a educação sob o domínio do capital

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REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA ANO 3: NÚMERO 3/ DEZEMBRO 2011/ ISSN 1984-4734 7 7 A EDUCAÇÃO SOB O DOMÍNIO DO CAPITAL Luciano Accioly Lemos Moreira 1 RESUMO Analisaremos a luz do campo teórico da ontologia marxiana as diferentes formas históricas da educação, e suas diversas funções sociais na reprodução dos indivíduos em cada modo de produção. Posteriormente, demonstraremos sob a perspectiva teórica da economia política clássica e neoclássica a interpelação ideológica e política do capital sobre a classe trabalhadora através da educação. Palavras-chave: educação; capital; emprego; empregabilidade. LA EDUCACIÓN BAJO LA DOMINACIÓN DEL CAPITAL RESUMEN Vamos a analizar a la luz de la ontología teórica marxista de las diversas formas históricas de la educación y sus diversas funciones sociales en la reproducción de individuos en cada modo de producción. Más tarde, vamos a demostrar en la perspectiva teórica de la economía política clásica y neoclásica interpelación ideológica y el capital político de la clase obrera a través de la educación. Palabras-clave: educación, capital, empleo y empleabilidad. A relação entre trabalho e educação, como afirma Saviani (1994, p.148), “praticamente coincide com a própria existência humana”. O homem, ao construir-se como ser social por meio de sua vida ativa transforma a natureza de forma consciente em resposta às suas carências historicamente constituídas. Esse movimento de transformação se dá por um processo ininterrupto de apropriação dos conhecimentos dos meios necessários à sua prática e de objetivação de algo materialmente novo, necessário à sua existência. O mundo dos homens, tanto material como espiritual, dá-se essencialmente pelo modo em que esses indivíduos coletivamente produzem suas vidas pelo trabalho. Contudo, as sínteses das objetivações singulares de cada indivíduo produzem, de forma dinâmica, o complexo do todo social. A totalidade social se movimenta por leis independentes das vontades dos indivíduos, os objetos criados pelos homens se distinguem de suas 1 Doutor em Análise do Discurso na Universidade Federal de Alagoas. Professor do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Alagoas - UFAL– Campus de Arapiraca, E-mail: [email protected]

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    A EDUCAO SOB O DOMNIO DO CAPITAL

    Luciano Accioly Lemos Moreira1

    RESUMO Analisaremos a luz do campo terico da ontologia marxiana as diferentes formas histricas da educao, e suas diversas funes sociais na reproduo dos indivduos em cada modo de produo. Posteriormente, demonstraremos sob a perspectiva terica da economia poltica clssica e neoclssica a interpelao ideolgica e poltica do capital sobre a classe trabalhadora atravs da educao.

    Palavras-chave: educao; capital; emprego; empregabilidade.

    LA EDUCACIN BAJO LA DOMINACIN DEL CAPITAL

    RESUMEN

    Vamos a analizar a la luz de la ontologa terica marxista de las diversas formas histricas de la educacin y sus diversas funciones sociales en la reproduccin de individuos en cada modo de produccin. Ms tarde, vamos a demostrar en la perspectiva terica de la economa poltica clsica y neoclsica interpelacin ideolgica y el capital poltico de la clase obrera a travs de la educacin.

    Palabras-clave: educacin, capital, empleo y empleabilidad.

    A relao entre trabalho e educao, como afirma Saviani (1994, p.148), praticamente coincide com a prpria existncia humana. O homem, ao construir-se como ser social por meio de sua vida ativa transforma a natureza de forma consciente em resposta s suas carncias historicamente constitudas. Esse movimento de transformao se d por um processo ininterrupto de apropriao dos conhecimentos dos meios necessrios sua prtica e de objetivao de algo materialmente novo, necessrio sua existncia. O mundo dos homens, tanto material como espiritual, d-se essencialmente pelo modo em que esses indivduos coletivamente produzem suas vidas pelo trabalho. Contudo, as snteses das objetivaes singulares de cada indivduo produzem, de forma dinmica, o complexo do todo social. A totalidade social se movimenta por leis independentes das vontades dos indivduos, os objetos criados pelos homens se distinguem de suas 1 Doutor em Anlise do Discurso na Universidade Federal de Alagoas. Professor do Curso de

    Pedagogia da Universidade Federal de Alagoas - UFAL Campus de Arapiraca, E-mail: [email protected]

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    conscincias. Ao se porem sobre determinadas relaes sociais tomam rumos e conseqncias por vezes inesperadas. Por outro lado, a atividade humana munida pela conscincia poder apreender as possibilidades dessa nova realidade, e diante das novas necessidades para a sua reproduo como ser social, escolher, dentre as alternativas possveis no real, a que melhor responde ao processo de autoconstruo humana.

    Os homens so concretamente os demiurgos do seu prprio destino, porm, ao analisarmos as aes desses homens no construto de sua histria nos variados modos de produo, percebemos que suas decises dependem do nvel de desenvolvimento de suas foras produtivas e das possibilidades abertas pelo movimento da totalidade social em cada momento histrico.

    Analisaremos a educao numa perspectiva histrico-concreta, ou seja, a educao na sociedade capitalista. Contudo, precisaremos historicizar, mesmo que de forma breve, a educao existente nos outros modos de produo anteriores ao capital. Nessa anlise, tentaremos demonstrar as interdies, limites e possibilidades de uma prtica educativa perpassada pelas questes polticas e ideolgicas, inerentes a uma forma de sociabilidade dividida em classes sociais antagnicas, em que a explorao do homem pelo homem participa das relaes sociais, econmicas, polticas e culturais.

    Nos diferentes modos de produo em que os homens engendram sua existncia, a educao ocupou funes e lugares distintos, conforme a necessidade dessa esfera social na reproduo de um tipo de sociabilidade. O homem, em sua organizao primitiva, fundamentava-se no trabalho coletivo, no qual, tanto as atividades laborativas como as distribuies de seus produtos eram comunitariamente divididas. A educao desse homem no se restringia a um momento especfico, pois sua vida era limitada luta diria na manuteno de sua existncia pelo trabalho. Toda a comunidade participava das atividades produtivas que eram organizadas numa diviso sexual das funes. A educao se configurava, ento, pelo prprio processo de vida ativa, ou seja, era pelo e no trabalho que as novas geraes adquiriam a cultura necessria manuteno dessa forma de vida. "Nas comunidades primitivas, o ensino era para a vida e por meio da vida; para aprender a manejar o arco, a criana caava; para aprender a guiar um barco, navegava" (PONCE, 1988, p.19). Com o passar do tempo, atravs de uma intensa, complexa e contraditria transformao no modo de produzir, os homens primitivos aprimoraram e diversificaram seus instrumentos de trabalho, realizaram a revoluo neoltica (descoberta da agricultura) e domesticaram animais para o corte. Essas transformaes sociais e econmicas possibilitaram o sedentarismo, o uso da terra de forma privada e a explorao do homem pelo homem.

    A educao passa a ser, nesse momento, organizada sistematicamente por um setor especfico de cada sociedade de classe, pois dependendo dos interesses da classe dominante, o acesso daquilo que necessrio aprender estar em seu controle. Ponce (1988, p.36) explica esse fato:

    O ideal pedaggico j no pode ser o mesmo para todos; no s as classes dominantes tm ideais muitos distintos dos da classe dominada, como ainda tentam fazer com que a massa laboriosa

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    aceite essa desigualdade de educao como uma desigualdade imposta pela natureza das coisas, uma desigualdade, portanto, contra a qual seria loucura rebelar-se.

    Nas civilizaes clssicas da antiguidade ocidental, teremos como seus principais representantes a Grcia e o imprio Romano. O trabalho, nesse perodo, caracterizava-se essencialmente pela atividade escravista. Aristteles (2004, p.21), um dos maiores filsofos da Grcia antiga, nos traduz a concepo que o mundo clssico tinha sobre a atividade humana:

    Existem escravos e homens livres pela prpria ao da natureza. Essa distino permanece em alguns seres, sempre que do mesmo modo parea til e justo para algum ser escravo, para outrem comandar; porque preciso que aquele atenda e este mande conforme o seu direito natural, quer dizer, com uma autoridade plena.

