitui o momento da idealidade das esferase das atividades particulares, de tal maneira que uma esfera no independente em seus fins e seus modos de ao, fechando-se sobre si

    mesma. Mas, ao contrrio, seus fins e sua ao so definidos pelo fim do

    17 BOURGEOIS, Bernard. tudes hgliennes. Raison et dcision. Paris: PUF, 1992,p. 213.

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    todo, isto , do Bem do Estado, como habitualmente se costuma dizer.Em termos lgicos, Hegel expressa esse modelo orgnico assim: Trata-se do mesmo princpio que apareceu no conceito abstrato da vontade,enquanto negatividade auto-relacionando-se e, enquanto universalidadedeterminando-se para tornar-se singularidade, universalidade onde todaparticularidade e toda determinao suprimida, ou seja, trata-se dofundamento absoluto auto-determinando-se (FD, 278, Obs.). Ora, esta

    idealidade da soberania manifesta-se em duas situaes:1) Em situaesde paz,as esferas e as atividades particulares

    buscam a satisfao de suas atividades e de seus fins particulares; de umlado, existe a necessidade inconsciente das esferas, as quais so transfor-madas no seu egosmo em favor da conservao mtua e do todo; de outrolado, encontra-se a ao direta vindo de cima para reconduzir, permanen-temente, as esferas ao fim comum e lhes impor tarefas para conservar otodo. A soberania manifesta-se, aqui, na conservao das particularida-des da sociedade civil - afirmao das partes - unida universalidade dopoder governamental 18 que mantm o fim comum - afirmao do todo.

    2) Em situaes de perigo,por causa de acontecimentos, tanto

    internos como externos, a soberania que permite levar o organismo unidade, conservando-a, porm, nos seus elementos particulares; ela confiada sade do Estado, mesmo ao preo de sacrifcios daquilo queseria legtimo em outras circunstncias. nesta situao que o carterideal do Estado atinge sua realidade prpria.

    Tanto em momentos de paz, bem como nos de perigo, a idia desoberania que exerce a funo de garantir a unidade e a identidade do

    18 A manuteno do interesse universal do Estado e a legalidade no exerccio destesdireitos particulares, o cuidado de conduzir estes nos limites dos primeiros, exige ocuidado dos representantes do poder governamental: os funcionrios executivos e asautoridades mais elevadas organizadas em conselhos [rgos consultivos e colegiados],que convergem enfim, no cume desta hierarquia governamental, mantendo-se [esta]em contato com o monarca (FD, 289). A mediao recproca do social e do polticoocorre na esfera tico-poltica; de um lado, a mediao poltica na sociedade civil feita pela justia e a polcia (administrao pblica); de outro lado, a mediao socialdo poltico feita pelos estados. Cf. KERVGAN, Jean-Franois. Hegel, CarlSchmitt: le politique entre spculation et positivit. Paris: PUF, 1992.

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    Estado. Ora, esta duas caractersticas, j mencionadas no incio destaparte, efetivam-se em ltima instncia no poder de deciso do prncipe.

    3.1.1 - O poder de decidir do soberano

    Hegel entende que o poder da soberania determina-se a partir da

    certeza de uma vontade soberana, que decide em ltima instncia. Asoberania, inicialmente, , apenas o pensamento universal desta idealidade,existe unicamente como a subjetividade que tem certeza de si mesma,como a autodeterminao abstrata da vontade, portanto, sem fundamen-to, pois nesta [na vontade] que reside a deciso ltima. este precisa-mente, o aspecto individual do Estado e isso faz com que o Estado sejaum (FD, 279). Ora, a unidade da deciso ltima est no monarca: Naconstituio que chegou racionalidade real, cada um dos trs momentosdo conceito possuem sua figura real particular parte. por isso, que essemomento absolutamente decisivo do todo no a individualidade emgeral, mas um indivduo, o monarca (Id., 279). A constituio que

    mantm os trs momentos do conceito - universalidade, particularidadee singularidade - garante ao prncipe o momento decisivo na efetivaoda idia de soberania.

