a crise do isão

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A crise do islão - Guerra Santa e Terror ímpio Bernard Lewis A Crise do Islão Guerra Santa e Terror ímpio Relógio D’Água Editores Rua Sylvio Rebelo, nº 15 1000-282 Lisboa tel. 21 8474450 fax: 21 8470775 www.relogiodagua.pt relogiodagua @ relogiodagua.pt © 2003 by Bernard Lewis Esta tradução é publicada por acordo com a Modern Library, uma marca da Random House Publishing Group, uma divisão da Random House, Inc. Título: A Crise do Islão - Guerra Santa e Terror ímpio Título original: The Crisis of Islam - Holy War and Unholy Terror (2003) Autor: Bernard Lewis Tradução: Margarida Periquito Revisão técnica: Alda Couto Capa: Relógio D’Água Editores sobre pormenor do Alhambra em Granada © Relógio D’Água Editores, Janeiro de 2006

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Texto sobre a crise do Isão

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A crise do islo - Guerra Santa e Terror mpio

A crise do islo - Guerra Santa e Terror mpio

Bernard Lewis

A Crise do Islo

Guerra Santa e Terror mpio

Relgio Dgua Editores

Rua Sylvio Rebelo, n 15

1000-282 Lisboa

tel. 21 8474450

fax: 21 8470775

www.relogiodagua.pt

relogiodagua @ relogiodagua.pt

2003 by Bernard Lewis

Esta traduo publicada por acordo com a Modern Library,

uma marca da Random House Publishing Group,

uma diviso da Random House, Inc.

Ttulo: A Crise do Islo - Guerra Santa e Terror mpio

Ttulo original: The Crisis of Islam - Holy War and Unholy Terror

(2003)

Autor: Bernard Lewis

Traduo: Margarida Periquito

Reviso tcnica: Alda Couto

Capa: Relgio Dgua Editores sobre pormenor do Alhambra em Granada

Relgio Dgua Editores, Janeiro de 2006

Composio e paginao: Relgio DAgua Editores

Impresso: Rainho & Neves, Lda. / Sta. Maria da Feira

Depsito Legal n: 236829/05

Bernard Lewis

A Crise do Islo

Guerra Santa e Terror Impio

Traduo Margarida Periquito

Antropos

A Harold Rhode

com amizade

ndice

Mapas

A Era dos Califas 11

O Imprio Otomano 12

A Era do Imperialismo 13

O Mdio Oriente Hoje 14

Introduo 15

I. Definio do Islo 29

II. A Casa da Guerra 47

III. Dos Cruzados aos Imperialistas 59

IV. Descoberta da Amrica 71

V. Satans e os Soviticos 83

VI Modelos Ambguos 97

VII. Uma Falha da Modernidade 105

VIII. O Casamento entre o Poder Saudita e a Doutrina Wahhabita 111

IX. A Origem do Terrorismo 123

Agradecimentos 143

Eplogo 145

Notas 149

Nota: Os mapas referenciados no ndice foram suprimidos desta verso digitalizada por no ser possvel transcrev-los para texto.

Introduo

O presidente Bush e outros polticos ocidentais tm-se esforado para tornar claro que a guerra em que ns estamos envolvidos uma guerra contra o terrorismo - no uma guerra contra os rabes, nem, de modo mais generalizado, contra os muulmanos, que so induzidos a unirem-se a ns nesta luta contra o inimigo comum. A mensagem de Osama bin Laden o oposto. Para Bin Laden e os seus seguidores trata-se de uma guerra religiosa, uma guerra do Islo contra os infiis, e por conseguinte, inevitavelmente, contra os Estados Unidos, a maior potncia do mundo dos infiis.

Nas suas declaraes, Bin Laden faz frequentes referncias histria. Uma das mais dramticas foi a meno que fez, na sua videocassete de 7 de Outubro de 2001, humilhao e ignomnia que o Islo sofreu durante mais de oitenta anos. A maior parte dos observadores americanos - e tambm, sem dvida, europeus - do cenrio do Mdio Oriente deram incio a uma busca ansiosa de algo que tivesse acontecido h mais de oitenta anos, e sugeriram vrias respostas. Mas podemos estar certos de que os ouvintes muulmanos de Bin Laden - aqueles a quem ele se dirigia - identificaram a aluso imediatamente e perceberam o seu sentido.

Em 1918 o sultanato otomano, o ltimo dos grandes imprios muulmanos, foi finalmente derrotado - Constantinopla, a capital, foi ocupada, o soberano foi feito prisioneiro, e grande parte do seu territrio foi dividido entre os imprios britnico e francs, seus conquistadores. As anteriores provncias otomanas de lngua rabe do Crescente Frtil foram divididas em trs novas entidades, com novos nomes e novas fronteiras. Dois deles, o Iraque e a Palestina,

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ficaram sob jurisdio britnica; o terceiro, denominado Sria, foi atribudo aos Franceses. Mais tarde, a Frana dividiu o territrio sob sua administrao em dois, chamando a uma das partes Lbano e conservando o nome Sria para a outra parte. Os Ingleses fizeram outro tanto na Palestina, criando uma diviso entre as duas margens do Jordo. O segmento oriental recebeu o nome de Transjordnia, e mais tarde passou a ser simplesmente Jordnia; o nome Palestina foi mantido, sendo reservado para o segmento ocidental, ou seja, a parte cisjordana do territrio.

Nessa altura considerou-se que a Pennsula Arbica, constituda em grande parte por desertos e montanhas ridos e inacessveis, no justificava a maada de a conquistar, tendo sido permitido aos seus governantes conservarem uma independncia precria e limitada. Os Turcos acabaram por conseguir libertar a sua terra, a Anatlia, no em nome do Islo mas sim por aco de um movimento nacionalista secular, dirigido por um general otomano chamado Mustaf Kemal, mais conhecido por Kemal Ataturk. Ao mesmo tempo que lutou - com xito - para libertar a Turquia do domnio do Ocidente, deu os primeiros passos no sentido da adopo dos costumes ocidentais, ou modernos, como ele preferia chamar-lhes. Um dos seus primeiros actos foi a abolio do sultanato, em Novembro de

1922.

O soberano otomano no era apenas um sulto que governava um estado especfico; era tambm reconhecido por todos como o califa, o chefe de todo o Islo sunita, e o ltimo de uma srie de governantes que remontava morte do profeta Maom, em 632 d.C, e nomeao de um sucessor para o substituir, no como chefe espiritual mas sim religioso e poltico, do estado e da comunidade muulmana. Aps uma curta experincia de um califa parte, em Maro de 1924 os Turcos aboliram tambm o califado.

Durante os seus quase treze sculos, o califado passara por muitas vicissitudes, mas mantivera-se como um smbolo poderoso da unidade muulmana e mesmo da sua identidade; o seu desaparecimento, devido ao duplo ataque de imperialistas estrangeiros e modernistas nacionais, foi sentido em todo o mundo muulmano. Foram feitas algumas tentativas bastante timoratas por parte de diversos monarcas e lderes muulmanos para

reivindicar o ttulo vago, mas nenhum deles obteve grande apoio. Muitos muulmanos esto

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ainda dolorosamente conscientes desse vazio, e diz-se que o prprio Osama bin Laden tinha - ou tem - aspiraes ao califado.

A palavra califa vem do rabe khalifa, que, graas a uma ambiguidade muito conveniente, combina em si o significado de sucessor e de substituto. Originalmente, o chefe da comunidade islmica era o Khalifa do Profeta de Deus. Alguns, mais ambiciosos, encurtaram o ttulo para o Khalifa de Deus. Esta pretenso de autoridade espiritual foi veementemente contestada e por fim posta de parte, embora houvesse um ttulo que expressava uma pretenso semelhante - a Sombra de Deus na Terra -, que era largamente usado por governantes muulmanos. Ao longo da maior parte da histria da instituio, os detentores do califado contentaram-se com o ttulo mais modesto de Amir al-Muminin, habitualmente traduzido por Comandante dos Fiis.

Aluses histricas como a de Bin Laden, que podem parecer obscuras a muitos americanos, so comuns entre os muulmanos, e s podem ser perfeitamente entendidas dentro do contexto da noo de identidade do Mdio Oriente e tendo como pano de fundo a histria do Mdio Oriente. Os prprios conceitos de histria e identidade requerem uma redefinio para o ocidental que tenta compreender o Mdio Oriente contemporneo. No uso americano actual, a frase isso histria usa-se comummente para rejeitar qualquer coisa por ela no ter importncia, porque no relevante para os interesses actuais, e embora se faa um enorme investimento no ensino e na escrita da histria, o nvel geral de conhecimento histrico da sociedade americana abissalmente baixo. Os povos muulmanos, como todos os outros neste mundo, so moldados pela sua histria, mas, ao contrrio de alguns outros, esto profundamente conscientes disso. Contudo, essa sua conscincia data do advento do Islo, e inclui talvez algumas referncias mnimas aos tempos pr-islmicos, necessrias para compreender as aluses histricas presentes no Coro e nas tradies e crnicas islmicas primitivas. Para os muulmanos, a histria islmica tem um importante significado religioso e tambm legal, uma vez que reflecte a realizao do desgnio de Deus para a Sua comunidade, ou seja, aqueles que aceitam os ensinamentos

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do Islo e obedecem sua lei. A histria dos estados e dos povos no-muulmanos no transmite essa mensagem, e portanto desprovida de valor ou de interesse. Mesmo nos pases com uma civilizao antiga como os do Mdio Oriente, o conhecimento da histria pag dos seus prprios antepassados - cujos monumentos e inscries se encontravam por toda a parte sua volta - era mnimo. As lnguas e escritas antigas foram esquecidas e os registos antigos queimados, at serem recuperados e decifrados nos tempos modernos por arquelogos e fillogos curiosos. Mas, no que respeita ao perodo que tem incio com o advento do Islo, os povos muulmanos produziram uma rica e variada narrativa histrica - com efeito, em muitas regies e at mesmo em pases com uma cultura

antiga, como a ndia, os textos histricos srios tm incio com a chegada do Islo.

Mas, histria de qu? No mundo ocidental, a unidade bsica de organizao humana a nao, que do ponto de vista americano - mas no do europeu - sinnimo virtual de pas. Este depois dividido de vrias maneiras, uma das quais pela religio. Os muulmanos, porm, tendem para ver no uma nao dividida em grupos religiosos, mas uma religio dividida em naes. No h dvida que isto acontece, em parte, porque a maioria das naes-estado que constituem o actual Mdio Oriente so de criao relativamente recente, vestgios da poca de dominao imperial anglo-francesa que se seguiu conquista do Imprio Otomano, que conservam a estrutura de estado e as demarcaes de fronteira feitas pelos seus anteriores senhores imperiais. At os seus nomes reflectem essa artificialidade: o Iraque era uma provncia medieval com fronteiras muito diferentes das da actual repblica, que no compreendia a Mesopotmia a norte e inclua uma fatia da zona ocidental do Iro; Sria, Palestina e Lbia so nomes da antiguidade clssica, que no eram usados naquela regio havia mil anos ou mais, at que foram recuperados e impostos - tambm eles com novas fronteiras, em muitos casos diferentes - pelos imperialistas europeus no sculo XX; Arglia e Tunsia nem sequer existem como palavras em rabe, e o mesmo vocbulo serve tanto para a cidade como para o pas. O mais extraordinrio de tudo que na lngua rabe no existe nenhuma palavra para Arbia, e designa-se a actual Arbia Saudita por o reino saudito-rabe ou a pennsula dos rabes, dependendo do

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contexto. Isto no acontece por o rabe ser uma lngua pobre - o contrrio que verdade - mas simplesmente porque os rabes no pensaram em termos de uma combinao das identidades tnica e territorial. Com efeito, o califa Umar referido como tendo dito aos rabes: Aprendam quais as vossas genealogias, e no sejam como os camponeses locais que, quando lhes perguntam quem so, respondem: Sou de tal stio assim e assim.

