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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A DESCOLONIZAÇÃO DA SOCIEDADE PATRIARCAL: UMA ANÁLISE A
PARTIR DO FENÔMENO DA VIOLÊNCIA
Raquel Cristiane Feistel Pinto1
Resumo: A história da humanidade revela uma sociedade marcada pela violência em nome do
poder. A partir desta análise, busca-se compreender o que é a violência e como ela se
apresenta e se constitui nas relações humanas, contribuindo para a formação da sociedade
patriarcal. Constata-se que a discriminação da mulher se constitui em um problema cultural,
social, econômico e político, perpassando por gerações e que, todas as tentativas de superação
deste mal, implementadas até hoje, não são plenamente satisfatórias. Com as ações
afirmativas no Brasil não poderia ser diferente, uma vez que não atuam diretamente na
sociedade e na família, para a conscientização e reconstrução de novos modelos de
comportamentos sociais, pois, para além de atender as vítimas e responsabilizar os agressores,
é imprescindível, descolonizar a sociedade da ideologia patriarcal. Neste artigo foi utilizado o
método de abordagem dedutivo, tendo como metodologia a pesquisa doutrinária em diversos
livros e artigos em relação ao tema.
Palavras-chave: Violência. Gênero. Sociedade Patriarcal. Descolonização.
Constituição da sociedade e relações de violência e poder
Da idade antiga à contemporaneidade, a história está marcada por constantes formas
de violência, tanto no âmbito público quanto privado. Em uma linha temporal da humanidade,
evidencia-se uma sociedade organizada pela divisão de classes, com profundas desigualdades
sociais e, consequentemente, altamente excludente e violenta. As relações humanas sempre se
constituem a partir de uma relação de poder, em que uns exercem sobre outros, em que a
quantidade não é relevante para o exercício deste poder, ou seja, o poder sempre é exercido
por uma minoria que o impõe sob a maioria das pessoas, escravizando-as. Consequentemente,
a violência predomina todas as relações, sejam elas políticas, sociais, culturais ou econômicas,
em todas as épocas. Mas afinal, o que se entende por violência? A violência existe a partir da
agressividade ou violência e agressividade são uma coisa só?
A violência implica numa ação ou omissão de um ou mais agentes, mas que objetivam
um resultado, para além da própria lesão da violência, ou seja, há um desejo implícito na
1 Mestranda em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. UNIJUÍ. Brasil. Ijuí/RS.
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conduta violenta. Assim, de acordo com (Pereira, 1975, p. 27 e 28) a violência não é igual a
agressão pois a violência é a expressão viva da agressão. Para o autor a agressividade não é
exclusividade do homem, pois é um impulso natural do homem, enquanto ser vivo, contudo,
devido a racionalidade humana, a violência torna-se exclusiva do homem, pois trata-se de
uma “agressão calculada, programada, consciente, voluntariosa, objetivamente cruel” que se
manifesta de diversas formas, portanto, a dimensão da violência é muito mais “sutil e
profunda”. Como em qualquer espécie animal encontramos o instinto agressivo, como uma
característica biológica de cada espécie para a sobrevivência, contudo, a violência para
(Pereira, 1975, p. 62) “não é uma consequência do instinto agressivo, mas uma forma de
mutação deformante da agressividade natural”, por isso, consciente e livre. Portanto, a
agressividade e violência não são a mesma coisa e a existência da agressividade não
necessariamente implica na violência, mas a violência implica na agressividade.
Mas então, seria o homem violento por ser um animal? Obviamente que não, “homens
são violentos por serem tão-somente humanos” (BASTOS; CABRAL; REZENDE, 2010, p.
13). O homem é uma espécie pertencente à classe animal e como todos os animais sente fome,
sede, frio, calor, medo, dor, prazer, nasce, reproduz e morre. Também é instintivo como os
demais animais, contudo, diferencia-se de qualquer outro animal pela sua racionalidade que o
possibilita a fazer escolhas para além das necessidades instintivas. Os animais matam outros
animais por uma questão de sobrevivência e não sentem prazer na sua agressividade, são
apenas instintivos. Os humanos, por sua vez, sentem prazer ao torturar e causar dor e
sofrimento aos corpos da sua mesma espécie. Somente o homem é capaz de fazer uma guerra
e matar milhões de seres da sua própria espécie, por uma questão que não se refere a
sobrevivência, que não segue os padrões instintivos, muito pelo contrário, ele age
racionalmente. De acordo com (Arendt, 1985, p. 34) “a violência não é nem animalesca e nem
irracional”, portanto, não se origina do ódio como irracional ou animalismo, mas da ofensa ao
senso de justiça, portanto, a violência é racional.