    a) A unidade subjetiva do prncipe: Assim a subjetividade, en-quanto poder ltimo de deciso da vontade, o poder do soberano ou doprncipe. Nesse poder, os diferentes poderes so reunidos na sua unidadeindividual e ento esse poder se torna o cume e o comeo do todo, isto ,da monarquia constitucional (cf. FD, 273). No trataremos aqui dapolmica que envolve a elaborao do conceito do prncipe hegeliano,nem da justificao especulativa da monarquia constitucional, pois o quenos interessa a elaborao do conceito do soberano. 19

    19 Para aprofundar este assunto remetemos ao estudo de BOURGEOIS, Bernard. tudeshgliennes. Raison et dcision. 3 parte: Cap. 4: Le prince hglien. Paris: PUF,1992, p. 207-238.

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    A demonstrao racional da monarquia constitucional mostra aunidade substancial como idealidade de seus momentos. A idealidade dasdiferenas constitui a soberania do Estado. Esta s pode existir comosubjetividade na identidade da pessoa do prncipe, enquanto uma vontadeque decide em ltima instncia.

    A soberania do Estado implica uma instncia que tenha o poder dedeciso de todo o corpo poltico: esta a ao de decidir do prncipe. Ora,

    o prncipe a expresso do conceito de vontade no comeo da ao, desdeos nveis mais abstratos e imediatos at o cume da construo estatal. Oque est em questo no um ato privado de um indivduo particular, mas,ao contrrio, um ato que engaja o processo atravs do qual a personalida-de abstrata, afirmando a sua individualidade jurdica, concretiza aliberdade da subjetividade nesta totalidade lgica que o cidado. 20

    Porm, o prncipe diferencia-se do cidado enquanto tal, porque elerepresenta a personalidade do Estado, assumindo toda a ao dos cida-dos efetivando-a. neste crculo lgico da cidadania e da efetividadeque se deve compreender a ao do prncipe, o qual decide pressupondoa deciso de todos os membros do Estado.

    Assim, a soberania do Estado objetiva-se na ao do prncipedecidir soberanamente. Por isso, Hegel critica uma certa tendncia emvoga na poca, a qual entendia a soberania popular oposta soberania doprncipe.

    b) A soberania do prncipe versus a soberania popular: Hegelcompreende a soberania popular, enquanto soberania face ao exterior ecomo soberania do Estado. De um lado, pode-se falar de soberaniapopular no sentido de que um povo em geral seja algo autnomo eindependente face ao exterior e constitua um Estado prprio. Por exem-plo, a Inglaterra, Veneza, Gnova etc. Esses povos, porm, no seriammais soberanos desde o momento em que deixassem de ter para si

    prncipes prprios ou governos superiores. De outro lado, pode-se falar

    20 ROSENFIELD, Denis. Poltica e liberdade em Hegel. So Paulo: Brasiliense, 1993,p. 239.

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    que a soberania interior reside no povo, quando em geral se fala somentedo todo, em idntico sentido em que antes se tem mostrado que ao Estadocorresponde soberania (cf. FD, 279, Obs).

    Hegel, no entanto, critica o uso de soberania do povo, no sentidode contrapor-se soberania identificada no monarca. Tomada nestacontraposio, ela um dos tantos conceitos confusos que se baseiamnuma catica representao do povo que, tomado sem seus monarcas e

    sem a articulao do todo que se lhe vincula necessria e imediatamente, uma massa carente de forma, que no constitui j um Estado. Isto nocorresponde a nenhuma das determinaes que unicamente existem numtodo, formado e organizado atravs dos elementos da soberania, governo,tribunais, autoridades etc 21 .

    Num povo que no se representa como um cl patriarcal, nemnuma situao arbitrria e inorgnica, mas que se pensa como umaverdadeira totalidade orgnica, desenvolver a soberania como persona-lidade do todo, e esta corresponde a seu conceito, na pessoa do prncipe(cf. FD, 279, Obs.).

