a crises do arqitectura moderna

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1 A Crise do Movimento Moderno: Reflexões sobre a Identidade da Profissão do Arquiteto Resumo Segundo vários autores, o Movimento Moderno atingiu um ponto de inflexão a partir dos anos 1950. Os problemas lançados pela reconstrução das cidades européias e a grande expansão das cidades americanas no pós-guerra levariam ao questionamento, no próprio seio dos CIAM, de alguns postulados que haviam norteado a arquitetura moderna na década de 1920. Além disso, a década de 1960, com a entrada em cena de uma nova geração de atores, entre historiadores da arquitetura e arquitetos atuantes na profissão, o Movimento Moderno seria alvo de uma série de visões negativas, que levariam a uma revisão de suas metas para a arquitetura. Por um lado, os discursos historiográficos, que até meados desta década funcionaram como suporte teórico para a trajetória da arquitetura moderna, apresentando do movimento uma visão positiva, transformar-se- iam, aos olhos da geração de autores que inicia suas atividades nesse período, na narrativa do seu fracasso. Por outro, certos arquitetos atuantes na profissão produziriam, a partir de visões negativas do Movimento Moderno compartilhadas com os historiadores, as teorias para um comportamento projetual anti-moderno. Mas suas teorias seriam ambíguas. Isto é, permaneceriam em suspenso entre o desejo de crítica e superação da visão utópica da arquitetura, que estivera ao centro dos discursos dos arquitetos modernos, e o fato de conservarem, em suas propostas para a arquitetura de seu tempo, algumas das idéias-chave do Movimento Moderno que se propuseram a superar.

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A Crise do Movimento Moderno: Reflexões sobre a Identidade da Profissão do Arquiteto

Resumo

Segundo vários autores, o Movimento Moderno atingiu um ponto de inflexão a partir dos anos

1950. Os problemas lançados pela reconstrução das cidades européias e a grande expansão das

cidades americanas no pós-guerra levariam ao questionamento, no próprio seio dos CIAM, de

alguns postulados que haviam norteado a arquitetura moderna na década de 1920. Além disso, a

década de 1960, com a entrada em cena de uma nova geração de atores, entre historiadores da

arquitetura e arquitetos atuantes na profissão, o Movimento Moderno seria alvo de uma série de

visões negativas, que levariam a uma revisão de suas metas para a arquitetura. Por um lado, os

discursos historiográficos, que até meados desta década funcionaram como suporte teórico para a

trajetória da arquitetura moderna, apresentando do movimento uma visão positiva, transformar-se-

iam, aos olhos da geração de autores que inicia suas atividades nesse período, na narrativa do

seu fracasso. Por outro, certos arquitetos atuantes na profissão produziriam, a partir de visões

negativas do Movimento Moderno compartilhadas com os historiadores, as teorias para um

comportamento projetual anti-moderno. Mas suas teorias seriam ambíguas. Isto é, permaneceriam

em suspenso entre o desejo de crítica e superação da visão utópica da arquitetura, que estivera

ao centro dos discursos dos arquitetos modernos, e o fato de conservarem, em suas propostas

para a arquitetura de seu tempo, algumas das idéias-chave do Movimento Moderno que se

propuseram a superar.

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A Crise do Movimento Moderno:

Reflexões sobre a Identidade da Profissão do Arquiteto

Segundo vários autores, o Movimento Moderno atingiu um ponto de inflexão a partir dos anos

1950. Os problemas lançados pela reconstrução das cidades européias e a grande expansão das

cidades americanas no pós-guerra levariam ao questionamento, no próprio seio dos CIAM, de

alguns postulados que haviam norteado a arquitetura moderna na década de 1920. Além disso, na

década de 1960, com a entrada em cena de uma nova geração de atores, entre historiadores da

arquitetura e arquitetos atuantes na profissão, o Movimento Moderno seria alvo de uma série de

visões negativas, que levariam a uma revisão de suas metas para a arquitetura.

A geração de teóricos da arquitetura que iniciou suas atividades na década de 1960 teria operado

um corte no modo de construir os discursos acerca do Movimento Moderno. Por um lado, os

discursos historiográficos, que até meados desta década funcionaram como suporte teórico para a

trajetória da arquitetura moderna, apresentando do movimento uma visão positiva, transformar-se-

iam, aos olhos da geração de autores que inicia suas atividades nesse período, na narrativa do

seu fracasso. Por outro, certos arquitetos atuantes na profissão produziriam, a partir de visões

negativas do Movimento Moderno compartilhadas com os historiadores, as teorias para um

comportamento projetual anti-moderno. O objetivo deste trabalho é analisar os textos teóricos de

alguns destes arquitetos, estudando as estratégias discursivas que eles utilizaram para operar

desconstruções e propostas.

O principal traço em comum entre seus discursos seria a revisão das metas que teriam norteado a

arquitetura moderna. A primeira meta seria a recuperação da identidade da profissão do arquiteto,

que os arquitetos do Movimento Moderno entenderam ter sido desqualificada no século XIX. Para

estes, a arquitetura moderna representaria a recuperação da centralidade da arquitetura, agindo

sobre os novos temas, e utilizando os novos materiais colocados à disposição pela Revolução

Industrial. A segunda meta do Movimento Moderno seria social. A arquitetura moderna seria vista

pelos arquitetos do movimento como resposta à industrialização, que teria subjugado o indivíduo.

Tratava-se de vencer a “alienação” do trabalhador frente à produção industrial, teorizada por Marx,

revalorizando sua especificidade. As duas metas centrais do Movimento Moderno resolver-se-iam,

nos discursos de seus arquitetos, através da idéia da arquitetura como “condensador social”. Isto

é, do espaço construído como indutor de comportamentos, capaz de operar, por si só, as

transformações sociais desejadas pelos arquitetos. Esta idéia colocaria o arquiteto ao centro das

questões de seu tempo, valorizando a profissão.