    Conforme o autor, era natural a existncia do escravo, visto que ele cumpria um papel produtivo da mesma forma que um instrumento de trabalho ou qualquer outro animal. Os cidados polticos detinham um poder sobre essa estrutura de explorao atravs de foras jurdicas e polticas, pois os lugares econmicos dos indivduos eram naturalmente determinados. O poder do direito e da poltica, mediado pela vigilncia dos militares, forava a massa trabalhadora a exercer sua funo diariamente, mantendo os privilgios de uma vida ociosa para os cidados gregos e romanos. A educao para o trabalhador escravo restringe-se ao ato direto do trabalho, apenas de forma particular, em Roma onde havia casos de alguns proprietrios de escravos treinarem seus trabalhadores com o objetivo de explor-los de forma mais intensa. Furtado2 (2003, p.16) demonstra tal questo quando afirma que:

    A prtica histrica romana diferenciou-se da grega, ainda que esporadicamente, havendo indcios de treinamento para seus escravos. De fato, a despeito de manterem a educao privilegiada, de cunho humanista, para a elite, de considerarem indigno o trabalho e, por conseguinte, imprprio aos homens livres, os romanos reconheciam a necessidade de habilitar os escravos para o trabalho. Referida prtica, incluindo o ensino da leitura e da escrita, era usual entre os proprietrios mais empreendedores, para melhor explorar o trabalho escravo, sobretudo daqueles mais qualificados.

    A referida autora, no entanto, nos alerta para o fato de no atribuirmos essa qualificao como investimento em capital humano, pois no h nenhuma equivalncia histrica entre esse fato e a qualificao em capital humano no capitalismo moderno.

    No modo de produo escravista no houve qualquer resqucio de capital humano, isto porque: nem o escravo era considerado um homem, nem tampouco havia l capital. O escravo era um meio de

    2 A base das nossas reflexes sobre os autores da Economia Clssica e Neo-clssica, nesse

    item, estar fundamentadas na autora: Maria Isabel de Arajo Furtado. Tese de doutorado intitulada: Economia Poltica, Liberalismo e Utilitarismo: As revelaes e os segredos entre emprego e educao. Programa de Ps-graduao em Educao Universidade Federal do Cear, 2003.

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    produo, e o retorno financeiro obtido do investimento em qualificao era ganho equivalente a aumento da capacidade produtiva. Somente isto! (idem, p.17)

    Quanto elite dominante, tanto na Grcia como em Roma, ao viver com um tempo ocioso diferentemente dos escravos, podia dedicar-se a uma formao escolar especfica e necessria sua formao cultural e poltica, imprescindvel sua reproduo como classe dominante. Na Grcia antiga, a vida pblica determinada pela cidade-estado necessitava de um cidado poltico preparado para o exerccio do poder. O discurso poltico e a arte da guerra pressupunham o ideal pedaggico desse momento histrico. A formao do cidado grego compunha tanto o aspecto intelectual poltico e estrategista militar, como tambm a moral, a arte e, por fim, o desenvolvimento corporal por meio da ginstica.

    No caso da educao romana, a formao da elite poltica se dava por uma educao voltada para a retrica, a dialtica e a jurisprudncia, cabedal cultural necessrio funo da classe dirigente de Roma.

    Com a decadncia da antiguidade, motivada pela insustentabilidade da manuteno do seu prprio sistema reprodutivo, os homens e mulheres desse perodo so empurrados pelas contradies advindas do esfacelamento do sistema escravista a formao de um outro modo de produo3, o feudalismo. Esse processo de transio levou pelo menos trs sculos para se completar, pois a no existncia de uma classe revolucionria (impossvel para as condies objetivas da poca) consciente e detentora de um projeto transformador da realidade, fez com que essa transio ocorre-se de maneira catica e lenta.

    A base do sistema feudal estava fundada na produo auto-suficiente e essencialmente rural, em que o trabalhador servil e o proprietrio de terra mantinham laos de dependncia entre si, pois o servo estava preso terra, e o senhor feudal ao servo.

    Durante todo o sistema feudal, a educao do servo limitava-se ao prprio trabalho e no caso da classe dominante, a ociosidade conseguida pela explorao dos trabalhadores possibilitava o surgimento de uma educao monacal intelectualizada e do ensino paroquial controlado pela igreja catlica, a qual detinha um poder ideolgico essencial na transmisso e no doutrinamento das massas atravs da religiosidade. Com o passar do tempo, surgem como possibilidade educativa, nesse mesmo sistema, as universidades que buscavam um conhecimento mais geral e a educao para o trabalho, representado pelas corporaes de ofcios. Essa ltima forma de ensino pelo trabalho artesanal veio a surgir por uma transformao do sistema feudal que, ao entrar em crise, comea a desenvolver novas formas de produo nas cidades, ressurgindo o comrcio que quase pareceu sumir na alta Idade Mdia. 3 Explicando melhor esse fato histrico, recorreremos a Lessa e Tonet (2003, p.38): o

    escravismo pelo seu prprio desenvolvimento, gerou contradies que o conduziram, no dizer de Lukcs, a um beco sem sada. No tinha como continuar a existir e, contudo, no havia nenhum projeto de uma nova sociedade capaz de superar aquele impasse histrico. Os homens no podiam intervir conscientemente no processo de transio; pelo contrrio, foram por este empurrados sem perceber adequadamente o que ocorria.

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    O feudalismo, tendo uma produtividade voltada para o valor de uso no qual a lgica da produo se restringia a subsistncia dos habitantes dos feudos, apresentava em seu interior uma possibilidade maior ao desenvolvimento das foras produtivas, ao contrrio da economia escravista. O servo, diferente do escravo, tinha o direito a posse da metade do que se produzia, inserindo nesse momento uma condio real entre aumento de produtividade e melhoria de vida do servo, acarretando assim, num maior desenvolvimento de seus instrumentos de trabalho e, consequentemente, num aumento da quantidade de excedente de alimentos. Como resultado desse processo, a populao alimentava-se melhor, contribuindo no aumento demogrfico dos feudos instaurando-se, nesse instante, o processo de crise do sistema feudal. Os feudos tinham mais servos do que precisavam e mais produtos do que o necessrio. Lessa e Tonet (2003, p.40) explicam as transformaes dessa crise da seguinte forma:

    Frente a crise, os senhores feudais romperam o acordo que tinham com os servos e expulsaram do feudo os que estavam sobrando. Estes, sem terem do que viver, comearam a roubar e a trocar o produto do roubo com outros servos. Como todo mundo estava produzindo mais do que necessitava, todos tinham o que trocar e voltou a florescer o comrcio. Em pouco mais de dois sculos, as rotas comerciais e as cidades renasceram e se desenvolveram em quase toda a Europa.

    Abre-se nesse momento um outro campo produtivo para longe do sistema agrrio feudal, as cidades com o seu comrcio apresentam na estrutura social, novas classes, os comerciantes e os artesos. Surge nesse instante o sistema de corporaes de ofcios, no qual, mestres artesos ensinavam seus aprendizes a confeccionarem seus produtos. O processo do trabalho dos artesos e de seus aprendizes detinha o controle do que produziam e para quem produziam, no havia uma ciso entre a educao e o seu trabalho, pois o ensino era feito na prpria prtica artesanal. A lgica produtiva artesanal era limitada ao valor de uso e seus clientes eram reduzidos a um nmero restrito, tendo seus ganhos essencialmente limitados. O desenvolvimento produtivo do sistema artesanal no desenvolve para alm de sua capacidade restrita. A concorrncia e o mpeto do enriquecimento desenfreado eram fatalmente refreados e controlados por uma produo que mantinha seus ps na lgica da auto-suficincia dessa produo. Torna-se visvel tal questo quando Furtado (2003, p.20) explica que:

    As associaes de profissionais eram umas formas de enfrentamento, no s da concorrncia dos inmeros servos que afluam s cidades, como tambm das guerras constantes e dos benefcios gerados em compartilhar o trabalho comum, tais como instalaes e comercializao coletiva. As relaes patrimonialistas entre mestres e aprendizes eram estruturadas por inmeras regras que compunham, ao todo, um rgido contrato formal.