    A soberania do Estado, como totalidade una, no portanto aquela

    do povo que o entendimento ope habitualmente, nas sua massa infor-me e dispersa, ao poder monrquico, mas como a soberania do prncipeque o ser-a da soberania do Estado orgnico racional, isto domomento da singularidade.

    O lado objetivo da deciso do prncipe engaja, ao mesmo tempo,o todo da constituio, um e outro refletem o momento do universal nasingularidade do poder principesco. A realizao deste momento contri-bui para a realizao dos outros poderes, pois tem nele mesmo, osmomentos do conceito, segundo os quais a totalidade orgnica do Estado

    21 E. Weil levanta a hiptese de que a crtica da soberania popular refere-se apenascontra o nacionalismo tnico. Caso contrrio, se Hegel reconhece ao povo a soberania

    na medida em que ele est organizado, em que ele forma um Estado, em que ele sesente Estado na mais alta expresso de sua prpria vida, precisar que esta outrasoberania se exprima na construo do edifcio poltico. O prncipe exprime eincorpora a soberania: o que sobra ao povo? Cf. WEIL, E. Hegel et ltat. Paris:Vrin, 1985, p. 64.

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    se objetiva neles 22 .Face a esta interpretao do prncipe hegeliano como detentor do

    poder soberano no Estado, existem outras duas interpretaes sobre olocusda soberania na teoria do Estado hegeliano. No se trata de negaro prncipe, mas de discutir o seu papel na conduo do Estado, portanto,em ltima anlise, como ele procede na tomada de deciso e no modo deexercer a soberania. Trata-se de ressaltar o papel e a importncia dos

    funcionrios e da constituio no exerccio da soberania. Apresentemos,brevemente, estas duas interpretaes do pensamento poltico de Hegelsobre a soberania.

    3.1.2 - O Estado administrativo e a soberania do prncipe

    Eric Weil defende a tese de que o prncipe no o centro, nem aroda principal do Estado. O rei decide, mas no ele quem decide quandoe nem o que deve decidir. Ele pode dizer no; mas no lhe cabe inventar,criar, governar. Quem esse 23 ? Weil responde: O Estado, sempreo Estado, - o Estado da administrao, dos funcionrios 24 . Vejamos

    como Weil desenvolve essa tese.Qual o modelo de soberania no Estado hegeliano? Esse Estado

    uma monarquia, mais precisamente, uma monarquia constitucional,fortemente centralizada na sua administrao, largamente decentralizadano que concerne aos interesses econmicos, com um corpo de funcion-rios especializados, sem religio de Estado, absolutamente soberanotanto no interior como no exterior. Numa palavra, o Estado moderno25 . A soberania interna e externa, como j expomos acima, umcomponente fundamental do Estado hegeliano.

    22 BOURGEOIS, B.La pense de la politique. Paris: PUF, 1992, p. 130-131.

    23 Weil, E. op. cit. p. 62.

    24 Id. p. 68.

    25 Id. p. 56.

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    A soberania interna desenvolve-se atravs da satisfao que ocidado tem de saber ser membro ativo da comunidade, conhecido ereconhecido como tal por todos os outros e pelo Estado. O interesseparticular dos indivduos realiza-se no Estado, e os indivduos s tmdeveres, na medida em que tm direitos.

    A soberania est determinada racionalmente em seus poderes. Umque determina o universal - o poder legislativo; em seguida, o poder que

    subsume os casos particulares sob a regra universal, que aplica as leis eos princpios, que decide na realidade de todos os dias- o poder adminis-trativo; enfim, a autoridade que formula a vontade emprica, que, depoisda deliberao, depois da discusso, depois dos conflito dos interesses edas doutrinas, diz seufiat- o poder de decidir, o soberano, o prncipe.

    O que o prncipe? Como ele decide? Certamente no enquantovontade particular, determinando-se por um interesse particular, aindamenos de modo arbitrrio. O prncipe no um tirano: O despotismo emgeral o estado de ausncia de leis, na qual a vontade particular enquantotal, quer seja a vontade do prncipe, ou aquela de um povo, tem a fora nolugar da lei (FD, 278).