Nos primeiros sculos da era muulmana, a comunidade islmica era um nico estado com um nico governante. Mesmo depois de essa comunidade se dividir em muitos estados, o ideal de uma nica comunidade poltica islmica persistiu. Os estados eram quase todos dinsticos, com fronteiras variveis, e sem dvida significativo que, na historiografia imensamente rica do mundo islmico escrita em rabe, persa e turco, haja histrias de dinastias, de cidades e, sobretudo, do estado e da comunidade islmicos, mas no existam histrias da Prsia ou da Turquia. Estes nomes, ao contrrio de Sria, Palestina ou Iraque, no designam entidades polticas novas, mas sim velhas, com sculos de independncia e soberania. Contudo, at aos tempos modernos estes nomes tambm no existiam em rabe, persa ou turco. O nome Turquia, que designa um pas habitado por pessoas a que se chama Turcos e que fala uma lngua chamada turco, parece ajustar-se ao padro europeu normal de identificar os pases pelos nomes tnicos. Mas este nome s foi adoptado na Turquia depois da proclamao da repblica, em 1923. Prsia uma adaptao europeia, originalmente grega, do nome Pars, mais tarde Fars, que era o nome de uma provncia no oeste do Iro. Aps a conquista rabe, como no alfabeto rabe no existe a letra p, passou a ser conhecida por Fars. Do mesmo modo que o castelhano passou a chamar-se espanhol, e o toscano passou a ser italiano, tambm o farsi, o dialecto regional de Fars, veio a ser a lngua oficial do pas, mas no uso persa o nome da provncia nunca foi aplicado ao pas como um todo.

Tanto os rabes como os Turcos produziram uma vasta literatura descrevendo as suas lutas contra a Europa crist, desde as primeiras incurses rabes no sculo VII at retirada turca final, no sculo XX. Mas at era moderna, em que as ideias e as categorias europeias se tornaram dominantes, os soldados, oficiais e historiadores quase nunca se referiam aos seus opositores em termos territoriais

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ou nacionais, mas simplesmente como infiis (kfir), e algumas vezes usando termos gerais imprecisos, como Francos ou Romanos. Do mesmo modo, nunca se referiam a si prprios como rabes, Persas ou Turcos; identificavam-se como muulmanos. Esta perspectiva ajuda a explicar, entre outras coisas, a preocupao do Paquisto com os Talibs e os seus sucessores, no Afeganisto. O nome Paquisto, uma inveno do sculo XX, designa um pas que inteiramente definido pela sua religio e fidelidade ao islamismo. Em todos os outros aspectos, o pas e o povo do Paquisto fazem parte da ndia h milnios. Um Afeganisto caracterizado pela sua identidade islmica seria um aliado natural, ou mesmo um satlite, do Paquisto. Ao passo que um Afeganisto caracterizado por uma nacionalidade tnica, pelo contrrio, poderia ser um vizinho perigoso, que apresentaria reivindicaes irredentistas em relao s zonas do noroeste do Paquisto de lngua pashto, e que possivelmente at se aliaria ndia.

As referncias histria passada, e mesmo histria antiga, so um lugar-comum nos discursos pblicos. Nos anos 80 do sculo XX, durante a guerra Iro-Iraque, por exemplo, ambas as partes promoveram enormes campanhas de propaganda que frequentemente evocavam acontecimentos e personalidades que remontavam a tempos to antigos como o sculo VII, s batalhas de Qadisiyya (637 d.C.) e de Karbala (680 d.C). A batalha de Qadisiyya foi ganha pelos muulmanos rabes que invadiram o Iro, contra o exrcito defensor do x dos Persas, ainda no convertidos ao Islo, e portanto ainda pagos e infiis aos olhos dos muulmanos. Por conseguinte, ambas as partes podiam reclamar a vitria como sua: para Saddam Hussein, era a vitria dos rabes sobre os Persas, e para o Ayatollah Khomeini era a dos muulmanos sobre os infiis. As referncias a estas batalhas no eram descries ou narraes detalhadas, mas sim aluses breves e incompletas; no entanto, ambas as partes fizeram uso delas com a certeza de que seriam identificadas e compreendidas pelas suas respectivas audincias, at mesmo pelas largas percentagens dessas audincias que eram iletradas. difcil imaginar que os comunicadores de propaganda de massas do Ocidente apresentem as suas ideias por meio de aluses que se reportem a pocas to antigas, isto , heptarquia anglo-saxnica em Inglaterra ou aos monarcas carolngios em Frana. Dentro desse

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mesmo esprito, Osama bin Laden insulta o presidente Bush comparando-o a um fara, e acusa o vice-presidente Cheney e o secretrio de Estado Powell (referidos em conjunto) de terem forjado uma devastao do Iraque, atravs da Guerra do Golfo em 1991, maior do que a que foi perpetrada pelos cs mongis que em meados do sculo XIII conquistaram Bagdad e destruram o califado dos Abssidas. O conhecimento da histria no Mdio Oriente fomentado pelo plpito, pelas escolas e pelos meios de comunicao, e embora ele possa ser - e sem dvida muitas vezes - oblquo e inexacto, no entanto vivo e fortemente ressonante.

A 23 de Fevereiro de 1998, oAl-Quds al-Amb, um jornal rabe publicado em Londres, editou o texto integral de uma Declarao da Frente do Mundo Islmico para ajihad contra os judeus e os cruzados. De acordo com a publicao, a declarao fora-lhes enviada por fax assinada por Osama bin Laden e pelos lderes dos grupos djihad no Egipto, Paquisto e Bangladesh. O texto - um magnfico fragmento de prosa rabe, eloquente e por vezes potico - revela uma verso da histria que a maior parte dos ocidentais achar pouco comum. As afrontas de Bin Laden, tal como so reveladas neste documento, no so exactamente aquilo que muitos esperariam. A declarao comea com um exrdio que cita as passagens mais militantes do Coro e das palavras do profeta Maom, e depois prossegue: Desde que Deus criou a Pennsula Arbica e o seu deserto e a rodeou pelos seus mares, nunca nela aconteceu uma calamidade como estas chusmas de cruzados que por ela se espalharam como gafanhotos, cobrindo o seu cho, comendo os seus frutos e destruindo a sua vegetao; e isto num tempo em que as naes contendem contra os muulmanos como glutes que se acotovelam em volta de uma tigela de comida.

A partir daqui o texto continua, falando da necessidade de compreender a situao e de agir por forma a corrigi-la. Os factos, diz, so do conhecimento de todos, e so apresentados em trs tpicos principais.

Primeiro - H mais de sete anos que os Estados Unidos ocupam as terras do Islo no mais sagrado dos seus territrios, a Arbia, saqueando as suas riquezas, oprimindo os seus governantes, humilhando

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o seu povo, ameaando os seus vizinhos, e usando as suas bases nesta pennsula como uma ponta de lana para lutar contra os povos islmicos vizinhos.

Embora no passado alguns tenham discutido a verdadeira natureza desta ocupao, o povo da Arbia na sua totalidade j a reconheceu.

No h melhor prova disso do que a constante agresso americana contra o povo do Iraque, feita a partir da Arbia a despeito dos seus governantes, que se opem, todos eles, utilizao do seu territrio para esse fim, mas que so dominados.

Segundo - Apesar da enorme destruio infligida ao povo do Iraque s mos da aliana entre cruzados e judeus, e apesar do terrvel nmero de mortos, que excede um milho, os Americanos contudo, no obstante tudo isso, esto uma vez mais a tentar repetir essa medonha carnificina. Parece que o longo bloqueio que se seguiu a uma guerra feroz, o desmembramento e a destruio no so bastante para eles. Por isso vm hoje de novo para destruir o que resta deste povo e para humilhar os seus vizinhos muulmanos.

Terceiro - Embora os objectivos dos Americanos nestas guerras sejam de natureza religiosa e econmica, tambm servem os interesses do insignificante estado dos judeus, para desviar as atenes da sua ocupao de Jerusalm e dos assassnios de muulmanos a perpetrados.

No h melhor prova de tudo isso do que a sua nsia de destruir o Iraque, o mais forte dos estados rabes vizinhos, e a sua tentativa de desmembrar todos os estados da regio, como o Iraque, a Arbia Saudita, o Egipto e o Sudo, em pequenos estados insignificantes, cuja diviso e enfraquecimento garantiriam a sobrevivncia de Israel e a continuao da calamitosa ocupao das terras da Arbia pelos cruzados.

Estes crimes, diz o texto a seguir, equivalem a uma clara declarao de guerra dos Americanos contra Deus, o Seu profeta e os muulmanos. Em tal situao, opinio unnime do ulem ao longo dos sculos que quando os inimigos atacam as terras muulmanas, a Jihad passa a ser um dever pessoal de cada muulmano. Os signatrios citam diversas autoridades muulmanas e prosseguem para a parte final e mais importante da sua declarao, afatwa, deixando expresso que matar Americanos e os seus aliados, tanto civis como militares, um dever pessoal de todos os muulmanos que forem capazes de o fazer, em qualquer pas onde isso seja possvel,

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enquanto a mesquita Aqsa [em Jerusalm] e a mesquita Harm [em Meca] no forem libertadas das suas garras, e enquanto os seus exrcitos, destroados e sem flego, no sarem de todas as terras do Islo, incapazes de ameaar qualquer muulmano.

Depois de citar mais alguns versculos relevantes do Coro, o documento continua: Com a permisso de Deus, apelamos a todos os muulmanos que acreditam em Deus e que esperam ser recompensados por obedecer s ordens de Deus, para matarem os Americanos e saquearem os seus bens onde quer que os encontrem e sempre que puderem. Apelamos igualmente aos ulems, lderes, jovens e soldados muulmanos para lanarem ataques contra os exrcitos dos demnios americanos e contra aqueles, de entre os ajudantes de Satans, que so seus aliados. A declarao e fatwa encerram com mais uma srie de citaes das escrituras muulmanas.

A Guerra do Golfo de 1991, no comum entendimento ocidental, foi uma iniciativa dos Estados Unidos e de uma coligao de rabes e outros aliados para libertar o Koweit da invaso e ocupao por parte do Iraque, e para proteger a Arbia Saudita de um ataque do Iraque. Ver esta guerra como um ataque americano contra o Iraque pode parecer um pouco estranho, mas essa a perspectiva aceite por todos no mundo islmico. medida que a lembrana do ataque de Saddam Hussein ao Koweit se vai desvanecendo, as atenes concentram-se nas sanes contra o Iraque, nos avies americanos e ingleses a patrulhar os cus a partir de bases na Arbia, no sofrimento do povo iraquiano e, cada vez mais, no visvel apoio americano a Israel.

