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U N I V E R S I D A D E D E L I S B O A
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
A EDUCAÇÃO CORRECCIONAL DE
MENORES EM INTERNATO
D isc u r so p e d a g ó g ic o e p r á t ic a s
DISCIPLINARES DA MODERNIDADE
Por
César Rufino
Dissertação de M estrado em Ciências da Educação
História da Educação e Educação Comparada
Lisboa, 2004
5 ( B I BL I OTECA
U N I V E R S I D A D E D E L I S B O A
Faculdade de Psicologia e de Gêndas da Educação
A EDUCAÇÃO CORRECCIONAL DE
MENORES EM INTERNATO
DISCURSO PEDAGÓGICO E PRÁTICAS DISCIPLINARES DA MODERNIDADE
Por
César A ugusto da Fonseca Rufino
Dissertação de Mestrado em G êndas da Educação
História da Educação e Educação Comparada
Sob a orientação do Professor Doutor António Nóvoa
Lisboa, 2004
Resumo
Durante o século XIX, o surgimento de novas economias
políticas centradas nos indivíduos e não só nas populações, bem
como outras formas de conhecimento especializado de base
científica, criaram novos domínios de acção que moldaram a
emergência de instituições disciplinares, como a escola, que
reflectiam uma nova atitude no govemo da criança, constituindo-se
como uma expressão da modernidade. Entre elas, as instituições
correccionais de menores, constituem um conjunto possível para
analisar de que forma se desenvolveram um conjunto de artefactos
disciplinares, que se foram deslocando do domínio dos corpos para
a construção moral, de maneira não coerciva mas persuasiva. O
objectivo deste texto é a busca da compreensão de como os regimes
fortemente disciplinares, combinados com um discurso pedagógico
sobre como actuar com a criança, pretendiam produzir uma
transformação nas aptidões do menor marginal de modo a que
aceitassem uma certa medida de normalização social, pela
construção da sua autonomia e responsabilidade através do
internamento numa instituição educativa. Para isso, procedeu-se à
análise da evolução das instituições correccionais que em Portugal
instauraram modalidades regimentais inovadoras e consentâneas
com a modernidade, bem como à discursividade da. pedagogia
científica que acompanhou essa evolução.
.Palavras-chave: alunos; disciplina; educação correccional; internato;
Tutoria de infância; modernidade pedagógica.
Abstract
The main purpose of this text is to trace how the disciplinary
regimes combined with the pedagogical discourse intended to
produce a transformation in the marginal children, so that they accept
moral normalized social rules and become autonomous and
productive. During the 19th century, the arising of new politic
economies, centered now in the individuals and not only in
populations, and the emergence of new discourses of specialized
knowledge, created also new domains of action that shaped new
social disciplinary institutions, in a context of pedagogical modernity
and new social attitude to the children. Among them, the correctional
institutions for children developed a set of disciplinary devices,
gradually progressing from the exercise over the body of subjects to
become addressed and persuasive to the self of the subject, seeking to
shape his conduct but maintaining the use of a disciplinary regulation.
Those institutions, and their regimes of practices, are the technical
support of the path of modernity to regenerate and educate the
delinquent and deprived children. To accomplish the aim of this
study, were analyzed the progression of the regimental practices and
pedagogical discourses of those institutions in Portugal.
Keywords: Correctional institutions; disciplinary regimes; pupils;
boarding schools; pedagogical modernity.
ÍNDICE
Agradecimentos ix
Introdução 13
PARTE I 29
O b je c t o , c o n c e it o s e m e t o d o l o g ia 29Considerações iniciais 31
O objecto de estudo e a sua dimensão 37
Alguns conceitos adoptados 45
A correcção social 46
A semiótica da modernidade 48
Uma analítica do discurso 52
Disciplina e instituições disciplinares de controlo social 55
A disciplina e o castigo na acção pedagógica 60
A govemamentalidade 63
Percurso metodológico 67
PARTE II 71
A CRIANÇA E AS SUAS CIRCUNSTÂNCIAS 71A configuração de uma necessidade 73
Entre a Igreja e o Estado, o privado e o público 87
A disciplina enquanto artefacto pedagógico 99
A clausura e a distribuição celular 111
A educação tutelar institucional 127
A incorporação dos chegados 134
A aprendizagem do e s ta r e dos s a b e r e s 140
v
A devolução social do internado 146
A Real Casa Pia de Lisboa e a correcção social 153
Uma ideia fundadora e várias populações 161
A ordem disciplinar casapiana e o normativismo 171
PARTE III J85
EDUCAÇÃO ÇORRECCIONAL E MODERNIDADE 185
Uma leitura de modernidade no campo reeducativo 187
As instituições modernas (1871-1962) 199
A Casa de Detenção e Correcção ( 1871 ) 203
A Colónia Agrícola Correccional ( 1880) 219
A Correcção Feminina ( 1903) 224
A tutela jurisdicional de menores (1910) 227
A Tutoria e o Refúgio da Infância (1911) 230
O Refugio da Tutoria (1911) 246
As instituições Médico-Pedagógicas (1915) 251
A Escola Agrícola de Reforma (1919) 258
Considerações finais 261
FONTES DOCUMENTAIS E BIBLIOGRÁFICAS 269
Arquivos e Centros documentais 271
. Fontes documentais 272
Fontes bibliográficas 277
Referências bibliográficas 286
vi
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 — A disciplina higienista dos corpos e o exemplo pedagógico
da excepção..................................................................................................118
Figura 2 — Os uniformes na Casa Pia na década de 1920................................143
Figura 3 — Entrada, processo e devolução..........................................................151
Figura 4 - 0 “currículo” casapiano em meados de Oitocentos....................156
Figura 5 — Dois dos primeiros internos na Casa de Correcção de
Homens da Casa Pia.................................................................................. 165
Figura 6 - A ocupação total do tempo de um dia lectivo............................... 167
Figura 7 - Evolução dos castigos físicos e morais na CPL............................173
Figura 8 — A celebração colectiva da refeição................................................. 175
Figura 9 - A ginástica, o corpus e a formação militar.........................................183
Figura 10 - A dieta científica casapiana...............................................................190
Figura 11 — Cronologia da especialização correctiva institucional..............197
Figura 12 - Asilo Nuno Álvares, fundado em 1911; lotação: 600
alunos.............................................................................................................201
Figure 13 - Caracterização dos colonos e seus antecedentes........................ 220
Figura 1 4 - 0 economato disciplinar na Colónia Correcdonal de Vila
Fernando.......................................................................................................223
Figura 15 - Correcção Feminina..........................................................................225
Figura 16 - Processos contra menores, entrados na Tutoria Central
de Lisboa......................................................................................................234
Figura 17 — Movimento, categorias, infracções e demografia de
internos..........................................................................................................240
Figura 18 - Estatística Judiciária de 1956........................................................... 251
Figura 19 — “O Sr. Presidente da República [Teixeira Gomes]
assistindo a um dos exercícios no Instituto de Surdos-mudos” 255
V lll
Agradecimentos
Não posso deixar de agradecer a todos aqueles que de alguma
forma contribuíram para que este trabalho pudesse decorrer na
melhor feição. Cometendo a injustiça de não poder citar os nomes de
todos, quero endereçar um sentimento de gratidão muito especial ao
Professor António Nóvoa, cujo profundo saber e constante
disponibilidade permitiram o estímulo necessário para que
conseguisse levar a bom termo este estudo; ao meu querido amigo e
companheiro de luta (e labuta) Jorge Ramos do Ó, pela sua amizade,
pelos saberes que aceitou partilhar comigo e pelas nossas
intermináveis conversas em tomo da arte da vida. Sem ambos, que
para além de tudo são seres humanos que privilegiam pelo exemplo
quem com eles trabalha, nunca teria encontrado sentido para tão
árdua tarefa. Ao Professor Rogério Fernandes, por tudo o que me
ensinou, também aqui deixo um agradecimento muito sincero.
Reservo um lugar muito especial ao João Freire, que comigo
iniciou a pré-investigaçao e de quem me tomei um amigo eterno (e
que eterno crítico ele é...).
Quero agradecer também a todos os meus colegas do Curso
de Mestrado, pelo bom espírito de colaboração e entreajuda que
instauraram e de que tanto benefidei, e a todos aqueles, muitos,
funaonários anónimos de diversas instituições que pela sua
predisposição, competência e empenho, contribuíram para tomar este
trabalho mais fácil e gratificante.
Quero deixar também uma palavra especial para pessoas que
sempre me foram próximas como companheiras de trabalho e a
quem considero também amigas: à Antónia Luz com quem
compartilhei dramas e angústias próprias da vida académica, mas
também o privilégio de conviver com a sua cultura e demais
qualidades pessoais; ao Carlos Abreu, que de início quase me
conduziu pela mão e com quem tanto aprendi, com os votos sinceros
para que se junte de novo a esta comunidade a que pertence pelo
direito que conquistou; à Laura Girão; ao António Carlos Correia e
ao Luís Miguel Carvalho, por toda a ajuda que me deram e pelo bom
tempo que passamos juntos.
Do arquitecto Hestnes Ferreira registo a amabilidade com que
me recebeu e disponibilizou o espólio particular de seu avô, o
vereador Alexandre Ferreira, e à minha colega Sílvia que a ele me
conduziu e acompanhou nessa parte do trabalho.
Ao professor Fernando Ilharco quero deixar o meu
agradecimento público por tantos anos de um estímulo intelectual de
que me tomei adicto.
Á Ana Bela, fico extremamente grato não só pela revisão da
escrita mas sobretudo pela amizade e apoio pessoal que me prestou
nos momentos mais difíceis. Também à Mónica Raleiras, pelo seu
profissionalismo e pela preciosidade da sua ajuda, quero deixar uma
palavra de estima e agradecimento. A ambas se deve terem conferido
ao meu trabalho uma legibilidade e apresentação, que eu não
conseguiria.
O saber constrói-se sobre outros saberes previamente
disponibilizados e, em respeito por quem construiu algum de todo
esse conhecimento prévio que procurei incorporar no meu trabalho,
diligenciei ser o mais justo e correcto possível nas dtações dos
autores de trabalhos usados como referência. Se omissões houverem,
não poderão ser menos intencionais e injustas, tal o respeito, prazer e
gratidão que nutro pelos autores e obras que foram mobilizados para
este trabalho.
rpsar.rufino@ netcabo.pt
SIGLAS
ANTT — Arquivo Nadonal da Torre do Tombo
ATIL — Arquivo do Tribunal de Infanda de Lisboa
ATML - Arquivo do Tribunal de Menores de Lisboa
BN - Biblioteca Nadonal
CCC - Centro Cultural Casapiano
CPL - Casa Pia de Lisboa
DGSJ - Direcção Geral dos Serviços Judidários
DGSJM - Direcção Geral dos Serviços Judidais de Menores
FPCE - Faculdade de Psicologia e de Gênaas da Educação
da Universidade de Lisboa
IHE - Instituto Histórico da Educação
INE - Instituto Nadonal de Estatística
LPI - Lei de protecção à infanda
SJTM - Serviços Jurisdidonais e Tutelares de Menores
Introdução
Este texto procura ser a síntese de um trabalho de investigação
iniciado no âmbito de um vasto projecto europeu denominado P restig
(Problems of Educational Standardisation and Transitions in a Global
Environment), cuja linha de estudos se encontra centrada na difusão
mundial dos sistemas educativos e escolares. Por isso, o trajecto deste
trabalho inscreve-se também no campo de análise adoptado pelo grupo de
investigadores portugueses, que foi dividido por quatro eixos temáticos —
alunos, professores, currículo e pedagogia.
A opção tomada pelo estudo dos alunos, enquadrando-os num
propósito de construção social da criança foi, num primeiro momento,í
justificada pela tomada de consciência de como os alunos são silenciosos
nos registos escolares históricos. Posteriormente, durante uma fase
prospectiva da pré-investigação confirmou-se não só uma rarefacção
documental produzida por alunos, como se revelou a existência de um
campo de estudos muito específico, o da educação correcdonal em
internato, com zonas muito propícias ao detalhe analítico e a uma margem
interpretativa ainda não ensaiada sobre esse objecto. As racionalidades que
imperam sobre esses alunos, as observações e exames a que são sujeitos, os
programas e regimes que seguem e mesmo os testemunhos materiais que
restam da sua presença escolar acabam por ser, afinal, construções de
especialistas adultos que filtram, contabilizam, medem, avaliam e anotam,
segundo uma lógica exocêntrica à conveniência pessoal do aluno, mas
13
\
realizada em seu nome e sob uma moldura pedagógica assente no interesse
pela criança como sujeito moral e social.
Assim, a intenção deste estudo é, para além de ensaiar uma
interpretação crítica do campo das disciplinas e das tecnologias
disciplinares, a consolidação de uma proposta metodológica que permita
abordar, pelo ângulo das práticas reeducativas institucionais, os
mecanismos de construção moral e social da criança, num contexto
educativo institucional e tutelar mais lato—
Essas instituições que dedicaram o seu exercício às crianças que
( genericamente careciam de ajuda fora do seio das famílias, foram
precursoras na procura do estabelecimento de uma ligação dos indivíduos a
um sentido comum de participação numa missão colectiva de progresso,
através de processos mediados pela educação escolar (Popkewitz & Bloch,
2000). Tal mobilização em tomo de uma ideia de colectivismo social pelo
progresso e bem comum, veiculada pela retórica pedagógica, tem na
expansão dos sistemas escolares o seu instrumento mais adequado.
Trata-se, também, de cumprir uma “digressão sobre um programa
de investigação”, debruçada sobre a configuração dos regimes que
governavam as crianças internadas e de que forma a prescrição de
comportamentos, aliada aos discursos especializados, procurava
“configurar uma .ideia de aluno e construir a sua subjectividade”,
produzindo sujeitos autónomos e responsáveis, constituindo uma
tecnologia política que se poderá chamar de governação dos escolares,
tendo como objecto, no caso vertente, os indivíduos subordinados a um
regime de educação coerdva (Nóvoa, 2000: 134-135; Ó 2001).
É ainda o início de um possível estudo mais vasto sobre o internato,
o seu uso educativo, sobre a forma como a operacionalidade dos regimes
14
disciplinares que incluíam a clausura, foi apropriada pelo sistema educativo
público e se desenvolveu segundo um modelo que se impôs e difundiu
com a “escola de massas”. É que se no âmbito correccional a educação é
completamente tutelada e coerdva, no caso da expansão universal da
escolaridade de massas, a educação não deixa de ser compulsória e
rigorosamente vigiada, adoptando mesmo a modalidade e designação de
“escolaridade obrigatória”, aspirando a vigorar por períodos
> tendendalmente sempre mais alargados. Espera-se que este campo de
análise se revele ainda como um contributo para a cksocultação de como a
criança e a sua família foram objecto do discurso e das práticas educativas
fomentadas pelo Estado, enquanto expressão política dos cuidados e
atenção com a infanda e juventude.
Procura-se assim descortinar não só a subjectividade dos desígnios
' educativos ou sociais expressos e aceites, mas ensaiar também uma reflexão
através da descrição da escola monitorial, enquanto um ambiente
pedagógico propositadamente construído a partir de uma combinação de
elementos físicos e morais que induam: uma arquitectura espedalizada;
dispositivos para a organização do espaço e do tempo; técnicas corporais;
práticas de vigilância e supervisão; rdaçôes pedagógicas; procedimentos de
supervisão e exame, etc. (Hunter, 1996). Não é uma analítica das estruturas
ou uma narrativa de competêndas mas sim uma “análise dos sistemas de
conhecimento, avaliados como elementos constitutivos das regras e
padrões que ligam as radonalidades políticas aos princípios que ordenam e
disdplinam a acção dos indivíduos, na sua condiita pessoal e na relação que
estabelecem com o mundo que os rodeia” (Popkewitz & Bloch, 2000: 33).
É este primado ordenador de conhecimento, associado à acção prática da
15
governação, que enforma o conceito de “govemamentalidade” expresso
por Michel Foucault1.
Podemos então assodar a governação das pessoas à forma como
são conduzidas, em função dos cálculos a que são submetidas e das
radonalidades saberes e tecnologias empregues para ordenar a sua conduta.
Mitchel Dean procura sintetizar esta ideia da seguinte forma:
“Government is any more or less calculated and rational activity, undertaken by a multiplidty o f authorities and agendes, employing a variety o f techniques and forms of knowledge, that seeks to shape conduct by working through our desires, aspirations, interests and beliefs, for definite but shifting ends and with a diverse set o f relatively unpredictable consequences, effects and outcomes” (Dean, 1999: 209).
E que aos sistemas de gestão moral dos sujdtos não subjaz somente
um quadro discursivo de tipo doutrinário, mas também uma aplicação
material constituída por diversas práticas calculadas, exerddas sobre os
corpos desses mesmos indivíduos arregimentados num colectivo, também
destinadas a produzir efeitos na sua construção moral. E o que se pode
designar por “regimes” ou “práticas de governação”, enquanto conjunto
relativamente organizado de acções e maneiras de fazer no que conceme
aos cuidados tidos na conduta de si mesmo e dos outros (Dean, 1999: 211).
Há portanto, em alguns momentos dessa acção, uma dimensão operatória
de gestão local, relativa à regulação exercida de fa cto entre os actores que,
por ser reveladora da diferenciação dos métodos e organização das práticas
1 Para um aprofundamento dos objectivos que balizam esta investigação e da filiação conceptual a que este texto está afecto, no que respeita ao quadro de investigação do Prestige, cfr. respectivamente Nóvoa, António (2000). Tempos da Escola no Espaço Portugal-Brasil-Moçambique. In: A. Nóvoa and J. Schriewer [eds.], A DtjusÕo Mundial da Escola: 121-142 Lisboa: Educa; O, Jorge Ramos (2001). O Governo dos Escolares - Uma Aproximação Teórica às Perspectivas de M ichel Foucault. Cadernos Prestige vol. n°. 4. Lisboa: Educa.
16
escolares com que visa obter resultados, não pode ser tida como
despidenda. Esse conjunto de normas reladonais expressas ou intuídas e a
sua gestão, em suma, uma disciplina, estão presentes nos sistemas escolares
contemporâneos, sendo muitas vezes uma dimensão considerada de uma
forma unicamente fundonalista, desligada de uma ldtura política mais
ampla da acção pedagógica e por vezes até em seu antagonismo.
Nos regimes educativos é possível identificar, ao nível do exerado
de uma instituição escolar, uma nítida instrumentalidade gerencial enquanto
aliada física de uma matriz disdplinar, ordenada por uma construção
política de governação. Investigações desenvolvidas sob a égide reflexiva
foucaultiana, conduziram à caracterização do managcment como uma micro-
física de poder sustentada numa base disdplinar, realçando o movimento
de ocultação de uma razão política por detrás de uma linguagem “neutra”
da dênda — a_gestão será vista então como um forma de organização
estruturada por uma radonalidade assente numa ideologia
pretensiosamente neutra, mas sendo, na prática, uma “tecnologia política”
(Bali, 1990: 194). E, indubitavelmente, uma acção estratégica, mas nos
sentidos em que Foucault considerava a radonalidade estratégica na sua
relação, com o poder-saber. primeiro, descrevendo como os diversos e
dispersos micro-poderes, na sua capilaridade, se ligam de forma a
constituírem condições de dominação organizada, sob alguma unidade e
coerênda; segundo, para descrever a acção global sobre esses poderes, a
fim de levá-los a adoptarem um sentido comum (Dean, 1997: 157). À
medida que a gestão das organizações escolares se vai também
“dentificando”, outros recursos se vão estabelecendo e afirmando por uma
pretensa radonalidade tecnocrática e, simultaneamente, vão-se tomando
progressivamente mais invisíveis pela rotina do seu uso. É assim que novas
17
racionalidades, como a gestão escolar, “ao gerarem uma nova disciplina
para as escolas, geram também novas modalidades para os tecnologistas
morais” (Bali, 1990: 165).