O homem diferente dos demais animais, pela sua racionalidade, constrói caminhos e se
desenvolve de forma diferente. Nesta formatação da racionalidade, o homem se organiza
dentro de uma coletividade ao qual se relaciona a partir da definição de comportamentos e
condutas a serem seguidos/respeitados, que se diferenciam conforme o grupo e a época. De
acordo com (Odalia, 2012, p. 35) a possibilidade de viver em sociedade “significa criar
normas de comportamento” que vão determinar as condutas e modos de agir dos seus
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membros e “também criar discriminações”. Estas normas de condutas representam aquilo que
é aceito ou não pela sociedade em cada época. Assim, as normas e leis apresentam-se
diferentes em cada contexto histórico-social, limitando os indivíduos e consequentemente
institucionalizando a violência e, desta forma, ditando quais violências são legítimas ou
ilegítimas.
A violência, seja ela legitimada ou não, decorre da concepção daquilo que também se
considera como certo ou errado, do fazer ou não fazer e para (PEREIRA, 1975, p.63) “ [...] A
violência, seja no plano político-social, seja no domínio pessoal, nasce e floresce em
obediência às mutações da sociedade ou em consequência da intolerância humana”. Mas o
que faz com que a sociedade reproduza a violência como que de forma natural?
Pensar a violência como forma, requer uma análise mais profunda do que aquela que
nos remete a violência física, ou seja, requer ir para além do que habitualmente identificamos
como violência. De acordo (ZIZEK, 2014, p.17) “Os sinais mais evidentes de violência que
nos vêm à mente são atos de crime e terror [...]. Mas devemos aprender a dar um passo para
trás [...] identificar uma violência que subjaz aos nossos próprios esforços que visam
combater a violência e promover a tolerância. ” Para Zizek a violência ocorre de diversas
formas e nos diferentes espaços, sejam eles públicos ou privados, apresentando-se como: a)
violência subjetiva – parte visível do fenômeno e é percebida como uma perturbação do
estado das coisas, normal e pacífico; b) violência objetiva – é invisível, imperceptível e se
apresenta sob dois aspectos: b.1) violência simbólica – pelas formas e linguagem, que não
está apenas nos casos evidentes de provocações e de relações de dominação social, mas na
imposição de certo universo de sentido – b.2) violência sistêmica – que é invisível, silenciosa,
hegemônica e extremamente catastrófica, pois suas formas sutis de coerção sustentam as
relações de dominação e exploração. Deste modo, violência não é somente aquilo que os
olhos enxergam e os sentidos captam. Há violência, na maioria das vezes, naquilo que nos
foge aos sentidos e que nos mantem inerte a ela.
Pode-se chegar a duas conclusões importantes: 1º existem diversas formas de violência
na sociedade, contudo, as que saltam aos olhos e são objeto de estudo para sua redução é a
violência subjetiva, uma vez que alteram o estado normal das coisas; 2º por traz da violência
subjetiva existe a violência objetiva (não perceptível) e que sustenta/alimenta o
desencadeamento da violência subjetiva. Portanto, qualquer estudo ou ações afirmativas que
se façam acerca da violência subjetiva (física, psicologia, patrimonial, sexual, moral) em
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todos os contextos humanos, sociais, políticos, econômicos e culturais, sem ao menos
compreender qual a violência objetiva que a mantém, será frustrada.
O sociólogo francês (Bourdieu, 2003, p. 9) fala sobre o poder simbólico que é “um
poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido
imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)”. Este poder é invisível e silencioso,
portanto, atua sem ser visto. Desta forma, esse poder se manifesta através dos chamados
“sistemas simbólicos”, ou seja, através língua, da arte e da religião, que constroem os sentidos
do e para o mundo, que serão aceitos pelo consenso dos demais para integração e ordem
social. Trata-se de uma violência objetiva como forma, culturalmente dominante, de uma
classe ou conjunto de pessoas, através da utilização de instrumentos “estruturados e
estruturantes de comunicação e de conhecimento”.