    Pelo visto, Weil no elimina o poder soberano, enquanto ele estnas mos do prncipe. No entanto, ele relativiza significativamente seupapel no Estado, a tal ponto, que os funcionrios seriam mais importantesque o prprio soberano na conduo administrativa estatal. Apresente-mos agora a interpretao constitucional sobre o exerccio da soberania.

    3.1.3 - O silogismo constitucional e a soberania26

    No entender de Labarrire e Jarczyk, o personagem principal noEstado hegeliano a constituio, enquanto esta elabora um processo deunidade diferenciada, um movimento de unidade orgnica, uma relao

    de mediao recproca. Ns podemos dizer que o personagem principal

    26 Cf. JARCZYK, G. e LABARRIRE, P.-J. Le syllogisme du pouvoir. Y a-t-il unedmocratie hglienne? Paris: Aubier, 1989.

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    da configurao do poltico, segundo Hegel, no o povo, nem o prncipeou o governo: a Constituio, entidade quase viva que desenvolve suasprprias determinaes pelo jogo reflexivo. Ora, o equilbrio constituci-onal a articulao dinmica entre os momentos da singularidade doprncipe, da particularidade do governo e da universalidade que exprimeos estados, entendidos como a expresso poltica das rodas da sociedadeno seu conjunto 27 .

    Cabe salientar o que Hegel entende por constituio, uma vez queos juristas do sculo XIX nos habituaram a considerar, segundo as idiasda revoluo americana e francesa, a constituio como um ato jurdico,um documento redigido, segundo a deliberao, discusso, voto, seja dopovo, seja dos representantes, seja dos dois. Hegel vai alm deste aspecto

    jurdico: A constituio de um povo depende da maneira de ser e do graude formao intelectual e moral da autoconscincia deste povo; nestaautoconscincia que reside sua liberdade subjetiva e com ela a realidadeda constituio (FD, 274).

    O que caracteriza o tempo de Hegel de um lado a singularidadeque toma a figura no prncipe que decide; e de outro, a realidade do povo

    que emerge no cenrio do mundo nos acontecimentos simblicos de 1789com a Revoluo Francesa. Seu gnio poltico de no ter desprezadonem uma nem outra destas realidades, mas de as ter compreendido comoos extremos de um silogismo em que o meio termo constitudo peloscorpos intermedirios, que no se deve compreender como um simpleslimite entre o prncipe e o povo, mas como a particularidade que diz e queopera a unidade reflexiva do singular e do universal.

    Hegel quer evitar sempre a possibilidade do isolamento de cada umdos elementos: 1) o prncipe contra o povo engendra o despotismo; 2) opovo contra o prncipe, a anarquia; 3) o domnio dos funcionrios instalaa burocracia engessada.

    preciso, portanto, pensar a ponderao recproca dos diversosmomentos, sua articulao no movimento que constitui a lgica do

    27 Id. p. 350.

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    poltico.A lgica do poltico implica a seguinte questo: o silogismo do

    poder pode ser aplicado a outros contextos histricos? Este o estatutodo poltico no pensamento hegeliano: ele desenha um nvel de reflexoque permite compreender o funcionamento de um princpio universal -isto de uma relao - na particularidade de uma histria determinada 28 .

    A constituio garante o equilbrio dos poderes e o prncipe,

    enquanto instncia da deciso soberana, insere-se dentro da lgica dosilogismo do poder que a mediao da singularidade, da particularidadee da universalidade.

    Acabamos de descrever a soberania interna que tem sua razes naunidade e na identidade, que encontram sua efetivao no poder dedecidir do soberano. Apresentemos, agora, a soberania em sua manifes-tao externa.

    3.2 - A soberania face ao exterior

    A soberania interior a idealidade em que os momentos do esprito

    se efetivam no Estado. O espirito , porm, infinita relao negativaconsigo mesmo que se afirma como ser por si e que incorporou nele adiferena. Nesta determinao, o Estado tem uma individualidade eexiste essencialmente como indivduo e no soberano ele o indivduo -o prncipe - real e imediato (FD, 321). Trata-se da unidade do Estadoface ao exterior, que se afirma de forma soberana.