Um conjunto de procedimentos funcionais foi sendo devidamente
organizado e justificado, de modo a estarem disponíveis para a aplicação
prática de todas essas racionalidades reguladoras, físicas e morais. Corrigan
e Sayer, no seu estudo de 1985, The Great Arch, sobre a formação do
Estado inglês, referem-se à dimensão da acção moral do Estado nos
seguintes termos: “Moral regulation is above ali a project of normalisation
and naturalisation of the premises of a spedfic social order. It concems the
meaning of State activities for the constitution and regulation of social
identities and subjectivities” (Bali, 1990: 149). Para além das subjectividades
que estão adjacentes a essas actividades normalizadoras, juntam-se também
os meios disponíveis para o seu exerddo: uma burocrada disdphnar
emergindo-das necessidades de uma governação sodal, porventura herdeira
da ordem edesiástica, com a qual o Estado administrativo procura
corresponder a essas exigênaas de acção (Hunter, 1996). Essa arte de
governação, com todas as suas técnicas de actuação, não representa apenas
1 uma raaonalidade de tipo “tayloriano”, mecaniasta e burocrática de
articulação dos actos meramente produtivos dos indivíduos, representa
sobretudo um contributo que é dedsivo na construção de uma consdênda
moral e sodal de um colectivo de sujdtos agregados pela acção política.
- Conforme os sistemas escolares se foram edificando e exercendo
progressivamente a sua acção reguladora, foi crescendo também a vontade
de submeter a esse efeito todos aqueles que, de alguma forma, teimavam
em permanecer afastados de mecanismos simples de indusão sodal, como
o trabalho, a família ou a escola. Tratando-se de uma população infanto-
\
juvenil, o aparato escolar com as suas técnicas de relacionamento
pedagógico depressa se perfila para substituir o sistema judicial penal no
tratamento dessa “anomia”, para usar a expressão de Durkheim. Esse
compromisso entre o sistema punitivo judicial e o escolar, surge-nos
paradigmaticamente sob a forma de internato tutelar, o que vai conduzir à
iniciativa de generalização de um regime correctivo de acção institucional.
Modalidades de excepção, como as decorrentes da vontade de rectificação
e integração social de algumas crianças, produziram tecnologias, destinadas
à criação de subjectividades estruturantes da sua “re-construção”, cuja
aplicação se processou através de instituições que tinham como referência
formal a ideia de escola.
Foi pela sua faceta experimentalista que os regimes correccionais '
educativos que incluíam o internamento da criança assumiram relevância
na constituição de diferentes modalidades governativas — algumas ainda
vigentes no sistema educativo actual -,Jevando essas práticas relacionais .a
contribuir para a evolução de uma ordem política que se estabeleceu a par
com a generalização da escolaridade. Trata-se de um terreno privilegiado de
observação, um ponto de encontro da escola com a prisão, onde uma
pluralidade de saberes, disputando entre si o predomínio dos seus
discursos, conjuga o exercício das suas tecnologias numa acção unitária
sobre a mesma população.
Este campo de estudo estende-se por um arco temporal que lhe
confere uma antiguidade abrangente de alterações muito expressivas, não
só na percepção social da criança como no campo teórico da pedagogia,
assistindo-se a mudanças que vão sendo o efeito de sucessivas apropriações
de vária ordem na praxis da governação dos escolares. Ao longo de três
séculos, diferentes instituições vão surgindo de forma cada vez mais
19
articulada e, sob diversas formas e pretextos, vão construindo
gradualmente a prerrogativa da tutela parcial ou completa de grupos
especialmente definidos de crianças, aplicando sobre elas um conjunto de
artefactos e discursos educacionais. Essa combinatória desenvolveu-se e
sofisticou-se segundo um rumo preciso: evoluindo no sentido de uma
racionalidade produtiva e orgânica, o alvo dessas técnicas foi-se desviando
do controlo restritivo do corpo da criança — um exercício de soberania —
para começar a. dirigir-se ao seu self, na procura de uma progressiva
construção moral da infância através de registos de liberdade cada vez mais
íntimos e subtis — um exercício liberal
Uma genealogia discursiva edificou-se em tomo da condição social
da criança favorecendo a evolução e consolidação do discurso pedagógico
no terreno educativo das crianças desfavorecidas. Assim, o tipo de
instituições de tutela completa do menor revelou-se um instrumento
privilegiado para a observação de comportamentos dos sujeitos, para a
experimentação de formas de os dispor e para o exercício de diversos
saberes vocacionados para o seu governo. Tais artefactos, objectivados por
inúmeras restrições e actividades distributivas, foram progressivamente
desenvolvidos a fim de produzirem alterações previamente legitimadas pelo
discurso de uma pedagogia moral sobre a conduta dos sujeitos. Essas
alterações prendem-se não só com os comportamentos visíveis mas,
sobretudo, com axonstruçao de como o indivíduo se pensa a si próprio e
aquilo que acredita.ser (Marshall, 1990).
A aproximação privilegiada nesta abordagem será ao uso de
tecnologias disciplinares cuja matriz processual se inspirou nas práticas
militares e conventuais, a sua relação com o discurso pedagógico e a forma
como se conjugaram e evoluíram durante a modernidade. Foram as
20
\
práticas disciplinares que introduziram o estabelecimento de uma ordem
repartida, hierarquizada e sincronizada na vida escolar, uma racionalidade
que remonta algures aos meados do século XVI e que se foi afirmando
como praticamente exclusiva até aos finais do século XVin, altura em que
novas metodologias surgiram, trazendo consigo outro tipo de legitimações
que acabaram apropriadas para o uso no território tecmco-político da
governação dos indivíduos num contexto escolar. Ainda hoje, como é fácil
perceber, todos esses mecanismos que foram e são, digamos, uma
componente instrumental da pedagogia, continuam fortemente presentes,
com maior ou menor visibilidade, nos actuais regimes educativos, sendo
esse facto, essa aparente indissociabilidade, uma das justificações, da
abordagem aqui proposta. Entre esses elementos que se perpetuaram no
território escolar, são fáceis de discernir a arquitectura poralas; corredores
preenchidos por células sucessivas; distribuição matricial de equipamentos
e indivíduos; divisão, atribuição e sincronia do tempo; vigilânda
permanente; regulação pela norma e pelo uso de diversos
constrangimentos; controlo preséndal e burocrático; práticas de exame;
organização em grupos constantemente controlados e avaliados, etc.
O surgimento de uma grande profusão de instituições relaaonadas
•com a atenção protectora dedicada à • criança constitui um emaranhado
complexo que toma muito difícil a sua contabilização e análise, justificando
a procura de outro tipo de aproximação, através de campos e epistemes
menos explorados. E por isso que se segue a opção metodológica de
ensaiar um excurso genealógico por essas instituições, buscando uma
interpretação dos regimes que nelas imperavam e as configurações que
adoptaram para cumprir os seus propósitos, pelo que se procura adoptar,
de um ponto de. vista teórico e metodológico, as perspectivas foucaultianas
21
sobre as relações de poderJ saber e as construções de recentes trabalhos
realizados no campo educacional que nelas se suportam. Uma ideia
panorâmica da assistendalidade educativa prestada à criança toma-se assim
um contributo necessário para a interpretação dos contextos sociais, morais
e assistendais em que cada instituição actuava e, eventualmente, de que
forma se estabeleceu a secularização dessa assistendalidade e. da sua
influênda nos sistemas educativos de origem estatal mas, acima de tudo,
procura desvendar um pouco do que tem sido a história da criança
internada.
O recurso à narração genealógica justifica-se também pela
necessidade, por um lado, de estabelecer um quadro evolutivo dos regimes
de governação da criança num contexto educativo de tipo escolar, em
Portugal,—um campo de investigação ainda pouco explorado na sua
extensão, por outro lado, ensaia-se uma aproximação ao objecto
procurando um afastamento dos quadros analíticos mais estereotipados, ou
fundados em categorias de pensamento que se têm revelado limitativos no
seu potencial explicativo. E oportuno invocar aqui as palavras de Michel
Foucault numa das suas aulas no curso de 1975/76 no Collège de France, a
propósito, exactamente, da institucionalização do saber científico e dos
efeitos centralizadores na sociedade, desse poder discursivo organizado: “A
genealogia seria, pois, relativamente ao projecto de uma inserção dos
saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de
empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e tomá-los livres,
isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso
teórico unitário, formal, e científico” (Foucault, 2000: 15), tomando-se a
essência de um exercício imanente ao pensamento crítico.
22
Por vezes não é fácil estabelecer uma única questão para definir a
investigação que se pretende realizar. Se, como sublinha Antoine Prost
(1996: 80-100), é verdade que não há história sem uma questão, tomada
como um recorte num conjunto ilimitado de factos e documentos
possíveis, também acrescenta que “o historiador nunca coloca uma
«simples questão», mesmo quando se trate de uma questão simples”. É
ainda verdade que a mesma questão pode ser formulada sob diversas
formas e cada questão que se elege transporta outras consigo,- cada
metodologia que se adopta é uma alternativa entre outras que acarretam em
si o contraditório sempre necessário e saudável, tal como nem todos os
objectos, pelas subjectividades que implicam, são fáceis de definir. Apesar
disso — e por isso —, procura-se em seguida dar a compreender de molde
simples e aproximado, o objecto, a intenção e a metodologia aplicados na
tese, matérias que serão aprofundadas em momento mais adiantado, tendo-
se no imediato ensaiado o seguinte registo sinóptico: - -
1. 'Problemática - De que forma são usados os regimes disciplinares
de internato na educação correcdonal de menores e como essas práticas
partilham a sua acção com a discursividade pedagógica, ou seja, como os
diferentes artefactos disciplinares se inserem numa pedagogia da conversão
social da criança. • . • •
2. Propósito - Compreensão das relações de poder entre a
discursividade da pedagogia e as práticas regimentais, das instituições
educativas que tinham especificamente como objectivo a reconstrução
moral e social das aptidões dos alunos.
3. Significado - Perceber a funcionalidade educativa das práticas
disciplinares e a sua presença como marcador da relação pedagógica na
modernidade, através da evolução dos seus artefactos e da partilha de
23
poder com outros discursos. Uma aproximação genealógica permitirá
ajudar a compreender a proveniência do exercício disciplinar educativo do
presente.
4. Dimensão - Ao nível institucional, o universo em análise é
constituído por estabelecimentos que se dedicaram à missão de
reenquadrar socialmente menores, que de uma forma ou outra estavam
desviados d e . uma dada normalidade social, através de modalidades
educativas e regimentais de excepção surgidas na modernidade.
r 5. Premissas - Os principais conceitos teóricos e critérios de selecção
e análise das fontes usados nesta tese procuram manter uma afinidade
estreita com a ideia de “disciplina”, tal como foi expressa por Michel
Foucault em Vigiar e Punir,; bem como à sua teoria geral sobre os efeitos
das relações de poder. Procura-se assim seguir uma estirpe do pensamento
genealógico oriundo de Friederich Nietzsche em Para uma g n ea b g a da
M oral - influência que Foucault acolheu sem preconceitos — prolongando-
se nas mais recentes propostas presentes em trabalhos resultantes dessa
linha e que têm vindo a fazer sentir a sua influênda no campo educativo
onde, em Portugal, assume especial relevo o trabalho de Jorge Ramos do Ó
consumado em 0 governo de s i mesmo (2003).
.. No campo da configuração e significado do . internamento
institucional recorre-se ao modelo de “instituição total” consagrado por
Erving Goffinan em Manicômios, Prisões e Conventos. Quanto à História Social
da criança, a principal referência de partida é o trabalho de Phillipe Ariès,
não só sobre as metamorfoses da atenção social que lhe foi dedicada
durante o Antigo Regime* como as consequências disciplinares que daí
advieram. O estudo do relacionamento pedagógico com a criança, a sua
condição social e o grau de liberdade que auferiam nessa época pré-
24
modema, toma-se é essencial para atingir o simbolismo das alterações que
ocorreram posteriormente. Para acrescentar uma leitura sobre certos
aspectos da situação social da criança portuguesa dessa época, matéria à
qual faltava especificidade no trabalho de Ariès, recorreu-se ao contributo
de António Gomes Ferreira com Gerar Criar Educar — A Criança no Portugal
do Antigo Regime, uma vez que abrange matéria essencial para o
desenvolvimento deste estudo e permite confirmar a harmonia da obra de
Ariès com certos aspectos tão importantes na condição portuguesa. . .
Para finalizar, segue-se um roteiro para a leitura deste texto,
apresentando-se muito sumariamente cada um dos capítulos e o que com
eles se procura expor:
Parte I — Pretende explanar a filiação teórica e conceptual, o âmbito
do estudo e a metodologia usada.
Parte II — Procura reconstruir algumas circunstâncias marcantes na
história social da criança, recorrendo a uma genealogia da utilização moral
das técnicas disciplinares como o castigo e o internamento, contemplando
também’a partilha entre a Igreja e do Estado da assistência social a grupos
definidos, apresentando também mais alguma exploração teórica. O
surgimento da Real Casa Pia de Lisboa e a sua influência nas modalidades
educativas de excepção como prenúncio de uma ideia de modernidade
fecham esta parte.
Parte- UI — Inicia-se com uma reflexão sobre o surgimento e
modernização dos regimes correccionais e a evolução das suas estratégias
disciplinares e ambições morais. Dedica-se ainda à cronologia das
instituições educativas de correcção social que inauguraram modalidades
regimentais marcantes na construção do projecto da modernidade e-em
25
que moldes foram accionados esses regimes, matéria iniciada na parte
anterior com a Casa Pia.
Ensaia-se assim a construção de um texto marcado por três partes
sequenciais. Uma primeira parte, predominantemente teórica, estabelece
uma instrumentalidade conceptual e analítica centrada no discurso
disciplinar, ao mesmo tempo que procura elucidar sobre a filiação
intelectual que segue. Uma segunda parte, onde se contextualiza o
desempenho social das instituições de educação coerciva das crianças
através da apreciação das práticas de algumas instituições pré-modemas, ao
mesmo tempo que se aprofundam alguns conceitos através da evocação de
discursos que estabeleçam uma continuidade com as práticas no terreno
educativo. Na terceira e última parte, em que se recorre essencialmente ao
-material empírico contido numa baliza temporal mais estreita que tem
como limites os anos de 1871 a 1962, procura entender-se a fundação e o
percurso de um discurso de modernidade surgido nas instituições
correcáonais públicas que, de forma marcante, imprimiram uma profunda
alteração às práticas até aí seguidas pelos regimes de governo de crianças
socialmente desenquadradas.
Tenta-se estabelecer entre as três partes do texto uma conexão
genealógica que possa contribuir para esclarecer como as práticas
disciplinares têm sido um dispositivo instrumental ao dispor da pedagogia e
de como essas práticas contribuem para a transferência do menor, de uma
situação de sujeito dependente para uma autonomia regulada, produtiva e
socialmente aceite, através de uma mediação educativa de modelo escolar,
conduzindo-nos a uma “história do presente”. Esse tipo de continuidade
genealógica solicita muitas vezes o ordenamento da escrita pela tópica em
análise e não por uma sequenda de factos, uma formulação nem sempre
26
conveniente para uma interpretação linear da temporalidade, o que se tenta
compensar com uma pequena ordenação cronológica das instituições
modernas referenciadas. Quanto às imagens inseridas no texto e
enumeradas no ‘Índice de Ilustrações”, pretende-se que sejam de. facto
uma ilustração do texto, mas não só, que pertençam ao texto e até que
sejam, elas próprias, também texto, um texto que cada um lerá segundo os
que os seus olhos quiserem ver em cada imagem. Será como que uma co-
autoria pela interpretação pessoal que o leitor poderá estabelecer pelo seu
olhar.
A terminar apresenta-se, em jeito de conclusão, algumas ideias que
se podem reter do que ao longo do texto se procurou evidenciar " e
justificar. São conclusões que nao concluem, no sentido em que nao
finalizam questões mas que, pelo contrário, admitem lançar novas questões
que estimulem novos percursos sobre este ou outros territórios. Se isso for
conseguido, este trabalho sentir-se-á justificado.
27
P a r t e I
OBJECTO, CONCEITOS E METODOLOGIA
Enfance
IV
Je suis le saint, en prière sur la terrasse, comme les bêtes pacifiques paissent
jusqu’à la mair de Palestine.
Je suis le savant au fauteuil sombre. Les branches et la pluie se jettent à la croisée
de la biblioteque.
Je suis le piéton de la grand’route par les bois nains; la rumeuer des écluses
couvre mes pas. Je vois longtemps la mélancolique lessive d’or du couchant
Je serais bien l’enfant abandonné sur la jetée partie à la haute mer, le petit valet
suivant l’allée dont le front touche le deL
Les sentiers sont après. Les monticules se couvrent de genêts. L’air
est immobile. Que les oiseauz et les sources son loin! Ce ne peut être que la fin du
monde en avançant
‘Illuminations", Arthur Rimbaud
29
Infanda
IV
Eu sou o santo rezando no terraço —, como pastam os pláddos bichos até ao mar da
Palestina.
Eu sou o sábio da poltrona sombria. Os ramos e a chuva projectam-se na vidraça da
biblioteca.
Eu sou o peão da estrada larga através dos bosques recentes; abafa-me os passos os
rumor das comportas. Durante largo tempo, do meu olhar não se esvai a
melancólica limpeza d’oiro do poente.
Eu bem poderia ser a criança abandonada no quebra-mar que saiu para o alto mar, o
criadito que caminha pela álea cuja ponta extrema toca o céu.
São rudes as veredas. Os outeiros cobrem-se de giestas. Está uma atmosfera estática.
Como estão longe os pássaros e as nascentes! Continuando em frente, só ao fim
do mundo se pod’Ír.
“Illuminations”, Arthur Rimbaud. Tradução: M aria Gabhela Llansol
30
C o n s id e r a ç õ e s in ic ia is
Ao tentar definir e delimitar um problema e analisá-lo para elaborar
sobre ele uma tese — esta — pode-se começar por enunciá-lo, de forma lata,
pelo relacionamento entre as práticas regimentais e o discurso pedagógico
na modernidade, e questioná-lo. Essa poderá ser a questão que conduza a
outras questões que tracem de forma subjectiva os limites desta
investigação, ou seja, dada a matéria em apreço, é mais pelas ligações que
certos acontecimentos estabelecem com outros que se desenvolvem os
pressupostos analíticos utilizados e não pela exclusão de material
significativo, nem é em nome de uma objectivação “factual” que se irão
restringir as lateralidades que se podem despertar a partir de certas
temáticas. Afigura-se delicado abordar a reeducação de menores sem o. < * i ' •. . - i . « > , v
fazer através da história das mutações do seu papel soaal, tal como é difícil
tratar os regimes escolares fortemente disciplinares sem reflectir sobre a
punição, ou pensar o internato como uma simples hospedagem,
desconsiderando o seu carácter de institucionalização dc uma construção
política ou menosprezando o papel da escola e da pedagogia na construção
do “indivíduo modemo”. Não se trata de um sintoma de excessiva
ambição, bem pelo contrário, mas de uma busca genealógica das conexões
que podem determinar as proveniências de certos efeitos em campos
aparentemente distantes, o que confere a este texto um carácter não
propriamente disperso mas que não está concentrado numa única matéria
de estudo.