As trs zonas que eram objecto de queixas na declarao - Arbia, Iraque e Jerusalm - sero familiares aos observadores do cenrio do Mdio Oriente. Aquilo que pode ser menos familiar a ordem pela qual so apresentadas e a nfase com que so mencionadas. Isso no constituir surpresa para quem for versado em histria e literatura islmicas. Ns, no Ocidente, temos tendncia para esquecer que para os muulmanos a Terra Santa por excelncia a Arbia, e sobretudo a regio do Hejaz e as suas duas cidades santas - Meca, onde o Profeta nasceu, e Medina, onde ele

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fundou o primeiro estado muulmano: o pas cujo povo foi o primeiro a aderir nova religio e se tornou o seu porta-estandarte. O profeta Maom viveu e morreu na Arbia, o mesmo acontecendo com os seus sucessores imediatos, os califas, lderes da comunidade. Depois disso, com excepo de um breve perodo em que se fixou na Sria, o centro do mundo islmico e cenrio dos seus principais empreendimentos foi o Iraque, e a sua capital, Bagdad, foi a sede do califado durante meio milnio. Para os muulmanos, impensvel renunciar de modo definitivo a qualquer parcela das terras em tempos acrescentadas ao reino do Islo, mas nenhuma se compara Arbia e ao Iraque em importncia.

E dessas duas, a Arbia de longe a mais importante. Os historiadores rabes clssicos dizem-nos que no ano 20 da era muulmana, correspondente ao ano 641 d.C, o califa Umar decretou que os judeus e os cristos deviam ser retirados da Arbia, com excepo das suas orlas sul e este, em cumprimento de uma determinao do Profeta pronunciada no seu leito de morte: No permitam que haja duas religies na Arbia.

Os povos em questo eram os judeus do osis de Khaybar, a norte, e os cristos de Najran, no sul. Ambos constituam comunidades antigas e profundamente enraizadas, rabes pela lngua, cultura e estilo de vida, que apenas diferiam dos seus vizinhos na religio.

A atribuio destas palavras ao Profeta foi refutada por algumas autoridades islmicas anteriores. Mas de um modo geral foi aceite e posta em vigor. A expulso de minorias religiosas extremamente rara na histria islmica; ao contrrio do que se passou com a cristandade na Idade Mdia, para quem a expulso de judeus e, aps a reconquista, de muulmanos, era normal e frequente. Em comparao com as expulses realizadas na Europa, o decreto de Umar era no s limitado como clemente. No inclua o Sul e o Sudeste da Arbia, que no eram considerados como fazendo parte da Terra Santa islmica. E ao contrrio dos judeus e muulmanos expulsos de Espanha e de outros pases europeus, que tiveram de procurar refgio noutros lugares conforme puderam, os judeus e cristos da Arbia foram realojados em terras que lhes foram atribudas: os judeus na Sria e Palestina, e os cristos no Iraque. Alm disso, o processo foi gradual e no repentino, e h registo da presena de judeus e cristos em Khaybar e Najran durante algum tempo aps a publicao do

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decreto.

A expulso completou-se na devida altura, e desde ento at agora a Terra Santa de Hejaz tem sido territrio proibido a no-muulmanos. De acordo com a escola islmica de jurisprudncia aceite pelo estado saudita e por Osama bin Laden e seus sequazes, o simples facto de um no-muulmano pr o p no solo sagrado uma grande ofensa. No resto do reino, os no-muulmanos, embora admitidos como visitantes temporrios, no tinham autorizao para fixar residncia nem para praticar a sua religio. O porto de Jedda, no mar Vermelho, serviu durante muito tempo como uma espcie de zona de quarentena religiosa, na qual diplomatas, pessoal dos consulados e representantes comerciais estrangeiros tinham autorizao para viver numa base estritamente temporria.

A partir dos anos 30, a descoberta e explorao de petrleo e o consequente crescimento da capital saudita, Riade, que de uma pequena cidade de osis se transformou numa grande metrpole, ocasionou muitas mudanas e uma afluncia considervel de estrangeiros, predominantemente americanos, o que afectou o estilo de vida rabe em todos os seus aspectos. A sua presena, que ainda vista por muitos como uma profanao, pode ajudar a explicar o crescente sentimento de indignao.

A Arbia foi alvo de uma ameaa breve dos cruzados no sculo XII d.C. Depois da sua derrota e expulso, a ameaa dos infiis Arbia que se registou a seguir teve incio no sculo XVIII, com a consolidao do poder europeu no Sul da sia e o aparecimento de navios europeus, ou, noutras palavras, cristos, ao largo das costas da Arbia. A sensao de ultraje da resultante foi pelo menos um dos factores do despertar religioso incutido na Arbia pelo movimento wahhabita e liderado pela Casa de Saud (Suud em rabe), os fundadores do estado saudita. Durante o perodo de influncia, e depois domnio, anglo-francs no Mdio Oriente nos sculos XIX e XX, estas potncias imperiais governaram o Egipto, o Sudo, o Iraque, a Sria e a Palestina. Depenicaram nas orlas da Arbia, em Adem e no golfo Prsico, mas foram suficientemente prudentes para no terem qualquer envolvimento militar, e apenas um envolvimento poltico mnimo, nos assuntos da pennsula.

Enquanto esse envolvimento estrangeiro foi exclusivamente econmico e as recompensas foram mais do que satisfatrias para mitigar

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todos os agravos, a presena dos forasteiros era suportvel. Mas nos ltimos anos as condies do compromisso mudaram. Com a queda dos preos do petrleo e o crescimento da populao e dos gastos, as recompensas deixaram de ser satisfatrias; os agravos tornaram-se mais numerosos e mais sonoros. Nem o envolvimento se limita j s actividades econmicas. A revoluo no Iro, as ambies de Saddam Hussein e o consequente agravamento de todos os problemas da regio, sobretudo o conflito israelo-palestino, acresceram dimenses polticas e militares ao envolvimento estrangeiro, e deram uma certa plausibilidade aos gritos de imperialismo que se ouvem cada vez mais. Quando a sua Terra Santa est em causa, muitos muulmanos tendero a classificar a luta, e por vezes tambm o inimigo, em termos religiosos, e a ver as tropas americanas, enviadas para libertar o Koweit e para proteger a Arbia Saudita de Saddam Hussein, como invasores e ocupantes infiis. Esta ideia intensificada pela inquestionvel primazia da Amrica entre as potncias do mundo infiel.

Para a maioria dos Americanos, a declarao de Bin Laden uma mascarada, uma enorme distoro da natureza e do objectivo da presena americana na Arbia. E deviam tambm estar conscientes de que para muitos, talvez mesmo para a maioria dos muulmanos, aquela declarao uma mascarada igualmente grotesca da natureza do Islo, e tambm da sua doutrina Jihad. O Coro tanto fala de paz como de guerra. As centenas de milhar de tradies e de dizeres atribudos ao Profeta, com um grau de credibilidade varivel e por vezes interpretados de maneiras muito diversas, proporcionam uma vasta srie de exemplos, sendo a interpretao militante e violenta da religio um entre muitos.

Entretanto, um nmero considervel de muulmanos est pronto para aprovar, e alguns deles para pr em prtica, esta interpretao da sua religio. O terrorismo necessita apenas de alguns. Obviamente, o Ocidente deve defender-se por todos os meios que possam ser eficazes. Mas para planear os meios para combater os terroristas, seria sem dvida til compreender quais as foras que os impelem.

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I

Definio do Islo

difcil generalizar acerca do Islo. Para comear, a prpria palavra habitualmente usada com dois significados relacionados mas distintos, equivalentes a cristianismo e cristandade. Num dos sentidos designa uma religio, um sistema de f e de culto; no outro, designa a civilizao que cresceu e floresceu sob a gide dessa religio. Por conseguinte, a palavra Islo designa mais de catorze sculos de histria, 1,3 bilies de pessoas, e uma tradio religiosa e cultural de enorme diversidade. Cristianismo e cristandade representam um nmero maior e um perodo de tempo mais longo: mais de 2 bilies de pessoas, mais de vinte sculos, e uma diversidade ainda maior. Contudo, algumas generalizaes podem ser e so feitas acerca daquilo a que variavelmente se chama civilizao crist, judaico-crist, ps-crist e - de modo mais simples - civilizao ocidental. Embora generalizar acerca da civilizao islmica possa ser difcil e por vezes, num certo sentido, perigoso, no contudo impossvel, e de certo modo pode ser til.

Em termos de espao, o reino do Islo estende-se de Marrocos Indonsia, e do Cazaquisto ao Senegal. Em tempo, remonta a mais de catorze sculos atrs, ao advento e misso religiosa do profeta Maom na Arbia no sculo VII d.C, e criao, sob a sua liderana, da comunidade e do estado islmicos. No perodo que visto pelos historiadores europeus como um interldio de trevas entre as antigas civilizaes - Grcia e Roma - e o aparecimento da civilizao moderna - Europa -, o Islo era a civilizao dominante no

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mundo, caracterizada como tal pelos seus grandes e poderosos reinos, a sua indstria e comrcio ricos e diversificados, e pela originalidade e criatividade das suas cincias e letras. O Islo foi, muito mais que a cristandade, o estdio intermdio entre o Oriente antigo e o Ocidente moderno, para o qual contribuiu notavelmente. Mas durante os ltimos trs sculos, o mundo islmico perdeu o seu domnio e liderana, ficando para trs em relao ao Ocidente moderno e tambm ao Oriente em processo de modernizao rpida. Esta brecha que se alarga coloca problemas cada vez mais prementes, tanto de natureza prtica como emocional, para os quais os governantes, os pensadores e os rebeldes do Islo ainda no encontraram respostas eficazes.

O Islo, como religio, est em todos os aspectos muito mais prximo da tradio judaico-crist do que de qualquer das grandes religies da sia, como o hindusmo, o budismo e o confucionismo. O judasmo e o Islo partilham a crena numa lei divina que regula todos os aspectos da actividade humana, incluindo at a comida e a bebida. Cristos e muulmanos partilham um triunfalismo comum. Em contraste com as outras religies da humanidade, incluindo o judasmo, acreditam que somente eles so os afortunados receptores e guardies da mensagem final de Deus humanidade, que tm a obrigao de levar ao resto do mundo. Comparadas com as mais remotas religies do Leste, as trs religies do Mdio Oriente -judasmo, cristianismo e Islo - so todas estreitamente aparentadas, e surgem como variantes da mesma tradio religiosa.

A cristandade e o Islo so em muitos aspectos civilizaes irms, bebendo ambas da herana comum da revelao e da profecia judaicas e da filosofia e cincia gregas, e alimentando-se ambas das tradies imemoriais da Antiguidade no Mdio Oriente. Durante a maior parte da sua histria comum tm travado uma luta corpo-a-corpo, mas mesmo envolvidas em luta e em polmica revelam o seu parentesco essencial e os aspectos comuns que as ligam uma outra e as separam das civilizaes mais remotas da sia.

Mas do mesmo modo que h semelhanas, h tambm disparidades profundas entre elas, que vo para alm das diferenas bvias no que respeita a dogmas e ao culto. Diferenas essas que so mais profundas - e mais evidentes - nas atitudes dessas duas religies, e dos seus representantes autorizados, perante as relaes entre governo, religio e sociedade, do que em qualquer outro aspecto. O

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fundador do cristianismo ordenou aos seus seguidores: dai a Csar aquilo que de Csar; e a Deus aquilo que de Deus (Mateus, XXI 121); e durante sculos o cristianismo cresceu e desenvolveu-se como uma religio dos oprimidos, at que, com a converso do imperador Constantino ao cristianismo, o prprio Csar se tornou cristo e deu incio a uma srie de mudanas, pelas quais a nova religio conquistou o Imprio Romano e transformou a sua civilizao. O fundador do Islo foi o seu prprio Constantino, que fundou o seu estado e imprio prprios. Por conseguinte ele no criou - ou no precisou de criar - uma igreja. A dicotomia regnum e sacerdotium, to crucial na histria da cristandade do Ocidente, no teve equivalncia no Islo. Durante a vida de Maom, os muulmanos tornaram-se imediatamente uma comunidade poltica e religiosa, com o Profeta como chefe de Estado. Nessa qualidade, ele governou um lugar e um povo, exerceu a justia, cobrou impostos, comandou exrcitos, declarou a guerra e fez a paz. A primeira, e fundadora, gerao de muulmanos, cujas aventuras constituem a histria sagrada do Islo, no foi posta prova durante muito tempo atravs de perseguies nem teve uma histria de resistncia a um poder estatal hostil. Muito pelo contrrio, o estado que os governava era o do Islo, e a aprovao dada por Deus sua causa foi-lhes manifestada na forma de vitria e imprio neste mundo.