    A relao entre mestre e aprendiz fundamentava-se no patrimonialismo, no qual o aprendiz respeitava e almejava alcanar os conhecimentos e as habilidades do seu mestre. Os aprendizes passavam por

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    um rgido critrio de seleo, sua formao se dava tanto pelo aprendizado de um ofcio, como tambm, na garantia da alimentao, moradia, vesturio e assistncia mdica. Sua total formao poderia durar at de dez anos de aprendizagem. A relao entre educao e trabalho nessa formao em nenhum momento se compe em capital humano4, pois a formao e a produo eram direcionadas ao valor de uso dos bens produzidos. A economia significa ainda nesse momento, em um lugar secundrio em relao ordem jurdica e poltica da nobreza feudal, e ao poder da igreja catlica, a qual regia e direcionava a ao das massas. A explorao do homem pelo homem se resumia a uma economia de subsistncia, no havendo nessa forma de reproduo social, o estmulo ao avano da produo. A economia subjugava-se justia: o justo preo a justa troca, o justo salrio eram manifestaes de uma sociedade que utilizava o sistema de valores, sobretudo os divinos, para manter o status quo (FURTADO, 2003, p.20).

    A dualidade entre trabalho e educao no escravismo e no feudalismo so uma constante, a classe trabalhadora aprendia no trabalho e a elite aproveitando seu tempo livre, intelectualizava-se.

    Na construo da sociabilidade capitalista, que se d pela passagem do feudalismo ao capitalismo, a base produtiva, ou melhor, o trabalho, precisou passar por todo um processo de transformao. O servo e o arteso, representantes da laboralidade feudal, dariam lugar ao trabalhador assalariado imprescindvel ao capital. A construo de uma atividade produtora de mercadoria (trabalho abstrato), direcionada ao acmulo de capital privado nas mos da classe burguesa, se estabeleceu num processo rduo, violento e coercitivo da classe burguesa sobre a classe trabalhadora. A classe dominante capitalista necessitava direcionar o trabalho produtor de mais-valia como a nica sada na sobrevivncia do trabalhador, pois a cada desenvolvimento do capital, a classe produtiva se via espoliada dos meios materiais e espirituais para a produo de suas vidas.

    O capital precisou e precisa manter cotidianamente para sua reproduo, como forma de sociabilidade todo um mecanismo complexo, contraditrio e nunca homogneo (no entanto hegemnico) de formas polticas, econmicas, culturais e ideolgicas. Formas essas que convenam os indivduos a adentrarem todos os dias numa rede de relaes de produo e reproduo de suas vidas, como algo natural e estranho a suas foras sociais. Com isso, segundo Hobsbawm (2000, p.279) as classes nunca esto prontas no sentido de acabadas, ou de terem adquirido sua feio definitiva. Elas continuam a mudar.

    A classe burguesa para manter o seu poder sobre o trabalho necessita, desde sua origem e continuamente, resignificar seus mecanismos 4 Capital Humano de acordo com os tericos neoclssicos, principalmente Theodore W. Shultz

    (1960), considera o homem um capital, enquanto que a educao representaria um investimento, potencializando a capacidade produtiva do homem. Por esse vis, tanto o capitalista, como o trabalhador, se configuram em capitais. O primeiro dispe de meios de produo e o lucro como resultado do seu investimento, o segundo, proprietrio de si mesmo, coloca seu capital humano a servio da produo, recebendo no fim, seu salrio. Os dois, portanto, participam, conforme esses autores, harmoniosamente na reproduo da forma de sociabilidade do capital.

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    de poder e convencimento na perspectiva da manuteno de sua forma de explorao.

    Do emprego a empregabilidade: as interpelaes do capital sobre o trabalho e educao

    O capitalismo movido por uma lgica para alm da produo de subsistncia estabelece uma dinmica voltada a expanso e acumulao de riqueza. As foras produtivas do capital so impulsionadas para um desenvolvimento inigualvel, atingindo o pice na Inglaterra do sculo XVIII, com o advento da revoluo industrial.

    A sociedade burguesa marcou o surgimento de uma nova forma de relao entre os homens. Enquanto no feudalismo e no escravismo a vida dos indivduos estava bastante associada coletividade, no capitalismo as relaes sociais so, antes de qualquer coisa, instrumentos para o enriquecimento pessoal. Se para o burgus se enriquecer, ou se tornar ainda mais rico, for necessrio jogar milhes na misria -- ou mesmo matar milhes -- ele assim o far, e a sociedade burguesa aceitar este fato como natural: idiota o burgus que deixar de ganhar dinheiro para promover a vida alheia.5

    Com o incio do perodo industrial, o trabalho no capitalismo adquire uma complexidade tecnolgica maior, exigindo, para sua reproduo, um trabalhador capaz de operar e colocar em movimento novas foras produtivas. A qualificao dos trabalhadores deveria responder nesse instante, as necessidades dessa produo

    A burguesia no podia recusar instruo ao povo, na mesma medida em que fizeram a Antigidade e o Feudalismo. As mquinas complicadas que a industria criava no podiam ser eficazmente dirigidas pelo saber miservel de um servo ou de um escravo. Para manejar certas ferramentas necessrio aprender a ler. (PONCE, 1988, p.145).

    O trabalhador precisava aprender as competncias e habilidades imprescindveis a suas funes laborativas. O conhecimento contribua na formao de indivduos que pudessem operar e consumir o mundo das mercadorias. Weber (2002, p.53) explica que:

    o trabalho deve ser executado como se fosse um fim em si mesmo, como uma vocao. Contudo, tal atitude no produto da natureza. No pode ser estimulada apenas por baixos ou altos salrios, mas s pode ser produzida por um longo processo educativo.

    O mundo da mercadoria, da venda e compra da fora de trabalho foi produzido, inicialmente, de forma violenta. O capitalista precisava destruir todos os laos polticos feudais, como tambm, os instrumentos de trabalho e a terra 5 Lessa (2004, p.9 - mimeo)

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    a que o servo estava ligado. Marx (2000, p.14) apresenta de forma contundente essa passagem violenta da expropriao do servo para o trabalhador assalariado do capital:

    A essncia do sistema capitalista est, pois, na separao radical entre o produtor e os meios de produo. Esta separao torna-se cada vez mais acentuada e numa escala progressiva, desde que o sistema capitalista se estabeleceu; mas, como esta separao constitua a sua base, ele no se poderia estabelecer sem ela. Para que o sistema capitalista viesse ao mundo foi preciso que, ao menos em parte, os meios de produo j tivesse sido arrancados sem discusso aos produtores, que os empregavam para realizar o seu prprio trabalho; que esses meios de produo se encontrassem j nas mos dos produtores comerciantes e que estes os empregassem para especular sobre o trabalho dos outros. O movimento histrico que separa o trabalho de suas condies exteriores indispensveis eis a causa da acumulao chamada 'primitiva', porque ele pertence idade pr-histrica do mundo burgus. [...] A histria de sua expropriao no pode ser objeto de conjecturas: est escrita nos anais da humanidade com letras de sangue e de fogo.

    O trabalhador passa a possuir apenas sua fora de trabalho que deve ser vendida todos os dias ao capital. O trabalho no lhe pertence, os meios de produo no so seus, a objetivao do seu trabalho lhe estranho. Weber (2002, p.49), ao explicar o processo de desenvolvimento do desejo lucrativo dos homens nessa sociabilidade, afirma que o esprito do capitalismo, no sentido em que usamos o termo, teve de lutar por sua supremacia contra um mundo inteiro de foras hostis.

    O trabalho no capital deveria ser livre de todos os limites objetivos e subjetivos da feudalidade. O espao do trabalho burgus torna-se paulatinamente um caminho para o sucesso individual. O burgus e o trabalhador alcanariam dignidade e a produtividade integrando-se ativamente nesse sistema produtivo.

    O empreendedor da nascente sociedade capitalista foi, com esta ideologia religiosa, liberado para a busca do lucro no mbito da produo. Teria ele se libertado dos entraves ticos que a idia crist medieval impunha, sobretudo aos homens ricos. A partir de ento, ter-se-ia legitimado a busca do lucro pelo lucro e do trabalho como instrumento de utilidade. Da, as relaes de produo capitalistas passariam a ser consideradas no s naturais, mas sobretudo desejveis, normais e necessria (FURTADO, 2003, p.24)

    O mundo da mercadoria se desenvolveu por meio de uma relao alienada, ou seja, tanto o processo da produo, como a relao dos indivduos entre si, e o com o mundo produzido pelo trabalhador, precisa ser apropriados pelo capital e para o capital. A relao engendrada pelo trabalho no capitalismo, a qual se estabelece como fundante das outras esferas sociais (educao, poltica, arte...), d-se desde sua gnese aos dias atuais, pela lgica da mercantilizao. Marx (2000, p.13) demonstra essa problemtica:

    A relao oficial entre o capitalista e o assalariado de carter puramente mercantil. Se o primeiro desempenha o papel de senhor e

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    este o de servidor, graas a um contrato pelo qual este no somente se ps ao servio daquele, e portanto sob sua dependncia, mas por cujo contrato ele renunciou, sob qualquer ttulo, a propriedade sobre seu prprio produto. Por que, ento, teria o assalariado feito este negcio? Porque ele nada mais possui seno a sua fora fsica, o trabalho em estado potencial, ao passo que todas as condies exteriores necessrias a dar corpo a esta fora, tais como a matria-prima e os instrumentos indispensveis ao exerccio til do trabalho, o poder de dispor das subsistncias necessrias manuteno da fora operria e sua converso em movimento produtivo, tudo isto se encontra do outro lado, isto , com o capitalista.