31
Também não se pretende produzir aqui uma reflexão teórica
extensa sobre os dilemas que atravessam presentemente as epistemes em
que se sustenta alguma historiografia da educação que tem permitido
abordagens mais criticas e diferenciadas, nem ter pretensões de solidez
filosófica ou sequer tentar enveredar por um quadro metodológico
demasiadamente minucioso, mas também não se pode deixar de ensaiar a
explicitação das coordenadas conceptuais que pautam a construção
metodológica e a hermenêutica adoptada, bem como algumas balizas que
recortem o objecto em estudo e contextualizem o âmbito da sua análise.
.Em primeiro lugar, o teor deste texto procura, de um ponto de vista
historiográfico, adoptar uma modalidade de investigação afiliada à
descendência de correntes teóricas que são comummente designadas por
“pós-estruturalistas” ou mesmo “estruturalismo simbólico” ou, mais
genericamente, “teorias críticas”. Em rigor, procura-se uma sustentação no
legado teórico de Michel Foucault que permitiu que a sua descendência
intelectual tenha vindo a ocupar de forma crescente um lugar central nos
estudos sobre educação. São teorias que comportam ntm analítica que
reconhece os elementos da vida social como sendo construções discursivas,
onde se demarca uma diferenciação entre o sujeitoy as suas práticas e a
retórica que o representa e constrói, questionando a noçao de verdade
através da procura de correspondência entre os objectos e a sua
representação discursiva,. ou seja, uma análise possibilitada pelo
enaltedmento do .carácter linguístico das suas referências, reconhecida pela
expressão “viragem linguística”. Citando LaCapra em abono desta opção
metodológica, é porque se pensa “a viragem linguística como tendo trazido
uma abertura à teoria crítica e literária, incluindo aspectos filosóficos, num
32
esforço para repensar a natureza e as fronteiras aceitáveis da historiografia”
(LaCapra, 1995: 803).
Os riscos da opção por uma historiografia que inclua algum suporte
narrativo têm pontuado a controvérsia em tomo da participação
personalizada do autor na (re)construção dos factos, argumento segundo-o
qual a investigação se afasta de uma pretensa objectividade asséptica,
assegurada pela correcção dos procedimentos adoptados e que durante
tanto tempo foi a|mejada. Esta perspectiva personalizada do autor deve ser
reconhecida como um lugar constitutivo do historiador ha investigação,
vendo a “objectividade” nao como simples oposto a “subjectividade” mas
como um potencial de negociação pela critica e autocrítica. Os documentos
devem então ser lidos textualmente e a maneira como eles constroem o seu
objecto num campo institucional e ideológico deve ser uma questão de
escrutínio critico, enquanto a dimensão documental dos textos deve ser
colocada como um problema explídto e elucidado (LaCapra, 1995: 805).' •
É precisamente através deste exercido recente do discurso histórico
fundado na “viragem linguística”, na analogia textual e mesmo na teoria das
recepções (Frago, 1996), que se irá procurar reconstruir um percurso que
conjugue o relato e a narrativa, a verificação e a interpretação, as
interrogações e as explicações, o enundado e o empírico, através de um
excurso temporal pelas práticas e discursos pedagógicos, ^endógenos ou
exógenos ao sistema educativo, que se constituíram em tomo criança com
uma inserção familiar ou sodal problemática. Será afinal o efeito discursivo
do texto e a sua capaadade de ilustrar o presente através de factos
passados que irá • orientar a elaboração da escrita. E a natureza desse
discurso, referente aos processos reguladores das situações de
ensino/aprendizagem, que atribui significados aos concdtos que se
33
empregam ,e que categoriza e, ordena os sentidos atribuídos a. determinadas
práticas tidas como pedagógicas (Norodowski, s. d.: 10).
Sobre o objecto de estudo* o texto tenta alinhar-se pelas vias que
têm marcado uma História da Educação centrada na criança enquanto
aluno, embora vista não como um receptáculo de saberes, mas sim como
um sujeito integral, ou seja, procurando ir ao encontro de uma
historiografia social e cultural que enquadre a criança não só num sistema
educativo que a treina e avalia, que a abranja ou exclua, mas que a
contemple também como protagonista social.
Este posicionamento é, evidentemente, um rumo, um ponto que
complementa o foco da pesquisa, pois seria demasiado pretensioso desejar
atribuir-lhe um peso específico, quer sob o ponto de vista dos estudos
culturais quer .sociais. Trata-se de História da Educação que pode e deve
.constituir um investimento no conhecimento social e ria produção cultural,
mas em que esta investigação rejeita usurpar o que esteja vocacionado para
outras disciplinas das Gêndas Sociais que, no entanto, aqui trazem um
valioso contributo. É, tão-somente, um salvaguardar de exigências porque,
como nota António Nóvoa (1998: 16), “a importância do pensamento
histórico .contemporâneo assenta mais na necessidade da apreensão
histórica do pensamento científico que na sua compartimentação
disciplinar, relevando daí a riqueza da historicidade das maneiras de pensar
e abordar o mundo físico e sodal, constituindo um contributo maior para a
compreensão da sobrevivência do passado nas linguagens do presente”. Já
Paul.Veyne preconizava uma “história total” em resultado da anexação pela
história de disciplinas como “a demografia, a economia^ a sociedade, as
mentalidades”, criando uma dinâmica no sentido da história social (Veyne,
1983:31-32). ■
34
Esta pilhagem multidisdplinar induz à procura de uma pluralidade e
diversidade de fontes que por vezes podem parecer extravagantes mas que
é ditada pela necessidade de compreensão de discursos produzidos nas
periferias dos sistemas mais institucionalizados ou de como uma
determinada discursividade, temporalmente situada, interagia com os
dispositivos práticos por ela caucionados (ou que a ela se opunham) e de
como esses dispositivos eram socialmente recebidos e assimilados.
Procura-se mesmo descortinar o facto “não-aconteámental”, isto é, a
procura de acontecimentos ainda não consagrados pela história. As únicas
fronteiras serão então, reiterando Veyne, as “convenções variáveis do
género”, que se alargam constantemente (Veyne, 1983: 31-32).
Uma componente de estudos de Educação Comparada está
também presente neste texto, uma vez que incorpora um paper publicado
com as investigadoras Ana Laurá Godinho Lima e Flávia Sílvia Rodrigues
sobre a história dos discursos e instituições de reeducação e assistência a
menores em Portugal e no Brasil dos séculos XIX e XX, com uma
introdução de Jorge Ramos do Ó (Rufino et al., 2003). Nesta dimensão da
Educação Comparada, adopta-se umà perspectiva sódo-histórica,
procurando uma abordagem que se desloque da “análise dos factos” à
“análise do sentido dos factos”. Como refere António Nóvoa, são
perspectivas de pesquisa centradas não somente na materialidade dos
factos educadonais, mas também nas comunidades discursivas que os
descrevem, os interpretam e os localizam num determinado espaço-tempo.
São percursos alternativos dos métodos comparativos que já não se
sustentam exdusivamente nos indicadores quantitativos ou em retratos
etnográficos. A análise dos objectos de comparação já não toma como
referência os contextos definidos segundo a visibilidade dos seus contornos
35
“físicos”, mas de contextos definidos segundo a invisibilidade das práticas
discursivas que os habitam (Nóvoa, 1998: 80).
Sobre o campo da Educação Comparada, António Nóvoa coloca
três questões centrais para a reconfiguração multidisdplinar da História:
“Novos problemas, novos modelos, novas abordagens”. E uma
perspectiva que inclui a construção de novos objectos de estudo centrados
no interior das instituições educativas que procura novos modelos de
análise, não somente suportados por dados estruturais mas que privilegie as
práticas discursivas dos actores e que estimule novas abordagens baseadas
no alargamento do repertório metodológico. Trata-se de lançar um olhar
sobre o contextuai mas, também, sobre o textual, “a fim de construir novas
compreensões sobre a forma como as práticas discursivas operam no
interior dos espaços sociais” (Nóvoa, 1998: 81-84). É esta a perspectiva que
também norteia este texto, na procura de ensaiar um olhar menos
espartilhado por instrumentos interpretativos muito especializados.
36
O OBJECTO DE ESTUDO E A SUA DIMENSÃO
O objecto central do estudo será a genealogia das diferentes práticas
de regimes disciplinares usados na correcção educativa de menores e da sua
reciprocidade com a discursividade da pedagogia correccional durante a
modernidade.
A extensão empírica deste objecto circunscreve-se às instituições
que tinham como missão proporcionar, sob tutela, uma reintegração da
criança pela construção da sua autonomia, através de algum tipo de
formação, educação ou encaminhamento, recorrendo para esse fim a
regimes que incluíam o internato e que estavam para isso especialmente
concebidas. Apesar de o internamento constituir por si só uma tecnologia
muito específica, procurou-se exponendá-lo delimitando-o a situações
excessivas na sua forma, quando associada a uma intenção educativa, tais
como as que se encontram nas metodologias disciplinares das instituições
de correcção social. Assim, instituições como a Casa Pia, Casas de
Correcção, Reformatórios, ou outras congéneres, serão eleitas como
matéria de estudo das referidas práticas e como referência no
estabelecimento de etapas inovadoras nas modalidades regimentais que
foram significativas para a sedimentação da modernidade na educação
correccional. Entre essas práticas regimentais das instituições, deu-se
preferência às alterações das rotinas disciplinares que significaram uma
inovação em termos de tecnologia educativa e à forma como pretendiam
actuar no domínio moral, uma vez que reflectiam bem a percepção do
tratamento social da criança em determinadas épocas, revelada pelo37
discurso de uma ideia de progresso pela humanização no tratamento
relacional com a criança.
O discurso pedagógico da reeducação de menores estava
endereçado num plano teórico para uma idealização dos métodos de uma
educação mais eficaz, construindo esse discurso os códigos interpretatiyos
das metodologias das instituições de enquadramento social da criança. Na
dimensão da análise discursiva será usado material documental que possa
revelar uma pedagogia prescritiva ditada por um posicionamento doutrinal.
Também serão aceites fontes que, de algum modo possuam conteúdos que
sendo ínfimos sejam detalhados, revelando factos que por terem sido
comuns foram dados como esquecidos e esvaziados de significado. Assim,
é possível serem invocadas fontes documentais muito diversas, mas que
podem evidenciar determinadas racionalidades nos discursos que contêm.
Sobre a dimensão do objecto empírico, ao invés de procurar
delimitá-lo rigorosamente, ou mesmo quantificá-lo por excessiva minúcia
de enunciação, prefere-se antes conferir-lhe visibilidade e procurar focalizá-
lo como matéria de análise, construindo gradualmente ao longo do texto
um entendimento das representações que foram sendo geradas por múltiplos
discursos e efeitos que se entrecruzam, esbatendo por vezes o objecto de
estudo. Não só na sua temporalidade esse universo se pode dilatar ou
contrair, especializando-se mais ou menos segundo o seu significado
genealógico e não cronológico, assim como na sua dimensão espacial muitas
questões abordadas vão assumir a exigência do exercício comparativo,
invocando factos relevantes em campos por vezes muito alargados. Devido
a este constrangimento da dispersão axial dos atributos em análise, prefere-
se usar a expressão nitide\ do objecto, no sentido de procurar tomá-lo nítido
através da compreensão' dos conceitos e métodos eni uso, em lugar de
38
limitá-lo por uma definição quantificada do arquivo. É o recurso a uma
metáfora óptica, o ramo da Física que estuda a visibilidade dos objectos,
que parece ajustar-se ao enquadramento cultural e aos pressupostos
analíticos em que este texto assenta e à maneira como aborda o objecto.
Sobre a problemática das diferentes perspectivas em História sobre
o uso do - espaço e do tempo, “pode-se acompanhar uma deslocação da
investigação de um nível local para o enquadramento nacional, de uma
territorialidade para um complexo de interdependências a nível mundial.
Ela passou dos acontecimentos à delimitação de épocas, de uma
periodização restrita para a fluidez de tempo cada vez mais alongado.
Trata-se, num caso como noutro, de evoluções que marcam mais
mudanças de escala que mudanças de natureza, porque a definição fisica do
espaço e cronológica do tempo não são postas em causa” (Nóvoa, 1998: .15).
A problemática da “correcção social” é aqui usada para evocar uma
vontade de generalização terapêutica, uma teleologia muito abrangente das
técnicas de rectificação moral - não se debruçando por isso sobre o mais
antigo “amparo” —, sendo uma opção usada em detrimento de uma
acentuação na tónica de expressões como “reeducação” ou “reinserção”.
Enquanto termos relativamente mais recentes, serão usados em citações ou
quando o texto exigir a correspondência semântica mais aproximada ao
contexto da época, de outro modo, mantém-se a preferência pela expressão
“correcção . sodal”, numa interpretação que expressa genericamente a
“vontade de mudar” as práticas de interacção social do menor, incluindo o
amparo à orfandade. Quer o menor esteja. em risco moral, seja órfão,
desamparado, indigente, deficiente, delinquente, anormal, incorrigível, ou
qualquer outra sorte de categorização que tenha sido constituída, todos os
métodos adoptados tinham como. justificação moral o bem social que
39
adviria duma ortopedia moral aplicada aos sujeitos. A centralidade deste
trabalho não se'fixa assim na categorização médica, social ou jurídica desses
indivíduos, nem na sua etnografia de internos, mas recupera-as como
contributo genealógico dos regimes educativos que se foram constituindo
como referência através dos seus processos.
Parece permissível estabelecer num certo sentido um paralelismo
algo ousado entre a missão da escola de massas e o internato correcdonal,
uma vez que ambos os sub-sistemas educativos têm uma teleologia
transformadora e um e outro recorrem à regulação disciplinar sendo
ambos, de um ponto de vista político, “instituições disciplinares de
controlo social” agindo sobre populações distintas e definidas. Essa acção
sobre-um conjunto vasto de indivíduos tem na correcção social a extensão
moral da metáfora ortopédica de Michel Foucault sobre a rectificação
forçada dos corpos que ele tão bem ilustra ao expor em Vigiar e Punir as
gravuras de A Ortopedia ou a A rte de Prevenir e Corrigir; nas Crianças, as
Deformidades do Corpo [1749], uma das quais estipula um padrão: uhec est regula
recti” (Foucault, 1987: figs. 1-30). E a genealogia discursiva dessas técnicas
de ortopedia social, as aplicações pedagógicas que gerou e as populações em
que os regimes disciplinares foram exercidos, que se procuram evidenciar
para definir uma perceptibilidade do nosso objecto de análise.
r Há campos • de estudo que não são facilmente definíveis ou
identificáveis, muitas vezes não por serem de difídl visibilidade, mas
porque o olhar que nos acostumámos a lançar-lhes está acomodado a
categorias mais confortavelmente reconhecidas e arrumadas. Ao eleger-se
as instituições de correcção de menores como espelho de alterações
importantes nos métodos de organização de populações escolares e
procurando fazê-lo de um ponto de vista pluridisdplinar, foi precisamente
40
para descompartimentar as categorias em que é habitual arrumar a actividade
dessas instituições e procurando correlacionar entre si os múltiplos
elementos do seu exercício. São locais onde se estabelecem situações-limite,
“instituições totais” destinadas à “solidificação do eu”, merecedoras de
uma análise microssodológica de interacções (Corcuff, 1997: 119;
Goffrman, 1999a).
O arco temporal contemplado tem duas cambiantes distintas: uma,
de cariz genealógico e início pouco definido, estende-se até ao final do
século XIX, período marcador de uma profunda alteração paradigmática no
relacionamento do Estado com os “menores desavindos” e no
reconhecimento destes como uma população delimitável, a partir da qual
se poderia então proceder à individualização de cada um, devendo ser
gerida pela aplicação de racionalidades fundadas em discursos modernos e
científicos, tomando-se expressão prática duma vontade política. A esse
vínculo da correcção de menores à modernidade pode ser atribuída uma
data simbólica - o ano de 1870, data da separação da população criminal de
menores de 18 anos dos outros presos. É essa a data do início da segunda
cambiante do arco temporal em estudo, que finaliza em 1962 aquando da
reforma da reinserção social de menores que veio consolidar, pode-se dizê-
lo, o alvor da pós-modemidade nas tecnologias correccionais.
Procura-se ainda, produzir um texto de síntese utilizando recursos
conceptuais menos explorados, pretendendo sustentá-lo também com o
complemento da mediação de outros trabalhos empíricos já cumpridos em
estudos mais especializados e recorrendo também a registos documentais já
coligidos. É essa a razão porque nos dispensamos de publicar em apêndice
41
uma panóplia documental cuja edição foi já contemplada1. Não se trata de
eximir a consulta e tratamento do material de arquivo, o que,
evidentemente, foi feito, mas sim de evitar uma recorrência editorial de
dados que já estão compilados e disponíveis.
De qualquer forma, a ideia de arquivo aqui perfilhada não se ajusta
ao simples acumular de um cotpus documental traduzível em dados
empíricos, ou em análise de conteúdo dos textos. São pertença do
“arquivo”, mas este, na acepção foucaultiana aqui adoptada, traduz-se por
um conjunto de regras que num dado período e para uma determinada
sociedade “permitem definir as limitações e as formas de expressividade;
conservação; memória e reactivação ” ou seja, aquilo que permite ser dito, o que
forma os enunciados e discursos duma temporalidade, mas também o que
é condenado a desaparecer, a ser lembrado ou esquecido ou ainda
recuperado em determinado momento (McHoul & Grace, 1993: 30; Silva,
2000).
Michel Foucault nunca foi presctitivo e, procurando traduzir esse
preconceito, esta investigação procura não emitir juízos de valor, embora a
aparente crueza da argumentação e a natureza muitas vezes dolorosa da
1 Destas, talvez a compilação mais exaustiva (cerca de 500 páginas) conste no vol. II da Tese de Mestrado de Em esto Candeias Martins (1994). No plano iconográfico e sociológico releva-se Carmo, Dam ela Sá & Lopes, João Teixeira (2001). A Tutoria do Torto - Estudo sobre a M orte Social Temporária. Porto: Edições Afrontamento. Sobre o refugio da Tutoria de Lisboa, Santo, João Miguel R. S. (2000). "Crianças Malfeitoras" a contas com a Justiça — Os menores catalogados pelo Refugio da Tutoria Central da Infanda da Comarca de Lisboa 1920-1930. Dissertação de Mestrado - Universidade de Lisboa — Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Lisboa. No plano europeu, considerando as limitações linguísticas, é de realçar o trabalho de Jeroen Dekker, no que concerne aos estudos comparados e, sobre a história das instituições espanholas, Santolaria, Félix (1997). M argnaàôn y Educación - Historia de ta Educación Social en la Espana M odernay Contemporânea. Barcelona: Ariel.
42
matéria empírica por vezes o sugira. Encerrando esta parte e a esse
propósito, ficam estas eloquentes palavras de Mitchell Dean (1999: 40):
“An analytics of government gain a critical purchase on regimes of
practices by making clear the forms of thought implicated in them. It may
point to ‘inconvenient facts’ such as the disjunction between the stated
aims of particular programs and other explicit rationalities and the logic or
strategy of such practices that can be known through their diverse effects.