A principal crítica que os autores da geração 1960 fariam ao Movimento Moderno diz respeito à

utopia dos discursos. A idéia da arquitetura moderna como ruptura, que levaria seus arquitetos a

desejarem a tabula rasa do passado, resultaria, para esta geração, numa onipotência do arquiteto.

3

Responsável pelo desenho integral de um novo ambiente, moderno, o arquiteto seria o demiurgo

do mundo novo. O que resultaria na opressão dos sujeitos não-arquitetos, cuja ação estaria

excluída do desenho, numa atitude autoritária, e mesmo tirânica, por parte dos arquitetos. Além

disso, a constatação de que as grandes reconstruções e expansões urbanas do pós-guerra não

foram realizadas dentro dos preceitos da arquitetura moderna – apesar de incorporarem desta

algumas reflexões –, e principalmente, a constatação de que não foram necessariamente os

arquitetos os artífices destas intervenções, colocavam interrogações sobre a validez das teorias

do Movimento Moderno acerca da universalidade de sua arquitetura.

O reconhecimento de que a onipotência do arquiteto não seria possível, e nem mesmo desejável,

abriria espaço, nos discursos desta geração, para uma reflexão sobre a identidade da profissão e

os limites de sua ação, que teria como horizonte a cidade. Talvez porque as intervenções

urbanísticas fossem o campo em que o desejo de tabula rasa e a onipotência do arquiteto – que

teriam sido expressos pelo Movimento Moderno – se manifestariam com mais clareza. Talvez

porque o projeto de um único edifício isolado seja de fato um domínio integral do arquiteto, e

justamente no confronto com a cidade se configure o limite de sua ação.

Com base na visão do fracasso da arquitetura moderna, os autores da geração 1960 proporiam

reflexões e comportamentos projetuais que partem da cidade existente, renunciando à tabula rasa

e à onipotência do desenho global. Em antítese à arquitetura massificante que eles viram no

Movimento Moderno, estaria o elogio da complexidade da cidade, vista como produto de vários

atores sociais. Cujo desenho não seria, portanto, resultado de um único gesto por parte do

arquiteto. Mas suas teorias seriam ambíguas. Isto é, permaneceriam em suspenso entre o desejo

de crítica e superação da visão utópica da arquitetura, que estivera ao centro dos discursos dos

arquitetos modernos, e o fato de conservarem, em suas propostas para a arquitetura de seu

tempo, algumas das idéias-chave do Movimento Moderno que se propuseram a superar.

Kevin Lynch: a experiência da cidade

Kevin Lynch (1918-1984), ao contrário de autores como Colin Rowe e Robert Venturi, não

menciona diretamente o Movimento Moderno na elaboração suas teorias. No entanto, em suas

propostas de comportamento para os arquitetos de sua época, podemos observar algumas

diferenças em relação ao Movimento Moderno. Estas diferenças denotariam mudanças na

conceituação de qual deveria ser o papel do arquiteto e sua relação com os não-arquitetos. Em

especial, desapareceriam do discurso de Lynch as propostas de intervenção apriorística na

cidade. Os projetos, para ele, deveriam partir de uma atenta análise das condições existentes,

dando voz também aos cidadãos não-arquitetos, cujas leituras do espaço o arquiteto deveria

preocupar-se em entender e reforçar.

4

Seus dois livros principais – The image of the city (1960) e Good city form (1980) – apresentariam

diferenças conceituais entre si. A principal delas seria a crescente complexidade do discurso.

Seria, pelo contrário, comum aos dois livros a noção do espaço como base para a construção de

um “pacto social” entre os habitantes da cidade, capaz de promover uma matriz comum para as

percepções individuais, uma “memória coletiva”, e como tal, o sentimento de pertinência a uma

comunidade. Lynch retomaria assim a noção do espaço como condensador social que fora o mote

do Movimento Moderno. Ainda que não atribuísse necessariamente ao arquiteto o papel de artífice

deste pacto.

A teoria apresentada em The image of the city seria devedora de muitos dos procedimentos

utópicos que os autores da geração de Lynch condenariam no Movimento Moderno. Em especial,

da generalização do sujeito, transformado em “homem-tipo”, do qual desapareceriam as nuances

individuais, embora este “homem-tipo” tenha uma função no discurso diferente da função atribuída

pelos autores desta geração ao “homem-tipo” do Movimento Moderno. O homem, habitante da

cidade, seria visto por Lynch apenas segundo suas características biológicas, o que permitiria sua

generalização, em detrimento dos valores culturais e sociais, e também de sua individualidade. A

noção de “homem-tipo” levaria Lynch a construir uma correspondência unívoca entre a forma do

ambiente (embora ele fale do ambiente existente) e a percepção deste ambiente por parte dos

habitantes, atribuindo à forma, e não aos sujeitos que a vivenciam, a capacidade de gerar

significados1. O que reservaria para o arquiteto um papel importante no discurso, como ator capaz

de modificar este ambiente, produzindo seus significados2. Portanto, apesar de reivindicar a

atenção para o existente, em antítese à “tabula rasa” desejada pelos arquitetos do Movimento

Moderno, ele não abandona completamente um tipo de discurso utópico, ao afirmar que a cidade

seria um objeto, passível de projeto.

O segundo livro – Good city form – embora retome muitas das temáticas contidas no primeiro,

articula em torno delas um discurso mais complexo, no qual a noção de “homem-tipo” genérico

desaparece para dar lugar à cultura, como fator determinante das visões de mundo de cada um.

Como conseqüência, a correspondência entre a forma do ambiente e a percepção por parte dos

habitantes deixa de ser unívoca em seu discurso, pois dependeria dos valores culturais, das

emoções e sentimentos. A percepção da imagem urbana não seria um produto exclusivo da

forma, mas o resultado da interação entre a forma e outros valores, não espaciais3.