    Essa forma de sociedade gera relaes entre mercadorias e no entre os homens. O trabalhador transforma-se em mercadoria e participa de um mundo vazio de sentido para a sua autoconstruo humana. O que interessa a essa forma de sociedade a auto-reproduo do capital. "Com a valorizao do mundo das coisas, aumenta em proporo direta a desvalorizao do mundo dos homens" (MARX, 2003, p.111).

    Tudo no capital deve se transformar em um veculo de troca, de acumulao de riqueza. Os valores-de-uso dos produtos so subjugados aos valores-de-troca. Marx (2002a, p.60) expe as implicaes desse processo na produo das mercadorias, na relao dos homens entre si e com seu mundo:

    Pondo de lado seu valor-de-uso, abstramos, tambm, das formas e elementos materiais que fazem dele um valor-de-uso. Ele no mais mesa, casa, fio ou qualquer outra coisa til. Sumiram todas as suas qualidades materiais. Tambm no mais o produto do trabalho do marceneiro, do padeiro, do fiandeiro ou de qualquer outra forma de trabalho produtivo. Ao desaparecer o carter til dos produtos do trabalho, tambm desaparece o carter til dos trabalhos neles corporificados; desvanecem-se, portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, elas no mais se distinguem umas das outras, mas reduzem-se, todas, a uma nica espcie de trabalho, o trabalho humano abstrato.

    As relaes produtivas do capital eliminam atravs do valor de troca, as diversas qualidades referentes aos produtos. O prprio processo do trabalho com suas diferenas e especificidades intrnsecas a cada atividade produtiva cede lugar quantificao do tempo capitalista, que a tudo abarca e transforma em mera mercadoria com possibilidade de ser trocada no mercado do capital. O homem, nesse processo, torna-se mercadoria que precisa ser trocada todos os dias por salrio, pois a mercadoria homem apresenta-se como o nico produto que diariamente para subsistir, necessita suprir suas necessidades vitais. As foras do capital se colocam como um mundo insuprimvel e avassalador para o trabalhador, pois a economia capitalista

    moderna um imenso cosmos no qual o indivduo nasce, e que se lhe afigura, ao menos como indivduo, como uma ordem de coisas inaltervel, na qual ele tem de viver. Ela fora o indivduo, a medida que esse esteja envolvido no sistema de relaes de mercado, a se conformar s regras de comportamento capitalista (WEBER, 2002, P.48).

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    O indivduo deveria, no processo de transio do feudalismo para o capitalismo, vender-se ao capitalista, pois a ociosidade era considerada vagabundagem e preguia. O lugar do no trabalho seria o castigo ou a caridade religiosa. Leis e toda ordem de controle policial e estatal oprimiam os indivduos e os foravam a trabalhar para essa nova lgica. Marx (2000, p.47) demonstra este fato de maneira contundente ao afirmar que a criao

    (...) do proletariado sem lar nem po despedido pelos grandes senhores feudais e cultivadores, vtima de repetidas e violentas expropriaes era necessariamente mais rpida que a sua absoro pelas manufaturas nascentes. Por outro lado, estes homens, bruscamente arrancados de suas ocupaes habituais, no se podiam adaptar prontamente disciplina do novo sistema social, surgindo, por conseguinte, deles, uma poro de mendigos, ladres e vagabundos. Da a legislao contra a vadiagem, promulgada nos fins do sculo XVI, no oeste da Europa. Os pais da atual classe operria foram duramente castigados por terem sido reduzidos ao estado de vagabundos e pobres. A legislao os tratou como criminosos voluntrios, supondo que dependia de arbtrio o continuar trabalhando como no passado e como se no tivesse sobrevindo nenhuma mudana em sua condio de existncia.

    Desde a constituio do sistema capitalista aos dias atuais, o Estado representa uma fora de vital importncia na reproduo dessa forma de sociabilidade. Furtado (2003, p.27) expe essa afirmao ao explicar que o papel do Estado absolutista foi decisivo na constituio do trabalho assalariado. Utilizou uma legislao coercitiva e arbitrria para domestificar e amoldar os antigos campesinos ao assalariamento. As formas e o modo de controle do Estado sobre o trabalho revestem-se de variadas faces de acordo com o momento poltico, econmico e ideolgico de um dado instante histrico do capitalismo. A ordenao e a legitimao da explorao dos homens pela lgica desse sistema tm sua personificao na figura do Estado burgus. No sculo XVI na Europa os mendigos eram trancafiados em torres, asilos e hospitais, e a educao aliada com a religio e o Estado realizavam toda ordem de interpelaes a massa para participarem do trabalho capitalista. Praticava-se uma pedagogia autoritria para reeducar os trabalhadores e faz-los membros teis do Estado. Assim, no perodo de transio, havia um vnculo direto entre educao e trabalho, permeado pela religio. Associavam-se nos hospitais: trabalho forado, oraes e educao (FURTADO, 2003, p.28).

    O processo tanto de transio do feudalismo ao capitalismo, quanto o estgio desenvolvido dessa nova sociabilidade, pode ser compreendida a partir dos tericos da Economia Poltica Pr-clssica, Clssica e Neo-clssica. Discutiremos com alguns representantes dessas correntes tericas, procurando traduzir a relao entre educao, emprego e capital, partes constitutivas a nossa anlise.

    Iniciando, William Petty (1623-1687) denominado pr-clssico, defende a educao do trabalhador como uma responsabilidade do Estado. A funo dessa formao seria o de tornar a massa de desprovidos em sditos fiis e colaboradores incondicionais do governo (idem, p.33). Petty um dos primeiros tericos a demonstrar uma relao entre educao e aumento de

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    riqueza, pois o trabalho, para esse autor, se constitui numa fonte de riqueza e o homem, num mero fator de produo.

    No exagero afirmar que o economista mercantilista predisse a teoria do capital humano, no s porque relacionou crescimento econmico e qualificao mas, tambm, porque defendeu a necessidade destas habilidades e capacidades serem constantemente ativadas, j que sua ociosidade implicava em sua reduo (ibidem, p.34)

    Educao, para Petty, era um poderoso propulsor do crescimento econmico de um pas. Inaugura-se, atravs desse ideal educativo, a relao entre mais qualificao, maior rendimento ao capital. Contudo, Petty, por encontrar-se num capitalismo ainda em formao, no pode captar as teses sobre a teoria do valor trabalho igualmente aos seus contemporneos da economia clssica. Limitando-se, assim, proposio de polticas pblicas de proteo social, segundo o qual o Estado deveria investir em polticas de sade ao trabalhador para o combate a pestes e epidemias que viesse a arrasar a populao e a produo, no conseguindo, com isso, compor um projeto de formao educacional pblico como possibilidade de um investimento futuro para o capital.

    A natureza humana para Petty era o de um ser indolente, ou seja, preguioso, e por isso, era imprescindvel mant-lo ocupado, mesmo que por meio de trabalhos inteis, formulados e mantidos pelo Estado, pois era preciso formar os indivduos na compulso pelo trabalho, impedindo a ociosidade inoperante para o desenvolvimento. O desemprego, para o referido autor, transforma-se no principal gerador de pobreza e violncia; assim, o Estado deve assumir a manuteno dos pobres e desempregados. Nesse momento, tanto a compreenso como as aes sobre o desemprego partiam de um prisma moral. A falta de disciplina, a desocupao e a preguia so fatores perturbadores da ordem social. A pobreza para Petty algo natural em qualquer sociedade, portanto, tem-se que selecionar dentre os miserveis os que esto nesta condio por falta de emprego e resubmet-los ao trabalho, e para os desocupados voluntrios necessrio toda uma ordem de polticas repressoras com o intuito de refrear a vagabundagem. A compreenso do desemprego circulava em torno de uma questo social e no econmica. Assistencialismo e represso eram vistas como a nica sada para os desocupados.