More broadly, however, an analytics of government can be employed from
a variety of ethic and politic perspectives”.
43
A l g u n s c o n c e it o s a d o p t a d o s
Começa-se por enunciar e procurar explicitar alguns conceitos
essenciais sobre os quais se desenvolve a analítica proposta neste trabalho.
Mais que inventariar ou procurar explanar teorias, trabalho
abundantemente já feito e qualificado, procura-se no entanto esclarecer
alguns conceitos aqui empregues, imprescindíveis para a filiação e
construção do trabalho e que ajudem a suportar uma hermenêutica da
forma mais coerente possível.
Apesar da introdução inicial de algumas concepções, ao longo do
texto encontrar-se-âo outros paradigmas interpretativos, como “clausura”,
“iniciação”, “regime”, “castigo”, “população”, etc., que serão solicitados e
mais ou menos aprofundados à medida que pareça justificar-se. Por
comodidade e fluência, o termo “menor” é usado genericamente em
referência ao jovem ou à criança e inclui a infanda e a adolescência,
preferindo não se adoptar nenhuma terminologia de ffacdonamento etário,
embora fosse possível recorrer a diversas taxionomias disponíveis para as
“idades da criança”1, mas é bem perceptível, contextualmente, que não se
1 Cfr. Ariès, Phillipe (1973). UEnfant et ia viefam iliale sous tancien régime. Paris: Editions du SeuiL No século IX usava-se o termo injans paxa designar crianças de 2 a 15 anos. A tradição hipocrádca medieval, já de raiz médica, portanto, dividia a infanda nos seguintes estádios: infantia — do nascimento até aos 7 anos; pum tia — dos 7 aos 12 para as raparigas e dos 7 aos 14 para os rapazes; adokscentia — dos 12 ou 14, até aos 21 anos, cfr. Heywood, Colin (2001). A History o f Chiídbood - Chiidren andC hildhoodin the Westfrom Medieval to Modem Times. Cambridge: Polity Press. Para Comenius, que se baseava no desenvolvimento da linguagem, seria a primeira infância; segunda infância; juventude e adulte% No culminar da Modernidade, Jean Piaget fundou uma categorização pela evolução lógica da criança, iniciando uma epistemologia genética das aptidões e do desenvolvimento. Também Almeida Garrett teorizou sobre este tópico, cfr. O, Jorge
45
trata de crianças de tenra idade mas sim de jovens sujeitos a medidas
correcdonais, tendo a abrangência dessas medidas incidido sobre um leque
etário normalmente variável entre os 7 - 10 anos e os 18 - 21 anos.
Segue-se a explanação de alguns dos referidos conceitos adoptados.
A correcção social
A expressão “correcção social” e a noção de “correcção” ou
“reeducação” são empregues no sentido de representarem uma acção que
corrija no menor os distúrbios comportamentais que o impedem de ser
integrado numa ordem social tida como normal.
São termos tomados em sentido muito amplo, uma vez que numa
dimensão temporal tão grande como a modernidade - e só há correcção
social na modernidade — esses termos foram assumindo diferentes nuances
simbólicas como as de castigo ou correctivo, ou de ortopedia social e moral
ou de reinserção, sendo normalmente interpretadas à luz de uma
discursividade de cunho moralista. Esta opção por uma designação muito
genérica — correcção social — deve-se às técnicas reeducativas empregues
em diferentes modalidades serem mais do âmbito ou especialidade da
acção da instituição que das suas metodologias. A diferença organizacional
entre um.asilo e um orfanato, ou entre uma casa de correcção e uma
prisão, residiam .mais nos regimes disponíveis à época que nas finalidades
Ramos do (2002). O Govemo de Si Mesmo — Modernidade pedagógica e encenações disciplinares do aluno liceal (último quartel do século XIX - meados do século XX). Dissertação de doutoramento em Ciências da Educação (História da Educação) — Universidade de Lisboa, Lisboa. Sobre as idades da criança no Portugal de seiscentos e setecentos, cfr. Ferreira, António Gomes (2000: 347-386). Gerar Criar Educar—A Criança no Portugal do Antigo Regime. Teses voL 7. Coimbra: Quarteto.
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da instituição, que basicamente era a mesma em todas: a recuperação social
de indivíduos através da sua correcção pelo adestramento, para que se
pudessem tomar indivíduos aptos a toma vida social normal e participada.
Mas esses regimes não eram muito distintos entre si, permitindo encontrar
entre eles um conjunto de continuidades nas práticas disciplinares a que
recorriam. Mesmo os alunos que não estivessem em regime de internato,
acabavam por estar de alguma forma sujeitos às obrigações e imperativos
das instituições, patronatos ou famílias que os regiam, procurando
emendar-lhes o curso da vida.
Esta ideia de correcção social, almejando uma plena integração
participada de todos os sujeitos numa ideia de bem comum, desenvolve em
Portugal uma aplicação especialmente dedicada a estimular essa procura e
que foi consagrada através da criação em 1935 do Instituto de Serviço
Social, uma escola de assistentes sociais. A missão do serviço social era
justamente, nao só assistir materialmente mas, “essencialmente, uma forma
de acção cujo fim é a instauração e a restauração da ordem social, pela
adaptação dos indivíduos à sociedade e pela adaptação das condições
económicas e sociais às necessidade do indivíduo” (Nunes, 1943: 154).
Essa intenção de uma integração ajustada procurou expressar-se
através dum conjunto de dispositivos disciplinares que foram procurando
acompanhar o discurso da pedagogia dentífica e 'do Direito Penal nessa
demanda de uma indusãó pacífica de todos os menores. Entre a mera
punição retributiva de uma dívida sodal originada por uma infracção é a
procura de recriação de um ambiente familiar em tomo da criança que,
embora severo, facilitasse a regeneração pelas virtudes conviviais, desde o
trabalho à aposta na educação, ou seja, variando as tecnologias empregues
e muito mais òs discursos prescritivos, o fundamento de um conjunto de
47
instituições destinadas ao exercício de uma racionalidade política e social
foi basicamente. semelhante — efectivar uma “correcção social” que
permitisse a „inclusão pacífica e autónoma de todos os sujeitos numa
moldura social normal ■
A vontade de alterar a situação social da criança esteve presente em
diferentes subsistemas sociais, entre os quais a escola, mas no caso da
criança cuja tutela não dependa da família mas sim de um colectivo
institucional, assume então o carácter de um exercido de “correcção
soaal” que tem por fim a sua devolução sorial, tomando-o autónomo de
qualquer tutela. Quer dizer, não havendo uma tutela familiar e uma
envolvente natural e eficazmente integradora, dispositivos disaplinares
artificiais substituíam os riscos desse caminho natural corrigindo um percurso
que doutro modo dele se desviaria, sendo este argumento um suporte à
construção do discurso sobre a criança em risco moral.
A sem iótica da modernidade
Uma dificuldade metodológica, apresenta-se com a interpretação de
uma sinalética da modernidade, segundo um conjunto nítido de
indicadores que possam ser alusivos a diferentes etapas de um período dito
“moderno”, obrigando a lidar com inúmeras ambiguidades, sobretudo no
que diz respeito ao seu inído, ao seu culminar e às suas viragens ou
momentos mais marcantes. Começando pelo fim, alguns designam esse
terminus por pós-modernidade, soaedade do conhecimento, pós-industrial,
da informação, do.indivíduo, da troca do proteçdonismo.pela mutualidade
do risco, do pós-positivismo e, ultimamente, a “globalização” tem servido
48
como o mais recente dos apontadores desse período. Para outros, a
modernidade não atingiu nenhum clímax e os momentos “pós”, não são
mais que extensões e efeitos da mesma modernidade.
Para o caso vertente deste estudo, o fim do segmento de
modernidade em apreço é o ano de 1962, data em que se deu início às
reformas constantes no Decreto-Lei n.° 44287 de 20 de Abril desse ano,
contemplando a Reforma dos Serviços Tutelares de Menores e o Decreto-
Lei n.° 44288, promulgado em simultâneo com o anterior, que determina-a
Organização Tutelar de Menores e que, por brevidade, se assinala como
uma viragem marcada pelo inído do uso consistente de técnicas com
características ditas “pós-modemas” no campo correcaonal.
Quanto ao inído dessa temporalidade, ele demarca-se segundo a
perspectiva adoptada na percepção de modernidade. Se foi Chateaubriand
[1768-1848] que criou e universalizou o termo “modernidade”, fê-lo tendo
em mente o firuto das reformas religiosas, do Renascimento, das Luzes, do
positivismo e do radonalismo ou da dênda experimental, recortando uma
época inidada no século XVI e que vdo a estender-se até à
contemporanddade (Clément et al., 1999). Essa é a acepção mais
generalista, adoptada de uma consideração comum na filosofia do concdto
de modernidade e que se pode adequar a um determinado período e
confinar a um espaço geográfico e cultural europeu. Essa abrangênda
representa um conjunto de efeitos que significaram profundas alterações
nas dimensões individuais e sociais, como seja a construção de uma
“autonomia” — e, consequentemente, de uma responsabilidade pessoal —
ou pela diferenciação institudonal expressa na progressiva secularização e
radonaüzação dos processos empregues no seu exeraao e na sua
sustentação sodal e política, reflexo também da consolidação dos Estados
49
modernos. No entanto, é o projecto iluminista que mais se evidencia em
finais do século Xvni e que parece ter criado uma influência ascendente
sobre todo o século seguinte.
Foi já em meados do século XX que Hanna Arendt [1906-1975]
conotou a modernidade com uma diluição da esfera do interesse “público”
com o, “privado”, numa simbiose entre a ordem económica da produção
.com a ordem política da acção, mas estudos mais recentes entendem a ideia
.de ruptura da modernidade como possuindo marcadores diferentes. Para
Michel Foucault, essa viragem situa-se nos finais do século XVm e inícios
do século XIX quando surgiram nas ciências humanas novas formações
discursivas evidentes na trilogia formada pela biologia, pela economia
política e pela linguística. Certos autores viram esse corte como sendo o
fim da história natural, outros, como Koselleck ou Habermas, situando-se
no mesmo período, realçam uma viragem na política e na filosofia, que se
tomaram auto-reflexivas e se alargaram temporalmente, adquirindo a
capacidade de reflexão sobre a construção da história (Wagner, 1994: 29).
As instituições desempenharam sempre uma papel central na
construção moderna, ou projecto de modernidade, sendo as suas
expressões práticas o fulcro onde as racionalidades fundonais e a vontade
de poder político se conjugam. Era nesse ponto de apoio que se jogavam
os equilíbrios entre a liberdade do indivíduo e as forças que o continham
dentro de. certos limites de acção moral e social. Aí se jogava também a
transferência de .uma certeza espiritual para a dúvida metódica da. razão
dentífica, deslocando consigo uma fonte e um método de libertação/domínio
que teriam como consequência a construção de uma ideia materializável de
bem. Esta bipolandade entre a fonte de legitimidade e o método, entre a
razão, e a acção, o . interesse individual e o colectivo, os enunciados e as
50
visibilidades, a autonomia e a submissão, os ideais e as práticas sociais,
confirma a natureza ambígua da modernidade e têm congregado, muitas
vezes mais de um lado que de outro, o interesse dos que sobre ela
reflectem e discorrem.
As possibilidades abertas por • uma leitura assimétrica, com
andamentos diferentes, do arco temporal da modernidade e • dos seus
efeitos é, sobretudo, uma variável ditada pela dissemelhança entre diversas
actividades e discursos presentes na dênda, nas artes, na política, ou nos
comportamentos e costumes culturalmente proeminentes em
determinados períodos, o que significa provavelmente que cada discurso
fará a sua interpretação não só do culminar dá modernidade mas também
do seu início e de como e onde se manifestou. Peter Wagner (1994: 58-60),
prefere analisar a modernidade agrupando em três categorias as suas
práticas: as de atribuição de recursos materiais, as de poder autoritário ou
de domínio e as de significação ou representação simbólica. Essas práticas
serão institucionalizadas quando se convertem em hábitos e se implantam
através de regras de âmbito social. Interessa também apreciar como
diversas racionalidades se inscrevem nessas práticas regimentais e que papel
têm no estabelecimento da norma nas instituições disciplinares.
No contorno deste trabalho não cabe uma análise detalhada dos
enigmas que a teorização sobre a modernidade suscita, mas sim o dever de
contextualizá-lo brevemente num espaço temporal onde, apesar de haver
um aparente consenso em tomo do período em que se produziram
acontecimentos decisivos • para as viragens da modernidade, seja a
revolução industrial ou as rupturas de regimes políticos com as revoluções
francesa e americana, o mais relevante para este estudo é a nomeação da
educação, por Michel Foucault, como sendo um elemento central na
51
construção da modernidade (Hoskin, 1990: 20).-Por isso, importa tentar
traduzir aqui para o campo educacional, fazendo-o pelo recurso a uma
abordagem genealógica, -o que certas práticas regimentais educativas de
excepção representaram para essa construção do projecto da modernidade
e em que medida podem contribuir, pela interpretação das suas
metamorfoses, para a compreensão da evolução dos métodos pedagógicos
de governação da criança e, em última análise, dos regimes escolares do
presente.
U m a analítica do discurso
A palavra discurso é usada aqui no sentido foucaultiano de
construção e expressão de uma realidade a que pertence. No entanto,
“discurso”, pode ser usado em diversos sentidos, segundo o contexto e a
análise que se lhe referem. Concentrando-se os seus inúmeros significados
sobretudo em tomo da Teoria Literária, da Crítica Literária ou da Teoria
Cultural, para além da apropriação por outras disciplinas, como a
Sociologia, a Psicologia Social, a Teoria da Comunicação o Marketing, etc.,
interessa-nos particularmente de que modo os discursos arquitectam os
modos disciplinares que pretendem teorizar e sustentar. Clarificando,
perfilha-se a leitura do termo “discurso” como correspondendo à
expressão do conceito foucaultiano de um “corpo de conhecimentos”
onde o encadeado verbal significa mais que a semântica que contém,
perfilhando as teorias críticas pós-estruturalistas que colocam a ênfase no
“carácter, linguístico do processo de construção do mundo social” (Silva,
2000: 43).
52
A análise das práticas discursivas das disciplinas seria, para Foucault,
uma forma de revelar os’ discursos como “práticas que sistematicamente
formam os objectos sobre os quais se pronunciam”, constituindo domínios
de poder que são negados a uns e concedidos a outros (Michel Foucault,
1997: 40; Shaafsma, 1998: 256). O sistema educativo seria assim uma
“maneira política de manter ou modificar a' apropriação dos discursos, com
os saberes e os poderes que transporta consigo” (Foucault, 1997: '33). O
discurso deve então ser, nesse sentido político, interpretado à' luz -dàs
especifiddades em que ocorre, da sua correlação com outras declarações,
das ligações que a partir daí se estabelecem ou como outros discursos por
ele são omitidos, considerando que os ‘ discursos são “práticas
descontínuas” uma vez que interagem mas também se ignoram ou excluem
(Foucault, 1997: 39).
As regras e estruturas discursivas não são então originárias de
factores sodoculturais oú económicos, são sim um atributo do próprio
discurso, formado pelos mecanismos internos do próprio discurso, pela sua
disaplina, enquanto “prinapio de controlo da produção do discurso”
(Foucault, 1997: 28). São essas estruturas do discurso que fazem com que
os factos nos pareçam credívds e adquiram materialidade, tomando-se
assim uma forma de interpretação da realidade que, não sendo a realidade em
si, é uma forma de a pensar. Tais disposições estruturais do discurso não
são construções institudonais de origem deliberada, ou premeditadas por
um grupo, são antes tidas como uma combinatória de forças de pressão
cultural e institudonal que, em conjunto com a estrutura intrínseca do
discurso, acabam sempre por exceder os desejos, a dimensão ou os planos
dessas instituições ou grupos de poder que os protagonizam (Mills, 1997:
48-56). Os discursos podem especializar-se e assim corporizarem saberes
53
organizados em tomo de disciplinas ou grupos de interesses, sendo então
apreciados face às relações de poder que estabelecem. Essas regulações de
poder são assim estabelecidas através do controlo, da selecção, da
organização e redistribuição da produção social discursiva (Foucault, 1997:
9).
Nessas trajectórias dos discursos assiste-se ao ganho de uma
preponderância temporal de alguns deles, uma espécie de triunfo social de
determinadas ideias, próximo do que Foucault designa por “apropriação
social dos discursos”. Há uma distinção precisa da natureza desse poder,
que não é um poder necessariamente coercivo: “O discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo pelo qual se luta, o poder pelo qual nos queremos apoderar”
(Foucault, 1997: 10), o que faz que a luta pelo poder não seja algo de
belicoso mas mais de relacionamento por envolvimento táctico, em que
uma .acção orientada em direcção a algo, desencadeia uma consequência,
ou efeito, merecedora de nova acção.
O sistema educativo, por muito democrático que seja, está
permanentemente sujeito a uma selecção e arranjo discursivo submetido a
uma disciplina própria que terá sempre uma expressão dominante, uma
resultante das lutas sociais de cada época, tomando-se génese de
determinadas práticas, também elas transitoriamente dominantes, o que lhe
confere um carácter instrumental, uma vez que todo o sistema de educação
conjuga “uma maneira política, de manter ou de modificar a apropriação
dos discursos com os saberes e os poderes que eles transportam consigo”:
54
“O que é afinal um sistema de ensino senão uma atualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário pelo menos difuso; senão uma distribuição e apropriação do discurso com os seus poderes e os seus saberes?” (Foucault, 1997: 34).
D isciplina e instituições disciplinares de controlo social
Procura agora clarificar-se o conceito foucaultiano de “disciplina”,
aqui adoptado, bem como das possibilidades de acção de instituições de
regulação é controlo social.
Para além de Marx, que associava a disciplina ao controlo produtivo
do trabalho, também Max Weber não se afastou completamente dessa via,
ao procurar estudar a disciplina através de organizações sociais, embora
não exclusivamente laborais, assentando a sua visão numa ideia* de
disciplina como um corpo burocrático de regras determinantes para o
exercício da autoridade política. O entendimento marxista da disciplina
como um artefacto industrial, destinado a organizar os operários, tomá-los
pontuais, responsáveis e moralmente estáveis nos seus trabalhos, continha
em si algumas limitações, evoluindo naturalmente com Max Weber para a
análise de outros processos de actividade do poder, menos óbvios mas
bem presentes na acção de instituições de dimensão social. Mas enquanto
Weber se concentrava no crescimento do aparatus legal e burocrático,
nunca deu especial relevo aos efeitos que o exercício desse poder
desempenhava sobre o corpo politico (O'Neill, 1986: 45). Foucault centra-se
exactamente sobre um alargamento dessa leitura mecanidsta do corpo para
um conceito de população regulada por diferentes formações discursivas e
55
controlos reguladores, ou seja, por uma “bio-política” das populações.
Foucault teria assim complementado “o conceito radonal-formal de
burocrada e dominação legal, com uma fisiologia da burocracia e do poder que é,
definitivamente, uma marca das sodedades disciplinares” (O'Neill, 1986:
45), mas não deixando de reconhecer o papel do poder disciplinar nas
regulações laborais e no desenvolvimento do capitalismo:
“O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à . . . . modalidade específica do poder disaplinar, cujas fórmulas
gerais, cujos processos de submissão das forças e dos corpos, cuja «anatomia política», em uma palavra, podem ser postos em fundonamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições muito diversas” (Foucault, 1987: 182).