    A individualidade, enquanto ser por si aparece como relao comoutros Estados, sendo cada um independente frente aos outros. A inde-pendncia a primeira liberdade e a honra mais elevada de um povo. Oprimeiro poder pelo qual os Estados surgem historicamente, esta

    28 Id. p. 26-27. A propsito da aplicao do estatuto poltico hegeliano Labarrire eJarczyk acreditam que possvel colocar a seguinte questo: H uma democraciahegeliana? Se isto possvel, tomando em conta a idia de uma organizao polticaordenada cultura do grande nmero para o devir progressivo racionalidade. Umprocesso no qual o povo organicamente participativo. Id. p. 355.

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    independncia, ainda que seja totalmente abstrata e no tenha nenhumdesenvolvimento interior (FD, 322). A autonomia , portanto, aprimeira caracterstica histrica de um Estado. A soberania nacional dao povo a honra e a dignidade necessrias, para situar-se frente aos outrosEstados.

    3.2.1 - A relao entre a soberania interna e a externa ou o

    processo de reconhecimento entre os Estados

    H uma dupla dimenso da soberania: interior e exterior. Enquantoidealidade exterior manifesta-se nos acordos, nos contratos ou, ento, naguerra que tem sua causa em circunstncias contingentes. E a idealidadeinterna organiza-se nos poderes internos do Estado, que so momentosorgnicos do todo. Ambas so uma e a mesma idealidade da soberania.Essa unidade da soberania aparece na histria, quando um Estado venceuma guerra; ento, afirma-se a soberania externa, e, ao mesmo tempo,garante-se a soberania interna do Estado. Aqueles povos que no pude-ram garantir a soberania interna, tombaram sob o jugo de outros povos:

    quanto menos eles se esforaram de lutar com sucesso e com honra parasua independncia exterior, menos eles foram capazes de estabelecer, nointerior, uma primeira instituio do poder do Estado (sua liberdademorreu no medo de morrer 29). Os Estados em que a independncia no mais assegurada pelo poder de suas foras armadas, mas por outrosmeios (como, por exemplo, aqueles que so extremamente pequenos emrelao aos seus vizinhos), podem subsistir com uma constituio interi-or, que no lhes assegura a tranqilidade nem ao interior nem ao exterior(cf. FD, 324, Obs.).

    a) A relao entre os Estados enquanto um dever-ser conceitual:O Estado, ao estabelecer a relao com outros Estados, rege-se pelo

    29 Para Hegel, o medo de morrer arrasta com ele a perda da liberdade. Os homens livrese os povos livres so aqueles que no temem a morte. Trata-se de uma concepoherica da liberdade. Cf. HYPPOLITE, J.Introduction la Philosophie de lHistoirede Hegel. Paris: Ed. du Seuil, 1983.

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    direito internacional, enquanto expresso da necessidade e da contingn-cia dos acordos bilaterais. O princpio do direito internacional, enquan-to direito do universalque deve valer em si e por si na relao entre osEstados, e a diferena do contedo particular dos tratados positivos,consiste em que estes tratados devem ser respeitados, pois neles sebaseiam as obrigaes recprocas dos Estados (FD, 333).

    Hegel compara a relao entre os Estados com a que existe entre

    os indivduos, no estado de natureza que regida por uma vontadeparticular e no universal. Por isso, os acordos podem ser quase sempreabolidos, considerando que a relao entre os Estados tem, comoprincpio, sua soberania, os Estados no seu estado de natureza se opem,e seus direitos no tm sua realidade efetiva numa vontade universal, quese constituiria como poder sobre eles, seno em sua vontade particular.Aquela determinao universal do direito internacional permanece,portanto, ao nvel do dever-ser. O resultado ser uma sucesso de relaesde acordo com os tratados e de abolies dos mesmos (Id., 333).