Desta forma, a classe dominante detém o monopólio da violência simbólica, impondo
de forma inquestionável a realidade social do mundo desejado, como legitima de ser, pois “ A
função propriamente ideológica do campo de produção ideológica realiza-se de maneira quase
automática na base da homologia de estrutura entre o campo de produção ideológica e o
campo da luta das classes.” (BOURDIEU, 2003, p. 14)
O que se compreende por um poder simbólico de dominação implica justamente na
aceitação e compreensão do que é real e verdadeiro para a maioria, portanto, “o poder
simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” [...] mas que se define numa relação
determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos,
quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz.”
(BOURDIEU, 2003, p. 14-15). Portanto, quando se utiliza os sistemas de símbolos (língua, da
arte e da religião) não são exatamente estes que determinam o poder. Não é a palavra, a
pintura, ou uma parábola em si que exerce o poder, mas o que está por traz da utilização dos
símbolos, que dão credibilidade àquilo que se diz, escuta ou vê.
Quando uma categoria de símbolos é prospectada de forma invisível e silenciosa de
certas “verdades”, sem necessariamente serem ditas, não há julgamentos/questionamentos a
respeito do que se quer determinar como verdade e, portanto, consolida-se como um
consenso. Silenciosamente, diversos símbolos, de forma constante e sem coação, produzem a
sua ideologia e os sujeitos às reproduzem naturalmente. É o que acontece, por exemplo,
quando através dos símbolos se molda padrões de beleza, de comportamento, de saúde, dentre
tantos outros. Portanto, podemos concluir que o poder está presente nas relações humanas e
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que se utiliza de instrumentos legitimados (como a violência autorizada) para manter-se.
Além disso, que sua ação se porta a uma coletividade e que não é estático, pois muda com o
tempo e com a sociedade.
O sistema de dominação patriarcal na sociedade
O poder exercido na sociedade constitui um sistema de dominação e de acordo com o
alemão (Max Weber, 1982) o poder é uma possibilidade, portanto, uma probabilidade de
impor uma vontade própria ao comportamento de terceiros. Obviamente, quando o exercício
do poder se exerce de forma dominante, estamos situados de alguma forma nos três grandes
sistemas de dominação social: o colonialismo, o capitalismo e o patriarcalismo.
De regra o primeiro grande sistema de dominação existente na sociedade ocidental é o
patriarcalismo e, posteriormente, o capitalismo atuando sempre de modo concomitante em
que uma mantém o outro. Contudo, nos países colonizados pela cultura ocidental, o primeiro
grande sistema de dominação foi a colonização, que obviamente, alicerçada sob um sistema
patriarcal2, vai se introduzir durante o processo de colonização3, instituindo poder aos
senhores feudais tanto no espaço público quanto privado e, que mais tarde, sob um sistema
econômico cuja concentração de riqueza e livre concorrência, dita as suas normas,
contribuindo para a inserção de um sistema capitalista4.
Assim, processo de colonização na América foi fortemente arraigado pela ideologia
patriarcal - a partir da lógica europeia - que regulou as relações conjugais e familiares,
atribuindo aos homens grandes poderes sobre as mulheres, o que justificava os atos de
violência cometidos. A ideologia patriarcal foi disseminada por todas as classes sociais
inspirando no homem uma relação de poder sobre o corpo feminino e para fins de controle
sendo autorizado o uso da força física. A discriminação e a violência contra as mulheres são
marcas da desigualdade histórica entre os homens e mulheres tanto no espaço privado quanto 2 O patriarcalismo possui o conteúdo de comunicação patriarcal e heterossexual como ordem das coisas, dando
extrema relevância ao gênero e a sexualidade que “funciona mediante um sistema de comunicações praticamente
silenciosas, mas avassaladoramente eficazes na estruturação e dinâmica dos processos de dominação das
mulheres pelos homens e de homossexuais por heterossexuais” (SANTOS e COPETTI, 2015, p. 35).