1 “este estudo procurará definir as qualidades físicas relacionadas aos atributos de identidade e estrutura na imagem mental. Isso nos leva à definição daquilo que se poderia chamar de imaginabilidade: a característica, num objeto físico, que lhe confere uma alta probabilidade de evocar uma imagem forte em qualquer observador dado. É aquela forma, cor ou disposição que facilita a criação de imagens mentais claramente identificadas, poderosamente estruturadas e extremamente úteis ao ambiente. Também poderíamos chamá-la de legibilidade.” LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. op. cit. p.11. 2 “Para entender o papel desempenhado pelas imagens ambientais em nossas vidas urbanas foi preciso examinar detalhadamente algumas áreas citadinas e conversar com seus habitantes. Tivemos de desenvolver e testar a idéia de imaginabilidade e, também, por uma comparação da imagem com a realidade visual, descobrir que formas contribuem para dar maior força à imagem, de modo a sugerir alguns princípios de desenho urbano. Esse trabalho foi desenvolvido com a convicção de que a análise da forma existente e de seus efeitos sobre os cidadãos é uma das pedras angulares do desenho das cidades.” LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. op. cit. p.18. 3 “Por sentido de um aglomerado populacional pretendo dizer a clareza com que ele pode ser apreendido e identificado, e a facilidade com que os seus elementos podem ser ligados a outros acontecimentos e locais numa representação mental coerente do espaço e do

5

O reconhecimento deste processo faria com que a ação projetual estivesse quase ausente do

discurso de Lynch, pois os significados do ambiente partiriam eminentemente do indivíduo, de

suas leituras pessoais da cidade e não de uma forma física determinada, que poderia

eventualmente ser dada pelo projeto4. Desta forma, o papel central do arquiteto na conformação

da imagem da cidade, que ele atribuíra ao arquiteto em The image of the city, se extinguiria. Não

que sua ação torne-se impossível para Lynch, mas seria substancialmente indiferente. Poderia

constituir apenas uma porção muito pequena da complexa teia de ações diretas e significados

atribuídos ao organismo “cidade”.

Aldo Rossi: a cidade e o tempo

No principal escrito de Aldo Rossi (1931-1997), o livro L’architettura della città (1966), a teoria

elaborada por Lynch em The image of the city seria explicitamente citada, como antítese às visões

da cidade e do projeto atribuídas por Rossi ao Movimento Moderno. Mas apesar das várias

referências ao longo do livro, Rossi colocaria o acento de seu discurso em uma posição distinta

em relação à de Lynch. A principal diferença entre seus discursos seriam as conotações

atribuídas ao organismo “cidade”. Enquanto para Lynch a cidade seria “imagem” – um objeto a ser

percebido (e projetado) “objetivamente” – a cidade para Rossi seria “vivência” – experiência que

evoca sentimentos e emoções. Além disso, enquanto a teoria de Lynch tinha como figura central a

imagem atual da cidade e sua percepção no presente, o grande protagonista do livro de Rossi

seria o tempo, entendido numa perspectiva histórica5. A vivência da cidade evocada por Rossi não

seria a vivência imediata da cidade no presente, mas uma série de vivências cumulativas, de

várias gerações de cidadãos ao longo do tempo.

Por este motivo, os “monumentos históricos” assumiriam uma posição central na teoria de Rossi,

na qualidade de palcos desta vivência. Vistos na perspectiva da cidade no presente, seriam os

articuladores do espaço urbano, enquanto geradores da memória coletiva. É importante notar aqui

o deslocamento de significado em relação ao discurso de Lynch. O papel de condensador social

que Lynch atribuíra ao espaço urbano em sua totalidade aparece, na teoria de Rossi, absorvido

por elementos provenientes do passado, que funcionariam como catalisadores do sentimento de

pertinência dos cidadãos a uma comunidade e a um lugar. Os monumentos históricos

constituiriam para Rossi “fatos urbanos”, articuladores da imagem da cidade6. Desta forma, ele

tempo, e o modo como esta representação pode ser ligada a conceitos e valores não espaciais. Esta é a união entre a forma do ambiente e os processos humanos de percepção e cognição.” LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade. op. cit. p.127. 4 “não procuramos uma correspondência unívoca absoluta entre a forma e a sociedade; não queremos viver num aquário de peixes dourados. […] apesar de tudo, uma cidade que convida à ordem é certamente melhor do que uma cidade ordenada.” LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade. op. cit. pp.138-139. 5 “A cidade, objeto deste livro, será entendida aqui como uma arquitetura. Falando de arquitetura, não me refiro apenas à imagem visual da cidade e ao conjunto de seus edifícios, mas à arquitetura como construção. Refiro-me à construção da cidade no tempo.” ROSSI, Aldo. L’architettura della città. op. cit. p.9. (tradução do autor) 6 “Onde começa a individualidade deste palácio [Palazzo della Ragione de Pádua] e de que depende? A individualidade depende sem dúvida de sua forma, mais que de sua matéria, ainda que esta tenha um papel importante. Mas depende também do fato de sua forma ter-se complicado e organizado no espaço e no tempo. Percebemos que se o fato arquitetônico que examinamos tivesse sido, por exemplo, construído recentemente, não teria o mesmo valor. Neste último caso, sua arquitetura poderia talvez ser julgada em si,

6

afirma a impossibilidade do arquiteto produzir um “fato urbano” no presente, uma vez que este

processo só poderia se dar através de uma sedimentação no tempo.

A escolha do Palazzo della Ragione para ilustrar este aspecto da teoria é especialmente

emblemática do rebaixamento do arquiteto no discurso de Rossi, de sua impotência para construir

condensadores sociais no presente. Trata-se de um palácio projetado por um famoso arquiteto do

Renascimento – Andrea Palladio – mas mesmo assim Rossi não menciona seu nome. Ele afirma

que o valor monumental deste edifício deve-se ao tempo transcorrido, que permite a superposição

de uma série de significados e conotações afetivas, e a ação das várias gerações de indivíduos

anônimos que contribuíram, com uma infinidade de pequenos gestos, para sua transformação e

sedimentação. Este valor não dependeria, portanto, do gesto projetual de um arquiteto, ainda que

famoso. Não estaria na forma do edifício enquanto “obra de arte”, nem em sua autoria.