    As relaes jurdicas entre os Estados so contingentes, porqueesto baseadas na soberania de cada um. No h nenhuma instncia

    superior que possa ser elevada acima dos Estados, para determinar asrelaes entre ambos. Hegel caracteriza esta relao com o termo dever-ser (Sollen, FD, 330), o qual no significa aqui um dever-ser moral ou

    jurdico, mas um dever-ser conceitual que indica o percurso a serseguido no processo de reconhecimento mtuo entre os Estados. Aexistncia poltica de cada Estado, consagrada por um ato de mtuoreconhecimento, a culminncia do movimento de figurao em vriospovos. Reconhecer outrem vem a ser a afirmao da identidade conceitualpresente em todos os povos em diferentes nveis de concreo 30 .

    Portanto, para Hegel no h nenhum pretor para resolver osconflitos entre os Estados, mas apenas rbitros ou mediadores, os quais

    todavia, s podem intervir de um modo contingente, de acordo com avontade particular de cada um dos Estados interessados (FD, 333). Se

    30 ROSENFIELD, D. op. cit. p. 265.

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    de um lado, a relao entre os Estados est sujeita contingncia davontade particular de cada um, por outro lado, os conflitos so umaoportunidade para realizar-se o processo de reconhecimento interestatal.

    Portanto, o reconhecimento da soberania (cf. FD, 330-333) nodireito pblico internacional resulta das relaes entre os Estadosindependentes; por conseguinte, o que em e para si, toma a forma dodever-ser, porque sua existncia efetiva repousa sobre diferentes vonta-

    des soberanas (FD, 330).b) O reconhecimento depende do contedo de cada Estado: O

    Estado na sua autoafirmao imediata uma existncia soberana absolu-ta. O povo , enquanto Estado, o esprito na sua racionalidade substan-cial e na sua realidade imediata, e portanto o poder absoluto sobre a terra.Como conseqncia disso, um Estado tem diante do outro uma indepen-dncia soberana (FD, 331).

    No entanto, esta realidade imediata precisa de uma legitimaoque passa pelo reconhecimento de outro Estado. Por isso ser enquantotalpara os outros, quer dizer ser reconhecidopor eles, sua primeira eabsoluta legitimao. Porm, esta legitimao puramente formal, e

    querer que se reconhea um Estado simplesmente porque um Estado, uma exigncia puramente abstrata (Id., 331).

    O reconhecimento fundamental exige que o Estado passe de suaexistncia formal para e existncia efetiva, isto , a questo de saber setal Estado realmente um Estado, existente em e por si, depende de seucontedo, de sua constituio, de sua situao, e o reconhecimento, queimplica uma certa identidade entre os dois Estados, repousa sobre o

    julgamento e a vontade do outro (Id., 331). aqui que se joga amediao entre a soberania interna e externa. Primeiramente, afirmaHegel, o Estado precisa afirmar sua soberania internamente, ou seja,existir em si e para si, na medida em que ele tem um contedo

    autoconsciente, quer dizer uma constituio que articule organicamenteo silogismo dos poderes. Depois, o Estado tem condies de ser reconhe-cido pelo outro. Isto capital no processo de reconhecimento. O Estados pode ser reconhecido pelo outro, na medida em que ele capaz de se

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    constituir internamente enquanto Estado. No h reconhecimento semessa prvia determinao da soberania interna com um contedo consti-tucional. Caso contrrio, h uma diluio e perda da soberania nacional.

    Hegel entende que o processo do reconhecimento entre os Estados sempre conflituoso, porque no existe uma organizao ou autoridadeacima deles para resolver os problemas que se originam entre as diferen-tes vontades soberanas estatais. A soluo est nos acordos, porm, estes

    permanecem sempre contingentes. Da, que a soluo blica passa a sera sada para regrar os conflitos e, ao mesmo tempo, afirmar o reconheci-mento dos Estado. Kant tem, porm, uma outra proposta para garantir apaz entre os Estados: organizar uma Federao de Estados como garan-tidora da paz interestatal. Hegel, no entanto, cptico quanto soluokantiana.