.No século XVIII, esses processos de difusão do poder atingem um
nível a partir dp qual se consolidam a si próprios através de uma
racionalidade não só de. pensamento como de acção, numa circularidade
que optimiza os processos de fazer, potenciando a sua eficácia e marcando
um novo limiar tecnológico. Foucault aponta-nos., essa visibilidade no
campo das instituições educacionais com as seguintes palavras:
“O hospital primeiro, depois a escola, mais tarde ainda a ofidna, não foram simplesmente «postos em ordem» pelas disciplinas; tomaram-se, graças a elas, aparelhos tais que
• qualquer mecanismo. de objectivaçao pode valer neles como instrumento de sujeição, e qualquer crescimento de poder dá neles liigar a conhecimehtos possíveis; foi a partir desse laço, próprio dos sistemas tecnológicos, que se puderam formar no elemento disciplinar a medicina clínica, a psiquiatria, a
. psicologia da criança, a psicopedagogia; a racionalização do •trabalho. Duplo processo, portanto: arrancada epistemológica a partir de um afinamento das relações de podér; multiplicação dos- efeitos de poder graças à formação e à acumulação de novos conhecimentos” (Foucault, 1987: 184-185).
56
- A história das práticas disciplinares -aplicadas por instituições pode
ser bem o reflexo da evolução do papel social do sujeito, quando
acompanha a transição da exclusividade do domínio físico dos corpos,
garantia de vassalagem dos súbditos, até tecnologias que visam não o corpo
mas outros mecanismos e discursos que conduzam os sujeitos, de forma
cada vez menos ostensiva e fisicamente violenta, a uma determinada
configuração social e moral preestabelecida.
E através desse salto temporal e tecnológico que se pode
compreender a distância entre a forma violenta de agregar, punindo os
indivíduos e uma via que, mantendo as suas características disciplinares
mas recorrendo a outras práticas, substituiu a coacção sobre os corpos pela
persuasão, pela crença, pela auto-regulação e controlo, pela procura de um
voluntarismo moral, enfim, por uma terapêutica da alma. As instituições que
puniam, passam a tratar a origem da infracção, isto é, o sujeito vê-se agora
na situação de responder não propriamente pelos actos que praticou, mas
pela eficácia da prescrição que lhe for aplicada, a fim de o remir de outros
castigos. O discurso dessa terapêutica institucional vai alterar a natureza
visível dos regimes, que então passam a vigorar não para castigar mas para
aàdar.
A aplicação de tecnologias disciplinares estimulou o surgimento de
novas instituições e também levou a que outras se começassem-a regular de
forma diferente. Assim aconteceu com o surgimento* da prisão, dos
hospitais, da casa de correcção, da escola e mesmo dos locais de trabalho.
Neste tipo de instituições desenvolveu-se, devido à permanente
disponibilidade das suas populações e ao desenvolvimento da ciência
experimental, um conhecimento muito aprofundado das atitudes,
comportamentos e desejos das pessoas, formando um saber que se vai
57
desenvolvendo no sentido de melhor e mais facilmente as aperfeiçoar
consoante as disponibilidades institucionais. Esses discursos e as suas
expressões materiais, para além da sua feição modelar, são também a fonte
de legitimação de si próprios, à medida que o saber que os legitima se vai
estabelecendo e difundindo como ‘Verdade”.
A este tipo de conhecimento, desenvolvido pelo exercício do poder
sobre populações bem definidas e à sua respectiva legitimação, Michel
Foucault designa-o genericamente por saber! poder e as instituições onde é
exercido são designadas por “instituições disciplinares”. São locais onde o
tempo e o espaço são organizados segundo actividades susceptíveis de
provocar mudanças nos comportamentos dos sujeitos, em subordinação a
um determinado conjunto de parâmetros e onde a “observação” é um
elemento essencial, não só para o diagnóstico que afere se é possível os
indivíduos assumirem uma vida dódl e produtiva, “inserida socialmente”,
como também identifica para cada um o seu verdadeiro s e f arrumando-o
pelo contraste com os outros. Essa arrumação taxionómica produz uma
crença por parte do sujeito quanto à natureza do seu “true self”, uma vez
que ao ser avaliado e categorizado (delinquente, em risco moral, nervoso,
sexualmente discordante com os cânones da época, apático, incorrigível,
etc.), adquire uma determinada consciência de si, que a acção da instituição
lhe proporcionou através de um discurso cientificamente caucionado como
verdadeiro. Uma vez que a verdade ontológica riaò se determina e o conceito
de “homem” autónomo, capaz de se autogovernar, é uma representação
pós-iluminista, o recorte do s e f de cada um é pois uma construção ficcional
humanista (Marshall, 1990: 15-16). '
Mesmo a relação dos sujeitos com a liberdade era regulada pôr iima
disciplina que se aproveitava do erro para possibilitar a emenda, uma
58
versão racional da penitência que, ao contrário, estabelecia • a relação
disciplinar com o arrependimento e a dor. O conceito de autonomia dos
indivíduos através de um programa disciplinar que venha- de dentro permitiu
estabelecer uma relação pragmática e secularizada com a fa lta , tomando-a
produtiva e exequível pela liberdade exercida sob autodisdplina, até o
estoicismo se tomar num “impulso espontâneo”. Uma boa síntese
encontra-se nas palavras de um professor primáno dissertando sobre
disciplina, liberdade e educação, no início do século XX:
“Não é baseando-nos em qualquer coisa que só fora de nós existe que havemos de conseguir ser homens livres, dispondo . conscientemente de nós próprios. Livre só o pode ser quem resiste a solicitações que lhe repugnam; livre quem mudando de meio não muda de pensar, livre quem não faz depender a sua acção da sanção alheia; livre só o é aquele que, arrostando com censuras e perseguições, prossegue no caminho que vem trilhando., convicto de que não vai errado; livre quem, por amor à verdade, e num impulso espontâneo a que não poderia fugir, se declara em erro sempre que nele reconhecer ter incorrido (Santos, 1917: 4).
A disciplina não pode ser então percebida como um simples meio
de observação e controlo, de estabelecimento de uma determinada ordem
ou de exercício do poder, mas sim como um artefacto pontuado por
detalhes de dimensão ínfima, componentes instrumentais de um saber
endereçado a uma determinada configuração moral para que foi concebida,
tendo a sua discursividade deslocado o centro da sua origem contratual
para a relação dos sujeitos consigo próprios e com a sua aceitação, social.
. Essa inserção social tinha não só um sentido dócil mas também
produtivo na sua interacção com os outros. Os poderes disdplinadores
tinham a missão de ensinar os sujeitos a enquadrarem- se socialmente sendo
auto-suficientes perante os outros. Michel Foucault (1987: 143) retrata o
59
adestramento disciplinar como um “recurso” - que poderá- ser usado
instrumentalmente:
“O poder disciplinar é com efeito um pòder que, em vez de se apropriar e. de retirar, tem como função maior «adestrar»; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor: Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá- las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. (...) A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objectos e como instrumentos do seu exercido.”
A disciplina e o castigo na acção pedagógica
O uso técnico do castigo sempre foi alvo de uma avaliação moral
por. parte de diversos pensadores e pedagogos, que foram encontrando
leituras diferentes para o seu efeito social. É importante clarificar que nem
o castigo é uma inevitável consequência disciplinar, como também não são
tecnologias semelhantes, pelo contrário, a disciplina visa esvaziar a
necessidade da punição, até porque o próprio cumprimento dos rituais
disciplinares pelo exerdáo da obediência constitui em si um castigo
libertador da punição. O uso social e educativo da punição nunca foi
ignorado nem a sua aplicação se extinguiu do exercício pedagógico,
adquirindo sim um conjunto de cambiantes que a imaginação sempre
ditou. A noção , de punição ou castigo , aqui adoptada faz parte de uma
concepção disciplinar foucauldiana — um dos instrumentos da toolbox,
como lhe chamava Deleuze (1998) - partilhando a ideia de que o conceito
de castigo, disciplinar e a abordagem praticada por Michel Foucault é a mais
60
apropriada para a compreensão do significado e justificação do castigo em
educação (Marshall, 1996: 215).
Os castigos foram sempre sendo aplicados em actos educacionais,
apesar de Comenius em pleno século XVH já preconizar na sua ‘‘Didáctica
Magna” um ensino afectivo na relação pedagógica, uma vez que o castigo
violento afastava a criança da escola e da vontade de aprender (Marques,
2001: 117), produzindo uma distinção inequívoca-entre ordem disciplinar e
castigo. No século seguinte é quando se começa a sentir uma maior
propensão para amenizar os castigos, ainda aplicados pela invocação de
citações bíblicas que prescreviam “correcções austeras e dura” mas
submetidos a um doseamento quanto ao grau e à oportunidade com que
deveriam ser aplicados (Ferreira, 2000: 317-334).
O sociólogo Émile Durkheim [1858-1917], pela época em que
viveu, pela influência na construção discursiva de uma nòva epistemologia
e pelas afinidades com Foucault no interesse por determinados objectos de
investigação, não pode deixar de ser aqui tido em atenção. Durkheim
considerava a penalidade como um dispositivo de formação moral e um
constrangimento natural inerente às necessidades de construção sodal, uma
vez que o indivíduo, através do seu comportamento moral, seria também
um revigorante da democracia, não podendo esperar infringir determinadas
normas sem as respectivas consequências. O castigo escolar reforçaria
então um tipo de autoridade social perante a criança, não sendo
propriamente um instrumento de reabilitação mas sim de reforço da
afirmação de valores morais partilhados (Cladis, 1999). Nessa visão de
Durkheim, essencialmente expressa' no seu livro M oral Education, o castigo
èra um exemplo de uma “consciência' colectiva” a funcionar, uma
expressão regeneradora de valores sociais e de um reforço da acção moral
61
onde a coesão social for frouxa. A punição seria assim, a seu ver, um
mecanismo de produção de solidariedade social que, nas suas dimensões
morais e sociais, teria por isso assumido características “modernas” porque,
como constrangimento, passou a existir de forma mais latente, encoberta,
subjacente a contratos, normas e regulamentos, assumindo pois essas
dissimulações como marcas distintivas da modernidade (Garland, 1999).
A punição não seria então um constituinte da ordem moral, mas
sim um elemento que asseguraria que a infracção, o desvio e a
desobediência não produzissem efeitos “desmoralizadores”. Como tal, o
indivíduo não seria punido pelo mal causado no imediato mas pelas
consequências que a violação traria para o nível da ordem moral
estabelecida. Seria uma sanção mais dirigida aos espectadores que ao
próprio, não tendo grande utilidade na prevenção da infracção mas sendo
um eficaz instrumento de “afirmação moral”. Haveria pois uma espécie de
exigênda de manutenção do próprio sistema, através do castigo, que
adquiria uma enorme visibilidade na situação escolar de uma aula, onde “a
ordem moral é frágil e estreitamente dependente das acções do professor”
(Garland, 1999: 24). Em finais do século XIX, procurava humanizar-se a
ideia de punição, havendo uma manifesta preferência pelos castigos ditos
“mofais” em detrimento dos que recorriam às penas físicas, como se o
castigo físico não acarretasse um dano moral no justiçado.
Conforme essa ordem moral se ia estabilizando e o ordenamento
pela obediência disciplinar se consolidava, assim a punição física se tomava
mais dispensável, mas não se extinguia. Nietzsche revelou-nos uma
interpretação que relaciona proporcionalmente o uso da acção punitiva
com a integração no colectivo, atenuando-se mas mantendo sempre uma
reversibilidade, ou seja, quando se toma necessário, o castigo está
62
disponível: “À medida que cresce o poder e a consciência de uma
comunidade, o direito penal toma-se sempre mais brando; qualquer sinal
de fraqueza, qualquer ameaça mais profunda, voltam a trazer ao de cima as
formas mais duras desse direito” (Nietzsche, 2000: 80).
A govemamentalidade
A assimilação do conceito de govemamentalidade toma-se folcral
para o desenvolvimento metodológico aqui usado. Sem isso, não faria
sentido ligar a disciplina a um uso gerendal de populações através de
instituições educativas. O estudo da genealogia disciplinar e da evolução
das racionalidades políticas não pode ser conduzido separadamente.
Ambas contêm no seu universo de interesses um denominador comum: o
sentido incremental de progresso através da mobilização para uma maior
produtividade colectiva, estimulada pelo exercício de mecanismos
governativos accionados por um saber.
Philippe Ariès (1973: 278-281) emprega essa simetria a propósito
da génese da disciplina escolar do século XV, uma mentalidade de
organização que não se vai generalizar e corporizar socialmente antes dos
séculos XVIII e XIX, altura em que se estabelece necessariamente “um
sentido técnico e tecnocrático, um espírito cartesiano, uma procura de
ordem, de regularidade, de classificação, de hierarquia, de organização”. A
construção dessa ordem era conseguida pela imposição disciplinar de
inúmeras restrições que reflectiam, numa nova forma de lidar com a
criança e de a educar. .
63
Apesar de não ter talvez. explorado em, profundidade as suas
investigações sobre este tema, uma vez que se concentrou na finalização
àz.-H istória da Sexualidade, as lições de Michel Foucault sobre uma certa
moldura de razão usada para o exercício da governação foram
consistentes, sobretudo durante os cursos que ministrou e investigações
que dirigiu nas suas estadias nos Estados Unidos.da América, originando
um . legado conceptual que tem sido ap licadona compreensão de
determinados sistemas de organização social, entre os quais se contam os
sistemas de educação. Ao longo do texto serão invocadas várias
referências e comentários adidonais sobre a temática da
“govemamentalidade”, tentando contextualizar e complementar esse
conceito, mas procurando expor desde já o essencial desta analítica do
governo.
A tópica dos estudos de Foucault sobre “racionalidade de
governação” (govemmental rationality) inddia na forma como se *
estabeleciam técnicas de exerddo de poder, de forma a conduzir a
conduta de cada um. Para ele, “governação” ou “govemo” tinha duas
possibilidades de leitura, uma mais ampla e outra mais estrdta. Num
sentido geral, era exactamente a “condução da conduta” (conduct of
conduct), isto é, uma forma de actividade que tem por finalidade moldar,
guiar, ou afectar a conduta de pessoas ou grupos. Mas seria também “o
cuidado de si”1 uma actividade respeitante ao relacionamento de cada um
consigo mesmo, ao relacionamento interpessoal que envolva alguma
1 Cfr. Foucault, Michel (2001). L' herméneutique du sujet In: François Ewald and Alessandro Fontana [eds.j, Seuil/Gallimard, Paris; Ó, Jorge Ramos do (2002). O Govemo de Si Mesmo - Modernidade pedagógica e encenações disciplinares do aluno liceal (último quartel do século XIX.- meados do século XX). Dissertação de doutoramento em Ciências da Educação (História da Educação) — Universidade de Lisboa, Lisboa.
64
forma de orientação, às relações no interior de instituições sociais e ao
exercício da soberania política.
O desígnio da governação como problemática remonta, de acordo
com Foucault, ao século XVI, quando se começaram a colocar questões
sobre a forma como cada um se deve governar, como construir uma
ritualização do problema da conduta pessoal, o que era característico do
revivalismo estóico desse século. O mesmo problema também absorvia a
atenção das igrejas Católica e Protestante sobre a doutrina pastoral a
seguir para um bom governo das almas e das vidas1. Foi igualmente nesse
século que emergiram as grandes problemáticas da pedagogia e dá forma
de governar as crianças (Foucault, 1991: 87): A reflexão e as acções
decorrentes dessas necessidades sociais originaram uma proposta de
transposição para a dimensão do Estado dos cuidados postos na
governação dos bens e pessoas de uma família e no empenho que o chefe
dessa família lhes dedica na procura de um crescente benefício dos seus
membros. A relação estabelecida ao longo deste texto entre o discurso
pedagógico correccional e a qualidade produtiva que se exige à inserção
social dos sujeitos escora-se exactamente na intromissão de uma
economia na prática política, através do estabelecimento duma “arte-de
governo” (Foucault, 1991: 92).
É o neologismo “govemamentalidade” (govemmentalitè),
proveniente de “mentalité de govemement”, que vai passar a ser a
designação mais comum de uma “racionalidade” ou “arte” de governar
1 Cfr. Dean, Mitchell (1999). Govemmentality: Power and Pule in Modem Society. London: Sage Publications; Simola, Hannu; Heikkinen, Sakaii & Silvonen, Jussi (1998). A Catalog of Possibilities: Foucaultian History of Truth and Education Research. In: T. Popkewitz and M. Brennan [eds.], Foucault's Challenge - discourse, knowledge and power in education. 64- 90. New York: Teachers College Press.
65
por meio de páncípios racionais e ordenadores do conhecimento,
mantendo-se como designação da procura de estabelecer um sistema de
pensar a natureza das práticas de governação. (Dean, 1999; Gordon,
1991; Ó 2002).
A mesma analítica usada no estudo de técnicas e práticas
particularmente endereçadas aos sujeitos individuais e a instituições locais,
pode também ser usada para apreciar técnicas e práticas para governar
populações de sujeitos ao nível da soberania política sobre uma inteira
sociedade (Gordon, 1991: 4), princípio adoptado nesta investigação, ao
procurar identificar algumas continuidades entre um sistema educativo
“em massa” e o regimento disciplinar dos internatos especializados, não
sendo, afinal, senão um modo crítico endereçado à inteligibilidade dessas
práticas e à forma como se estabelecem essas sinapses do poder.
66
PERCURSO METODOLÓGICO
Mais que uma referenda, Michel Foucault está presente neste texto
como elemento inspirador da caracterização do objecto e da preferência
pela sua abordagem. Ao dedicar o seu interesse à clausura, à
instrumentalidade disciplinar, ao domínio dos corpos e aos percursos
normalizadores dos sujeitos, inscrevendo um novo território num campo
de análise onde predominavam as aproximações jurídico-penais, Michel
Foucault com Vigiar e Curtir (1987) [1.* ed. 1975] tomou-se, directamente
ou por descendência intelectual, praticamente incontomávd na abordagem
ao universo da criança internada. E que Foucault não nos fala aí
propriamente da prisão, enquanto artefacto penal e corrector, mas sim dos
efeitos que determinados regimes disciplinares pretendem produzir quando
usados como tecnologia social de governação de grupos sociais específicos.
A importância do trabalho de Foucault para a investigação em
Educação não advém exclusivamente das suas propostas para a
compreensão dos sistemas de regulação disciplinar e das instituições que a
usam como método, uma vez que os seus textos se alargam a outras
tecnologias e outros conceitos, também reconhecíveis como epistemologia
social. Michel Foucault, ao questionar os fundamentos conceptuais que
suportavam determinadas disciplinas que se tomaram marcantes a partir do
século XVIII, tais como a linguística, a economia, a medicina ou os sistemas
educativos, construiu uma teoria crítica que abarca “as estruturas cognitivas
e os arranjos institucionais das sociedades modernas”, colocando no seu
67
centro a questão de como o homem se elegeu a si próprio como objecto de
conhecimento (Roth, 1992: 684).