Este rebaixamento do papel do indivíduo no discurso de Rossi estaria reservado especialmente

para os indivíduos-arquitetos. A relação entre os habitantes e a cidade que ele propõe não é

coercitiva, pois não exclui a noção de representação e de sujeito. Mas vivência da cidade, para

Rossi, poderia ser apenas passiva, no sentido de que os cidadãos no presente seriam incapazes

de modificar substancialmente sua estrutura, ou, quando o fazem, seria necessariamente para

pior.

Ao ver a cidade como “cenário fixo das vivências do homem”, Rossi atribuiria à ação do presente

sobre a cidade uma conotação essencialmente negativa. A “boa cidade”, para ele, seria aquela

que sofre poucas modificações ao longo do tempo. E esta permanência não seria dada por um

procedimento utópico, por um projeto que se mantém estático no tempo, que os autores da

geração de Rossi entendem ter sido desejado pelo Movimento Moderno. Para Rossi, não haveria

possibilidade de um “bom” projeto da forma urbana. Apenas uma série de pequenas ações ao

longo do tempo seriam “boas”, e até mesmo o gesto de criação dos edifícios monumentais perde

relevância, ao mesmo tempo em que as grandes intervenções urbanas, realizadas no presente,

representariam necessariamente uma perda para a cidade. Como conseqüência, a cidade não

seria vista como um objeto projetável, mas um organismo que deveria evoluir e se sedimentar

lentamente no tempo. Não poderia ser alvo de um “gesto” projetual, apenas “trajetória”. A ação do

arquiteto torna-se irrelevante7.

poderíamos falar de seu estilo, portanto, de sua forma. Mas este não apresentaria ainda aquela riqueza de motivos através da qual reconhecemos um fato urbano. […] nos referimos a valores espirituais. Neste momento, deveríamos falar da idéia que temos deste edifício, da memória mais geral deste edifício enquanto produto da coletividade, e da relação que temos com a coletividade através dele.”ROSSI, Aldo. L’architettura della città. op. cit. p.22. (tradução do autor) 7 A teoria de Rossi apresentaria afinidades com as teorias do restauro produzidas na Itália naquele mesmo período. Nestas teorias, a dicotomia entre a “cidade tradicional” e a “cidade moderna”, que permanecera implícita no livro de Rossi, gerando nostalgia por um passado idealizado, seria explicitada. Desta forma, o drama do fazer arquitetônico construído por Rossi – que não se refere apenas à arquitetura do Movimento Moderno, mas a toda a arquitetura recente, inclusive àquela produzida por ele próprio – estaria contido nesta passagem de Renato Bonelli, um dos teóricos do “restauro crítico”, num artigo publicado em 1958 sobre o Villaggio del Sole em Vicenza, um dos bairros erguidos ex-novo pelo Plano INA-casa, lançado em 1949 para a reconstrução das cidades italianas após a guerra: “A verdadeira e grande dificuldade que distingue o tema da edilícia econômica e o torna diferente de qualquer outra atribuição profissional, é a demanda de criação rápida e unitária não de uma obra isolada […] mas de um verdadeiro bairro, de um inteiro conjunto residencial a ser construído de uma só vez, num arco de tempo brevíssimo e segundo um só desenho. A realização de uma nova parte da cidade, ou mesmo, às vezes, de um núcleo urbano separado do antigo centro, mais ou menos autônomo, não encontra

7

Colin Rowe: a cidade-colagem

A dicotomia entre a “cidade tradicional” e a “cidade moderna” assumiria outras conotações, mais

otimistas, no discurso de Colin Rowe (1920-1999). Isso ocorre porque a questão de fundo que

provocara a crise da arquitetura moderna no discurso de Rossi – conseguirá o arquiteto moderno

reproduzir, com um gesto, a complexidade constituída ao longo do tempo, vista como a maior

qualidade de uma cidade? – não se coloca para Rowe. Assim como Lynch, ele consideraria a

cidade um objeto físico a ser estudado no presente, no qual ambos tipos de cidade coexistem.

Desta forma, sua crítica à cidade moderna, descrita em termos negativos, bem como seu elogio

da “cidade tradicional”, articula-se sob a forma de um discurso conciliatório, baseado no conceito

de colagem.

Em seu livro Collage City (1981), Colin Rowe faria uma leitura dos princípios do urbanismo

funcionalista como tendo produzido um tipo de cidade “ineficaz” e “insatisfatório” do ponto de vista

morfológico, oposto às qualidades que reconhece no outro tipo. Ele descreveria a cidade moderna

como um “caos de objetos”8, em antítese à coesão da trama urbana da “cidade tradicional”. Este

“caos” conduziria, para ele, à desmaterialização do próprio objeto cidade, a sua dissolução num

continuum natural humanizado, do qual ele apresenta uma visão anti-urbana9.

O continuum espacial proporcionado pelo alargamento da trama urbana da cidade moderna

conduziria, segundo Colin Rowe, à pulverização dos espaços públicos, que perderiam a

configuração física que tiveram na “cidade tradicional”. Esta leitura morfológica da cidade, que

constituiria o centro de seu discurso, teria conseqüências no âmbito social: a ausência da vida

pública, pulverizada, segundo ele, juntamente com os espaços destinados para este fim. As

aglomerações modernas encontrar-se-iam, no discurso, desprovidas da porção mais desejável

que Rowe vê numa cidade: a figura do central espaço público – a praça. Para ele, precisamente

na definição dos espaços públicos residiriam “apesar de seus evidentes defeitos, as aparentes

virtudes da cidade tradicional: a matriz ou textura sólida e contínua que confere energia à sua

condição recíproca: o espaço específico; a praça e as ruas contíguas que atuam como uma

válvula de escape pública e que aportam uma certa condição de estrutura legível.”10