3 Um processo de colonização marcado por características aristocratas, que se mantinha pelos sistemas
escravocrata e latifundiário. Marcado por discriminações e desigualdades sociais, impostas pelo sistema feudal,
que mantinha a concentração de riqueza e poder, ditando suas leis nas instituições públicas e privadas. Trata-se
de um período extremamente discriminador e violento para negros e índios, principalmente, para as mulheres
que eram constantemente abusadas.
4 O capitalismo é um sistema econômico de domínio da propriedade privada, que visa fins lucrativos através dos
meios de produção, distribuição e das decisões de mercado. Surgiu por volta do século XIX, depois da queda do
feudalismo e rapidamente se espalhou pela Europa.
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no espaço público. São resultados de uma construção sociocultural, num sistema de sujeição,
dominação e poder naturalizados, portanto, reproduzido de geração para geração, pelos
dominadores e dominados. Todo este processo de violência é gerado para controle da
diferença, pois historicamente, a humanidade se divide em dois seres distintos, os homens
(aqueles que pensam) e as mulheres (aquelas que sentem), ou seja, através dos discursos se
naturaliza a heterossexualidade. Nesta perspectiva binária, o sujeito do discurso filosófico, da
história, da ciência, da arte, da poesia, da literatura, da música é masculino (o homem
sinônimo de razão e virilidade), portanto, aquele que dita as regras e as leis. Para justificar a
inferioridade feminina muitas teorias foram levantas ao longo dos tempos e, aliando a um
conjunto de sistemas simbólicos de dominação, que demonstram as diferenças anatômicas e
biológicas e desqualificam fisicamente, socialmente e intelectualmente a mulher,
naturalizaram a superioridade masculina a tal ponto que a mulher compreendeu
“naturalmente” a sua condição de inferioridade e, portanto, sua submissão ao homem. Assim,
a inferioridade da mulher é demonstrada, de modo, que se torne submissa e dependente e,
acima de qualquer dúvida, aceite a sua situação como uma condição natural.
Existe uma força simbólica da dominação masculina, uma forma de poder que se
exerce sobre os corpos, diretamente sem qualquer coação física, que atua como molas
propulsoras sobre os corpos, de forma mecânica, como que natural (Bourdieu, 2003) o que
torna a violência e a discriminação, na maior parte do tempo, imperceptível e, desta forma,
sendo facilmente aceita como um processo natural para as mulheres de modo que elas
mesmas reproduzam esse caminho na educação dos seus filhos.
Para melhor compreensão de Bourdieu podemos atrelar aos quatro elementos da
categoria de gênero proposto por (Scott, 1995) frutos das relações sociais que justificam a
relação de poder. Como primeiro elemento temos os símbolos culturais da mulher, como
Maria símbolo de pureza e virgindade e de Eva e Madalena como perigosas, pecadoras e
sedutoras. O segundo elemento apresenta-se nos conceitos normativos, de forma categórica e
inequívoca da distinção entre o masculino e o feminino, expressadas em doutrinas religiosas,
cientificas, políticas e jurídicas como um consenso social para as práticas discriminatórias. O
terceiro elemento são as instituições e organizações sociais, ou seja, do privado ao público –
família, mercado de trabalho, sistemas educacionais, políticos e de saúde. O quarto elemento,
a identidade subjetiva, construída através do que é apresentado como destino a partir da sua
sexualidade. Assim a força simbólica de dominação masculina passa pelos quatro elementos
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da categoria de gênero, ou seja, se manifesta no ambiente doméstico e se ampliada para outros
espaços, como na Igreja, Escola e Estado e para (Bourdieu, 2003) somente uma ação política
exercida através da cumplicidade objetiva entre estruturas incorporadas (homens e mulheres)
e de grandes instituições (Estado e escola) poderá, em longo prazo, e, trabalhando com as
contradições inerentes aos diferentes mecanismos ou instituições referidas, contribuir para o
desaparecimento progressivo da dominação masculina.
O que se entende é que o destino da mulher é traçado pela imposição dos seus
educadores e da sociedade, e que de acordo com (Beauvoir, 1967) já nos primeiros anos de
vida os sexos e seus caminhos já começam a ser direcionados. Portanto, quando (Beauvoir,
1967, p. 9) diz que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.”, também quer dizer que
ninguém nasce homem: torna-se homem; significando que as desigualdades e diferenciações
subjetivas são construídas a partir de uma visão social, que se inicia dentro do seio familiar, já
na infância, onde são diferenciados pelo sexo os laços de afetos, os brinquedos, os deveres, os
comportamentos, as brincadeiras. Tudo gira em torno das diferenças, entre dominadores e
dominados, desde os contos e sonhos de fadas até o mundo real. A diferença entre homens e
mulheres anatomicamente é indiscutível, no entanto, não pode servir de motivo para justificar
as desigualdades.
