a defesa dos direitos socioambientais no judiciario

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INDICAÇÕES LITERÁRIAS A DEFESA DOS DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS NO JUDICIÁRIO Por Ana Valéria Araújo* ROCHA, Ana Flávia (Coord.). A Defesa dos Direitos Socioambientais no Judiciário. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003. 544p. Em 1995, enquanto advogada do Instituto Socioambiental – ISA 1 , tive a oportunidade de organizar a publicação do livro A Defesa dos Direitos Indígenas no Judiciário – Ações Propostas pelo Núcleo de Direitos Indígenas – NDI 2 , que reuniu os principais casos levados por aquela organização aos tribunais. Naquele momento, iniciávamos um novo trabalho no ISA, recém-criado, extremamente motivados com a possibilidade de ampliar a experiência até então acumulada pelo NDI. O livro de casos do NDI, como ficou conhecido, tinha o propósito de divulgar e disponibilizar àqueles que se dedicam à proteção dos direitos coletivos no Brasil um trabalho criativo e bastante bem-sucedido em defesa dos direitos indígenas, realizado de agosto de 1989 a dezembro de 1994. Transcorridos quase oito anos desde o lançamento daquele livro, o ISA lança agora uma nova publicação contendo os casos acompanhados por seus advogados desde a sua fundação. Trata-se não apenas da continuidade do trabalho realizado pelo NDI, mas de novas iniciativas instigantes que testemunham a ampliação do trabalho jurídico da instituição e a habilidade com que tem abordado conflitos e questões socioambientais. A Constituição Federal de 1988 é um marco no reconhecimento e estabelecimento de direitos que protegem os mais variados grupos sociais, bem como na fixação de padrões de defesa do meio ambiente e do patrimônio cultural brasileiro. Como exemplo disso, podemos citar o reconhecimento aos povos indígenas do direito a: organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além de direitos originários às terras por eles tradicionalmente ocupadas, que à União cabe demarcar, fazer respeitar e proteger todos os bens nelas existentes (art. 231, caput ). O texto constitucional revolucionou o paradigma jurídico até então em vigor no balizamento das relações entre Estado, sociedade brasileira e povos indígenas, que

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Page 1: A Defesa Dos Direitos Socioambientais No Judiciario

INDICAÇÕES LITERÁRIAS

A DEFESA DOS DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS NO JUDICIÁRIO

Por Ana Valéria Araújo*

ROCHA, Ana Flávia (Coord.). A Defesa dos Direitos Socioambientais no Judiciário.

São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003. 544p.

Em 1995, enquanto advogada do Instituto Socioambiental – ISA1, tive a oportunidade

de organizar a publicação do livro A Defesa dos Direitos Indígenas no Judiciário –

Ações Propostas pelo Núcleo de Direitos Indígenas – NDI2, que reuniu os principais

casos levados por aquela organização aos tribunais. Naquele momento, iniciávamos

um novo trabalho no ISA, recém-criado, extremamente motivados com a

possibilidade de ampliar a experiência até então acumulada pelo NDI. O livro de

casos do NDI, como ficou conhecido, tinha o propósito de divulgar e disponibilizar

àqueles que se dedicam à proteção dos direitos coletivos no Brasil um trabalho

criativo e bastante bem-sucedido em defesa dos direitos indígenas, realizado de

agosto de 1989 a dezembro de 1994.

Transcorridos quase oito anos desde o lançamento daquele livro, o ISA lança agora

uma nova publicação contendo os casos acompanhados por seus advogados desde

a sua fundação. Trata-se não apenas da continuidade do trabalho realizado pelo

NDI, mas de novas iniciativas instigantes que testemunham a ampliação do trabalho

jurídico da instituição e a habilidade com que tem abordado conflitos e questões

socioambientais.

A Constituição Federal de 1988 é um marco no reconhecimento e estabelecimento

de direitos que protegem os mais variados grupos sociais, bem como na fixação de

padrões de defesa do meio ambiente e do patrimônio cultural brasileiro. Como

exemplo disso, podemos citar o reconhecimento aos povos indígenas do direito a:

organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além de direitos

originários às terras por eles tradicionalmente ocupadas, que à União cabe

demarcar, fazer respeitar e proteger todos os bens nelas existentes (art. 231, caput).

O texto constitucional revolucionou o paradigma jurídico até então em vigor no

balizamento das relações entre Estado, sociedade brasileira e povos indígenas, que

Page 2: A Defesa Dos Direitos Socioambientais No Judiciario

era fundado no pressuposto da assimilação, estabelecido na Lei n. 6.001, de

19/12/1973, o “Estatuto do Índio”, a qual entendia deveriam ser os índios fatalmente

absorvidos e integrados à massa geral de nossa sociedade, perdendo suas

características distintivas e deixando, conseqüentemente, de ser índios.