no passado precedentes para as dimensões e relações atuais: é uma manifestação típica do nosso tempo pelo seu caráter de intervenção maciça, sobreposto e imposto à natureza, à paisagem e ao homem, e pela sua pretensão de substituir por um único gesto a riqueza da vida coletiva e individual que por séculos se traduziu na forma de compor o vulto da cidade.” BONELLI, Renato. Complesso residenziale a Vicenza: “Villaggio del Sole”. in Roma: L’Architettura. Cronache e storia n.35, Set.1958. (tradução do autor) 8 ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Ciudad collage. op. cit. p.60. (tradução do autor) 9 “Em sua intenção, a cidade moderna deveria ser uma vivenda adequada para o nobre selvagem. Um ser tão aboriginariamente puro precisava de uma residência de pureza equivalente. E, se em tempos remotos o nobre selvagem havia saído das árvores, se havia de preservar sua transcendente inocência e manter intactas suas virtudes, às árvores deveria regressar. Caberia imaginar que semelhante argumento era a razão psicológica definitiva da ville radieuse ou da Zeilenbau city, uma cidade que, em sua projeção completa, se imaginava quase literalmente como inexistente. Os edifícios necessários aparecem, dentro do possível, como delicadas e discretas intrusões no continuum natural. Os edifícios que se erguem sobre pilares mantêm o menor contato possível com a terra potencialmente recuperável.” ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Ciudad collage. op. cit. p.54. (tradução do autor) 10 ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Ciudad collage. op. cit. p.64. (tradução do autor)

8

Esta correspondência que Rowe estabelece entre a forma urbana e a vida que ali se desenvolve

revela que ele continuaria pensando a forma arquitetônica como condensador social, capaz de

induzir os cidadãos a determinados comportamentos – no caso, a vida civil pública – que pelo

contrário, estariam ausentes quando o “espaço público” perde a identidade que segundo ele tivera

na “cidade tradicional”11.

Mas sua teoria vai além. Ele afirmaria que a “cidade tradicional” não foi integralmente substituída

pela cidade desejada pelos arquitetos do Movimento Moderno. Ou seja, apesar da euforia

demiúrgica dos “anos heróicos”, o ideal urbano moderno permaneceu no papel, ou alcançou

realizações parciais que coexistiriam com a “cidade tradicional”, gerando um paradoxo: a cidade

moderna é periferia. Além disso, a periferia passaria a ser conotada como medíocre, em oposição

ao centro, depositário dos valores da identidade urbana, que ele, assim como Lynch, entende

como legibilidade de sua forma, dada pela compacidade do traçado urbano. Mas – e este seria o

âmago da questão colocada por Colin Rowe – uma vez que a cidade moderna existe, “o quê

podemos fazer com ela?”12

Para responder a esta pergunta, Colin Rowe criaria o conceito de “cidade-colagem”, que constitui

o centro de sua teoria. “Colagem” significaria, para Rowe, reconhecer a existência simultânea dos

dois tipos de cidade distintos, sem que um prevaleça sobre o outro. A cidade-colagem seria

“inclusiva”, pois constituída por uma somatória de porções heterogêneas, que compreenderiam

tanto os remanescentes da “cidade tradicional” quanto as partes modernas. Em antítese a uma

leitura do Movimento Moderno onde o arquiteto aparecia como “demiurgo” de um “novo mundo”

tirânico, Colin Rowe iria propor para o arquiteto um comportamento que implicaria na renúncia à

pretensão do desenho global do ambiente. A essência desta visão pluralista da arquitetura seria a

dialética. A tarefa do “arquiteto-bricoleur” que ele teoriza, de projetar a partir dos elementos

urbanos – heterogêneos – existentes na cidade seria a exata antítese da tabula rasa que ele vira

no Movimento Moderno.

Deste modo, a teoria de Colin Rowe se revela ambígua. Por um lado, seu discurso demonstraria

uma confiança na ação do arquiteto como ação possível. Mas para tal, lançaria mão do mesmo

tipo de pensamento utópico que fora, para ele, o limite do Movimento Moderno. Ao acreditar na

correspondência unívoca entre forma urbana e vida, ele desenvolveria a correlação entre a

compacidade da trama urbana e a existência da vida pública, a partir da qual, para ele, a “cidade

tradicional” seria portadora que qualidades que a “cidade moderna” não possuiria, mas que

poderiam ser reproduzidas num projeto.

11 “É verdade que a cidade tradicional oferece um debate entre sólido e vazio, estabilidade pública e estabilidade privada, figura pública e fundo privado, que nunca deixou de estimular.” ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Ciudad collage. op. cit. p.64. (tradução do autor) 12 ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Ciudad collage. op. cit. p.64. (tradução do autor)

9

A idéia da arquitetura como condensador social levaria Colin Rowe a fazer uma análise

exclusivamente formal da cidade. E justamente esta leitura da cidade apenas como um objeto

físico faz com que ela se torne projetável em seu discurso. Portanto, sua teoria permaneceria

limitada, pois não consegue dar conta da complexidade da cidade. Seu discurso, apesar da

erudição, conservaria as mesmas limitações de Lynch e do Movimento Moderno: não conseguir

pensar a cidade como um organismo complexo, não ir além da visão da cidade como objeto. O

arquiteto conservaria ali sua potência como figura profissional. Mas sua ação derivaria de um

reducionismo de seu objeto de ação, que é a mesma da utopia moderna, apesar dele reivindicar o

contrário.

Robert Venturi: a cidade kitsch e a crise da cultura13

A seleção de críticos do Movimento Moderno apresentada neste trabalho se conclui com Robert

Venturi (1925- ), pois ele levaria mais longe a crítica ao Movimento Moderno e a reflexão sobre a

identidade da profissão do arquiteto que dela decorre, construindo em torno destes temas um

discurso radical, que se desenvolve num tom de provocação. As idéias de Venturi foram expostas

em dois livros principais: Complexity and contradiction in architecture (1966) e Learning from Las

Vegas (1972), o último escrito em parceria com Denise Scott Brown e Steven Izenour. A temática

central do primeiro livro seria a “complexidade” que ele considera desejável para a arquitetura, em

antítese ao “simplismo” que ele vê no Movimento Moderno. Para ele, a arquitetura moderna

resumiu-se a uma busca exclusivamente formal, alienada da vida cotidiana que deveria constituir

o fim da arquitetura.