As ações afirmativas no Brasil na tentativa de minimizar os efeitos nocivos do sistema
patriarcal
Nas últimas décadas ocorreram avanços significativos para os direitos humanos,
principalmente no que diz respeito às ações afirmativas de direitos igualitários entre homens e
mulheres, tanto no âmbito internacional quanto nacional. Contudo, os índices de violência
contra a mulher no Brasil ainda estão muito além do desejado.
No Brasil a conquista feminina deu-se de forma bem mais lenta que nos países da
Europa. Do percurso da história, o Brasil está na sua oitava Constituição e somente na
Constituição de 1934 é que foi previsto o princípio da igualdade entre os sexos, pois até então,
as mulheres comparadas aos negros não eram cidadãs. Nesta mesma constituição foram
garantidos o alistamento e o voto obrigatório e secreto para homens e mulheres, com a
condição de que as mulheres exercessem função pública, ou seja, o voto era permitido às
mulheres, mas não para todas. Em 1937 foram eliminadas as reservas, mas as mulheres já não
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podiam manifestar-se ou reunirem-se, pois o Brasil estava em regime militar. Com a
Constituição de 1946 houve um retrocesso para as mulheres com a eliminação da expressão
“sem distinção de sexo”, mas previu assistência à maternidade, à infância e adolescência. Em
1967 a nova Constituição apenas reduziu o prazo de aposentadoria das mulheres de 35 para 30
anos (CORTÊS, 2012).
O Código Civil de 1916, altamente discriminatório, inferiorizava a figura da mulher,
tratando-a como relativamente incapaz, com diversas restrições para o exercício da cidadania
– não podia exercer o pátrio poder, abrir conta bancária, fixar o domicílio do casal,
estabelecer atividades comerciais, viajar sem autorização do marido, entrar com ações
judiciais, vender, aceitar ou rejeitar herança sem autorização do marido - deste modo, o
marido era seu tutor.
Em 1977 foi aprovada no Brasil a Lei 6515/77, a “Lei do Divórcio” que possibilitou
a dissolução do vínculo matrimonial após comprovada separação judicial de três anos ou
cinco anos de separação comprovada em juízo. Somente 34 anos depois é que foi admitido o
divórcio no Brasil, excluindo todas as condicionalidades, com a Emenda Constitucional nº 66
em 2010.
Na década de 80 a partir dos movimentos sociais de excluídos e discriminados, em
especial, com a grande participação das mulheres, foram realizadas modificações
significativas na legislação, abarcando alguns direitos e garantias, como derradeiro o art. 5º,
inciso I da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, que declara que
“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” e
no art. 226, parágrafo 5º “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são
exercidos pelo homem e pela mulher”, visando desta forma, garantir a igualdade de gênero e a
proteção dos direitos humanos das mulheres. Outra legislação que consagrou o princípio da
igualdade foi o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, que estabeleceu que o pátrio
poder fosse exercido “em igualdade de condições pelo pai e pela mãe”. Percebe-se, através
da história, que apesar de ser um país bastante diversificado pelas raças e culturas, advindos
do processo de colonização, traz enraizado sérios problemas discriminatórios e de violência.
Com isso, a afirmação de legislações que estabeleçam garantias e direitos às classes de todo
gênero e com respeito à diversidade ocorrem de forma muito lenta no país. Mesmo com a
ratificação da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a
Mulher (1979) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
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contra a Mulher (1994) “Convenção de Belém do Pará” pelo Brasil, ainda assim, pouco se
garantia ou se realizava na prática.