Na Roma pag, Csar era Deus. Para os cristos, h uma escolha entre Deus e Csar, e geraes infinitas de cristos foram apanhadas na ratoeira dessa escolha. No Islo no houve uma escolha dolorosa como essa. Na nao islmica universal tal como concebida pelos muulmanos, no existe Csar mas apenas Deus, que o nico soberano e a nica fonte emanadora de leis. Maom foi o Seu profeta, que ao longo da sua vida ensinou e governou em nome de Deus. Quando Maom morreu, em 632 d.C, a sua misso espiritual e proftica de levar humanidade o livro de Deus estava completa. O que faltava realizar era a tarefa religiosa de propagar a revelao de Deus at que todo o mundo a tivesse aceitado. Isto seria conseguido atravs do alargamento da autoridade, e, portanto, do nmero de membros da comunidade que abraava a verdadeira f e fazia com que a lei de Deus fosse cumprida. Para garantir a coeso e liderana necessrias a esta tarefa, era preciso um representante ou sucessor do Profeta. A palavra rabe khalifa foi o ttulo adoptado

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pelo sogro de Maom e seu primeiro sucessor, Abu Bakr, cuja ascenso chefia da comunidade islmica representou a fundao da grande instituio histrica do califado.

Sob os califas a comunidade de Medina, onde o Profeta tinha sido empossado, em apenas um sculo transformou-se num vasto imprio, e o Islo tornou-se uma religio mundial. Na experincia dos primeiros muulmanos, que foi preservada e registada para as geraes futuras, a verdade religiosa e o poder poltico estavam indissoluvelmente associados: a primeira santificava o segundo e o segundo apoiava a primeira. O Ayatollah Khomeini uma vez fez notar que o Islo ou poltica ou no nada. Nem todos os muulmanos iriam to longe, mas a maioria concordaria que Deus se ocupa de poltica, crena essa que confirmada e apoiada pela sharia, a Lei Santa, que se ocupa extensivamente da aquisio e exerccio do poder, da natureza da legitimidade e da autoridade, dos deveres do governante e do sbdito, resumindo, daquilo a que ns, no Ocidente, chamaramos lei constitucional e filosofia poltica.

A longa interaco entre Islo e cristianismo e as muitas semelhanas e influncias mtuas entre os dois tm levado por vezes os observadores a negligenciar algumas diferenas significativas. Diz-se que o Coro a Bblia muulmana; que a mesquita a igreja muulmana; que os ulems so o clero muulmano. As trs afirmaes so verdadeiras, no entanto, todas elas so seriamente enganadoras. O Antigo e o Novo Testamento so ambos constitudos por colectneas de livros vrios, abrangendo um vasto perodo de tempo e vistos pelos crentes como contendo a revelao divina. O Coro, para os muulmanos, um simples livro, feito de uma vez s por um s homem, o profeta Maom. Depois de um debate ao vivo nos primeiros sculos do Islo, foi adoptada a doutrina de que o Coro em si indestrutvel e eterno, divino e imutvel. Isto tornou-se um princpio bsico da religio.

A mesquita de facto a igreja muulmana, na medida em que um lugar de culto comunal. Mas no se pode falar da mesquita como se fala da Igreja, isto , de uma instituio com a sua prpria hierarquia e as suas leis, destacada do Estado. Os ulems (que no Iro e nos pases muulmanos influenciados pela cultura persa so conhecidos por mulas) podem ser definidos como um clero em sentido sociolgico, enquanto profissionais da religio, acreditados

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como tal atravs de instruo adequada e diploma. Mas no Islo no existe sacerdcio - no h mediao sacerdotal entre Deus e o crente, no h ordenao, nem sacramentos, nem rituais que s um clero ordenado pode celebrar. No passado poder-se-ia acrescentar que no h conclios nem snodos, nem bispos para definir a ortodoxia ou inquisidores para a fazer cumprir. Hoje isto j no inteiramente verdade, pelo menos no Iro.

A funo fundamental do ulem - deriva de uma palavra rabe que significa conhecimento - fazer cumprir e interpretar a Lei Santa. A partir de finais da Idade Mdia comeou a surgir algo semelhante a um clero paroquial, que acudia s necessidades das pessoas comuns em cidades e aldeias, mas que habitualmente nada tinha a ver com os ulems nem merecia a confiana destes, estando mais relacionado com o Islo mstico do que com o dogmtico. Nas ltimas monarquias islmicas da Turquia e do Iro apareceu uma espcie de hierarquia eclesistica, mas que no tinha razes na tradio muulmana clssica, e os membros dessas hierarquias nunca exigiram, e muito menos exerceram, os poderes dos prelados cristos. Nos tempos modernos houve muitas alteraes, sobretudo devido a influncias ocidentais, e surgiram instituies e profisses que apresentam semelhanas suspeitas com as igrejas e os clrigos cristos. Mas representam um afastamento do Islo clssico, e no um regresso a ele.

Se possvel falar de um clero no mundo islmico num sentido sociolgico limitado, de laicidade, porm, no possvel falar em sentido nenhum. A simples ideia de algo separado ou possvel de separar da autoridade religiosa, que em linguagem crist se exprime por termos como leigo, temporal ou secular, totalmente estranha ao pensamento e prtica islmicos. S em tempos relativamente recentes surgiram vocbulos equivalentes a estes em rabe. Foram copiados dos usados por cristos de lngua rabe, ou inventados recentemente.

Desde os tempos do Profeta que a sociedade islmica teve um carcter duplo. Por um lado, era uma nao - uma chefatura que se tornou sucessivamente um estado e um imprio. Por outro lado era, ao mesmo tempo, uma comunidade religiosa fundada por um profeta e governada pelos seus representantes, que eram tambm seus sucessores. Cristo foi crucificado, Moiss morreu sem ter entrado na

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terra prometida, e as crenas e atitudes dos seus seguidores religiosos continuam a ser profundamente influenciadas pela lembrana destes factos. Maom triunfou em vida, e morreu como um soberano e um conquistador. As atitudes muulmanas da resultantes s podem ter sido confirmadas pela histria posterior da sua religio. Na Europa ocidental, os invasores brbaros mas susceptveis de aprendizagem vieram para onde j existia um estado e uma religio: o Imprio Romano e a Igreja Crist. Os invasores reconheceram ambos e tentaram satisfazer os seus prprios objectivos e necessidades dentro das estruturas existentes da nao romana e da religio crist, que usavam ambas a lngua latina. Os invasores muulmano-rabes que conquistaram o Mdio Oriente e o Norte de frica trouxeram consigo a sua prpria religio, com as suas prprias escrituras escritas na sua prpria lngua; criaram a sua prpria nao, com um novo conjunto de leis, uma nova lngua imperial e uma nova estrutura imperial, com o califa como chefe supremo. Este estado e este governo foram definidos pelo Islo, e s podiam considerar-se seus membros aqueles que professavam a religio dominante.

A carreira do profeta Maom, modelo que todos os bons muulmanos desejam emular, nisso e em tudo o mais, divide-se em duas partes. Na primeira, durante os anos que passou no seu lugar de nascimento, Meca (7570-622), ele era um antagonista da oligarquia pag reinante. Na segunda, depois de se mudar de Meca para Medina (622-632), foi o chefe de um Estado. Estas duas fases da carreira do Profeta, uma de resistncia e outra de governao, esto ambas reflectidas no Coro, onde, em diferentes captulos, se ordena aos crentes que obedeam ao representante de Deus e desobedeam ao fara, paradigma do governante injusto e tirano. Esses dois aspectos da vida e do trabalho do Profeta inspiraram duas tradies no Islo: uma autoritria e quietista, e outra radical e activista. Ambas esto amplamente reflectidas, por um lado no desenvolvimento da tradio, e por outro no desenrolar dos acontecimentos. Nem sempre foi fcil determinar quem era o representante de Deus e quem era o fara; muitos livros foram escritos e muitas batalhas se travaram, na tentativa de o fazer. O problema persiste, e ambas as tradies so ainda claramente visveis nas polmicas e lutas dos nossos dias.

Entre os extremos do quietismo e do radicalismo existe uma atitude de reserva, e mesmo de desconfiana, em relao ao governo,

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muito difundida e bastante explcita. Exemplo disso a diferena ntida de atitude que era comum, na poca medieval, para com o qadi, um juiz, e o mufti, um jurisconsulto segundo a Lei Santa. O qadi, que era nomeado pelo chefe do governo, apresentado na literatura e no folclore como uma figura corrupta e at ridcula; o mufti, institudo no Islo medieval com o reconhecimento dos seus colegas e da populao em geral, gozava de considerao e respeito. Um topos das biografias de homens piedosos - que temos s centenas de milhar - ser oferecida ao heri uma nomeao para o governo e ele recusar. A oferta comprova a sua erudio e reputao, e a recusa, a sua integridade.

Na poca otomana deu-se uma mudana importante. O qadi adquiriu muito mais poder e autoridade, e mesmo o mufti foi integrado no quadro pblico de autoridade. Mas a velha atitude de desconfiana para com o governo persistiu, e frequentemente expressa em provrbios, contos populares e at na literatura erudita.

Durante mais de mil anos, o Islo proporcionou o nico conjunto de regras e princpios universalmente aceitveis para regulamentar a vida pblica e social. Mesmo durante o perodo de mxima influncia europeia, nos pases governados ou dominados pelas potncias imperiais europeias e tambm naqueles que se mantiveram independentes, as ideias e atitudes polticas islmicas continuaram a ter uma influncia profunda e difusa. Em anos recentes tem havido muitos sinais de que estas ideias e atitudes podem estar a recuperar a sua antiga influncia, embora sob formas alteradas.

no campo da poltica - tanto nacional, como regional ou internacional - que ns observamos as mais notveis diferenas entre o Islo e o resto do mundo. Os chefes de Estado ou ministros dos Negcios Estrangeiros dos pases escandinavos e do Reino Unido no se renem de tempos em tempos em conferncias de lderes protestantes, nem nunca foi prtica corrente dos governantes da Grcia, Jugoslvia, Bulgria e Unio Sovitica realizar encontros regulares, com base na sua actual ou passada adeso Igreja Ortodoxa, esquecendo temporariamente as suas divergncias polticas e ideolgicas. De modo anlogo, os estados budistas do Este e Sudeste

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da sia no constituem um bloco budista nas Naes Unidas, nem em nenhuma das suas actividades polticas. A simples ideia de agrupamentos desse gnero, baseados na religio, no mundo actual pode parecer anacrnica e at absurda. Mas no que respeita ao Islo, no anacrnica nem absurda. Durante os tempos de tenso da guerra fria e mesmo depois, mais de cinquenta governos muulmanos - incluindo monarquias e repblicas, conservadores e radicais, regimes capitalistas e socialistas, apoiantes do bloco do Ocidente, o bloco do Oriente, e um conjunto de diversos graus de neutralidade - constituram um elaborado organismo de consulta, e em muitos casos de cooperao, internacional.