    Outro terico da economia poltica, David Hume (1711-1776), correlacionava a educao ao fator progresso. O saber detinha um resultado imediato em relao ao desenvolvimento de um pas. A educao tem trs importantes impactos positivos sobre a vida humana: adaptar para o trabalho, garantir a sociabilidade humana e qualificar mo-de-obra para a produo (FURTADO, 2003, p.40). A educao poderia ser um mecanismo de preparao e qualificao dos indivduos ao mundo urbano e industrial do capitalismo. A educao seria um importante locus para a domestificao de uma classe para o trabalho e sua sujeio aos espaos dos direitos e deveres garantidos pelo Estado atravs da cidadania. Hume constri um dos alicerces que sustentaria, no futuro, a teoria moderna do capital humano: qualificao,

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    habilidade e experincia resultariam num aumento da produtividade. Para o referido autor, o prazer material e a busca pelo lucro faziam parte da natureza humana, que, em sua essncia, fundava-se num hedonismo materialista. O mercado capitalista ainda no estava totalmente desenvolvido, havia um aspecto nacionalista e estatal muito forte entre os pensadores desse perodo. Com isso, Petty e Hume elaboram suas teses numa racionalidade regulada pelo Estado e no pelo livre mercado de Adam Smith. As aes sugeridas por Petty e Hume se limitam, portanto, ao campo de atuao do Estado capitalista.

    No sculo XVII, na Europa, a filosofia inglesa organiza os alicerces do pensamento liberal. Thomas Hobbes e John Locke, apresentam-se como um dos maiores representantes desse pensamento. Furtado (2003, p.51) explica que, mesmo Hobbes no sendo um liberal, sua concepo da natureza humana e das relaes sociais presentes no capitalismo retratam a concepo do comportamento competitivo e egosta, que conforme Hobbes (2004, p.99) da guerra de todos contra todos, ou seja, da natureza inalienvel de uma socialidade humana movida pelo interesse individual, contrrio ao bem comum.

    A natureza do homem para Hobbes (2004, p.97) se constitui em trs causas que levam inerentemente a discrdia: a competio, a desconfiana e a glria so caractersticas intrnsecas as relaes humanas e por isso, levam aos seguintes resultados:

    A primeira leva os homens a atacar os outros visando o lucro. A segunda, a segurana. A terceira, a reputao. Os primeiros praticam a violncia para se tornar senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos dominados. Os segundos, para defend-los. Os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferena de opinio e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente endereado a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, amigos, nao, profisso ou seu nome (idem, p.97-98).

    A natureza humana leva os homens a um constante estado de conflito. Furtado (2003, p.53) demonstra que toda competio inter-humana advm da prpria natureza do indivduo, pelo fato de ser finalidade de todo sujeito a obteno de lucro e poder, capacitando-o ao exerccio de domnio sobre os homens. A partir dai, Os indivduos, inerentemente egostas e competitivos, tendem naturalmente ao conflito (idem), essa luta entre os indivduos pelo poder apenas cessa, com a morte. De forma contraditria, Hobbes definiu o homem como um ser egosta, individualista, materialista, competitivo, iguais e livres por natureza.

    A partir do sculo XVIII o trabalho assume um lugar superior ao perodo pr-capitalista. Com as idias sobre a propriedade privada de Locke e do trabalho como fonte de toda a riqueza de Adam Smith, a relao de troca do capitalismo passa a ser o fundamento das relaes sociais, levando sempre essas relaes ao equilbrio do mercado capitalista. Consequentemente, a liberdade de troca deve pressupor todas as relaes do capital, pois tanto o mercado como os postos de trabalho devem ser regidos por essa lei da livre concorrncia. Furtado (2003, p.45) expressa de forma sucinta este momento:

    Os eixos fundantes da nova sociedade liberdade de trabalho, valorizao da iniciativa privada, gosto pelo risco e pelo esforo

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    pessoal, competio acirrada e mobilidade ascendente, como motor de ascenso social so, ineludivelmente, antpodas das sociedades tradicionais.

    O mercado, nesse momento, torna-se o espao equacionador das diferenas sociais, os indivduos isolados e proprietrios de si mesmos podem movimentar-se e, por sua natureza egosta e interesseira, realizar trocas que satisfaam mutuamente seus desejos.

    Locke (2002) afirma que a propriedade representada pelo direito vida, liberdade e aos bens matrias produzidos pelos homens, mostra-se como o princpio definidor ontolgico do homem. A humanizao do homem se encontra no fato de ele se apresentar como propriedade de si mesmo e, dessa maneira, a relao dos indivduos com os outros ocorre pela mediao de interesses individuais, por meio da troca. O mercado capitalista apresenta-se, a partir dessa constatao terica, num espao natural e necessrio as relaes de sobrevivncia entre os homens. O homem, de acordo com esse autor, encontra-se inicialmente num estado de natureza, no qual, seu interesse e sua liberdade so totais. No entanto, esse estado poder, motivado pelo desejo egosta, levar a relaes injustas entre os indivduos, impossibilitando com isso a manuteno de suas propriedades. Locke (2002, p.28) explica que

    provvel que surjam objees a esta estranha teoria, isto , que no estado de natureza todo o mundo tem o poder executivo da lei da natureza que no razovel que os homens sejam juzes de suas prprias desavenas, que o amor-prprio tornar os homens parciais a seu prprio favor e de seus amigos; e tambm, que a inclinao para o mal, a paixo e a vingana os induziro a excessos na punio a outrem, advindo disso to-somente confuso e desordem; e que, por isso, certamente foi Deus quem estabeleceu o governo com o fito de restringir a parcialidade e a violncia dos homens.

    Assim, com o objetivo da conservao da propriedade privada e da liberdade individual, os homens saem do seu estado natural, perigoso manuteno de suas vidas e de seus bens, para a vida em sociedade, possibilitada apenas pela regulao de um Estado sobre os indivduos. O autor define de forma contundente tal necessidade, pois

    o homem nasce com direito a perfeita liberdade e gozo ilimitado de todos os direitos e privilgios da lei da natureza, tanto quanto qualquer outro homem ou grupo de homens, e tem, nessa natureza, o direito no s de preservar a sua propriedade isto , a vida, a liberdade e as posses contra os danos e ataques de outros homens, mas tambm de julgar e punir as infraes dessa lei pelos outros, conforme julgar da gravidade da ofensa, at mesmo com a prpria morte nos crimes em que o horror da culpa o exige, se assim lhe parecer. Contudo, uma vez que uma sociedade poltica no pode existir nem manter-se sem ter em si o poder de preservar a propriedade e, para isso, punir as ofensas cometidas contra qualquer um de seus membros, s podemos afirmar que h sociedade poltica quando cada um dos membros abrir mo do prprio direito natural transferindo comunidade, em todos os casos passveis de recurso proteo da lei por ela estabelecida. E assim, excludo todo julgamento privado de cada cidado particular, a comunidade torna-

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    se rbitro em virtude de regras fixas estabelecidas, impessoais e iguais para todos; e por meio de homens, a quem a comunidade outorga o poder para execuo dessas regras, decide todas as desavenas que possam surgir entre quaisquer membros da sociedade, sobre qualquer assunto de direito, e pune as infraes cometidas com as penalidades estabelecidas pela lei (LOCKE, 2002, p.69)

    O princpio o qual nivela os homens a propriedade, assim, a liberdade de cada indivduo se compe em dispor desse direito. O Estado, portanto, deve conservar e proteger esse direito natural e inerente existncia dos homens.