Contudo, num cenário em que o Brasil se comprometia a erradicar a violência e a
discriminação contra a mulher, a partir da ratificação dos Tratados Internacionais, do aumento
da produção e conhecimento científico sobre as relações de gênero, do alargamento dos
movimentos feministas, das pressões internacionais e dos diversos questionamentos da
sociedade quanto às desigualdades entre homens e mulheres, é que, em 2003, se criada a
Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, com o objetivo de elaborar um plano de
políticas direcionadas às mulheres, de modo transversal, ou seja, que as responsabilidades
pelas ações e pelos resultados perpassassem todas as demais políticas, para a igualdade de
gênero, assim como, a responsabilidade das esferas federais, estaduais e municipais. De 2004
até hoje, foram elaborados três Planos Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM5, que
definiram objetivos, metas, prioridades e ações, distribuídas em eixos estratégicos. Em todos
eles, sempre esteve presente o eixo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Este,
certamente é o maior desafio do Brasil no que tange as ações afirmativas para as mulheres,
cuja violência é uma constante nos lares brasileiros.
Neste sentido, é pertinente lembrar que o reconhecimento da violência contra a
mulher como crime ocorreu somente em 1985 com a criação das Delegacias Especiais de
Atendimento às Mulheres (Deam´s) em que na maioria dos casos levados a julgamento, os
autores eram defendidos sobre o princípio da legítima defesa da honra. Em 1995, visando à
celeridade, simplicidade, informalidade e economia, os crimes de violência praticados contra
a mulher foram considerados de menor potencial ofensivo, sendo regulados pela Lei 9.099/95,
que dispôs sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Jecrim´s), cuja pena era doação de
cestas básicas. Em 2003, com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, este
cenário começa a mudar com a consolidação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
Assim, no primeiro plano (PNPM I) um dos eixos estratégicos foi à implantação de
uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, garantindo o
atendimento integral, humanizado e de qualidade às mulheres em situação de violência, de
5 Em 2004 ocorreu a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com o envolvimento de 120 mil
mulheres5, resultando no I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (I PNPM); Em agosto de 2007, foi
realizada a II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com a participação de 200 mil mulheres,
resultando no II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (II PNPM); Em dezembro de 2011 foi realizada a
III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com 200 mil participantes de todo o país e com 2.125
delegadas, consolidando o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015 (PNPM 2013-2015).
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modo a reduzir os índices de violência contra as mulheres, garantindo o cumprimento dos
instrumentos internacionais e a revisão da legislação brasileira para o enfrentamento da
violência contra as mulheres. Neste sentido, em 2005, foi criada a Central de Atendimento à
Mulher – Ligue 180, um canal de atendimento ininterrupto, que recebe denúncias ou relatos
de violência, reclamações sobre os serviços da rede e referência para orientar as mulheres
sobre seus direitos, encaminhando-as para os serviços quando necessário e, ainda, foi
constituída a Rede de Atendimento de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência,
com o objetivo de atuação articulada entre instituições/serviços governamentais, não
governamentais e a comunidade, de atendimento, identificação e encaminhamento adequado
das mulheres em situação de violência.
Em 2006, foi sancionada a Lei 11.340 - Lei Maria da Penha6 -, visando prevenir e
erradicar a violência doméstica, através de políticas públicas. Além disso, trouxe uma série de
medidas protetivas à mulher vitimada e propôs questões para enfrentamento da violência
contra a mulher, a partir da educação, com a inclusão de conteúdos de equidade de gênero,
nos currículos escolares. Os crimes de violência contra a mulher passam a ser atendidos civil
e criminalmente. Percebe-se que as respostas apresentadas pelo Estado brasileiro, a partir da
implantação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, tem se concentrado na esfera
repressivo punitiva. Após a aprovação da Lei Maria da Penha, pesquisas, passaram a indicar a
permanência do fenômeno da violência e a preocupação maior quanto ao número de mulheres
assassinadas no Brasil. De acordo com o Mapa da Violência (2015), dos 4.762 assassinatos de
mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que
em 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex. Isso representa 13
homicídios diários de mulheres em 2013. Ainda, no período de 1980 a 2013, foram
assassinadas 106.093 brasileiras. O número de vítimas femininas de 2003 a 2013 cresceu de
3.937 para 4.762, ou seja, mais de 21% na década. Diante do cenário de falta de eficiência da
legislação em vigor, e continuação da incidência do problema, a medida adotada mais uma
vez foi repressivo punitiva, a partir da entrada em vigor da lei 13.104/2015, que alterou o
código penal, criando uma nova modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio, tido
6 Alcunhada por Maria da Penha, em homenagem à luta da biofarmacêutica cearense que sofreu duas tentativas
de homicídio pelo marido e tornou-se paraplégica, sendo seu agressor condenado após decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. A lei, portanto, resultou de uma punição internacional dirigida ao Brasil, e
de longo processo de mobilização.