Por este motivo, provocatoriamente, Venturi escolheu como tema central do livro Learning form

Las Vegas aquela arquitetura que, segundo ele, seria normalmente rejeitada pelos arquitetos: a

arquitetura de gosto popular – o kitsch. Neste livro, a teoria avançada por Venturi em Complexity

and contradiction seria aprofundada, no encontro com a cidade. No entanto, não é a mudança de

escala seu verdadeiro objeto. A cidade de Las Vegas seria vista por Venturi como uma somatória

de arquiteturas, cuja aparência – embora julgada pelos arquitetos como “de mau gosto” – teria

para ele uma força que não pode permanecer ignorada. Como Lynch e Colin Rowe, Venturi

13 “O humanismo demiúrgico do Renascimento e do neoclassicismo imaginou ‘cidades ideais’ integralmente controladas pelo arquiteto-urbanista. Esta mentalidade onipotente estendeu-se no racionalismo de matriz iluminista até os dias de hoje: a miragem do Bauhaus, ‘dal cucchiaio alla città’ [‘da colher à cidade’], postula o domínio do design em todos os níveis da configuração do ambiente. Mas desde o fim da segunda guerra mundial, quando a arte americana surge no cenário internacional, esse pretenso universalismo da arquitetura entra em crise. O expressionismo abstrato e a pintura informal denunciam o fenômeno. Os quadros de Jackson Pollock […] imunes aos procedimentos geométricos de Mondrian, Léger e van Doesburg, condenam o projeto apriorista e celebram a auto-construção dos assentamentos humanos. […] Em sua abordagem ideológica, técnica e psicológica, a arquitetura é alvo de um processo de democratização. Não só porque combate o classicismo, mas sobretudo porque reconhece que existe uma realidade não controlável por parte do arquiteto. Isto implica numa extraordinária abertura de horizontes, da qual enumeramos os principais fatores: - arquitetura sem arquitetos. O mundo da edificação primitiva, vernacular, espontânea, ignorante dos dogmas acadêmicos e

portanto excluída da história da arte, é recuperada. […] - cacofonia ambiental. A pop art ensina a perceber os desdobramentos artísticos do feio, do grotesco, do rejeito. Os casebres, os

barracos, as bidonvilles e as favelas tornam-se objetos de estudos apaixonados, e muitos vêem ali a autêntica ‘arquitetura da democracia’. Em 1958, Douglas Haskel publica o ensaio Architecture and Popular Taste […]. Mais tarde, Robert Venturi e Denise Scott-Brown reavaliam os elementos e símbolos da ‘main street’ americana e exaltam a paisagem de Las Vegas, comparando seu poder hipnótico com o das praças romanas.” ZEVI, Bruno. Olmsted, Wright e il contributo americano. in Pretesti di critica architettonica. op. cit. pp.234-235. (tradução do autor)

10

também partiria de uma análise exclusivamente formal da cidade, vendo suas arquiteturas como

imagens. Para Venturi, a cidade também seria um objeto físico, e não um espaço de relações.

Mas ao contrário de Lynch e Colin Rowe, que baseavam suas análises numa espécie de “biologia

da percepção” que seria comum a todos os homens, pretendendo obter da imagem urbana uma

visão “objetiva”, Venturi levaria a questão da percepção para um lado eminentemente subjetivo.

Ele também analisaria a qualidade da imagem da cidade, a partir da qual ele proporia um novo

comportamento por parte dos arquitetos. Mas para ele, o julgamento desta imagem seria uma

questão de gosto: o gosto erudito do arquiteto seria antitético ao “gosto popular”14 pela arquitetura

kitsch, que estaria presente em Las Vegas. Por este motivo, os arquitetos deveriam aprender com

Las Vegas, isto é, suspender seu julgamento negativo daquelas arquiteturas para abrir-se ao

kitsch.

Esta seria, para Venturi, uma operação necessária para a própria sobrevivência da arquitetura. A

partir da constatação de que o “desenho total” do mundo desejado pelos arquitetos modernos não

ocorreu na prática, o livro Learning from Las Vegas teria como objetivo entender um mundo que

se estaria desenvolvendo à revelia do arquiteto, e que seus autores consideram mais vital que a

arquitetura erudita do Movimento Moderno, encerrada numa utopia estática e inoperante. O que

Venturi elogia é espontaneidade da arquitetura kitsch, o desembaraço com que seus produtores

agiriam na cidade, em antítese às propostas eruditas modernas, que teriam permanecido no papel

justamente por sua recusa do “existente”15. No discurso de Venturi, em última análise, foi a

erudição a alijar a arquitetura moderna da cidade “existente”, dominada por um “gosto popular”

que ele vê como kitsch, por afastá-la das expectativas dos cidadãos em relação à arquitetura16.

Para sair da crise e recuperar a dimensão pública de seu operar, segundo Venturi, seria

necessário que o arquiteto abandonasse a linguagem purista moderna, produzida exclusivamente

a partir de um gosto erudito, em favor de uma linguagem que ele considera mais vital, pois mais

próxima do cotidiano dos cidadãos.