    A economia poltica, a partir do sculo XVIII com Adam Smith, fundamenta-se numa viso economicista de homem, ou seja, a nica fora motriz de suas relaes sociais o lucro material. O trabalho lana-se como o lugar produtivo, pois a partir dele que as riquezas de uma nao so produzidas. Porm, o indivduo moderno no sobreviveria apenas com o fruto do seu trabalho. As relaes de troca no mercado capitalista por intermdio da compra e venda dos produtos dos variados trabalhos humanos complementaria e tornaria rico ou pobre cada indivduo, dependendo ento do seu poder de consumo. Smith (1985, p.63) demonstra esse movimento como algo natural e necessrio, visto que,

    todo homem rico ou pobre, de acordo com o grau em que consegue desfrutar das coisas necessrias, das coisas convenientes e dos prazeres da vida. Todavia, uma vez implantada plenamente a diviso do trabalho, so muito poucas as necessidades que o homem consegue atender com o produto de seu prprio trabalho. A maior parte delas dever ser atendida com o produto do seu prprio trabalho. A maior parte delas dever ser atendida com o produto do trabalho de outros, e o homem ser ento rico ou pobre, conforme a quantidade de servio alheio que est em condies de encomendar ou comprar. Portanto, o valor de qualquer mercadoria, para a pessoa que possui, mas no tenciona usa-la ou consumi-la ela prpria, seno troc-la por outros bens, igual quantidade de trabalho que essa mercadoria lhe d condies de comprar ou comandar. Consequentemente, o trabalho a medida real do valor de troca de todas as mercadorias.

    Para Smith, a diviso social do trabalho advm da propenso natural dos homens a relaes de troca. Os homens so movidos por interesses egostas de possuir os bens que no podem por si s produzir. A troca comercial algo da prpria natureza humana. Todo homem uma espcie de comerciante e o universo das relaes sociais, um mundo mercantil fundado nas vantagens e nos proveitos pessoais. A sociedade , em ltima instncia, um simulacro do mercado (FURTADO, 2003, p.59).

    Nessa lgica de Smith, os indivduos por serem egostas e propensos a troca, se relacionam-se com os demais por interesses em adquirir o que no possuem. Para adquirirmos os bens de outros homens devemos mostrar-lhes no o que iremos ganhar deles, mas o que eles ganharo com essa troca. Cada indivduo proprietrio de habilidades, conhecimentos e

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    talentos prprios, que podem no mercado serem trocados, beneficiando o conjunto da sociedade. Os interesses individuais por riqueza levaro em seu conjunto o aumento da riqueza de uma nao.

    A educao entra nesse processo como um propulsor do capital humano. Investir em educao poder equipar os indivduos com atributos manuais e intelectuais necessrio ao capital, valorizando a possibilidade de troca no mercado. O capital fixo imprescindvel produo capitalista se equipara, de acordo com Smith, ao capital humano. A educao a qual Smith defendia para o trabalhador era limitada s necessidades do capital. O ensino seria para o trabalhador manual direcionada a uma rpida qualificao e a uma formao mais intelectualizada para os trabalhadores que ocupassem hierarquicamente nveis e funes as quais precisassem dessa qualificao. Saviani (1994, p.156), citando Smith, expe que o ensino para o trabalhador deveria ser administrado de forma homeoptica, ou seja, sem que essa formao entre em contradio com a ordem vigente.

    A concorrncia no mercado capitalista levaria, conforme Smith, a uma equalizao dos salrios e dos lucros do capital. A mo invisvel do mercado livre do capitalismo harmonizaria as relaes entre os diferentes interesses humanos. Quanto ao Estado, no deveria interferir no movimento natural do mundo da troca, mas apenas cumprir sua funo de guardio da propriedade privada.

    David Ricardo representa outro importante economista clssico. Podemos por seu intermdio, esclarecer, do ponto de vista do capital, o desemprego. Para esse autor, o emprego e o desemprego estariam relacionados a trs variveis: o salrio, a populao e o desenvolvimento tecnolgico. O trabalho uma mercadoria como outra qualquer e seu preo dividem-se em duas situaes: a primeira denomina-se de preo natural, com esse valor correspondente a uma base mnima de subsistncia para a reproduo do trabalhador; o segundo valor representa o preo do salrio em relao s leis de mercado, ou seja, a oferta e a demanda por trabalhadores pelo capital resultar em oscilaes para mais ou para menos em relao ao valor natural do salrio. Com o possvel aumento do valor de mercado do salrio, consequentemente, h uma melhoria nas condies de vida do trabalhador, e com isso, um aumento populacional. Esse aumento numrico de indivduos joga no mercado de trabalho excedente de oferta de mo-de-obra, restabelecendo assim, um novo equilbrio entre o preo do salrio natural e o de mercado. Furtado (2003, p.64) conclui, a partir dessas afirmaes, que a oferta de trabalho e, consequentemente, seu preo, so regulados pela populao.

    Para os economistas clssicos, o salrio e a populao so os grandes viles para o sistema de acumulao do capital. O lucro do capital est intrinsecamente relacionado ao salrio, visto que com o aumento da acumulao de capital haver no mesmo montante um aumento populacional. Dessa maneira, ser necessrio a produo de mais meios de subsistncia para o trabalhador, exigindo, assim, um maior investimento em cultivos de produtos para a reproduo dessa classe laborativa. Seguindo esse caminho, o capital precisar empregar mais trabalhadores, os salrios aumentaro motivados pela demanda, ampliando os custos para o capitalista, diminuindo

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    por fim seu lucro. O progresso, desse modo, encontra-se refreado e diretamente o emprego sofrer da mesma forma que o lucro uma diminuio. Uma sada para o no estancamento do lucro do capital apontada por Ricardo, se configura no investimento em maquinaria, no uso da cincia e da tecnologia na produo de mercadoria, com um menor nmero de trabalhadores. O autor parece, assim, encontrar uma possibilidade do capital e do mercado capitalista manter seu crescimento, contudo, em relao ao desemprego considera-o como um mal inerente ao crescimento econmico.

    A economia clssica teria a partir de Jean Baptiste Say (1767-1832) uma grande reviravolta na compreenso da teoria do valor. Smith atribua ao trabalho a capacidade em produzir valores. Ao criticar Smith, Say defende que sua compreenso acerca da produo do capital apreende elementos despercebidos por Smith, pois o valor dependeria de um critrio subjetivo. Assim, os valores das mercadorias estariam na utilidade que elas teriam para cada consumidor, e no no trabalho. A satisfao de cada indivduo pela aquisio de algo pela troca constri os valores em cada mercadoria. Com isso, se o trabalho no produz o valor das mercadorias, no h mais a distino entre a quantidade de renda e de propriedade do capital sobre o trabalhador. Os trabalhadores e os capitalistas, tanto urbano como os ligados a renda da terra, so apenas partcipes de uma mesma produo. As classes desaparecem, havendo apenas sujeitos que contribuem de acordo com sua especificidade na produo da riqueza. Say defende que h uma harmonia entre as esferas e o que conta, no final, o esforo dessas esferas em criar valores teis a serem consumidos no mercado capitalistas. Say define o homem como um ser de necessidades. Quanto maior o consumo, maior o bem-estar da sociedade e maior o progresso da indstria. (FURTADO, 2003, p.66).

    O esprito humano, definido por Say, essencialmente hedonista, ou seja, deseja incessantemente o prazer imediato, uma vez que o o caminho para a felicidade e para a satisfao pessoal. Sendo o mercado consumidor o gerador de valor e de riqueza, o pas ser tanto mais rico quanto mais consumir.

    A educao surge como um proporcionador no aumento de capital humano para o trabalhador. Os talentos e as habilidades apreendidas por seu investimento em educao no podem ser transferidos e nem retirados desse ser, apenas pode ser convertido em aumento de produo e progresso para o pas. Educao voltada para a qualificao do trabalhador , para Say, o mesmo que capital acumulado, j que talento e conhecimento acumulado uma forma de riqueza.

    A partir do sculo XIX surgem os precursores da Economia Poltica Neoclssica. Em 1848, John Stuart Mill (1806-1873) formula as bases de uma teorizao sobre o capital humano. A qualificao escolar tcnica equivaleria o mesmo que meio de produo, e com isso, a educao profissional uma riqueza externa do homem que deveria ser adquirida por uma formao. Furtado (2003, p.69) demonstra as bases desse corpo terico:

    Como o conjunto de capacidades e competncias constitui riqueza produtiva, a tarefa de educar para o trabalho, propedutica imprescindvel na transformao do indivduo num trabalhador futuro, mais habilidoso e produtivo, comporta custos que devem ser

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    ressarcidos tais quais outros custos de produo quaisquer. Como so estes custos relativos ao trabalho, o retorno acontece atravs de maiores salrios pagos ao trabalho qualificado, ou ainda mediante restituio das despesas auferidas com referida aprendizagem.