Em Setembro de 1969, numa conferncia de lderes islmicos realizada em Rabat, Marrocos, decidiu-se criar um organismo a que se chamaria Organizao da Conferncia Islmica (OCI), com um secretariado permanente em Jedda, na Arbia Saudita. Esse organismo foi devidamente criado e desenvolveu-se rapidamente na dcada de 70. A OCI preocupava-se sobretudo com a ajuda aos pases muulmanos pobres, o apoio s minorias muulmanas em pases no-muulmanos, e com a situao internacional do Islo e dos muulmanos - os direitos islmicos do homem, nas palavras de um observador.

Essa organizao conta agora com cinquenta e sete estados membros, mais trs com o estatuto de observadores. Dois desses estados, a Albnia e a Turquia, esto ou aspiram a estar na Europa (a Bosnia tem apenas estatuto de observador); outros dois, o Suriname (admitido em 1996) e a Guiana (admitida em 1998), situam-se no hemisfrio ocidental. Os restantes situam-se na sia e na frica, e, com poucas excepes, obtiveram no ltimo meio sculo a independncia de pases da Europa ocidental ou, mais recentemente, do imprio sovitico. A maior parte deles so esmagadoramente muulmanos em termos de populao, mas alguns foram admitidos com base nas suas significativas minorias muulmanas. Alm destes estados, existem minorias muulmanas importantes noutros pases - algumas delas semelhantes maioria, como na ndia, outras tnica e religiosamente diferentes, como os Tchetchenos e os Trtaros da Federao Russa. Alguns pases, como a China, tm minorias muulmanas dessas duas categorias. Vrios outros pases esto agora a adquirir minorias muulmanas atravs da imigrao.

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Houve e continua a haver limites importantes eficcia da OCI como factor da poltica internacional. A invaso sovitica do Afeganisto em 1979, um acto flagrante de agresso contra uma nao muulmana soberana, no suscitou protestos srios e foi at defendida por alguns estados membros. Mais recentemente, a organizao no mostrou qualquer interesse pelas guerras civis ocorridas em estados membros como o Sudo e a Somlia. A sua folha de servios no que toca a questes regionais tambm no impressionante. Entre 1980 e 1988, dois pases islmicos, o Iraque e o Iro, travaram uma guerra devastadora, tendo infligido um ao outro danos enormes. A OCI nada fez para evitar essa guerra nem para lhe pr fim. Dum modo geral, a OCI, ao contrrio da Organizao dos Estados Americanos e da Organizao da Unidade Africana, no d ateno s violaes dos direitos humanos e outros problemas internos dos estados membros; as suas preocupaes com os direitos humanos tm-se limitado aos muulmanos que vivem em estados no-muulmanos, sobretudo na Palestina. Contudo, a OCI no pode ser menosprezada. As suas actividades culturais e sociais so importantes e esto em crescimento, e os mecanismos que ela proporciona para uma regular troca de impresses entre os estados membros pode crescer em importncia medida que a guerra fria e o factor de separao que ela representava se diluem no passado.

Passando da poltica internacional e regional para a interna, a diferena entre o Islo e o resto do mundo, embora menos notvel, ainda assim substancial. Em alguns dos pases que tm regimes de democracia multipartidria, h partidos polticos que tm designaes religiosas - crists no Ocidente, hindus na ndia, e budistas no Oriente. Mas esses partidos so em nmero relativamente reduzido, e aqueles que desempenham um papel de relevo so ainda menos. E mesmo nestes, os temas religiosos so habitualmente de pouca importncia nos seus programas e nas suas formas de atrair o eleitorado. Contudo, em muitos pases islmicos, alis na maior parte deles, a religio continua a ser um factor poltico fundamental - muito mais, de facto, nos assuntos internos, do que nos internacionais ou nos regionais. Porqu tal diferena?

H uma resposta que bvia: os pases muulmanos, na sua maioria, so ainda profundamente muulmanos, duma forma e num sentido que os pases cristos, na sua maior parte, j no so cristos.

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Temos de reconhecer que em muitos desses pases a f crist e o clero que a defende ainda representam uma fora poderosa, e embora o seu papel j no seja o que foi em sculos passados, no se pode dizer que insignificante. Mas actualmente, no h nenhum pas cristo em que os lderes religiosos possam contar com o grau de f e de participao que continua a ser normal em terras muulmanas. Em poucos pases cristos, ou mesmo em nenhum, os valores sagrados cristos gozam de imunidade ao comentrio ou discusso crtica que aceite como normal at nas sociedades muulmanas ostensivamente seculares e democrticas. Com efeito, essa imunidade privilegiada foi alargada aos pases ocidentais onde existem agora comunidades muulmanas, e onde a f e as prticas religiosas muulmanas gozam de um nvel de imunidade crtica que as maiorias crists perderam e as minorias judaicas nunca tiveram. Particularmente importante o facto de, com muito poucas excepes, o clero cristo no exercer e nem sequer reclamar a espcie de autoridade pblica que ainda normal e aceite na maioria dos pases muulmanos.

O nvel mais elevado de f e de prtica religiosa entre os muulmanos em comparao com os crentes de outras religies explica em parte a atitude nica dos muulmanos em relao poltica; no constitui a explicao completa, pois pode-se encontrar a mesma atitude em indivduos e at em grupos cuja relao com a f e a prtica religiosa , no mnimo, negligente. O Islo no apenas uma questo de f e de prtica religiosa; tambm uma identidade e uma lealdade - para muitos, uma identidade e uma lealdade que transcende qualquer outra.

A superfcie, a importao das noes ocidentais de patriotismo e nacionalismo alterou tudo isto e levou criao de uma srie de modernos estados-nao que se estendem atravs do mundo islmico, de Marrocos Indonsia.

Mas nem tudo aquilo que superfcie parece ser. Dois exemplos devem bastar. Em 1923, depois da ltima guerra greco-turca, os dois governos concordaram em resolver os seus problemas de minorias com uma troca de populaes: foram enviados Gregos da Turquia para a Grcia, e Turcos da Grcia para a Turquia. Pelo menos, assim que os livros de histria costumam contar o episdio. Os factos foram um pouco diferentes. O protocolo que os dois governos assinaram

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em Lausana em 1923, que inclua o acordo de troca, no fala em Gregos e Turcos. Designa as pessoas a trocar por sbditos turcos de religio ortodoxa grega residentes na Turquia e sbditos gregos de religio muulmana residentes na Grcia. Por conseguinte, o protocolo reconhece apenas dois tipos de identidade: uma definida pelo facto de se ser sbdito de um estado, e outra por se ser crente de uma religio. No faz qualquer referncia a nacionalidade tnica ou lingustica. A preciso com que este documento expressa as intenes dos signatrios foi confirmada pela troca efectiva. Muitos dos chamados Gregos da provncia turca de Karaman, na Anatlia, tinham o turco como lngua materna, mas escreviam-no em caracteres gregos e praticavam o culto em igrejas ortodoxas. Muitos dos chamados Turcos da Grcia sabiam pouco ou nada de turco e habitualmente falavam grego, mas escreviam-no em caracteres turco-rabes. Um observador ocidental, acostumado a um mtodo de classificao ocidental, poderia muito bem ter concludo que aquilo que os governos da Grcia e da Turquia acordaram e cumpriram no foi uma troca e repatriamento de minorias nacionais gregas e turcas, mas sim uma dupla deportao para o exlio - de Gregos muulmanos para a Turquia e de Turcos cristos para a Grcia. At muito recentemente a Grcia e a Turquia, duas democracias em processo de ocidentalizao, uma delas membro da Unio Europeia e a outra aspirante a s-lo, tinham nos seus documentos de identificao emitidos pelo Estado uma linha para a religio.

O segundo exemplo o Egipto. Poucas naes haver, se que h alguma, com mais direito a reivindicar o estatuto de nao: um pas claramente definido tanto pela histria como pela geografia, com uma histria de civilizao contnua que remonta a mais de cinco mil anos atrs. Mas os Egpcios tm vrias identidades, e durante a maior parte dos ltimos catorze sculos, ou seja, desde a conquista rabo-islmica do Egipto no sculo VII e a subsequente islamizao e arabizao do pas, a identidade egpcia raramente foi a predominante, concedendo essa honra identidade cultural e lingustica do arabismo e, durante a maior parte da sua histria, identidade religiosa do Islo. O Egipto, como nao, uma das mais velhas do mundo. Como estado-nao o Egipto uma instituio moderna, e enfrenta ainda muitos desafios internos. Actualmente, o mais forte desses desafios, tanto no Egipto como noutros pases

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muulmanos, constitudo pelos grupos radicais islmicos hoje vulgarmente designados, ainda que erroneamente, por fundamentalistas.

Desde os tempos do seu fundador, e portanto das suas sagradas escrituras, que o Islo est associado, nas mentes e na memria dos muulmanos, ao exerccio do poder poltico e militar. O Islo clssico reconhecia uma distino entre as coisas deste mundo e as do outro, entre consideraes de natureza religiosa e de natureza mundana. No reconhecia uma instituio parte, com uma hierarquia e leis prprias, para regulamentar as questes religiosas.

Significa isto que o Islo uma teocracia? No sentido em que Deus visto como o soberano supremo, a resposta teria de ser sim. No sentido de um governo exercido por um clero, a resposta definitivamente no. O aparecimento de uma hierarquia clerical que assumiu a autoridade suprema dentro do estado uma inovao recente e um contributo sem paralelo do falecido Ayatollah Khomeini, do Iro, para o pensamento e os usos islmicos.

A Revoluo Islmica no Iro, tal como as Revolues Francesa e Russa, com as quais tem muitas semelhanas, teve um impacte tremendo no s no prprio pas e no seu povo, mas tambm em todos os pases e povos com os quais partilhava um universo comum de raciocnio. Como aconteceu com as Revolues Francesa e Russa nos seus tempos, originou uma esperana e um entusiasmo extraordinrios. Tal como aquelas revolues, passou pelo seu Terror e pela sua Guerra de Interveno; semelhana delas, tem os seus jacobinos e bolcheviques, determinados a esmagar qualquer sinal de pragmatismo ou moderao. E tal como essas revolues anteriores, sobretudo a russa, possui a sua rede prpria de agentes e emissrios que se esforam de diversas maneiras para promover a causa da revoluo ou, pelo menos, do regime que visto como a sua encarnao.

A palavra revoluo tem sido usada muito abusivamente no Mdio Oriente moderno, sendo aplicada - ou reivindicada a sua aplicao - a muitos acontecimentos que seriam designados de modo mais adequado pela expresso francesa coup detat, a alem Putsch, ou a espanhola pronunciamiento. A experincia poltica dos povos de lngua inglesa, curiosamente, no dispe de um vocbulo

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equivalente. O que aconteceu no Iro no foi nada disso, mas nas suas origens foi um autntico movimento revolucionrio de mudana. Como as suas antecessoras, correu muito mal em muitos aspectos, tendo levado tirania no pas e ao terror e subverso fora dele. Ao contrrio da Frana e da Rssia revolucionrias, ao Iro revolucionrio faltam os meios, os recursos e as competncias para se tornar uma grande potncia e uma ameaa mundial. A ameaa que ele representa recai em primeiro lugar e de maneira esmagadora sobre os muulmanos e o prprio Islo.