O modelo fixado pelo legislador constituinte opera em sentido muito mais justo e

diametralmente oposto. Ao reconhecer a organização social dos povos indígenas, a

Constituição reconhece-lhes aquilo que os doutrinadores especialistas na matéria

chamam de direito à diferença. Este novo parâmetro, que se reflete, dentre outras

coisas, no direito dos índios de conviverem e interagirem com a sociedade que os

envolve, sem por conseqüência perderem suas identidades próprias, supera

determinismos e os ideais assimilacionistas que historicamente serviram de

justificativa para toda sorte de política de integração compulsória.

É preciso dizer que a Constituição de 1988 vai além do direito à diferença e

reconhece a diversidade cultural e étnica como riqueza a ser preservada, fixando

para o Poder Público a obrigação de zelar pela manutenção do traço distintivo de

inserção dos povos indígenas na sociedade brasileira. De Estado indutor da

assimilação, passamos a um Estado protetor da diferença, o que é uma mudança

monumental.

A Constituição de 1988 também inovou ao dedicar um capítulo inteiro à proteção do

meio ambiente, assegurando, de modo coletivo, o direito de todos – das presentes e

futuras gerações – a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput).

Note-se que os direitos aqui não são garantidos apenas no plano do indivíduo, mas

sobretudo no plano da coletividade, “inclusive a futura”, como sempre assinala o

jurista Carlos Marés.

Vale ainda destacar o tratamento dado à proteção do patrimônio cultural brasileiro,

com a garantia da proteção dos bens materiais e imateriais portadores de referência

à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira (art. 216, caput), além do reconhecimento às comunidades Quilombolas do

direito à propriedade e titulação de suas terras (art. 68 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias – ADCT).

Esse conjunto de direitos – que transita simultaneamente no campo social e

ambiental; entendido como direitos coletivos embora existam também no plano

individual; cujo amparo constitucional gera não só a proteção passiva do Estado, em

face de uma violação, mas também a sua ação efetiva decorrente do dever de pro-

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movê-los, que tem na sociedade o ente que lhe reclama permanentemente a

existência, para que saltem da lei e se transformem em realidade – é o que a

doutrina vem reconhecendo como “direitos socioambientais”. Não são

necessariamente novos direitos, mas direitos tratados numa perspectiva integrada e

renovadora.

Pois é justamente sobre o desafio de transformar esses direitos em realidade que

trata a nova publicação do ISA, A Defesa dos Direitos Socioambientais no Judiciário.

O livro reúne dez casos acompanhados por seus advogados, contendo análises

histórico-políticas, bem como reflexões jurídicas sobre cada uma das ações judiciais

propostas. Além disso, faz uma coletânea das principais peças processuais,

pareceres e decisões proferidas no contexto de cada caso, deixando antever

inclusive os avanços consolidados pelo Poder Judiciário, em especial a Justiça

Federal.

O ISA, na sua busca inovadora da síntese entre o social e o ambiental, tem

trabalhado de forma incessante para traduzir, como diz Marcio Santilli, “os anseios

das gentes que conformam nossos ambientes” e o seu compromisso com o estado

geral do planeta. Este livro mostra que além de êxito nos casos que haviam sido

levados ao Judiciário ainda ao tempo do NDI, os advogados do ISA abriram novas

frentes vitoriosas, deixando antever que existe um enorme espaço de atuação para

a sociedade civil na defesa dos direitos socioambientais em nosso país. Este

espaço demanda competência técnica e dedicação, mas sobretudo disposição,

permeada de sonho e boa capacidade de ousar.

Tenho certeza que esta obra permitirá a outros advogados e aos mais diferentes

atores sociais conhecerem o trabalho do ISA e espero que possam dele se utilizar

para construírem, no dia-a-dia de suas próprias lutas, um Brasil socioambiental.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 O ISA, fundado em 1994, é uma associação civil sem fins lucrativos, que conta em seus quadros

com advogados, antropólogos, biólogos e um grande número de profissionais com formação e

experiência marcante na luta por direitos sociais e ambientais. Seu objetivo é defender bens e

direitos sociais, coletivos e difusos, relativos aos meio ambiente, patrimônio cultural, direitos humanos

e povos. O ISA produz estudos e pesquisas, bem como implanta projetos e programas que

promovam a sustentabilidade socioambiental, valorizando a diversidade cultural e biológica do país.

Page 4: A Defesa Dos Direitos Socioambientais No Judiciario

2O NDI foi fundado em outubro de 1988 por um grupo de índios, antropólogos, advogados e

simpatizantes da questão indígena que haviam trabalhado juntos durante o período da Constituinte

para a aprovação do Capítulo do Índio. O objetivo do NDI era consolidar os avanços alcançados com

a aprovação do Capítulo do Índio na Constituição, no intuito de não só garantir aos povos indígenas o

seu território, como também efetivar, por meio de ações judiciais e políticas públicas, a proteção do

território, garantido-lhes condições de vida para sua própria conservação, bem como reprodução

física e cultural.

*Ana Valéria Araújo é Advogada, sócia-fundadora do ISA e Diretora Executiva da Rainforest

Foundation/US.