    3.2.2 - A soberania do Estado versus a Federao dos Estados

    na adio ao pargrafo 324 que Hegel introduz a discusso doproblema da soberania do Estado e a tese kantiana de formar uma liga

    federativa dos prncipes, para solucionar os conflitos entre os Estados.A vida da sociedade civil, afirma Hegel, se amplia em pocas de

    paz, porm, ao mesmo tempo, suas instituies ou esferas tornam-se maisrgidas e esclerosadas. Para a sade do corpo, necessrio o bomfuncionamento de todo o organismo, porm, quando os membros seendurecem, j est presente a morte. Hegel percebe que a vida pacficaenfraquece o corpo.

    a) No entanto, apresenta-se, freqentemente, a paz perptuacomo um ideal em direo a que deve tender a humanidade. Kant, porexemplo, props uma liga federativa dos prncipes, confederao quedeveria regrar os conflitos entre os Estados, e a Santa Aliana devia ser,

    no esprito de seus fundadores, uma confederao deste gnero. Mas oEstado uma individualidade e a negao , essencialmente, contida naindividualidade. Se, portanto, mais Estados se unissem para constituiruma famlia, precisar-se-ia que esta unio, enquanto individualidade,

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    criasse um oposto ou um inimigo. No so somente os povos que saemreforados da guerra, mas as naes, que tm querelas intestinais,adquirem pela guerra externa, a paz interna (FD, 324, Ad.).

    b) As contradies do pensamento de Kant sobre uma Sociedadedas Naes: O projeto kantianode umapaz perptua, realizvel por umfederao de Estados - federao que regraria todos os conflitos e que,enquanto poder reconhecido por todos os Estados particulares, impediria

    todos os conflitos, tornando impossvel a deciso pela guerra - pressupeo acordounnime dos Estados. Mas um tal acordo repousa sobre razese consideraes morais, religiosas ou outras, portanto, repousaria sempresobre a vontade particular soberana, e por isso permaneceria afetada pelacontingncia (FD, 333 Obs.). O primeiro argumento de Hegel contrao projeto kantiano que ele se baseia na vontade particular dos acordos.Por isso, nada garante a quebra dos contratos entre os Estados e, emconseqncia, a deflagrao da guerra como meio para solucionar osconflitos.

    Um outro argumento contra o projeto de Kant que os Estados,como os indivduos, se encontram num estado de natureza, por isso, a

    inevitvel possibilidade dos conflitos est sempre presente. Porm, nosignifica que eles estejam numa situao de total arbitrariedade ou numaguerra perptua. O estado de natureza supe o processo de emergncia doconceito na natureza imediata do esprito. A paz, neste sentido, aparececomo um momento, ou seja, o fim para qual tende toda guerra. Ora, seos conflitos se decidem pela guerra, isto implica que, no reconhecimentodo outro, est presente a subsistncia das oposies, portanto, dosadversrios 31 . Pelo fato de que os Estados, como tais, se reconhecemmutuamente, subsiste tambm na guerra, neste estado de ausncia dedireito, de violncia e de contingncia, um lao no qual eles valem umpara o outro como sendo em e para si, de tal modo que na prpria guerra,

    ela determinada como alguma-coisa-devendo-ser-passageira (FD, 338).

    31 ROSENFIELD, D. op. cit. p. 266.

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    Fundamentalmente, a crtica de Hegel ao projeto da paz perptuamostra a falta de efetividade de tal proposio, tendo em vista que osacordos so feitos entre vontades particulares estatais no seu estado denatureza, que por si sempre contingente.

    Assim, constatamos que a teoria da soberania externa exige,primeiramente, a auto-afirmao identitria soberana do Estado interna-mente, enquanto portador de uma existncia em si para si plena de

    contedo, o qual dado pela constituio; somente depois, que o Estadopode afirmar-se externamente, pelo processo de reconhecimento. Ora,esta relao interestatal no elimina a soberania interna, pelo contrrio o palco do reconhecimento entre os Estados, no obstante os conflitos queesta relao implica, e os diferentes modos de encontrar a soluo dosmesmos.

    CONCLUSO

    A grande discusso atual a perda da soberania causada pelo

    fenmeno da globalizao, de tal modo, que se afirma que o Estado-Nao moderno foi sepultado. Ora, concedamos que a figura do Estado-nao terminou, e nisto Hegel estaria a favor.