Enquanto processo científico de aproximação a um objecto
empírico, o distanciamento, ou um certo desprendimento até, que o
pensamento de Foucault sugere — Ewald refere-se-lhe como “um
pensamento sem compromissos” (Ewald, 2000: 10) — constitui por si um
estímulo importante para ensaiar uma nova abordagem, uma viragem
linguística que, do ponto de vista historiográfico, possibilite também a
edificação de uma problemática aberta ao aprofundamento da sua
exploração e à revelação de uma invariante, uma constante que permita
conhecer a variedade dos fenómenos (Veyne, 1989).
Tal como Foucault, também o sociólogo americano Erving
Goffinan se toma uma referência indispensável, através do seu estudo das
“instituições totais”. As instituições dedicadas ao internamento de
indivíduos, como manicômios, prisões, conventos, colégios internos, asilos,
orfanatos, etc., em suma, as que se apoderam dos sujeitos, criando-lhes um
quotidiano do qual eles dependem completamente, são designadas por
instituições “completas”, ou “totais”. A situação do internado, a forma
como se sodabiliza e a dependência institucional do seu quotidiano
introduzem noções como “mortificação do eiT e sugerem a metáfora
orgânica do produto dessas instituições que “digerem” o indivíduo. Foi na
motivação destes dois eixos principais — o padrão disciplinar de Foucault,
enquanto “relação de poder” e a noção derivada de Goffman de “escola
total” - que foi construído o esboço epistemológico deste texto.
Quanto à dimensão representada pelas tecnologias disciplinares, a
sua abordagem far-se-á através da identificação do papel desempenhado
pela presença dos três dispositivos maiores em que Foucault dividia as
68
tecnologias disciplinares, quando usadas na inculcação de novas formas de
conhecimento (Hoskin, 1990; Roth, 1992), a saber:
1. Tecnologias de viglância - Mesmo numa simples escola, a vigilância
sobre os alunos pretende-se que seja continuada, o que só é possível pela
ordenação dos corpos no espaço, sendo distribuídos por salas de- aula
celulares, divididos em grupos e juntados por idades, mantendo-se em
simultâneo sob a vista atenta do professor. O uso do tempo também é
prescrito e conjugado com a ordem que permite a sincronia. Em
instituições disciplinares todas essas técnicas ostentam deliberadamente
uma intensidade que as representa como centrais para a eficácia do
processo educativo, assegurando a ocupação da totalidade do tempo dos
alunos.
2. Técnicas de registo — Englobam os dados que se reúnem sobre os
sujeitos ao longo do tempo. Há normalmente um “registo biográfico”,
resultados de exames, comportamento, avaliações, dados médicos e
pessoais que se desmultiplicam por diferentes especialidades, sendo
registados e acumuladas ao longo dos anos que durar a relação pedagógica.
São possibilidades que se desenvolveram com a estatística, permitindo a
numeralização de inúmeras classes.
3. Técnicas de normalização — São criações de categorias, o que só se
toma possível a partir das técnicas anteriores de observação e registo que
permitem a comparação mensurada de indivíduos com outros, produzindo
fronteiras e quotas de “normalidade”. A partir de uma média pode-se criar
um padrão ideal de cuja proximidade dependa o grau normalização social
ou.0 tipo de homogeneidade das populações.
69
Para ser bem sucedida a escrita de um texto que traduza uma
narrativa dos conteúdos e significados das fontes, ele terá que representar,
nas palavras de António Vifiao Frago, “ (...) uma reorganização da
informação que implicar relações e ligações, associações de causa efeito,
bem como a configuração de uma totalidade coerente e explicativa na qual
os seus componentes façam sentido, não de forma isolada mas pela sua
relação com o resto. Uma reorganização que seja, à vez, explicação e
interpretação” (Frago, 1996: 180-181).
70
P a r t e I I
A CRIANÇA E AS SUAS CIRCUNSTÂNCIAS
‘Tinha lido que na prisão se perde a noção do tempo. Mas para mim isto não
fazia sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser ao mesmo
tempo curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que
acabavam por se sobrepor uns aos outros e por perder o nome. As palavras ontem ou
amanhã eram as nniras que conservavam sentido.”
“O Estrangeiro”, Albert Camus
71
A CONFIGURAÇÃO DE UMA NECESSIDADE
Desde que a criança começou a ser percepcionada socialmente
como merecedora de uma nova atenção, ou sentiment como diria Ariès
(1973), que nunca antes conhecera tal forma, iniciou-se assim o
estabelecimento de um novo conjunto de laços relacionais, familiares e
sociais, substancialmente rearranjados nas suas distribuições. Desde aí, a
história da criança tomou-se inseparável da história da sua reeducação
social.
Quando se refere uma nova atenção para com a criança, não
significa que ela não a tivesse anteriormente, mas sim que passou a ocupar
um protagonismo social diferente do que antes tivera: C£We conclude that
childhood (and adolescence) during the Middle Ages were not so much
ignored as loosely defined and sometimes disdained” (Heywood, 2001: 17).
Ariès tem sido muito contestado por esta questão mas, em harmonia com
o pensamento de Foucault sobre o impacto social da era industrial, há que
ter em conta o facto de esse olhar limitado sobre a criança decorrer num
contexto pré-industrial.
Um dos impactos que a nova atenção dedicada à infanda terá
provocado, a partir de meados do século XVI, poderá ter sido o aumento
dos castigos ditados por uma maior preocupação com a sua formação
moral à luz das doutrinas edesiásticas, num duplo efeito que tinha, por um
lado, a vontade de disdplinar mais a criança, tomando-a obediente e
receptiva, por outró lado, essa instrumentalização dos corpos tomara-se
uma condição para possibilitar e valorizar uma acção educativa73
consequente (Ferreira, 2000: 21). Ou seja, começara a manifestar-se
socialmente uma maior determinação e orientação no governo de uma
população de menores que, até aí pouco estavam enquadrados numa
racionalidade política.
E que essa diferenciação na atenção dispensada ao posicionamento
social da criança, favorecida por um recorte populacional cada vez mais
fino, conduziu (ou foi conduzida) à disposição de novas ordens relacionais
e novas sensibilidades sociais que produziram novos efeitos de poder. O
encadeado desses efeitos podem ser minuciosamente apreciados nas
instituições que, em nome do interesse da criança, passaram a poder tutelá-
la integralmente, com uma intencionalidade educativa e socialmente
normalizadora. Essa reeducação social que se foi confirmando desde o
século XVI que, sendo compulsiva, beneficiou de condições excepcionais
para ir desenvolvendo de forma continuada os recursos e os artefactos de
que necessitava para agir sobre uma população que, estando desenquadrada
da organização social e moral vigentes, deveria ser reconduzida, quisesse ou
não, para uma zona de maior inclusão, aceitação, obediência e
produtividade. Para tal, tomava-se necessário um conjunto de instrumentos
que; pudessem ser aplicados a uma população para a qual fosse criado um
quadro de dependência quotidiana que submetesse naturalmente os sujeitos
a uma ordem distributiva e articulada por uma hierarquia orientada por
uma finalidade social e moral.
A necessidade crescente de estabelecer um quadro de relações bem
definidas, em que os actores exercessem os seus papéis de forma ordenada
e síncrona com os outros, é a que se vai encontrar também na progressiva
escolarização das populações e nas . molduras discursivas pedagógicas de
diferentes épocas. Essa consciência diferente, fruto de uma nova
74
interpretação social da criança, permitiu estabelecer relações de poder que,
pela forma como se articularam os seus vários agentes, se tomou um poder
fecundo, gerado em tomo da criança. Foi o estabelecimento de um regime
correctivo e normalizador e a evolução dos seus dispositivos funcionais
que constitui aqui o ponto de abordagem das instituições de correcção
social da criança.
A ilustração de marginalidade como uma fronteira flutuante surgiu
teorizada por Stuart Wolf e Bronislaw Geremek, vindo situar os indivíduos
inevitavelmente de um lado ou outro dessa fronteira, existindo assim um
espaço social compreendendo uma região central e uma margem, “frágil”,
que não está aí incluída. Essa metáfora levanta no entanto um problema: ao
representar duas zonas sociais separadas por uma fronteira sugere-se que
os indivíduos se deslocam subitamente de uma área inclusiva para outra
exclusiva, sem espaços de transição. Jeroen Dekker (2001) propõe uma
resolução para esta dificuldade recorrendo a uma terceira zona, intermédia,
de existência frágil, ajustando a representação do espaço social a três
círculos concêntricos dos quais, um interior, o de normalidade social, outro
exterior, representando a marginalidade e, entre eles, uma zona onde
cabem aqueles que, devido a diversas vicissitudes, se encontram nos limites
entre uma região interna e inclusiva e outra externa e de exclusão. Enesse
espaço liminar que se situam aqueles a quem, pela sua vulnerabilidade - de
ordem económica, comportamental ou outras - se lhes reconhece estarem
numa situação de risco, que os poderá conduzir à deslocação para as zonas
marginais.
E normalmente sob esta perspectiva sociológica de espaço social,
ou; pela prestação assistendal ou amparo, que se- configura a visão mais
comum como percepcionamos à debilidade social, advindo daí também a
75
imagem das correspondentes instituições que supostamente se dedicam a
comgir ou atenuar essas deslocações entre zonas sociais limites. A
abordagem assistendalista à educação correctiva - que é talvez a mais
frequente, a par com a penalista — sugere um percurso de aproximação às
instituições que a exerdam partindo dos conceitos de. pobreza e da
problematização do que é o “pobre”. É essencialmente a herança da ideia
de benemerência e caridade que sugere essa abordagem, porém, é o
conceito de criança em risco que nos aproxima mais de uma linguagem que
recorre à geografia soaal e às noções de marginalidade para representar
essas crianças como carentes e aptas para a sua conversão social.
Embora considerando esta geografia social da criança, não é este o
alinhamento conceptual aqui adoptado para abordar as instituições de
reconversão soaal da criança. Apesar dos estudos centrados nos contextos
sociais e nas instituições geradas serem imprescindíveis, é importante uma
deslocação analítica dos métodos para os meios que os constituíram e para
os sistemas que lhes conferiram os saberes. De facto, há necessidade de
complementar alguns estudos dispersos e localizados com uma visão
espadalmente mais panorâmica e temporalmente muito distendida, de
modo que possa conferir um significado mais abrangente e preciso, do
ponto de vista do uso das aplicações pedagógicas disponíveis, ao
tratamento que as instituições aplicam, basicamente desde o século XVI, às
crianças em situação de grande vulnerabilidade social.
Embora seja a história da criança enquanto aluno - em relação com
uma instituição educativa, portanto - , que nos absorve, não é pela sua
relação com a pobreza mas sim pelo eixo técnico-institudonal que
tentaremos sistematizar e compreender as categorizações sociais que as
crianças protagonizaram, através das práticas e dos discursos que têm
76
sustentado aquilo que designamos aqui por regime educativo, neste caso,
socialmente correctivo. O enfoque recai preferencialmente sobre a análise
de artefactos disciplinares de controlo e configuração presentes nas
instituições que, embora possuam uma forte dimensão política, não se
pretende confundir com as políticas sodais de relação com a pobreza e as
perspectivas assistenáais que as justificam. Trata-se de dispositivos
regimentais usados na governação dos internos, um conjunto de
tecnologias institucionais, constitutivas de uma economia de poder e que,
do ponto de vista da sua aplicação nas crianças, constituem uma tecnologia
social, moralmente sustentada.
Muitas vezes, a mendicidade que inicialmente justificava o
internamento perpetuava-se por acção da própria instituição que então
passava a organizar, controlar e gerir o peditório de esmolas para seu
próprio sustento. Agora as crianças passavam a pedir não para si mesmas,
mas para a casa que as adoptara e sob uma forma organizada e acrescida de
mais algum prestígio e justificação: esse dinheiro não seria “mal gasto”.
Atente-se na angariação de recursos financeiros do Colégio dos Meninos
Órfãos do Porto, sob a direcção do Padre Baltazar Guedes, em 16511: o
alvará que autoriza a fundação do colégio manda que se dê uma esmola
1 A vida e obra do Padre Baltazar Guedes foram profusamente biografadas por Frei Fernando da Soledada. A meio do século XX, Artur de Magalhães Basto, chefe dos Serviços Sociais e Culturais na década de 1950, coordenou a publicação de uma edição comemorativa do tricentenário do colégio, que incluía uma monografia de sua autoria, e o livro que o Padre escrevera sobre a sua vida, as suas motivações e sobre os passos que deu para a edificação do colégio, para além de incluir os Estatutos que o regiam. Trata-se da Breve rellação da fundação deste C ollego dos M ini nos O ifãos de N. S m da Graça ato fora da porta do Olival desta Cidade do Porto em a qual se eontbem tudo o que na fundação dele lhe sucedeu, bem como do seu Testamento datado de 1680. Também-em 1739 o padre Manuel Vieira de Sousa, ao tempo reitor do Colégio, fez imprimir os Estatutos e outros textos referentes à sua constituição, com comentários de sua autoria. O trabalho de Ana Isabel Guedes (1993), A assistência e a educação dos órfãos durante o antigo regime, também está construído sobre o estudo deste Colégio.
77
anual para o vestuáno dos órfãos em reconhecimento da piedade da obra.
O seu orçamento era suportado por benemerência particular. Muitas vezes,
no início, o Padre e os órfãos iam para a igreja pedir esmola por não terem
sequer para comer (Basto, 1951).
[1651] “Todas as quartas-feiras, não sendo dia santo, sairão quatro órfãos pela cidade com os seus alforges e caixinhas, a pedir esmolas para este Colégio, as quais entregarão ao P.Reitor, para que as assente num livro” (Estatutos do Real Colégio de Nossa Senhora da Graça dos Meninos Órfãos da Cidade do Porto, 1739).
Também esmolavam aos sábados e domingos à tarde, uma
ocupação que se vai multiplicando e racionalizando durante o século
seguinte de forma a tomar-se mais eficiente. Em 1739 já podemos
encontrar uma melhor repartição dos órfãos encarregados do peditório,
bem como a multiplicação dos agentes e a sua distribuição sincronizada já
orientada para um conceito mais evoluído e produtivo que o da mera
aleatoriedade da colecta:
“Os peditórios dos sábados são mudados para os Domingos,(...) indo mais seis órfãos, pela manhã, pedir pela cidade, dois por cada freguesia, os quais vão também às quartas-feiras, e no Domingo de tarde vai um pedir ao convento de Monchique e outro a Santa Clara e ao cimo da vila, e às sextas-feiras, em hora desocupada, vai um pedir ao Mosteiro das religiosas de S.Bento” (Estatutos do Real Colégio de Nossa Senhora da Graça dos Meninos Órfãos da Cidade do Porto, 1739).
Não que*a mendicidade fosse socialmente reprovável à época e
mesmo ainda no século XIX, nos mapas estatísticos Oficiais do Ministério
do Reino, inspecção escolar de 1886, se pode encontrar na contabilização
das profissões dos pais dos alunos a categoria de “mendigo”, já impressa
para ser preenchida quando fosse o caso e em paridade com qualquer
78
outra, sem nenhum destaque especial que a considerasse uma situação
merecedora de alguma atenção particular que a demarcasse de uma
normalidade natural1. Simplesmente, a difusão de um discurso centrado na
dualidade bem-estar/pobreza não estava ainda devidamente enquadrada numa
economia política que pretendesse actuar sobre a materialidade das
transformações no domínio social, uma materialidade constituída também
por uma multiplicidade de relações localizadas, reveladoras de uma
pluralidade de modos de ser e de comportamentos que deverão ser ou
promovidos ou contrariados através de tecnologias sociais de governação
dos indivíduos (Procacd, 1991).
Só no século XVIII se assiste à mutação das habituais perspectivas
caritativas num espírito filantropista emergente do contexto de novos
problemas sociais que o industrialismo estava a criar. Já não se tratava só de
bem-estar/pobreza, a partir daí há qué lidar também com o binómiò
emprego/desemprega levando a que o discurso filantrópico se aliasse a uma
economia social que estabelecesse um relacionamento entre a esfera da
economia política e as populações que não fosse unicamente estabelecido
através das relações de trabalho. Essa economia política,' até aí “clássica”,
não tinha até então recorrido a uma “política de pobreza”, ou seja, não
fizera ainda uso de um discurso que incorporasse a ideia de bem-
estar/ pobreza nas tecnologias sociais de governação (Dean, 1991; Procacd,
1991).
Em pleno século XIX, os asilos e afins recorriam, agora de forma
comum, a uma modalidade clássica de autofinandamento, acdtando
pordonistas.
1 3.* Repartição da Direcção Geral da Instrução Pública,-modelo do mapa escolar da Inspecção de 1866, Arquivo Nadooal da Torre do Tombo, m ç 4100.
79
“Os asilos recebem também pensionista de. ambos'os sexos, aos quais prestam igualmente hospitalidade, educação e instrução, conjuntamente com os alunos gratuitos, e mediante a retribuição e com as condições que o mesmo regulamento estatuir, de tal modo que não receba com isto senão vantagens, a classe desvalida” (Regulamento geral ou Estatutos da Sodedade de Beneficência de Coimbra para Asilos da Infanda Desvalida, 1850).
Esta abertura das instituições ao exterior acabava por ter efeitos que
transcendiam o mero pragmatismo, financeiro ao alargar a influência social
do exercido-das suas tecnologias educativas, dirigindo-se precisamente a
um público nos antípodas do que era o seu habitual: os mais protegidos.
Foi por esta época que os interesses do Estado na governação social dos
indivíduos se foram avolumando. Até ao século XVIII não existira a
distinção entre alunos externos e internos; até aí, os exttrm eram os alunos
que não pertendam à Companhia de Jesus, os que conhecemos hoje como
externos eram então os auditores (Ariès, 1973). O internato educativo não se
tinha ainda estabelecido como modalidade regimental; só mesmo a
.Companhia era percursora desses quadros disaplinares que impunham
uma vida colectivamente regulada, temporalmente constante e vivida num
. espaço muito restrito.
Mais tarde, a acção republicana vai impulsionar com firmeza o
tratamento social da mendicidade, através da Organização dos serviços de
Assistência Pública e consagrada no decreto-lei de 25 de Maio de 1911.
Agora, a visibilidade da pobreza e a mendicidade têm que ser amenizadas
por uma política concertada em que “a acção. privada é guiada pela
pública”, baseando-se ambas na “tácita recusa de esmolas de rua”. E havia
uma acção prática exercida pelos “cívicos” no controlo da evidência da
mendicidade, estimulada pelo próprio provedor da assistência que em 1914
80
instava o Govemo Civil-“para que haja o máximo rigor na repressão da
mendicidade, sendo os indivíduos presos nessas condições enviados à
Provedoria, á fim de serem internados no Refugio” (Barbas, 1914: 101). O
que também conduzia a exageros, uma vez que no mesmo número da
revista A Tutoria se pode encontrar um firme protesto pela prisão de dois
menores que se encontravam simplesmente a brincar junto ao Largo de
Camões e tinham sido conduzidos aos calabouços sendo afinai anónimos
mas filhos de gente conhecida (um antigo empresário teatral e uma actriz),
sendo soltos pela intervenção de um major que, tomando conhecimento
do caso, mandou prontamente soltá-los. Censurava-se então os cívicos
porque “os factos estão a provar todos os dias que é urgente reformar essa
coisa da polida É necessário que nessa corporação estejam homens de
sentimento e de cultura”. A formação dos indivíduos que lidavam com
crianças, neste caso os “cívicos” mas normalmente os “educadores” e
“guardas” de instituições de jovens, era motivo recorrente de grandes
lamentos por parte dos dirigentes, o que permite_perceber o grande fosso
entre os que diriam e os que fa liam , exigindo a estes últimos um conjunto
de qualificações que incluíam um nível de “sentimento e cultura” que,
obviamente, não possuíam. Os guardas dos internos eram normalmente
antigos militares ou avicos que lidavam com as crianças de forma algo
rude, o que era agravado pelo diminuto ratio por aluno, conduzindo a
práticas por vezes violentas para manutenção da ordem pela qual tinham
de responder e para afirmação da sua soberania.