Com este raciocínio, ele inverteria a lógica da arquitetura como condensador social, que fora o

mote do Movimento Moderno. Não seria a arquitetura a determinar o comportamento dos

cidadãos e a educá-los dentro dos padrões do gosto erudito dos arquitetos, mas seria o gosto dos 14 É importante notar o esquematismo do discurso de Venturi, que se reflete em bipolaridade. Ele teria do “gosto popular” uma leitura genérica e uniforme. Veria o “gosto popular” como um único gosto, kitsch. Para ele, o “povo” – constituído pelos cidadãos não-arquitetos – constituiria uma massa homogênea, sem nuances entre os indivíduos. O que configuraria também uma reinterpretação da noção de “homem-tipo”. Portanto, para ele, haveria apenas duas categorias de gosto: o gosto popular e o gosto erudito do arquiteto, que configura uma minoria. 15 “Hoje os arquitetos são instruídos demais para serem primitivos ou totalmente espontâneos.” VENTURI, Robert. Complexidade e contradição em arquitetura. op. cit. p.XXIV. 16 “Achamos também que os arquitetos, com exceção de alguns intransigentes, começam a perceber que aquilo que aprendemos com Las Vegas […é] reavaliar o papel do simbolismo na arquitetura, e, no processo, adquirir uma nova receptividade aos gostos e valores de outras pessoas e uma nova modéstia ao elaborarmos projetos e na percepção de nosso papel como arquitetos na sociedade. A arquitetura do final do século XX deveria ser socialmente menos coercitiva e esteticamente mais vital do que os edifícios bombásticos e empenhados de nosso passado recente. Nós, arquitetos, podemos aprender isso com Roma e Las Vegas, e olhando ao nosso redor onde quer que estejamos.” VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas. op. cit. p.20. Ver ainda: “A análise do urbanismo americano existente é uma atividade socialmente desejável, na medida em que ensina a nós, arquitetos, a sermos mais compreensivos e menos autoritários nos planos que fazemos.” VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas. op. cit. p.27.

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cidadãos a determinar o comportamento dos arquitetos. Esta subordinação da arquitetura (e do

arquiteto) aos cidadãos “comuns” seria, para Venturi, necessária para que a arquitetura se

mantivesse como linguagem “viva”, tirando o arquiteto do isolamento.

Desta forma, o discurso de Venturi ofereceria ao arquiteto apenas duas opções: ou renunciar à

alta cultura para abrir-se à ação “real”, resgatando assim sua potência perdida, ou permanecer

erudito, e como tal, condenado ao eterno isolamento. Neste ponto, ele distancia-se de Colin

Rowe, para quem o “arquiteto-bricoleur” conservaria a erudição que permite a manutenção da

identidade da profissão em nível elevado. Com sua ode à cidade kitsch, Venturi faria uma opção

clara pelo que entende ser a única possibilidade de potência para o arquiteto.

O fracasso do Movimento Moderno, da maneira como foi teorizado por Venturi, conduziria a uma

crise profunda do fazer arquitetônico culto, representado pela figura do arquiteto. Ele citaria em

Learning from Las Vegas a exposição Arquitetura sem Arquitetos, que considera um paradigma

para “os arquitetos capazes de aceitar as lições da arquitetura vernacular primitiva.”17 Conceituaria

assim a antítese final do arquiteto-demiurgo que sua geração viu no Movimento Moderno: o

arquiteto envergonhado do próprio operar. O arquiteto que, com medo de parecer autoritário,

termina por tentar ignorar as competências específicas de sua profissão para mimetizar uma

sabedoria “vernacular” (ou no caso, kitsch) que não faz parte de sua experiência cultural,

necessariamente acadêmica. Uma cultura – erudita – que, julgando seja este o único modo de se

“popularizar”, termina por rejeitar a própria erudição.

Devemos estar atentos ao imenso paradoxo da operação proposta por Venturi: um arquiteto,

formado numa faculdade de arquitetura, ou seja, na Academia que reúne o saber mais elevado

em torno da competência de edificar, procura aprender com construtores que não são arquitetos.

O que impõe a pergunta: se “arquitetura sem arquitetos” é tão boa, e até mesmo melhor do que a

arquitetura culta, por sua vitalidade, para quê serve o arquiteto?

Epílogo

As teorias analisadas neste trabalho mostram que a crítica ao Movimento Moderno realizada pelos

autores da geração 1960 não é homogênea. Mas poder-se-ia dizer que suas teorias seguem um

fio condutor comum, que é a rejeição da “tabula rasa” em favor do “existente”. E, com exceção

talvez de Rossi, eles teriam em comum também o fato de considerar este “existente” – em sua

expressão física, a cidade – como um dado, um objeto, e não como uma construção social e

histórica, cuja percepção varia de acordo com os sujeitos que a percebem. Reproduziriam assim

parte da visão utópica que condenaram no Movimento Moderno, retomando a noção de “homem-

tipo”, onde um indivíduo genérico e generalizável teria uma percepção única da cidade. Esta

17 VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas. op. cit. p.28.

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noção estaria presente com clareza nas teorias de Lynch e Rowe, estreitamente ligada à idéia da

arquitetura como condensador social, e também na de Venturi, onde o “homem-tipo” teria um

gosto kitsch contraposto ao gosto erudito do arquiteto, numa estrutura discursiva bipolar onde a

lógica do condensador social aparece invertida, mas não deixa de existir. Também por Rossi a

questão do condensador social seria evocada, mas apenas para constatar a impossibilidade de

sua produção no presente, caracterizando assim a impotência do arquiteto.

Desta forma, as teorias dos autores desta geração seriam ambíguas. Isto é, permaneceriam em

suspenso entre o desejo de crítica da visão utópica da arquitetura, que estivera ao centro dos

discursos dos arquitetos modernos, e o fato de conservarem algumas das idéias-chave do

Movimento Moderno que se propuseram a superar. E mesmo quando enunciam a impossibilidade

da realização das metas do Movimento Moderno – Rossi o faria da maneira mais decisiva – esta

impossibilidade constituiria a perda definitiva da centralidade da profissão, abrindo espaço, no

discurso, para uma crise sem retorno.