    Ganha, nessa formao, o trabalhador, por adquirir um valor melhor no mercado de trabalho, e o capitalista, pela possibilidade concreta do aumento da produtividade. Complementando a formao educativa, Mill indica o cuidado com a manuteno sade do trabalhador, para que essa classe laboral no perea. A formao escolar e a assistncia com a sade do trabalhador deveriam ser computadas como um custo produtivo do capital.

    A educao toma em Mill, explicitamente, um aspecto importante para o crescimento da riqueza material de uma sociedade. O trabalhador ao acrescentar habilidades e talentos, incorpora utilidades essenciais a sua autovalorizao como capital de si mesmo e potencializa seu poder produtivo para a lgica desse sistema. O trabalhador um capitalista dele mesmo, por ser possuidor de um capital pessoal acumulado com trabalhos pretritos (idem, p.70). Capital e trabalho so anlogos, ou seja, so dois elementos necessrios e iguais para a produo de riqueza, os dois so proprietrios, o primeiro de si mesmo, e o segundo, dos meios de produo. Desaparece assim a luta de classes, os antagonismos do lugar a um acordo entre elementos teis produo de mercadoria.

    Mill explica, em relao ao salrio, que de acordo com a qualificao, o salrio dever diferenciar-se de preo, pois, para quem melhor preparado, seu valor de mercado ser superior. Os preos se equalizaro no movimento da concorrncia dos mais qualificados com os menos preparados.

    O Estado no deve interferir nas leis livres do mercado, no entanto, poder intervir em sadas a quais no diminuam os ganhos do capital. A criao de mais postos de trabalho na tributao; a reduo de salrios; um maior investimento em qualificao do trabalhador, o qual poder produzir mais em um menor tempo, aumentaro a produo e, consequentemente, a necessidade de novos empregos. Uma outra sada defendida pelo referido autor ocorre pela introduo da tecnologia e da maquinaria na esfera da produo, demandando em outros setores novos postos de trabalho.

    Mill opem-se as polticas pblicas de controle sobre os salrios e empregos, pois o assistencialismo anula as leis da concorrncia. Os trabalhadores, ao perceberem que suas existncias independem dos seus esforos, acomodar-se-o a ajuda do Estado.

    Stuart Mill sofre uma forte influncia da lei de Malthus, ou seja, a propenso a alta reprodutividade da classe trabalhadora faz surgir um aumento crescente da populao e, com isso, uma intensificao do desemprego, da fome e da misria em geral. Os instintos animalescos e naturais da reproduo, principalmente dos trabalhadores, devem ser regidos e orientados pela civilidade racional do homem moderno. Mill prope a divulgao de uma teoria da populao entre os pobres. Seu objetivo manifesto era adequar os hbitos e costumes da classe trabalhadora ao mercado (FURTADO, 2003, p.), fazendo-a consciente das leis invariveis da concorrncia. Portanto, a educao seria

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    um dos meios mais importantes e eficazes na formao de uma civilidade domestificadora e adequadora dos homens a ordem do capital. O mercado passou a ser o eixo da vida social, e, em torno dele, tudo passou a girar, inclusive a educao (FURTADO, 2003, p;75).

    Os homens, para Mill, continuam em sua essncia: egostas, materialistas, individualistas, movidos pelo lucro e interesses pessoais; faltava apenas inserir a educao condio tambm de mercadoria. Todas as relaes e esferas sociais do capital comeam a fazer parte do binmio lucro/custo.

    As relaes entre os homens vo tomando um rumo cada vez maior para o individualismo. Cada indivduo, sendo proprietrio de si mesmo, detm o poder e a posse de suas habilidade e talentos. Cada ser humano basta-se a si mesmo. As relaes que os levam a terem entre os outros indivduos partem essencialmente da possibilidade do autobeneficiamento de cada um em adquirir bens teis a sua auto-satisfao. O Estado deve garantir a propriedade privada a cada indivduo. Os limites e a liberdade das relaes sociais so demarcados pela propriedade que cada indivduo possui no mercado livre capitalista.

    Furtado (2003, p.77) esclarece o caminho do homem econmico de Adam Smith e Ricardo ao homem do mercado de Say e Mill, essa passagem traz conseqncias importantssima na instaurao da educao como capital humano, pois

    do homem econmico naturalmente inclinado para a troca originou-se a diviso do trabalho e, com ela, a lgica de uma sociabilidade fundada no mercado. Com efeito, a interdependncia de sujeitos, intensificada pela diviso do trabalho teoricamente fonte de cooperao e solidariedade social. Logo, o mercado, esta instituio inumana, imps como fora social impessoal, externa e coercitiva conquanto tenha gerado benefcios para todas as classes, sendo ainda, para os liberais, fonte de harmonia social, justia e equidade.

    Com certeza a teoria de Adam Smith e Ricardo contribuiu para a formao de uma base no surgimento de uma teorizao do capital humano, s que seus fundamentos tericos, por partirem do trabalho como o fundamento da produo de mercadoria, limitam a questo do valor aos bens materiais e concretos produzidos pela atividade humana. Os economistas clssicos no superam a dicotomia entre capital e trabalho, necessria ao desenvolvimento pleno da teoria do capital humano. A educao apenas pode se tornar mercadoria, ou melhor, capital humano, quando existir a equivalncia absoluta entre capital e trabalho. Essa equivalncia iniciada pelos economistas Say e Mill entre outros, que atribuem a um fator subjetivo o valor das coisas. A utilidade de cada mercadoria reside na satisfao pessoal de cada ser humano. O valor, portanto, medido na sensao de prazer que os indivduos de maneira particular sentem ao possuir uma dada mercadoria.

    Jeremy Bentham, no sculo XIX, revive o hedonismo de Hobbes. A teoria utilitarista de Bentham define o valor como um fator psicosocial, em que tudo que serve a vida, a felicidade e a satisfao produzem valor. O homem se movimenta pela busca do prazer (lucro), incessante e imediato, e, para isso,

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    deve constantemente confrontar-se com a dor (custos) na conquista dos seus desejos pessoais.

    Alfred Marshall (1842-1924) lana-se como um dos grandes representantes da Economia Poltica neoclssica. Sua concepo da sociedade capitalista parte da idia de um todo complexo harmonioso, de onde o capital e o trabalho cumprem funes complementares e de iguais estaturas, maximizando utilidades para serem trocadas e adquiridas no mercado.

    No capitalismo, para Marshall, no existem relaes de antagonismo, ou seja, de explorao de uma classe sobre a outra, pois tanto o trabalhador como o capitalista so donos de capital. O primeiro do seu capital humano, sua prpria fora de trabalho, habilidade, talento e conhecimento se apresentam em propriedades imprescindveis para a produo; e o capitalista, dono dos meios de produo, participa em igual poder com o trabalhador na produo de bens teis para os consumidores. Furtado (2003, p.91) explica que a igualdade entre o capital e o trabalho

    fez deles dois agentes produtivos que cooperam mutuamente na produo, sendo remunerados por suas respectivas competncias. Para Marshall, o congraamento entre ambos estava tambm na esfera da distribuio. Os lucros resultam de um esforo extra dos empreendedores, equivalentes aos ganhos adicionais dos operrios pela realizao de trabalhos extras. A paridade entre lucro e salrio justifica-se, para o economista neoclssico, atravs de um argumento hedonista e utilitarista: toda remunerao econmica advinha do desprazer, da fadiga de um trabalho, o qual considerou universal.

    O desprazer ou a dor da atividade de ambos (capitalista e trabalhador) produzem no fim a possibilidade da satisfao, expresso no lucro e no salrio, possibilitando o consumo. Essas so as bases para a compreenso da educao como capital, visto que o conhecimento e as habilidades ensinadas por essa atividade social se constituiro numa potente mquina produtiva, possibilitando a transformao da natureza em produtos que satisfaam as necessidades dos homens. A maior liberdade defendida pelo autor est no trabalhador, j que por ser proprietrio de si mesmo, do seu capital humano, pode empreender em qualificar-se, potencializando seu capital, que por sua natureza no poder ser transferido a ningum, nem tampouco roubada dele mesmo. Assim, por esse intermdio, o capitalista que possivelmente investiu na aprendizagem do seu trabalhador, precisa apropriar-se desse capital humano para poder produzir. O trabalhador pode livremente escolher o melhor preo por seu capital qualificado e necessrio aos produtores.