A onda revolucionria do Islo tem vrias componentes. Uma delas um sentimento de humilhao: o sentimento de uma comunidade de indivduos habituados a considerarem-se os nicos guardies da verdade de Deus, encarregados por Ele de a levarem aos infiis, que de repente se vem dominados e explorados por esses mesmos infiis e, mesmo quando j no dominados, ainda profundamente afectados de uma maneira que altera as suas vidas, afastando-os dos verdadeiros caminhos do Islo para outros caminhos. humilhao juntou-se a frustrao medida que as vrias solues, a maior parte delas importadas do Ocidente, foram sendo experimentadas e uma aps outra falharam.

Depois da humilhao e da frustrao veio uma terceira componente, necessria ao ressurgimento: uma nova confiana e sensao de poder. Teve origem na crise do petrleo de 1973, quando, em apoio guerra do Egipto contra Israel, os pases rabes produtores de petrleo usaram o fornecimento e o preo do petrleo como aquilo que comprovadamente foi uma arma muito eficaz. A riqueza, o orgulho e a autoconfiana da resultantes foram reforados por outro elemento novo: o desprezo. Relacionando-se mais de perto com a Europa e a Amrica, os visitantes muulmanos comearam a ver e a descrever aquilo que viam como a depravao moral e consequente fraqueza da civilizao ocidental.

Numa poca de tenses intensas, de ideologias vacilantes, de lealdades desgastadas e instituies a desmoronarem-se, uma ideologia expressa em termos islmicos oferecia vrias vantagens: uma base comovedoramente familiar de identidade de grupo, solidariedade e excluso; uma base aceitvel de legitimidade e autoridade; e uma formulao de princpios de compreenso imediata para uma crtica do presente e um programa para o futuro. Atravs delas, o Islo

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podia proporcionar os mais eficazes smbolos e slogans de mobilizao, a favor ou contra uma causa ou um regime.

Os movimentos islmicos tm ainda outra vantagem enorme em relao a toda a concorrncia. Nas mesquitas, dispem de uma rede de associao e de comunicao que nem o governo mais ditatorial consegue controlar totalmente. Com efeito, as ditaduras implacveis favorecem-nos de modo no intencional, por eliminarem os concorrentes que se lhes opem.

O islamismo radical, a que se tornou usual chamar fundamentalismo islmico, no um movimento homogneo nico. H muitos tipos de fundamentalismo islmico em vrios pases e por vezes at no mesmo pas. Alguns so patrocinados pelo Estado - fundados, usados e promovidos por um ou outro governo muulmano para servir os seus objectivos; outros so movimentos populares genunos vindos de baixo. Entre os movimentos islmicos patrocinados pelo Estado h-os de vrias espcies, radicais e conservadores, subversivos e dissuasores. Os movimentos conservadores e dissuasores foram iniciados por governos no poder que procuravam proteger-se da onda revolucionria. Trata-se de movimentos encorajados em pocas diversas pelos Egpcios, Paquistaneses e, sobretudo, pelos sauditas. A outra espcie de movimentos, de importncia muito maior, vem de baixo, tem uma base popular autntica. O primeiro desses movimentos a tomar o poder e que o exerceu com mais xito foi o movimento conhecido como revoluo islmica no Iro. Regimes islmicos radicais esto actualmente no poder no Sudo e governaram durante algum tempo o Afeganisto, e os movimentos islmicos representam uma maior ameaa ordem existente em outros pases, especialmente a Arglia e o Egipto, j de si em risco.

Os fundamentalistas muulmanos, ao contrrio dos grupos protestantes cujo nome foi transferido para eles, no diferem da corrente principal em questes de teologia e na interpretao das escrituras. A sua crtica , num sentido mais amplo, social. O mundo islmico, na sua opinio, tomou a via errada. Os seus lderes chamam a si mesmos muulmanos e fazem uma simulao do Islo, mas na verdade so apstatas que aboliram a Lei Santa e adoptaram leis e costumes estrangeiros e infiis. Para eles, a nica soluo um regresso ao estilo de vida muulmano autntico, e para isso o afastamento dos governos apstatas um primeiro passo essencial.

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Os fundamentalistas so anti-ocidentais na medida em que vem o Ocidente como a fonte do mal que est a corromper a sociedade muulmana, mas o seu ataque principal dirigido contra os seus prprios governantes e lderes. Foram movimentos como esses que levaram a cabo a deposio do x do Iro em 1979 e o assassinato do presidente Sadat do Egipto dois anos depois. Eram ambos vistos como sintomas de um mal mais profundo que tinha de ser corrigido atravs de uma purificao interior. No Egipto assassinaram o lder mas no conseguiram apoderar-se do pas; no Iro destruram o regime existente e criaram o deles.

O Islo uma das grandes religies do mundo. Conferiu dignidade e sentido a vidas infelizes e empobrecidas. Ensinou homens de raas diferentes a viver em fraternidade, e pessoas de credos diferentes a viver lado a lado num clima razovel de tolerncia. Inspirou uma grande civilizao em que outros que no s os muulmanos viveram vidas criativas e teis e que, com esse feito, enriqueceram o mundo inteiro. Mas o Islo, como outras religies, tambm passou por perodos em que inspirou em alguns dos seus seguidores sentimentos de dio e violncia. Por infelicidade nossa temos de nos confrontar com o mundo muulmano quando ele atravessa um desses perodos, e quando a maior parte desse dio - embora de modo nenhum todo ele - dirigido contra ns.

Porqu? No devemos exagerar as dimenses do problema. O mundo muulmano est longe de ser unnime na sua rejeio do Ocidente, assim como as regies muulmanas do Terceiro Mundo no tm estado ss na sua hostilidade. Ainda h um nmero significativo de muulmanos, que em algumas regies talvez sejam uma maioria, com os quais partilhamos certas crenas e aspiraes bsicas de natureza cultural e moral, ou social e poltica; ainda h uma presena ocidental significativa - cultural, econmica, diplomtica - em terras muulmanas, algumas das quais so aliadas do Ocidente. Mas existe uma onda de dio que angustia, alarma e sobretudo confunde os Americanos.

Muitas vezes esse dio ultrapassa o nvel de hostilidade para com interesses ou aces especficos, polticas ou mesmo pases, e

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transforma-se numa rejeio da civilizao ocidental como tal, no tanto por aquilo que ela faz como por aquilo que ela , e pelos princpios e valores que ela pratica e professa. Estes so vistos, de facto, como um mal inato, e aqueles que os promovem ou aceitam so vistos como os inimigos de Deus.

Esta frase, que ocorre com tanta frequncia nas declaraes dos lderes do Iro, tanto nos seus processos judiciais como nos discursos polticos, devem parecer muito estranhos ao outsider moderno, seja ele religioso ou leigo. A ideia de que Deus tem inimigos, e necessita da ajuda humana para os identificar e se desembaraar deles, um bocado difcil de assimilar. Contudo, no assim to estranha. O conceito de inimigos de Deus familiar na Antiguidade pr-clssica e clssica, e tanto no Antigo como no Novo Testamento e no Coro.

No Islo, a luta entre o bem e o mal adquiriu, desde o incio, dimenses polticas e tambm militares. Maom, como se lembraro, no foi apenas um profeta e um professor, como os fundadores de outras religies; foi tambm um governante e um soldado. Por isso a sua luta envolveu um estado e respectivas foras armadas. Se os combatentes da guerra pelo Islo, a guerra santa na senda de Deus, lutam por Deus, quer dizer que os seus adversrios lutam contra Deus. E como Deus , em princpio, o soberano, o chefe supremo do estado islmico, tendo o Profeta, e aps o Profeta os califas, como Seus vice-gerentes, ento Deus como soberano comanda o exrcito. O exrcito o exrcito de Deus, e o inimigo o inimigo de Deus. O dever dos soldados de Deus despachar os inimigos de Deus o mais depressa possvel para o lugar onde Deus os h-de punir, ou seja, o outro mundo.

A pergunta-chave que ocupa os polticos ocidentais actualmente pode ser posta de maneira simples: o Islo, fundamentalista ou de qualquer outra espcie, uma ameaa para o Ocidente? A esta simples pergunta foram dadas vrias respostas simples, e como prprio das respostas simples, na sua maioria so enganadoras. De acordo com uma escola de pensamento, aps o colapso da Unio Sovitica e do movimento comunista, o Islo e o fundamentalismo islmico substituram-nos como a principal ameaa para o Ocidente e o estilo de vida ocidental. Segundo outra escola de pensamento, os muulmanos, incluindo os fundamentalistas radicais, so basicamente

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pessoas decentes, amantes da paz e piedosas, algumas das quais perderam a pacincia com todas as coisas horrveis que ns, os do Ocidente, lhes fizemos. Ns decidimos v-los como inimigos porque temos uma necessidade psicolgica de um inimigo que substitua a defunta Unio Sovitica.

Ambos os pontos de vista contm elementos verdadeiros, e ambos esto perigosamente errados. O Islo em si mesmo no um inimigo do Ocidente, e h um nmero crescente de muulmanos, tanto l como aqui, que tudo o que mais desejam um relacionamento mais prximo e mais amigvel com o Ocidente e a criao de instituies democrticas nos seus prprios pases. Porm, um nmero significativo de muulmanos - sobretudo mas no s aqueles a quem chamamos fundamentalistas - so hostis e perigosos, no porque ns precisemos dum inimigo mas sim porque eles precisam.

Em anos recentes, deram-se algumas mudanas de discernimento e, consequentemente, de tcticas por parte dos muulmanos. Alguns deles ainda vem o Ocidente em geral, e em particular o seu actual lder, os Estados Unidos, como o velho e irreconcilivel inimigo do Islo, o verdadeiro obstculo restaurao da f e da lei de Deus nos seus pases e ao seu triunfo universal definitivo. Para estes, o nico caminho a guerra at morte, em cumprimento daquilo que eles consideram os mandamentos da sua religio. Outros h que, embora sejam muulmanos convictos e cientes dos defeitos da sociedade ocidental moderna, no entanto reconhecem tambm os seus mritos - o seu esprito investigador que produziu a cincia e a tecnologia modernas, a sua preocupao com a liberdade que originou os modernos governos democrticos. Estes, embora conservando as suas crenas e a sua cultura, procuram juntar-se a ns na tentativa de alcanar um mundo mais livre e melhor. H ainda outros que, embora considerando o Ocidente o seu inimigo derradeiro e a fonte de todos os males, todavia esto conscientes do seu poder e pretendem um alojamento temporrio, para melhor se prepararem para a luta final. Temos de ser prudentes para no confundir os segundos com os terceiros.

II

A Casa da Guerra

Ao longo da histria da humanidade, muitas civilizaes surgiram e desapareceram - China, ndia, Grcia, Roma, e, antes delas, as antigas civilizaes do Mdio Oriente. Durante os sculos que na histria europeia so designados por Idade Mdia, a civilizao mais avanada do mundo era sem dvida a do Islo. Pode ter sido igualada - ou mesmo ultrapassada em alguns aspectos - pela ndia e pela China, mas estas ficaram limitadas essencialmente a uma regio e a um grupo tnico, e o seu impacte no resto do mundo foi proporcionalmente reduzido. A civilizao do Islo, pelo contrrio, tinha uma viso ecumnica do mundo e era-o explicitamente nas suas aspiraes.