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como aquele crime praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino e
incluindo no rol dos crimes hediondos.
Mesmo com avanços importantíssimos para o enfrentamento da violência no Brasil,
em que o legislador ofereceu um conjunto de instrumentos para a proteção e o acolhimento da
vítima, bem como, uma maior penalização ao ofensor, ainda assim, os seus efeitos não
demonstram ser suficientes para coibir a violência de gênero no país, principalmente, quando
nos referimos ao homicídio de mulheres.
Considerações finais
A violência sempre esteve presente na história da humanidade e decorre das relações
humanas, contudo, verificou-se que o homem não é um ser violento pelo simples fato de ser
um animal, pelo contrário, sua ação violenta é sempre motivada por uma racionalidade.
Assim, a violência é um instrumento pelo qual se busca manter uma relação de poder, em que
uns “minoria” exercem o poder sobre outros “maioria”. Evidenciou-se que a violência não é
ou está somente naquilo que os sentidos são capaz de captar, mas há uma violência silenciosa
e que por isso somos inertes a ela. É desta forma que acontecessem os sistemas de dominação
na sociedade, dentre eles o primeiro e mais importante, o sistema patriarcal, através do qual os
homens se tornaram detentores do poder sobre as mulheres, inferiozando-as e subjugando-as.
Evidenciou-se que dentre todas as formas de violência existentes na sociedade, as que
repercutem como objeto de estudo e análise para a sua redução é a violência subjetiva, ou
seja, a violência visível, que altera o estado “normal” das coisas. Contudo, a violência
objetiva (não perceptível) existente por traz da violência visível continua intocável, e mantem-
se retroalimentando a violência subjetiva.
Assim, a violência subjetiva e objetiva se retroalimenta e mantém o sistema patriarcal
nas relações sociais, culturais, econômicas, políticas e sexuais. Portanto, é necessário
reelaborar as ações afirmativas até hoje construídas, a partir da compreensão de que para além
do atendimento às vitimas e da penalização aos agressores, é necessário construir novas
narrativas que transgridam as normas padronizadas e colonizadas em nossa sociedade, que
ditam regras de comportamento e convivência a partir de uma divisão binaria da sociedade, ou
seja, homem e mulher.
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Falar em redução da violência, no mínimo, significa conhecer todas as suas formas e
portanto, deve atuar diretamente nas estruturas em que o poder patriarcal exerce a sua função
e dita suas normas e leis, seja na família, na escola, na sociedade ou no Estado.
Para tanto, é necessária uma nova forma de buscar, apreender e ensinar, não excluindo o
sexo masculino dessas novas narrativas como forma de se fazer justiça, muito pelo contrário,
é preciso pensar e construir a partir do homem e da mulher, juntos e iguais, de modo que as
diferenças biológicas não sirvam para uma construção ideológica da diferença, mas sim para a
construção de novas perspectivas e afirmações imbuídas na igualdade de papéis, pelo simples
fato de serem seres humanos.
Referências
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The decolonization of the patriarchal society: an analysis from the phenomenon of
violence
Astract:The history of humanity reveals a society marked by violence wars in the name of
power. From this analysis, it is sought to understand what violence is and how it presents
itself and is constituted in human relations, contributing to the formation of the patriarchal
society. Discrimination against women, is a cultural, social, economic and political problem
that goes through generations and that all attempts to overcome this evil are still not fully
implemented satisfactory. With the affirmative actions in Brazil could not be different,
because they do not act directly in the society and the family, for the conscience and
reconstruction of new models of social behaviors, because, besides attending the victims and
responsibility the aggressors, it is essential, decolonize the society of patriarchal ideology,
which will not only occur with punitive remedies, but with the reeducation of the subjects. Of
this article was used the method of deductive approach, having as methodology the doctrinal
research in several books and articles in relation to the subject.
Keywords: Violence. Gender. Patriarchal Society. Decolonization.