    Marshall, ao discutir sobre o desemprego, explica que na relao entre salrio renda do trabalhador e custo para o empreendedor est justamente o fator que poder gerar esse mal. Se o salrio for maior que a produtividade, poder haver desemprego, pela relao desigual entre esses dois agentes produtivos. Contudo, os conflitos entre empregados e trabalhadores sobre os salrios reais so eliminados pelos ajustes que decerto ocorrem no mercado, caso este permanea livre (idem, p.98).

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    Partindo do pressuposto que tanto os trabalhadores como os empreendedores so capitais, os primeiros devem para burlar o desemprego (fato natural regido pela prpria lei da oferta e procura do mercado), explorar novos ramos de atividades nascentes no mercado de trabalho. Para isso, se qualificar para o inesperado, tornando-se mais criativos; ou pelo contrrio, como os indivduos so movidos pelo prazer, evitando a dor, a busca por salrios e rendas mais altas (prazer) levar-nos-iam a evitarem os baixos salrios ofertados no momento.

    Sendo assim, o referido autor formula uma equao que poderia ser representada da seguinte forma: Trabalho+qualificao=capital humano e progresso.

    Por fim, Theodore W. Schultz a partir de 1960, sistematiza a teoria sobre o capital humano. Esse economista pertencente Escola de Chicago vincula a capacitao do trabalhador por meio do conhecimento como um mecanismo potencializador do crescimento econmico.

    Furtado (2003, p.104) define de maneira sinttica o que seria capital humano para Schultz:

    De acordo com os argumentos de Schultz, o capital humano compreende um conjunto de habilidades, conhecimentos, tcnicas especficas, hbitos de trabalho, sade etc., os quais influem diretamente na capacidade pessoal para a realizao de trabalhos produtivos. Os gastos financeiros investidos para melhorar referidas competncias influem positivamente sobre o trabalho e as estruturas socioeconmicas, aumentando a renda futura, as possibilidades de emprego, de mobilidade social e fomentando, ainda, o crescimento econmico, entre outras influncias.

    Capital e trabalho se complementam e, intrinsecamente, entrelaam-se num movimento produtivo, no qual todos ganham. Portanto, deve-se investir no capital fixo e, sobretudo, no capital humano do trabalhador. No h, diz o autor, diferena entre o operrio e o capital, mas uma interdependncia produtiva e necessria. A relao dialtica entre essas duas esferas daria, em sntese, o capital.

    A educao, por esse prisma, adquire um sentido de investimento humano necessrio ao crescimento da produo. O capital humano desenvolvido no trabalhador, atravs de uma formao sob a lgica desse sistema, transforma o individuo produtivo em um bem de consumo e um bem de inverso, ou seja, o trabalhador consome conhecimentos, talentos, habilidades e competncias que os tornam capitais humanos com um maior valor produtivo para o mercado. No presente e no futuro, o capital investido em si mesmo se converter em potencializador de servios necessrios produo. O capital humano para ser adquirido demanda custo numa dada formao. O preo para obt-lo deve advir de investimentos pblicos e privados na formao dos indivduos trabalhadores. Esse investimento converte-se numa ampliao de salrios e rendas, estimulando, por sua vez, um desenvolvimento do capital.

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    Cabe a educao desvelar talentos, aperfeioando-os para a tomada de decises no universo do mercado, supostamente caracterizado como um mundo de opes em funo da diversidade da oferta e demanda de produtos e servios (FURTADO, 2003, p.109). A formao para a aquisio de capital humano no se restringe ao fato de formar para a produo ou para a prestao de servios ao capital, mas tambm na elaborao de um ser humano que, em todo o seu ser expresse-se e movimente-se em funo da reproduo dessa forma de sociabilidade. Sua formao, atividade produtiva, seus direitos e sua satisfao com o consumo acontecer no entrelaamento e no envolvimento do indivduo nas relaes da sociabilidade capitalista. a formao de um ser integralmente capitalista, visto que no h mais classes, pois tudo capital. Portanto, por esse intermdio, h uma mercantilizao e uma integrao do ser dos homens a um sistema que lhes d sentido, pois permite, estimula e valoriza o desenvolvimento da sua natureza humana que, desde a gnese do capital, vem se construindo. nesse momento que a formao do homem, por esse ponto de vista, expressa a essncia humana. O impulso natural posse, ao lucro, ao egosmo, ao individualismo e a preservao e expanso de sua propriedade (tanto humana, como meio de produo) podem, nessa estrutura relacional do mercado livre e igual desse sistema, desenvolver-se ao infinito. Furtado (2003, p.110) perfaz um caminho, demonstrando um fio condutor terico que se mantm e se complementa dos primeiros liberais aos economistas neoclssicos em relao s questes mais essenciais sobre a relao entre educao, trabalho e capital:

    Dessa forma, o indivduo foi dicotomizado em dois outros, aparentemente opostos. Para o paradigma liberal, a partir da formulao de Locke, o sujeito humaniza-se por ser um proprietrio de si mesmo, tendo, pois, a fruio de suas capacidades fsicas e intelectuais. Mas ele, tambm, a um s tempo, portador de ativos produzidos pelo capital humano, sendo assim, um investidor de si prprio e, como tal, capaz de gerar rendimentos, os quais lhe proporcionaro futuras satisfaes. Referido capital , a um s tempo, humano, por ser parte integrante do homem, e capital por propiciar, no futuro, recompensas determinadas. Por fim, a categoria terica capital humano tem, como corolrio, a educao como propriedade possuda, da qual seu dono tem a fruio. Referido postulado neoclssico indica, como proposio dedutvel, que os indivduos se diferenciam uns dos outros, no s por seus atributos herdados, mas, sobretudo, por aquelas capacidades adquiridas.

    O capital humano , para Schultz, intransfervel, pois quem possui poder satisfazer-se tanto na produo, como no consumo, explicando, os indivduos ao adquirirem as capacidades as quais o capital necessita, tornam-se mais produtivos, e com isso, propcios a empregar-se no mercado capitalista. Satisfazendo dessa maneira, as necessidades de lucro do sistema do capital e conquistando por meio dos seus rendimentos pessoais, a possibilidade do prazer e da satisfao pessoal por intermdio do consumo. Por meio dessa formao, de acordo com os tericos do capital, os indivduos podero adequar-se a qualquer circunstncia e situao que esse sistema

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    necessitar. O trabalhador, possuindo capital humano, poder metamorfosear-se naquilo que o sistema precisa.

    Educar para o emprego, ou seja, preparar os indivduos terica e praticamente para o mundo do trabalho no capital representa um processo de vital importncia na continuidade dessa forma de explorao. A composio de uma classe trabalhadora refm de um poder estranho ao seu controle na busca para a sua sobrevivncia configura-se num longo e contraditrio processo histrico, no qual o capital precisou e precisa continuamente manter seu controle sobre o trabalho. O sistema social capitalista insere cotidianamente um nmero suficiente e necessrio de trabalhadores lgica produtiva, garantindo e naturalizando essa dinmica embrutecedora e deformadora dos homens como uma relao eterna e nica para o trabalho humano. As interpelaes do capital sobre os trabalhadores apresentam as mais variadas formas, dependendo do momento histrico, das crises conjunturais ou estruturais a quais o sistema esteja passando e das condies possveis de convencimento abertas pelas lutas de classe.

    Na atualidade de crise profunda do capital de modo global a educao no se ocupa apenas da formao para o emprego, mas tambm, e principalmente, numa formao para o desemprego, o emprego precrio, o subemprego. O controle das tenses sociais cada vez maiores em todo o mundo revela a necessidade da preparao das mentes, dos espritos e das foras sociais do trabalhador cada vez mais explorado, ou pior, desempregado. Este controle toma forma poltica, ideolgica e econmica variada, conforme o jogo e a luta de classes. A reproduo do sistema do capital nunca precisou tanto do poder ideolgico da educao no intuito de manter a ordem em meio ao caos. No entanto, na histria do capitalismo a cada perodo contrarrevolucionrio, tem-se na mesma proporo e fora, um movimento revolucionrio. Desse modo, se vivemos o perodo mais longo de contrarrevoluo da histria, no qual o capital coloca de joelhos sua fora antagnica: o trabalhador; esperamos que em algum outro momento esta luta se inverta, e quem sabe como diz Marx, inicie-se a histria da humanidade com base no trabalho livre e associado.

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