Essa política assistendal possuía também uma vertente reguladora
social e de controlo populacional, ao pretender regular os fluxos
espontâneos das populações em tomo de aglomerados mais prósperos,
81
procurando um equilíbrio ditado pelos interesses do Estado na ocupação
do território.
“Assim foi que se estabeleceu desde já a d es urbanização dos assistidos,, por meio da- sua colocação em famílias rurais e por meio de colónias agrícolas para menores a cargo da Casa Pia e do Asilo Mana Pia, e se determinou a transferência do Asilo de Mendicidade para fora de Lisboa, dando aos asilados ocupações agrícolas compatíveis com as suas forças físicas” (Organização dos Serviços de Assistência Pública, 1911).
Era o reforço de uma vida rural que pretendia concomitantemente
abrandar o crescimento desordenado da capital; as rríanras “indigentes”
eram colocadas em famílias rurais (Organização dos Serviços de Assistência
Pública, 1911: art° 23.°) ou colónias agrícolas e usadas como força de
trabalho. Com a ideia de regeneração pelo trabalho, acrescenta-se uma
nova fonte de proventos para as instituições, como prova a vida nas
colónias correcdonais tão em voga na viragem do século XIX para o século
XX.
“Os géneros alimentícios de primeira necessidade, como o pão, o azeite, a batata, as frutas, os legumes, etc., sao colhidos em quantidade nas propriedades da Colónia e, além de bastarem às necessidades da alimentação dos internados, constituem a melhor fonte de receita do Estabelecimento” (Rombo, 1931:8) . '
Aó economato' da Colónia Correccional de Izêda acrescentava-se
ainda o-rendimento de várias propriedades agrícolas e o aluguer de uma
debulhadora às populações circunvizinhas. A mão-de-obra era fornecida
pelos colonos, sob a direcção de um guarda. Este recurso à força produtiva
dos alunos para a manutenção do seu próprio regime chega até às Tutorias.
Perante a falta de instalações, o Juiz Presidente da Tutoria Central da
82
Infanda- de Lisboa, em Novembro de 1911, poucos meses depois da
abertura dos serviços, sugere:
“Nas casas de Reforma já existentes e nas que se vierem a criar, deveriam fúndonar oficinas • em que de. preferência se ministrasse a aprendizagem dos ofíaos concernentes a construções av is, para que o Estado, aproveitando o trabalho dos menores, edificasse com assinalada economia as novas instalações que é indispensável fazer-se, visto estar mais que reconheádo que as adaptações ranssimas ■ vezes satisfazem”(Castro, 1911: 32).
Esta capaddade utilitarista difunde-se por outras necessidades,
chegando mais tarde a estar projectado um ££Reformatório Marítimo” para
fundonar a bordo de um navio (Castro, 1931).
O combate à mendiddade não se ficava pela generosidade da acção
sodal pública e privada, continuando a produzir-se legislação adequada
para a eliminação da sua visibilidade e exposição pública. O Decreto-ld n.°
36448 de 1947 respdtava, no seu art° 3o, à repressão à mendiddade de
menores:
“Proibição da mendiddade — art.° 3o: Os inválidos ou incapazes e os menores de 16 anos encontrados a mendigar serão, conforme os casos: a) Entregues às famílias ou a quem se responsabilize pelo seu sustento e agasalho, gratuitamente ou mediante remuneração; b) Internados em estabelecimentos adequados; c) remetidos à comissão de assistência do domicilio de socorro. § Io Os menores em perigo moral serão enviados ao tribunal de menores, que poderá promover o seu internamento em estabelecimento de assistência. § 2o As medidas previstas neste artigo cessam logo que os assistidos, por si ou por outras famílias, possam prover ao seu sustento, não devendo o internamento prolongar-se além do tempo indispensável.”
Nos anos de 1960 continuava ainda a difundir-se as virtudes
educativas do internato junto das classes mais emergentes e com mais
83
aspirações educativas.para os seus. filhos, como aliás sempre se fizera um
pouco desde o Colégio dos Nobres. O internato foi um regime que os mais
abastados nunca renegaram, pelo menos desde a fundação deste Colégio
criado por Carta Régia de 1761 e extinto em 1837 devido precisamente ao
seu carácter elitista1. Acrescente-se que funcionou sempre num edifício
construído pelos jesuítas no início do século XVII, como noviciado. O
estudo em colégios sempre foi por alguns considerado um sistema ideal de
educação, uma “escola de virtudes” capaz de preparar as crianças para as
difíceis realidades sociais.
Essa crença nas possibilidades do internato continuou a ter adeptos
em Portugal até muito tarde, não só como modalidade correcàonal ou
simplesmente disdplinadora de rapazes difíceis como também elitista. No
início da década de 1960, a revista Crónica Feminina,, uma revista de
referência para o universo feminino da época com uma tiragem semanal de
120.000 exemplares, questionava se o colégio interno deveria ser visto
como os franceses o encaravam, condenando-o, ou como os ingleses,
adeptos fervorosos dessa modalidade educativa:
1 Sobre o Colégio Real dos Nobres de Lisboa, entre outros, Cfr. Carvalho, Rómulo de (1959). História da fundação do Colégio P eai dos Nobres de Lisboa. Coimbra: Adântida; Herculano, Alexandre (1842). Da Escola Politécnica e do Colégio dos'Nobres. Lisboa: A. Herculano; Páscoa, Mário (1994) r O Noviciado da Cotovia e o Colégio dos Nobres - conferência. Lisboa: Academia de Cultura e Cooperação.
84
Será realmente-bom? Será realmente mau? Internada, uma • criança deixa de ser o eixo da terra para ser, apenas, uma criança no meio doutras crianças. Perde em ternura, em compreensão, ganha em trato social, em autodomínio. Se suportar o internamento, adquire uma vantagem importante.(...) Antigamente, havia a tendência de enviar para colégios internos as crianças complicadas. Foi bem necessário reconhecer que tal procedimento era um erro grave. O constrangimento nunca curou uma criança difícil. (...) Porém, de uma maneira geral, as crianças normais beneficiam em ser internadas, porque adquirem uma força moral què lhes permite, . mais tarde, viverem no mundo sem sofrerem demasiado com o convívio nem sempre amavel dos seus semelhantes. Além disso, a vida regrada impõem-lhes uma - disciplina que lhes facilitará o ingresso nos empregos ou numa profissão um pouco dura” (Eles e os Colégios Internos, 1961.Crónica Fem inina, n. ° 217) l .
Não seria recomendável para crianças sensíveis nem para a
regeneração, como o texto aconselhava, mas percebia-se que a opção
inglesa era preferida. Síntese do pensamento da época sobre o internato
educativo e particular, teve algo de premonitório sobre a chegada de uma
transição rumo ao pensamento pós-modemo em Portugal sobre a realidade
correcdonal, cuja reforma legal vai surgir no ano imediatamente seguinte
de 1962. É justamente nesse ano e nos seguintes que se começam a
multiplicar instituições impulsionadas por necessidades novas de albergar
maiores populações de órfãos, refugiados, indisciplinados do ensino
público e filhos de militares que partiam para a Guerra Colonial. Nas ex-
colónias, os filhos da burguesia africana, normalmente de origem
portuguesa, já tinham no internato um recurso habitual quando residiam
em zonas remotas e precisavam de continuar os estudos, ficando
1 O uso desta fonte é sugestivo da seguinte citação: “Anything is evidence wich is used as evidence, and no one can know what is going to be useful as evidence until he has had occasion to use it” R. G. Collingwood, The Idea o f H istoiy, p. 289, dtado em Prost (1996: 81).
85
normalmente nas capitais de província onde existiam colégios dirigidos por
religiosos. Mas isso é outra História.
86
E n t r e a Ig r e ja e o E s t a d o , o p r iv a d o e o p ú b l ic o
O louvor do auxílio privado aos mendigos e desamparados
praticamente sempre existiu, mas a institudonalÍ2ação dessa ajuda e a sua
conjugação com a intervenção do Estado começam a manifestar-se
somente a partir do século XVI. Por essa época, são criados os primeiros
Hospitais Gerais e as Misericórdias por iniciativa da Coroa, revelando as
primeiras manifestações de vontade de intervenção estatal em assuntos
caridosos, num tempo em que a mendicidade denunciava já uma vontade
de intervenção organizada em tomo de confrarias e irmandades que agiam
sempre com um enquadramento religioso1. Essa modalidade de auto-
subsistênda, ou mais individual e espontânea ou mais colectiva e
organizada, não se vai extinguindo, bem pelo contráno, permanece e chega
a sustentar instituições, sendo o surgimento da intervenção estatal um facto
relevante e inédito, ao mostrar um interesse político activo numa área onde
até então permanecera ausente (Bastos, 1997).
Mas foi precisamente através dessa acção social veiculada por
ordens religiosas, Misericórdias, Irmandades e confrarias, que se
começaram a institucionalizar na segunda metade do século XIX os
princípios que distinguem a benemerência de um certo sentido mais
político de solidariedade social. A evolução organizativa dessas associações
1 A Hisfinçàn entre confrarias e irmandades é polémica. É comum associar-se a confrana ao auxílio mutualista e a irmandade ao caridoso, e mesmo na definição juridico-legal das Santas Casas da Misericórdia, ela aparece com uma ou outra designação, ou ambas simultaneamente. Cfr. Fonseca, Carlos Dinis (1996). História e Actualidade das Misericórdias. Mem Martins: Inquérito.
87
é nítida e a sua importância social e política é crescente, levando D.
António Costa a considerar a sua acção como “fundadora de um espírito
liberal e democrático no seio dos regimes absolutistas” (Costa, 1885). Em
coerência com a legislação liberal de 1834, que pretendia acabar com as
ordens religiosas, o Estado, com a criação do Conselho Geral de
Beneficência em 1835, pretende representar o início da assistência social
pública em Portugal, o que vai conduzir um ano depois à abertura de um
conjunto de estabelecimentos de asilo de mendicidade e de infanda
(Carvalho, 1998).
Pode-se apontar o ano de 1759 e a acção política do Marquês de
Pombal como o inírio de um processo que conduziu ao afastamento dos
jesuítas, e ao lançamento das bases de um sistema de ensino de iniciativa do
Estado, facilitando o processo de secularização do ensino e estabelecendo
um meio adidonal de controlo político, base essencial em que assentou a
configuração dos estados-nação. O lançamento, na reforma de 1772, de um
imposto destinado a fomentar a actuação da Real Mesa Censória,
instituição encarregada da administração dos estudos dos menores, coloca
o país como inovador no estabelecimento de instrumentos de acção
governativa através dessa tributação designada por Subsídio Literário. As
consequências vão fazer-se sentir também na transição da dependência
directa do professorado pelas comunidades onde actuavam, para se
subordinarem ao Erário Régio que passou a distribuir os recursos que
previamente colectava junto dessa comunidades (Gouveia, 1993; Nóvoa,
1994).
E uma profunda rotura com o passado, o estabelecimento de uma
razão e uma p n vd s política que vai, abarcar diversas áreas da vida do reino,
em consonância com a ilustração das luzes que tinha chegado a Portugal
88
(Gouveia, 1993). A acção do Estado sobre a criança pobre, a miséria e os
indivíduos que supostamente não agiam como súbditos, foi orientada para
a repartição entre os poderes eclesiásticos e seculares, sendo o lançamento
da Real Casa Pia de Lisboa, em 1780, um marco no desenvolvimento de
uma aplicação específica destinada ao controlo e rectificação da situação
social da criança. Nesse ano, as despesas públicas com a educação
praticamente duplicaram em relação a anos anteriores, evidenciando um
esforço de investimento em novas instituições e modalidades.
Mas é de sublinhar que estas instituições não estavam propriamente
vocacionadas para prestar educação escolar aos seus protegidos, preferindo
treiná-las numa profissão para uma vida pós-institucional activa, um
modelo ainda perdurável, mas, não se colocava muita preocupação no
ensino que ultrapassasse as primeiras letras. Em meados do século XIX é
que se começa a proporcionar ensino gratuito às cnanças sob protecção,
não sem antes ter que ser vencida alguma animosidade popular pela ideia
de escolaridade: em 1877 abria no Campo Grande, em Lisboa, uma escola
da Ordem Terceira para instrução nocturna de operários, encerrada cinco
meses depois, uma vez que os alunos que a frequentavam a foram
abandonando, desanimados pela censura e escárnio dos que se opunham a
semelhantes iniciativas (Costa, 1885). Não se pense que por. serem
operários seriam homens feitos; nesse tempo as crianças trabalhavam e o
ensino não estava ainda compartimentado por escalões etários, pelo que
era natural que entre os alunos (23, inicialmente), houvesse um amplo leque
de idades.
Só em finais de oitocentos é que já se encontram cerca de
novecentos alunos: de ambos, os sexos, nas escolas de ensino gratuito da
Ordem Terceira do Carmo, da Trindade e de.S. Francisco. Um ensino de
89
iniciativa e patrocínio religioso, sem dúvida, mas que ensinava não só a
“cantar e a tanger” como nos tempos do Colégio do padre Baltazar
Guedes, sendo então leccionadas algumas aulas de comércio já com uma
feição profissionalizante. Um panorama semelhante verificava-se no Porto
e em outras cidades do país, onde a benemerência privada continuava a
exercer um papel muito importante na fundação e financiamento de
escolas cuja regência e estudos ficavam entregues a religiosos.
E em meados desse século XIX que se assiste à diluição dessa
modalidade cívica de patrocínio, consolidando-se, por outro lado, uma nova
dinâmica no enquadramento da assistência social prestada pelo Estado. A
fundação da Sociedade de Beneficência para Asilos da Infância Desvalida
de Coimbra, em 1850, é paradigmática da parceria entre a organização
política do Estado modemo e os interesses morais expressos pela
organização eclesiástica. Aquele, patrocinando e regulando, esta, detendo as
competências práticas do exercício de auxílio. O pedido de alvará que foi
presente à aprovação da Rainha garantia a “fiel observância das Leis e
Regulamentos da Pública Administração e Polícia” (Regulamento geral ou
Estatutos da Sociedade de Beneficência de Coimbra para Asilos da Infanda
Desvalida, 1850) e, simultaneamente, confirmava a quem pertencia a
prerrogativa da - concessão de direitos, assegurava o cumprimento do
quadro jurídico vigente e esdarecendo publicamente sobre quem detinha a
sua tutela. O regulamento da instituição consagrava também a repartição
das responsabilidades governativas e morais:
“A educação consiste em promover o desenvolvimento das suas faculdades físicas e morais; habituá-los ao asseio, ordem . obediência e respeito; e em fazer desenvolver e radicar em seus corações o amor de Deus e do próximo” (Regulamento geral ou Estatutos da Sociedade de Beneficência de Coimbra para Asilos da Infanda Desvalida, 1850).
90
Continuava a haver em tudo isso, uma presença do “claustro, da
prisão, do colégio, do regimento”, para usar as palavras de Foucault (1987:
243).
Em finais do século XIX, o pensamento científico e liberal
começava a imiscuir-se entre as frentes eclesiásticas mais antigas e os novos
poderes e racionalidades conotados com os Estado modernos que
sustentavam na razão científica a sua acção no espaço público da
governação política. Eça de Queirós, atento à sua época como poucos,
expressou pela voz de um personagem, o médico e liberal Dr. Gouveia,
uma síntese mordaz e lapidar da disputa entre os poderes seculares e
temporais pelo domínio dos sujeitos [1875]:
“E agora (...) que eu introduzi a criança no mundo, os senhores (e quando digo os senhores, quero dizer a Igreja) apoderam-se dele e não o largam até a morte, por outro lado, ainda que menos sofregamente, o Estado não o perde de vista... E aí começa o desgraçado a sua jornada do berço à sepultura, entre um padre e um cabo de polícia!” (Queirós, 2002: 326).
Com o advento da República, questões antigas voltam a ocupar o
palco da disputa pelo domínio do. sector educativo, instrumento que
adquiria então uma importância tão crescente quanto o. aumento das
populações escolares. Uma das problemáticas herdadas da governação
pombalina centrava-se recorrentemente no exercício educativo das
congregações religiosas. Quando em Outubro de 1912 é lançada a revista
A Tutoria, pouco mais de um ano tinha passado sobre a iniciativa de
legislação orgânica e princípios republicanos de protecção à infância. O seu
número inaugural assemelha-se, compreensivelmente, a uma carta de
princípios, não sendo no entanto descurada a vertente divulgadora e a
propagandística. O que estava' em causa era exposto sob a forma de
91
epístola ao seu director e proprietário, também juiz presidente da Tutoria
Central da Infanda, Pedro de Castro, assinada por António Madeira. Era
um discurso também eluadativo do quadro de referendas morais
constituintes do novo poder político. As palavras que entendeu usar foram
as seguintes:
“A rede formidável que, de novo lançada em 1860 já em 1901 cobria todo o país, forte nos seus fios de ouro caçado aos ingénuos, teve a veleidade de acreditar que a República ainda teria que chorar por essas alma«? cândidas que, sob um falso critério de protecção e educação, descaracterizava os seres que lhe caíam nas apertadas malhas, sujeitando-os à máxima fraqueza, fazendo-lhes esquecer todos os sentimentos de família, apagando-lhes o ardor patriótico, esmagando-lhes a capacidade de raciocínio, a própria determinação na escolha de motivos orientadores das suas acções, tomando-os obedientes a princípios cuja aceitação era imposta sem discussão, fazendo- os, numa palavra, escravos de si mesmos em proveito duma minoria que considera o trabalho uma expiação e a emancipação política uma afronta a Deus, para que esse Deus, cuja doutrina deturparam sempre, seja senhor absoluto na vida material dos homens. (...) Sob os princípios constitucionais da neutralidade religiosa, a escola, a assistência e a prisão, continuam exercendo as suas fúnçÕes sociais, aliviadas do peso da influência congreganista e jesuíta” (Macieira, 1912:2-3).
Esta discursividade moral de feição persecutória tinha um
contraponto factual que, pelo lado das práticas institucionais, contrastava
profundamente com os pressupostos subjacentes ao discurso pedagógico,
como iremos ver sempre que nos aproximarmos dos quotidianos
institucionais, uma vez que as metodologias escolares não se alteraram
muito, sobretudo devido às apropriações da maneira jesuíta de exercer o
ensino e a disciplina. Aliado ao protesto da “doçura” dos métodos e dos
discursos que a vida vivida desmentia, estava sempre presente a
superioridade que o reforço de uma “certeza” científica trazia. Quanto à
92
superioridade da “certeza” moral, ela autojustificava-se pela sua qualidade
naturalista.