Justamente por esta ambigüidade, e pela crise inexorável que abrem para a profissão do

arquiteto, os discursos desta geração lançariam aos arquitetos do presente o desafio de

(re)pensar uma arquitetura que mantenha sua identidade específica (contra a renúncia à erudição

inerente à figura do arquiteto, proposta por Venturi) mas que ao mesmo tempo, conserve sua ação

– positiva – no mundo (aquela que desaparece do discurso de Rossi e, em parte, do último

Lynch). Seria perceptível nas teorias aqui analisadas uma certa recusa do dado a priori inerente à

própria noção de projeto – mas que os críticos associariam ao que consideraram negativamente

como a “tabula rasa moderna”. Esta recusa geraria um preconceito implícito contra o projeto, de

modo que seus textos tornar-se-iam grandes narrativas da cidade “existente”. Com pouca ou

nenhuma ênfase ao projeto propriamente dito, estariam mais preocupados em propor maneiras de

olhar para a cidade.

Quer se trate da ambigüidade de Lynch e Rowe, que continuariam considerando a cidade como

um objeto projetável, ao qual conferem a capacidade de ser de fato um condensador social, quer

se trate da melancolia de Rossi, para quem a arquitetura do presente não poderia constituir-se em

condensador social, ou da provocação de Venturi, para quem o arquiteto deveria renunciar a suas

competências específicas para conservar sua capacidade propositiva, ouvem-se os ecos das

questões que Tafuri colocou na introdução da Architettura Contemporanea (1976): “como pode a

linguagem arquitetônica emitir hipóteses sobre os destinos coletivos? Como aquela linguagem

pode entrar em dialética com a evolução do pensamento científico, construindo-se como espaço

da alegoria ou do símbolo? Como a ambigüidade própria da metáfora pode aludir a ordens novas

ou oferecer-se como instrumentum regni?”18

18 TAFURI, Manfredo; DAL CO, Francesco. Architettura contemporanea. op. cit. p.5.

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As questões lançadas por Tafuri colocam-se de maneira mais aguda quando confrontadas com a

cidade e a possibilidade do projeto urbano por parte do arquiteto. (Não por acaso, a metrópole

seria o personagem central seu discurso.) Poderia a arquitetura constituir-se em regra? Poderia o

arquiteto desenhar a cidade? Porque o projeto de um edifício isolado – entendido como produção

erudita – sempre foi, ao mesmo tempo em que o domínio exclusivo do arquiteto, uma exceção na

cidade.

Uma das características das teorias arquitetônicas do século XX foi considerar todo tipo de

construção, mesmo aquela produzida por não-arquitetos (ou a chamada “arquitetura comercial”,

sem pesquisas arquitetônicas de vanguarda) como arquitetura. No passado, pelo contrário,

apenas os grandes palácios e igrejas eram obras de arquitetos – e considerados arquitetura. O

restante, o tecido urbano propriamente dito, era obra de mestres-construtores, e não era

considerado arquitetura. A arquitetura – erudita, produzida por arquitetos – apenas pontuava a

trama urbana, constituía os monumentos de que fala Rossi. Era o ponto alto da cidade, mas ao

mesmo tempo, uma exceção.

Ao se considerar que todas as edificações da cidade são arquitetura, colocam-se ao mesmo

tempo dois problemas. O primeiro foi aquele enfrentado pelo Movimento Moderno, de que todas

as edificações, sem exceção, deveriam ser produzidas pelos arquitetos – aqueles de vanguarda.

Sabemos que tal intenção revelou-se impossível na prática. E não apenas por uma eventual

“tirania” do discurso, mas porque a concretização deste objetivo realmente não ocorreu, nem

poderia ocorrer. O segundo foi aquele teorizado mais agudamente por Venturi: na medida em que

todos produzem arquitetura, qual é o espaço da produção arquitetônica erudita? Neste sentido,

Venturi nada mais fez do que mostrar que, a partir do momento em que a idéia de que todas as

edificações são arquitetura coloca no mesmo nível a produção arquitetônica erudita (ou de

vanguarda) e aquela realizada por não-arquitetos (se pense na apologia da favela presente nos

discursos de muitos arquitetos no Brasil hoje), as competências do arquiteto se desvalorizam,

perdem um espaço que outrora era exclusivamente seu.

Esta perda, segundo Tafuri, abriria espaço para uma nostalgia19, que pode ser percebida em

todas as teorias aqui analisadas. Por este motivo a crítica à arquitetura moderna feita pela

geração 1960 seria ambígua. Por um lado, Lynch e Rowe evocariam algumas das estratégias

discursivas que garantiam a potência da arquitetura reivindicada pelo Movimento Moderno. Por

outro, Rossi e Venturi, ao desconstruírem a possibilidade do arquiteto produzir condensadores

sociais, não conseguiriam fazer propostas positivas para a ação, necessariamente erudita, dos

19 “Quando decidirmos avaliar com objetividade o legado de Louis Kahn para o debate arquitetônico internacional, perceberemos, talvez, que seus efeitos foram muito mais destrutivos do que construtivos. Ou melhor, que estes, fechando todas as brechas à mitologia do eterno retorno dos ‘princípios sagrados’ da tradição do novo, abriram o espaço inefável da narração de uma nostalgia. Nostalgia de um traço que repercorre a própria vivência, à procura do momento, perdido no labirinto de uma história indizível em que perdeu o próprio referencial; nostalgia de universos de discurso, que a arquitetura não pode mais atravessar sem renunciar à própria presença no mundo; nostalgia de uma relação tranqüilizadora entre norma e transgressão, capaz de fazer brotar, do alambique através do qual se destilam rupturas e lacerações, uma ‘circularidade’ da palavra, uma plenitude, uma globalidade derivante da consciência dos próprios limites.” TAFURI, Manfredo. Five Architects NY. op. cit. pp.7-8. (tradução do autor)

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arquitetos de seu tempo. Em seus discursos, a identidade da profissão se desagrega. Não que a

figura do arquiteto deixe de existir, mas sua ação estaria condenada ao isolamento, pois perderia

sua dimensão pública. Em última análise, ao não poder ser condensador social, a arquitetura não

poderia ser mais nada.

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