    A histria do Esprito sua ao. Cada ato de se apreender a simesmo seu ser e seu princpio. E cada apreenso, uma vez que se tornoucompleta, , ao mesmo tempo, sua exteriorizao e sua passagem a umaoutra. Dito de outra maneira, exprimindo-se de modo formal, o Espritoque toma de novo esta apreenso de si mesmo, retorna a si mesmo depoisdesta exteriorizao, o Esprito num nvel superior daquele no qual elese encontrava na sua precedente apreenso de si (FD, 343). A velhaforma superada, porque ela foi apreendida, porque ela deu tudo o que

    ela podia dar. O Estado hegeliano morre: prova disso que a filosofiahegeliana do Estado foi possvel. Porque esta forma foi realizada, porqueela penetrou a realidade, ela deve deixar lugar a outra figurao, e oesprito, no seu trabalho inconsciente e subterrneo, tende em direo a

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    uma nova Wirklichkeit(cf. FD, Prefcio, p.103).A apreenso desta nova exteriorizao do conceito, na figurao

    do contexto da globalizao, a soberania ps-moderna, no entender deA. Negri e M. Hardt. Essa determinao do Imprio 32 que pe o peso nasoberania externa, pe em desequilbrio a autodeterminao soberanados Estados nacionais, ou seja, eles perdem o poder de tomar decisesinternas.

    Segundo Negri e Hardt essa nova soberania est assim estruturada:1) Washington o corao do poder militar que controla o mundo.

    Est no pice da pirmide que dirige o Imprio, atuando sob o guarda-chuva das Naes Unidas;

    2) Logo abaixo, est o G-7, englobando os pases ricos, os quaiscontrolam os mecanismos de regulao monetria, portanto, detm ocontrole do sistema internacional de trocas financeiras;

    3) Na outra camada, encontram-se as grandes corporaesmultinacionais, onde circulam os meios materiais que sustentam oImprio;

    4) Enfim, na base da pirmide, acham-se os representantes da

    massa: entre eles, esto os Estados Nacionais e as organizaes no-governamentais (OGNs) 33 .

    O Estado est inserido neste novo cenrio mundial. Pelo visto, oEstado-Nao praticamente desaparece nesta mega estrutura. Sua capa-cidade de tomar deciso fica diluda pelas macro-organizaestransnacionais.

    Julgamos, face a isso, que a teoria hegeliana, sobre a soberania,permanece uma opo vivel para responder aos desafios datransnacionalizao. A teoria hegeliana responde a esta nova soberaniada seguinte maneira:

    32 Sobre a definio do conceito de Imprio diferente do imperitalismo confira aIntroduo de nosso estudo.

    33 Cf. SINGER, Andr. O contra-imprio. IN: Folha de So Paulo. Caderno MAIS!,24.09.2000, p. 11.

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    a) H uma primazia na teoria da soberania hegeliana, da mediaopoltica interna sobre a soberania externa.

    b) No cenrio globalizado, o Estado organizado internamente, isto, soberanamente constitudo, tem maior capacidade de tomar decises,para fazer uma insero autnoma no espao mundial do Imprio.

    c) Enfim, a relao entre a soberania interna e a externa ou oprocesso de reconhecimento entre os Estados passa pela sociedade em

    rede. A revoluo da teconologia da informao introduziu esta novaforma de sociedade, caracterizada pela globaliao das atividades eco-nmicas, por uma cultura de virtualidade real,construda a partir de umsistema de mdia onipresente, interligado e altamente diversificado, epela transformao das bases materiais da vida - o tempo e o espao -mediante a criao de um espao de fluxos e de um tempo intemporal 34 .Ora, o processo do reconhecimento interestatal na afirmao soberana doEstado, quer se trate em nvel transnacional ou regional, implica nacapacidade de deciso do poder da identidade soberana interna, nodomnio desta nova tecnologia.

    34 Cf. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. v. 2, So Paulo: 1999, p. 17.

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