Uma das tarefas bsicas deixadas em testamento aos muulmanos pelo Profeta foi jihad. Esta palavra vem da raiz rabe j-h-d, que basicamente significa empenho ou esforo. Em textos clssicos frequentemente usada com um significado muito prximo de luta, e a partir da tambm de combate. E citada com frequncia na frase do Coro: lutando na senda de Deus (p. ex.: IX, 24; LX, 1; etc.), e tem sido variamente interpretada como significando luta moral ou luta armada. Normalmente muito fcil compreender pelo contexto qual destes cambiantes de significado se pretendeu dar-lhe. No Coro a palavra ocorre muitas vezes, com estes dois sentidos distintos mas relacionados. Nos primeiros captulos, que datam do perodo de Meca, quando o Profeta ainda era o lder de um grupo minoritrio que lutava contra a oligarquia pag dominante, a palavra tem frequentemente

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o significado, apoiado pelos exegetas modernistas, de luta moral. Nos ltimos captulos, publicados em Medina, onde o Profeta era chefe de Estado e comandava o exrcito, habitualmente tem uma conotao explicitamente mais prtica. Em muitos, o sentido militar inequvoco. Encontra-se um bom exemplo em IV, 95: Aqueles de entre os crentes que ficarem em casa, para alm dos incapacitados, no so iguais queles que lutam na senda de Deus com os seus bens e as suas pessoas. Deus colocou aqueles que lutam com os seus bens e as suas pessoas num nvel mais elevado do que aqueles que ficam em casa. Deus prometeu recompensa a todos os que crem, mas Ele distingue aqueles que combatem, acima daqueles que ficam em casa, com uma recompensa grandiosa. Conceitos semelhantes encontram-se em: VIII, 72; IX, 41, 81, 88; LXVI, 9; etc.

Alguns muulmanos modernos, sobretudo quando se dirigem ao mundo exterior, explicam o dever da jihad em sentido espiritual e moral. A esmagadora maioria das autoridades do passado, citando as passagens relevantes do Coro, os comentrios e as tradies do Profeta, discutem a jihad em termos militares. De acordo com a lei islmica, legtimo fazer guerra contra quatro tipos de inimigos: infiis, apstatas, rebeldes e bandidos. Embora esses quatro tipos de guerra sejam legtimos, s os dois primeiros contam como jihad. A jihad , pois, uma obrigao religiosa. Discutindo acerca da obrigao da guerra santa, os juristas muulmanos clssicos fazem distino entre guerra ofensiva e defensiva. Na ofensiva, a jihad uma obrigao da comunidade muulmana como um todo, e portanto pode ser executada por voluntrios e profissionais. Numa guerra defensiva, ela torna-se uma obrigao de todo o indivduo fisicamente apto. Foi este princpio que Osama bin Laden invocou na sua declarao de guerra contra os Estados Unidos.

Durante a maior parte dos catorze sculos de histria muulmana registada, a jihad foi geralmente interpretada como luta armada para a defesa ou o avano do poder muulmano. Na tradio muulmana, o mundo est dividido em duas casas: a Casa do Islo {Dar al-Islm), onde os governantes muulmanos governam e a lei muulmana impera, e a Casa da Guerra (Dr al-Harb), que o resto do mundo ainda habitado e, mais importante ainda, governado pelos infiis. O que se presume que o dever da jihad continuar a ser exercido, interrompido apenas por trguas temporrias, at que

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todo o mundo adopte a religio muulmana ou se submeta ao domnio muulmano. Aqueles que lutam na jihad habilitam-se a recompensas nos dois mundos - o saque neste, e o paraso no outro. Nesta questo, como em tantas outras, a orientao do Coro ampliada e elaborada nas hadiths, ou seja, nas tradies relativas s aces e elocues do Profeta. Muitas delas tm a ver com a guerra santa. Seguem-se alguns exemplos.

A jihad o vosso dever sob qualquer governante, seja ele piedoso ou inquo.

Um dia e uma noite de combate na fronteira melhor do que um ms de jejum e orao.

A ferroada de uma formiga magoa mais um mrtir do que a estocada de uma arma, pois estas so mais agradveis para ele do que a gua doce e fresca num dia quente de Vero.

Aquele que morre sem ter tomado parte numa campanha morre como se fosse um descrente.

Deus admira-se com as pessoas [aqueles a quem o Islo, imposto pela conquista] que so arrastadas para o paraso acorrentadas.

Aprendam a disparar, pois o espao entre o alvo e o archeiro um dos jardins do paraso.

O paraso est na sombra das espadas.

As tradies tambm estabelecem algumas regras de guerra para o desempenho da jihad:

Tenham o cuidado de tratar bem os prisioneiros. O saque no mais legtimo que o cadver. Deus proibiu que se matem mulheres e crianas. Os muulmanos esto vinculados aos seus acordos, desde que estes sejam legtimos.

Os tratados jurdicos clssicos sobre a sharia contm normalmente um captulo acerca da jihad, entendida no sentido militar, como uma guerra regular contra infiis e apstatas. Mas esses tratados preceituam o comportamento correcto e o respeito pelas regras de guerra, em questes como a abertura e o encerramento das hostilidades e a forma de tratar os no combatentes e os prisioneiros, para no falar nos representantes diplomticos.

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Na maior parte da histria escrita do Islo, desde o tempo de vida do profeta Maom em diante, a palavra jihd foi usada num sentido basicamente militar. Maom iniciou a sua misso proftica em Meca, lugar onde nasceu, mas devido perseguio que ele e os seus seguidores sofreram s mos da oligarquia pag que governava aquela cidade, mudaram-se para a cidade de Medina, onde foram bem-recebidos pelas tribos locais, que deram ao Profeta o cargo de arbitrador e depois de governador. Em rabe, esta mudana conhecida por Hijra, por vezes escrita na forma ortograficamente errada Hegira, e erradamente traduzida por fuga. A era muulmana comea no incio do ano rabe em que teve lugar a Hijra. A primeira jihad foi empreendida pelo Profeta contra os governantes da sua cidade natal e terminou com a conquista de Meca no ms do Ramado do ano 8 da Hijra, que corresponde a Janeiro de 630 da era crist. Os lderes de Meca renderam-se quase sem luta, e aos habitantes da cidade, excluindo aqueles que eram acusados de ofensas especficas contra o Profeta ou contra algum muulmano, foi concedida imunidade para as suas vidas e bens, desde que se comportassem de harmonia com o acordo. A tarefa seguinte foi o alargamento do domnio muulmano ao resto da Arbia e, sob a autoridade dos califas, sucessores do Profeta, ao resto do mundo.

Nos primeiros sculos da era islmica isso pareceu ser um resultado possvel ou mesmo provvel. Dentro de um espao de tempo bastante curto os exrcitos muulmanos triunfantes tinham derrubado o antigo imprio da Prsia e anexado todos os seus territrios aos domnios do califado, abrindo caminho invaso da sia Central e da ndia. Para ocidente, o Imprio Bizantino ainda no tinha sido derrubado, mas j fora despojado de grande parte dos seus territrios. As ento provncias crists da Sria, Palestina, Egipto e Norte de frica foram absorvidas e em devido tempo islamizadas e arabizadas, e serviram de bases para a sequente invaso da Europa e conquista da Espanha e de Portugal, e de grande parte do sul de Itlia. Em incios do sculo VIII, os exrcitos rabes vitoriosos atravessavam os Pirenus, penetrando em Frana.

Aps vrios sculos de vitrias quase ininterruptas, a jihad foi finalmente detida e repelida pela Europa crist. No Oriente, os Bizantinos resistiram na grande cidade crist de Constantinopla, repelindo uma srie de ataques rabes. No Ocidente teve incio o longo

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e moroso processo conhecido na histria de Espanha como a Reconquista, que por fim levou expulso dos muulmanos dos territrios que tinham conquistado em Itlia e na Pennsula Ibrica. Foi igualmente empreendida uma tentativa de levar a Reconquista at ao Mdio Oriente, a fim de recuperar a terra onde Cristo nasceu, conquistada pelos muulmanos no sculo VII. Essa tentativa, conhecida por Cruzadas, falhou completamente, e os cruzados foram repelidos em fuga desordenada.

Mas a jihad no tinha terminado. Uma nova fase foi iniciada, desta vez no por rabes mas por mais recentes convertidos ao Islo, os Turcos e os Trtaros. Estes conseguiram conquistar a Anatlia, at ali terra crist, e em Maio de 1453 tomaram Constantinopla, que a partir de ento passou a ser a capital dos sultes otomanos, sucessores do antigo califado na liderana da jihad islmica. Os Otomanos nos Balcs e os Trtaros islamizados na Rssia renovaram a tentativa de conquistar a Europa, desta vez a partir do Leste, e durante um certo tempo pareceu que o sucesso estava vista.

Mas uma vez mais a Europa crist conseguiu expulsar os invasores, e de novo, desta vez com mais sucesso, contra-atacou os domnios do Islo. Por esta altura a jihad tinha-se tornado quase unicamente defensiva - resistindo Reconquista em Espanha e na Rssia e aos movimentos de libertao nacional dos sbditos cristos do Imprio Otomano, e por fim, segundo o ponto de vista dos muulmanos, defendendo o corao das terras do Islo do ataque dos infiis. Esta fase veio a ser conhecida por imperialismo.

Mesmo neste perodo de retirada, a jihad ofensiva no foi de modo nenhum abandonada. J em 1896, os Afegos invadiram a regio montanhosa do Hindukush, que fica actualmente no Nordeste do Afeganisto. At essa altura os seus habitantes no eram muulmanos e por isso a regio era conhecida pelos muulmanos como Kafiristo - Terra dos Infiis. Depois da conquista afeg passou a ser chamada Nuristo - Terra da Luz. Durante o mesmo perodo, diversos gneros de jihads foram levados a cabo em frica, contra populaes no-muulmanas. Mas na sua maioria, o conceito, a prtica e a experincia da jihad no mundo islmico moderno tm sido esmagadoramente defensivos.

O uso predominantemente militar do vocbulo manteve-se at tempos relativamente recentes. No Imprio Otomano a cidade de

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Belgrado, base avanada da guerra contra os Austracos, recebeu o ttulo condizente de Dar al-Jihd (Casa da Jihad). No incio do sculo XIX, quando o lder modernizador do Egipto, Muhammad Ali Pasha, reformou as foras armadas e a respectiva administrao segundo os modelos francs e ingls, criou um departamento da guerra para as administrar. Em rabe era conhecido por Conselho de Estado dos Assuntos da Jihad (Diwn al-Jihdiyya), e o seu chefe por supervisor dos assuntos da jihad (Nzir al-Jihdiyya). Poderamos citar outros exemplos em que a palavra jihad perdeu o sentido sagrado e conservou apenas a conotao militar. Nos tempos actuais tanto o uso militar do vocbulo como o uso moral foram recuperados, e so entendidos e aplicados de modos diferentes por grupos diferentes de pessoas. Organizaes que nos nossos dias reclamam o nome de jihad na Caxemira, na Tchetchnia, na Palestina e por toda a parte, evidente que no usam a palavra para designar luta moral.

A jihad por vezes apresentada pelos muulmanos como o equivalente Cruzada, e as duas so vistas como sendo mais ou menos equivalentes. Num certo sentido isto verdade: ambas foram proclamadas e empreendidas como guerras santas, em nome da f verdadeira contra um inimigo infiel. Mas h uma diferena. A Cruzada um desenvolvimento tardio na histria crist e, de certo modo, marca um afastamento radical dos valores cristos bsicos conforme expressos nos Evangelhos. A cristandade estivera sujeita a ataques desde o sculo VII e tinha perdido vastos territrios para o domnio muulmano; o conceito de guerra santa ou, mais comummente, guerra justa, era familiar desde a Antiguidade. Mas na longa guerra entre o Islo e a cristandade, a Cruzada foi tardia, limitada, e de durao relativamente curta. A jihad est presente desde o incio da histria islmica - nas escrituras, na vida do Profeta, e nas aces dos seus companheiros e sucessores imediatos. Continuou ao longo da histria do Islo e conserva o seu fascnio at aos nossos dias. A palavra cruzada deriva como evidente da cruz e, originalmente, designava uma guerra santa para o cristianismo. Mas no mundo cristo h muito tempo que ela perdeu esse significado, e usada com o sentido genrico de uma campanha moralmente impulsionada por uma boa causa. Pode-se empreender uma cruzada pelo ambiente, pela gua pura, por melhores servios sociais, pelos direitos da mulher,

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e por uma srie interminvel de outras causas. O nico contexto em que a palavra cruzada hoje em dia no usada precisamente o contexto religioso original. A palavra jihad tambm usada numa diversidade de sentidos, mas ao contrrio de cruzada conservou o seu significado original e primrio.

Aqueles que perdem a vida na. jihad chamam-se mrtires, shahid em rabe e noutras lnguas muulmanas. A palavra portuguesa mrtir vem do grego mrtyr, testemunha, pelo latim eclesistico mrtyre, e no uso judaico-cristo designa aquele que est pronto a sofrer a tortura e a morte para no renegar a sua f. O seu martrio pois um testemunho ou prova dessa f, e da sua prontido para sofrer e morrer por ela. O vocbulo rabe shahid tambm significa testemunha e normalmente traduzido por mrtir, mas tem uma conotao bastante diferente. No uso islmico o vocbulo martrio normalmente interpretado como significando a morte numa jihad, e a sua recompensa a felicidade eterna, descrita com algum pormenor em textos religiosos antigos. O suicdio, pelo contrrio, um pecado mortal e merece a condenao eterna, mesmo para aqueles que sem ele teriam um lugar assegurado no paraso. Os juristas clssicos distinguem claramente entre enfrentar a morte certa s mos do inimigo e pr fim vida com as prprias mos. A primeira conduz ao cu, a segunda ao inferno. Alguns juristas fundamentalistas recentes, e alguns outros, esbateram ou descartaram mesmo essa distino, mas o seu critrio est longe de ser unanimemente aceite. O bombista suicida corre, pois, um risco considervel devido a uma subtileza teolgica.

Como a guerra santa uma obrigao religiosa, encontra-se cuidadosamente regulamentada na sharia. Os combatentes de uma. jihad esto proibidos de matar mulheres, crianas e idosos, excepto se eles atacarem primeiro, de torturar ou mutilar prisioneiros, e so obrigados a dar aviso claro do recomeo das hostilidades a seguir a uma trgua e a honrar os acordos. Os juristas e telogos medievais discutem at certo ponto as regras da guerra, incluindo questes como quais as armas que so permitidas e quais as que o no so. H mesmo um certo debate nos textos medievais acerca da legalidade dos msseis e da guerra qumica, no primeiro caso referindo-se a manganelas e catapultas, e no segundo a flechas com as pontas envenenadas e ao envenenamento das reservas de gua do inimigo.

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Sobre estas questes h uma considervel variao. Alguns juristas permitem, outros colocam restries e outros desaprovam o uso dessas armas. A razo apontada para a sua preocupao o nmero indiscriminado de vtimas que elas provocam. Em nenhum ponto os textos bsicos do Islo prescrevem o terrorismo e o assassnio. Em nenhum ponto - que eu saiba - ponderam sequer a matana indiscriminada de espectadores no implicados.

Os juristas insistem em que os despojos de guerra devem ser um benefcio acidental e no um objectivo principal. Alguns vo ao ponto de dizer que se eles se tornarem o objectivo principal, isso invalida a jihad e anula os seus benefcios, se no neste mundo, no outro. Ajihad, para ter alguma validade, deve ser empreendida na senda de Deus, e no pelo interesse no ganho material. Contudo, h queixas frequentes acerca do mau uso que feito do nome honroso da jihad para fins desonrosos. Principalmente os juristas africanos lamentam o uso que feito do termo jihad por captores de escravos para justificar as suas pilhagens e afirmar a posse legal das suas vtimas. A Lei Santa ordena que seja dado bom tratamento aos no-combatentes, mas confere aos vencedores amplos direitos sobre os bens e tambm sobre as pessoas e os familiares dos vencidos. De acordo com o costume universal da Antiguidade, os inimigos capturados na guerra eram escravizados juntamente com as suas famlias, e podiam ser vendidos ou conservados pelos seus captores para uso pessoal. O Islo trouxe uma alterao a esta regra, limitando o direito de escravizar queles que eram capturados numa Jihad, mas no em qualquer outra forma de guerra.

As regras para a guerra contra os apstatas so um tanto diferentes e bastante mais rigorosas do que as da guerra contra os no-crentes. O apstata ou renegado, aos olhos dos muulmanos, de longe pior do que o no-crente. O no-crente ainda no viu a luz, e h sempre a esperana de que eventualmente venha a v-la. Entretanto, desde que preencha as condies necessrias poder beneficiar da tolerncia do estado muulmano e ser autorizado a continuar a praticar a sua religio, e at a cumprir as leis da sua prpria religio. O renegado algum que conheceu a verdadeira f, ainda que por breve tempo, e a abandonou. Para esta ofensa no existe perdo humano e, de acordo com a esmagadora maioria dos juristas, o renegado deve ser condenado morte - isto , se for homem. Para

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as mulheres, uma pena mais leve de aoitamento e priso pode bastar. Deus, na sua misericrdia, pode perdoar ao renegado no outro mundo, se assim decidir. Mas nenhum humano tem autoridade para o fazer. Esta distino de certa importncia hoje em dia, em que os lderes militantes proclamaram uma jihad dupla: contra os infiis estrangeiros e contra os apstatas domsticos. A maioria, se no a totalidade, dos lderes muulmanos que ns, no Ocidente, consideramos com prazer nossos amigos e aliados, so vistos como traidores ou, pior ainda, como apstatas pela maioria ou a quase totalidade do seu prprio povo.

Desde tempos remotos, foi feita uma distino legal entre os territrios adquiridos pela fora (anwatan em rabe, equivalente expresso jurdica romana vi et armis) e os adquiridos por sulhan, isto , por qualquer tipo de trguas ou de rendio pacfica. As regras relativas ao saque e, de modo mais geral, ao tratamento a dar populao dos territrios acabados de obter, diferiam em alguns aspectos importantes. Segundo a tradio, a diferena era simbolizada na mesquita todas as sextas-feiras. Nos territrios tomados por anwatan, o pregador levava uma espada; nos que tinham sido tomados por sulhan, um cajado de madeira. A simbologia da espada continua a ser importante. At aos dias de hoje, a bandeira saudita tem duas divisas sobre um campo verde. Uma delas o texto rabe do credo muulmano: No h nenhum Deus a no ser Deus, Maom o profeta de Deus. A outra a representao inequvoca de uma espada.

Em certas alturas, os juristas reconheceram uma categoria intermdia - a Casa das Trguas {Dr al-Sulh) ou Casa da Aliana {Dr ai- Ahd) - entre as Casas da Guerra e do Islo. Era constituda por pases no-muulmanos, habitualmente cristos, cujos lderes estabeleciam qualquer espcie de acordo com os lderes do Islo, mediante o qual pagavam um gnero de imposto ou tributo, visto como o equivalente ao jizya, ou imposto por cabea, e conservavam uma grande capacidade de autonomia nos seus assuntos internos. Um dos primeiros exemplos foi o acordo feito pelos califas omadas no sculo VII com os prncipes cristos da Armnia. O exemplo clssico da Dr al-Sulh, ou Casa das Trguas, foi o pacto acordado em 652 d.C. com os lderes cristos da Nbia, segundo o qual estes no pagavam o imposto por cabea mas prestavam um tributo anual

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constitudo por um nmero especfico de escravos. Ao decidirem ver as ofertas como tributo, os lderes muulmanos e os seus conselheiros legais podiam adaptar a lei de modo a cobrir uma grande variedade de relaes polticas, militares e comerciais com governos no-muulmanos. Esta abordagem no desapareceu por completo.

Os muulmanos souberam, desde muito cedo, que havia certas diferenas entre os povos da Casa da Guerra. Na sua maioria eram simplesmente politestas e idlatras que no representavam uma ameaa sria para o Islo e eram provveis candidatos converso. Encontravam-se essencialmente na sia e em frica. A principal excepo eram os cristos, que os muulmanos reconheciam que tinham uma religio do mesmo gnero da sua, e eram portanto os seus maiores rivais na luta pelo domnio do mundo - ou, como eles o diriam, pela iluminao do mundo. O cristianismo e o Islo so duas civilizaes definidas pela religio, que entraram em conflito no devido s suas diferenas mas sim s suas semelhanas.

O mais antigo edifcio religioso muulmano existente fora da Arbia, a Cpula da Rocha, em Jerusalm, foi terminado em 691 ou

692 d.C. A construo deste monumento no lugar do antigo templo judaico, e no mesmo estilo e na proximidade de monumentos cristos como o Santo Sepulcro e a Igreja da Ascenso, enviou uma mensagem clara aos judeus, e, mais importante ainda, aos cristos. As suas revelaes, apesar de autnticas em tempos passados, tinham sido corrompidas pelos seus indignos guardies e eram por isso substitudas pela revelao final e perfeita contida no Islo. Tal como os judeus tinham sido derrotados e substitudos pelos cristos, tambm a ordem do mundo cristo passava agora a ser substituda pela f muulmana e pelo califado islmico. Para realar esse ponto de vista, as inscries cornicas feitas na Cpula da Rocha denunciam aquilo que os muulmanos consideram os erros principais dos cristos: Louvado seja Deus, que no gerou nenhum filho e no tem qualquer parceiro e Ele Deus, uno e eterno. No gera, no foi gerado, e no tem par (Coro, CXII). Isto era claramente um desafio aos seguidores de Cristo no seu lugar de nascimento.

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Um milnio depois, o estacionamento de tropas americanas na Arbia foi visto por muitos muulmanos e em especial por Osama bin Laden como um desafio semelhante, desta vez feito pelos cristos ao Islo.

Para realar este primeiro desafio cristandade, o califa, pela primeira vez, cunhou moedas de ouro, prerrogativa sua e da Roma imperial. significativo que o nome da primeira moeda de ouro islmica, o dinr, seja copiado do denarius romano. Algumas dessas moedas ostentam o nome do califa, o seu ttulo de Comandante dos Fiis, e os mesmos versculos polmicos. A mensagem era clara. No entendimento dos muulmanos, os judeus e mais tarde os cristos tinham-se extraviado e seguido falsas doutrinas. Por conseguinte, ambas as religies foram invalidadas e substitudas pelo Islo, a revelao final e perfeita na sequncia estabelecida por Deus. Os versculos cornicos citados na Cpula e nas moedas de ouro condenam aquilo que para os muulmanos a pior das corrupes da verdadeira f. evidente que h ainda uma mensagem adicional do califa para o imperador: A tua f corrupta, o teu tempo acabou. Eu agora sou o lder do imprio de Deus na terra.

A mensagem foi bem entendida, e a cunhagem das moedas de ouro foi vista pelo imperador como um casus bell