Esse ambiente de hostilidade política levou a que em 1910 o colégio
jesuíta de Campolide, que funcionava desde.1858, fosse, instalar-se em 1912
perto de Bruxelas, num episódio que ilustra o jogo de poder entre um
Estado laico e carenciado que se queria afirmar no sector educativo e a
experiência e os recursos da Companhia de Jesus. As requintadas
instalações do Chateau de Dielighem, que abrangiam 13 hectares com
campos de futebol, ténis bosque, lago para remo e patinagem, jardins e
pomares, estavam ao dispor dos 50 alunos portugueses iniciais. Dois anos
depois, o agora Instituto Niu^Álvares, deslocava-se para perto de Portugal,
em Pontevedra (Galiza), continuando a seguir o programa Liceal e o Curso
de Comércio. Mais dois anos passados e essa proximidade geográfica
estreitou-se ainda mais quando em 1916 o Instituto passa para La Guardia,
na margem direita do Minho frente a Caminha. A qualidade das instalações
mantinha-se, com laboratórios modelares, Museu de Ciências Naturais,
bibliotecas e os habituais campos desportivos. Entretanto o número de
alunos elevara-se para 270. Em 1932 vamos encontrar o mesmo instituto
nas instalações da estância termal das Caldas da Saúde, entre Famalicao e
Santo Tirso (Ideário dos Colégios da Companhia de Jesus em Pòrtugál,
1980).
A complementaridade entre a assistência pública e a privada é
enaltédda pelo Estado quando se organiza a Assistência em Portugal
[1931]. A estrutura orgânica da Direcção Geral de Assistênda, ao tempo,
estava assente em duas repartições especialmente criadas para gerir as
seguintes vertentes:
93
I. Assistência Pública — Estava-lhe atribuída a “assistência sodal” e
tinha a seu cargo os asilos, a assistência médica e os
recolhimentos;
- Asilos de maiores;
- Asilos de menores;
- Asilos mistos;
- Assistência médica;
- Assistência dos funcionários civis tuberculosos;
- Recolhimentos-
II. Assistência Privada — Estava-lhe atribuída a “assistência moral” e
era coordenada por um Conselho de Inspecção das
Misericórdias e estava dispersa por diversas modalidades
. institucionais:
- Sopa dos pobres;
- Postos médicos;
- Dispensários;
Sanatórios;
- Preventários;
Cantinas;
- Lactário,
- Creches;
- Albergues;
- Asilos de menores;
- Asilos de Maiores; • ■ ' -
- Hospitais sem Misericórdia;
Hospitais com Misericórdia.
O Estado solicitava a institucionalização da benemerência,
enquadrando-a, sujeitando-a às suas modalidades e regulando as suas
actividades. Por essa altura, a acção das instituições privadas era muito mais
relevante que a das públicas, contabilizando-se, por exemplo, só na cidade
de Lisboa um total de 83 casas de apoio à criança, repartidas nas seguintes
modalidades: Internato, 21; Externato, 14; Semi-intemato, 2; Lactário, 4;
Cantina, 23. As restantes, prestavam apoio directo e variado como, auxílio
a parturientes, fornecimento de apoio médico e farmacêutico, roupa, etc.
(Esquema da Organização da Assistência, 1931).
Mas, regressando aos aspectos educativos, a receptividade social ao
protagonismo do Estado não foi aceite com naturalidade. Ao contráno,
todo um discurso político teve que ser edificado antes de se processar essa
transferência de responsabilidades e essa deslocação de poder. Esse
discurso público fundou-se na ideia de pedagogiiçaçâo da criança, da qual
Comenius terá sido o seu precursor. Para além de na sua Didáctica Magna
propor uma educação universal, remetendo-a inevitavelmente para o cargo
da esfera pública, a ideia do afastamento da família da responsabilidade de
educação da infância, criava a necessidade do estabelecimento de um pacto
de confiança entre pais e professores, entre família e escola (Norodowski,
s. d.). Mas, mesmo com essa condição estabelecida, havia ainda a
necessidade de promover mecanismos próprios e inéditos que
proporcionassem a capacidade de produzir uma educação para todos,
95
segundo uma distribuição social pública e em concordância com uma
determinada racionalidade pedagógica.
Em meados do século XX, na Europa, sobretudo em Inglaterra e
França, declarações de pós-modemidade marcavam presença no discurso
terapêutico e nas instituições que surgiam com regimes experimentais mais
abertos, como comunidades ou outras formas de alojamento de espírito
mais familiar, acrescendo-se à diversidade de modalidades institucionais
que já existia. Em Inglaterra, por norma as instituições de reeducação eram
gendas por privados ou colectividades locais, tal como em França, onde a
maioria das instituições são privadas, tendo aqui o Estado um papel
regulador e de gestor de projectos educativos pilotos.
Pode-se então agrupar, segundo critérios regimentais latos, as
seguintes modalidades institucionais mais comuns na Europa dessa época
(Costa, 1951: 6-7) e também em Portugal:
- Instituições fechadas de correcção, tipo prisão-escola, onde
os objectivos securitários suplantam os reeducativos (que
continuam, obviamente, a existir), recebendo alunos
considerados incorrigíveis por outros estabelecimentos.
- Instituições mais clássicas, de internato, conhecidas em
França por “instituições públicas de educação vigiada” em
Inglaterra por “home office schools”; na Bélgica,
“internatos” dependentes do Estado; na Suéda, “escolas de
protecção da juventude”.
- Casas de acolhimento, lares, ou de semi-liberdade,
correspondendo a uma tendência recente para reeducar em
liberdade, embora suficientemente vigiada para que o
96
menor fosse protegido da influência de • meios
desfavoráveis.
- Comunidades de crianças que recriavam o meio social e a
inerente responsabilização que daí advinha.
- Centros de acolhimento, observação e triagem, com o fim de
encaminhar o menor para a modalidade mais adequada ao
seu caso e dar andamento à tramitação judicial requerida. •
A educação, o amparo e a correcção disciplinar sempre foram afinal
repartidas por diferentes forças sociais, ou sob a forma de administração
directa ou por subsídios ou parcerias. A benemerência privada não
desapareceu mas foi sendo' substituída pelos contributos institucionais,
mormente os do Estado, com o surgimento de novos instrumentos
políticos destinados ao bem-tstar social. Em 1943, o Decreto-lei n.° 33262
de 24 de Novembro determinava que os reformatórios e colónias
correcáonais dependentes da DGSJM poderiam ser entregues em regime
de cooperação e simples administração a entidades particulares
especializadas (art° 1°). Essas entidades, passariam a ter a seu cargo, em
regime livre e autónomo, a educação, reforma e correcção dos menores
internados (art° 3^.
Fechava-se um ciclo que tinha começado com a entrada do Estado
nas metodologias disciplinares e correctivas de menores, papel
primordialmente desempenhado pela Igreja, endossando agora a
administração dessas técnicas à iniciativa privada de entidades sociais
devidamente caucionadas.
97
A DISCIPLINA ENQUANTO ARTEFACTO PEDAGÓGICO
Desde o seu étimo, a palavra “disciplina” está indelevelmente ligada
à “educação”. Ele reside no latim disciplina, que significa simultaneamente
uma referência ao antigo conhecimento da filosofia, da retórica, da música,
mas também se reporta a problemas de uma ordem de poder, como por
exemplo os da disciplina miãtaris. A origem do termo remonta a disápuÜna
que significava dar aprendizagem às crianças. Portanto, desde o seu início,
“disciplina” é um termo educacional que reflecte duas vertentes: uma, que
representa a apresentação de um certo saber perante o aprendente e outra,
que permite manter o aprendente perante um certo saber (Hoskin, 1990
30), não sendo de estranhar a simbiose entre os sistemas disciplinares e os
educativos.
Foi Ariès (1973) quem primeiro reclamou a importância da
problemática disciplinar para o campo educativo e estabeleceu uma ligação
entre o exercido das tecnologias disdplinares disponíveis e a construção
cultural e social da criança. Ao procurar espedficar momentos de
emergência de novas práticas disdplinares nos locais de ensino procurou
estabelecer uma assoaação entre esses novos regimes e as alterações na
percepção e tratamento social da infanda, erigindo novas categorias para
“as idades dos escolares”. Não eram mutações que se operavam
exclusivamente no espaço escolar, mas eram indissodávds de todas as
novas formas de economia de govemo das instituições. A gestão não
surgiu com a Teòria das Organizações, havendo desde sempre um
conjunto de práticas empíricas orientadas para os resultados, mesmo não99
estando enquadradas por uma determinada racionalidade ou por um
discurso socialmente relevante.
As técnicas de internato • do Antigo Regime fundavam a sua
disciplina no temor, orientando-se para uma utilidade social que espelhava
a vontade prosélita, oferecendo aos discípulos, fáceis de recrutar entre a
orfandade, a possibilidade de obterem conforto e educação. Em 1739, o
padre Manuel Vieira de Sousa, numa introdução aos Estatutos do Colégio
dos Meninos Órfãos do Porto datados de 1653, referia-se à finalidade e à
regra vigente na instituição que à altura regia:
[1651] “ (...) Para criar os meninos que, desamparados de pai e de bens, estando em sua própria terra, lhes seja forçoso viverem como peregrinos nela e, sendo daí naturais, andarem a pedir como estranhos, sem pai que os crie, sem bens que os sustentem e sem mestre que os doutrine. Se buscarmos os efeitos, entre muitos, os principais são os seguintes, que estes meninos neste colégio com um Reitor hão de te r encontraram pai que os castigue e alimente e mestre que os ensine, resultando disto que estes, que deviam andar vadios, aqui estão em clausura e, se teriam a quem temer, aqui têm a quem obedecer e a quem temer; se haviam de começar a viver como
' - quisessem, aqui só hão-de saber o que no aperto de um colégiofechado se aprende, e só hão-de viver apertados no recolhimento” (Sousa, 1739).
Também se exigia aos que lá entravam que, junto com o enxoval,
levassem ‘‘horas de N. Senhora e disciplinas”. A clausura, a orientação
moral, a hierarquia, a aprendizagem, o exame, o temor e o castigo, eram
os “efeitos” que iriam criar os meninos, servindo para os “adestrar”.
No início do século XIX, a monarquia constitucional continua a
busca de um métodó eficaz na correcção da infância e assiste-se à
publicação pela Imprensa Nacional [1822], a mando das Cortes, da obra do
utilitarista inglês Jeremias Bentham [1748-1832], autor da teorização do
100
Panóptico, tomando-se as suas ideias disciplinadoras bastante divulgadas e
influentes no Portugal da época. Inspirando-se nos métodos das
comunidades Quaker da Pensilvânia, estado americano apontado como o
berço das técnicas penitenciárias, preconizava a repartição dos indivíduos
em pequenos grupos, contornando assim “todos os inconvenientes que
resultavam de estarem a monte, misturados uns com os outros”, mantidos
sob uma “inspecção constante cuja finalidade era a de tirar o poder de fazer
mal”. O método seria aplicado, fosse qual fosse o resultado da ‘fceforma
interior, que emenda a vontade em si mesma” (Bentham, 1822).
Esta elementaridade conceptual e instrumental da disciplina vai
sofrer uma evolução que irá conduzir progressivamente à dilatação do seu
universo, a uma sofisticação dos seus mecanismos e a uma deslocação da
exclusividade de acção sobre o corpo dos sujeitos para incidir sobre uma
esfera de influência moral. Não chega já o intuito de evitar inconveniências e
começa a ampliar-se o discurso que dilata a disciplina para uma teleologia
do carácter. É assim que, em finais do século XIX, se consagra não só uma
reprovação já antiga do uso restritivo da disciplina e das penalizações físicas
como, cumulativamente, se clarifica o alcance preferencial da ordem
disciplinar
“Il y a deux méthodes en présence, la méthode autoritaire et la méthode libéral; il y a une discipline qui agit surtout du dehors et une autre surtout du dedans; l’une prescrit et defénd au nom du droit qu’a le maitre, elle ne souffre ni résistences ni exceptions, elle s’impose comme règle indiscutable; l ’autre tient plus encore à se faire comprendre qu’a se faire obéir, à etre approuvée qu’à' être suivie; c’est l ’élève plutôt qui le maître qui l’établit, et son empire dépend plus de la persuasion que de l’autorité. (...) Le système de discipline qui convient le mieux à l’enfant est celui qui lui apprendra le mieux à se contrôler lui- mème” (Gaillard, 1887: 716).
101
Essa disciplina que vem de dentro, era a grande meta liberal da
aplicação da regra. A deslocação de constrangimentos de fo ra para dentro e
a crescente importância do discurso tomaram-se indicadores de uma
modernidade pedagógica que se vai sedimentar com a Escola Nova,
abrindo as portas ao. reforço e à disseminação de técnicas p s i na educação
e governo de populações escolares.
Esse fim . de século assiste à consolidação da defesa de uma
disciplina “adaptativa” preferencialmente à “regulativa”, o que criava a
dificuldade nas práticas pedagógicas de ter de “impor” o aprendizado e a
execução de exercícios reguladores e, simultaneamente, a boa aceitação
pelo aluno desses “complexos de regras”. A proposta de resolução de tal
paradoxo é sugerida pela transferência através da habituação, de um nível
alto de consciência das aplicações disciplinares para níveis mais baixos de
percepção dos dispositivos aplicados, conduzindo a uma maior docilidade
na aprendizagem que deveria abranger os saberes necessários à edificação
moral e física dos sujeitos como condição essencial à génese da sua
autonomia:
“A higiene, a lógica, a estética e a moral, numa concepção educativa bem equilibrada, devem constituir para o aluno como que o elevar-se até à consciênáa da longa série de hábitos estratificados que inconscientemente adquiriu sob a acção do educador, e ainda còmo que um gu ia seguro para se lançar de per si na senda de futuros aperfeiçoamentos” (Coelho, 1893:400).
A aprendizagem seria então o “complemento consdente de uma
longa adaptação inconsdente”, um tirocínio que depois de cumprido
dispensaria a intervenção de outros no seu próprio controlo, isto é,
terminada a “operação educativa que os outros nele realizaram, poder,
102
entregue'só-a si, aperfeiçoar e conservar os bons hábitos adquiridos”
(Coelho, 1893: 400).
A educação moral dependia dessa transição subtil de acções livres
para “hábitos organizados” que, uma vez assimilados constituiriam
motivo de satisfação do aluno. A higiene e as condições físicas, bem
como as influências do ambiente social, mantinham uma estreita simbiose
com a “higiene moral”, uma mens sana in corpore sano, onde o equilíbrio
conduzia à “saúde do corpo” e à “formosura moral” (Coelho, 1893b:
491-509). Esta fé no potencial regenerador do <chábito” mantém-se,
sendo os internatos o território de excelência para o estabelecimento de
rotinas fecundas na habituação.
A causa republicana aplicou-se na terapêutica da sòdedade e das
crianças que sofriam as consequências dos seus males, propondo-se
substituir a punição pdo empenho na construção de valores dentro de
cada um dos pequenos delinquentes:
“Em toda a parte aonde a moral dogmática deu lugar à moral natural, se dá à luta contra a criminalidade infantil um aspecto mais humano, todo conforme aos dados da dên da. Ao castigosevero, bárbaro tantas vezes, infligido a vítimas de complexascondições sociais, está sucedendo um estudo metódico dascausas determinantes do crime para se eliminarem, recolhendo ao mesmo tempo esses desgraçados que tinham em prisões indecorosas o diploma do criminoso profissional, na Tutoria da Infanda, a nobilitante instituição da nossa República, na qual está escrupulosamente em vigor o regime pedagógico que lhes forme o carácter, e não o regime penal que lhes torça e mutile a vontade” (Castro & Barbas, 1912: 16).
Em pleno Estado Novo, as teorias sobre disdplina mais
mecanidstas e restritivas do século XIX continuavam a ter acérrimos
defensores e teóricos, o que só poderia ter obtido boa receptividade do
regime autoritário de então. Entre des, figurava Mário Gonçalves Viana,103
à época [1945] director do Instituto Nacional de Educação Física (INEF),
que publica na sua Pedagoga Geral, uma minuciosa sistematização da
aplicação de artefactos disciplinares. A intenção continuava vinculada à
criação de hábitos de substituição, uma vez que “a proibição pouco
consegue; a repreensão intimida, mas não vence. A maneira mais eficaz de
vencer os hábitos maus e os instintos nocivos, consiste em implantar
hábitos novos, bons e úteis”, o que não se apresentava tarefa difícil ao
autor, uma vez que, “se os domesticadores conseguem alterar os instintos
dos animais, com muito mais razão isso deve poder verificar-se entre os
homens” (Viana, 1946b: 320-321).
A minúcia da análise e a procura de sistematização dos regimes
disciplinares muito hierarquizados e normativos, uma tecnologia
excessiva já caída há muito em desuso noutros países, justifica que se
atente um pouco mais no normativismo que o autor propõe, começando
pela simbiose da educação com a disciplina:
“Não é possível conceber qualquer educação sem a existência de um mínimo de ordem: Educar nada mais é que disciplinar. (...)A pedagogia necessita da disciplina para um quádruplo fim!
Vara educar, pois disciplina e Educação são conceitos tão estreitamente unidos, que se confundem.
Para tomar possível a actividade escolar. Se todos fizessem valer, dentro da Escola, os seus caprichos ou vontades, ninguém se entenderia (...).
Para se obter o máximo rendimento • com o mínimo de esforço. (...) O trabalho desordenado não só rende menos como gasta mais energia (...).
104
• Para • prepa rar o indivíduo para a vida s o c i a londe todas as actividades estão hierarquizadas e onde, fora da disciplina, só existe a confusão, o tumulto e a anarquia. O homem é tanto mais educado quanto mais disciplinado se revelar” (Viana, .194ó: 507-508)^
A disciplina era assumida não só em todo o seu potencial educativo,
mas estava também ligada a um sentido social produtivo. Era uma
tecnologia gerendal assente na autoridade, procurando reduzir os sujeitos a
uma obediência passiva às ordens e activa no trabalho. A justificação da
regra assentava num discurso alocêntrico, não visando somente facilitar a
manutenção da ordem ao professor, a sua teleologia estava endereçada ao
interesse do próprio sujeito, o seu primeiro beneficiário. Esses “fins mais
altos”, constavam do seguinte:
“1.° - Formação equilibrada de um indivíduo saudável.
2.° - Preparação de um indivíduo capaz de se aperfeiçoar.
3.° - Formação de um indivíduo com carácter. O homem indisciplinado não tem carácter: é um elemento de constante perturbação.
( 4.° j Preparação de cidadãos conscientes, capazes de se integrarem ^•com dignidade na vida sodal. O indivíduo inadaptado é
sempre um deseducado: protesta, reclama, não trabalha nem deixa trabalhar, comete abusos e prepotêndas, etc.” (Viana,1946a: 509).
Para o autor, a disciplina tinha uma dupla finalidade que se
materializava num utilitarismo fundonalista de uma ordem gerendal, mas
também transportava consigo dementos morais invisíveis na construção do
“carácter” dos sujeitos, designando essas duas dimensões por objectivos
próximos e remotos:105
“ O b jectivos. próxim os- ou im ediatos: Manutenção, do silêncio (sobrepondo ao silêndo exterior, o silêncio provocado pelo trabalho e pela ordem), manutenção da ordem, assiduidade escolar, pontualidade, regularidade do estudo, perfeição, do trabalho, higiene pessoal e social, ordem na carteira, conduta leal, respeito pela lei, aproveitamento metódico do tempo, respeito pela hierarquia dos valores.
Ob/ectivos afastados ou rem otos: Obediênda honesta e dignamente praticada; fortalecimento do poder da vontade; formação da consdênda moral, formação de bons hábitos de perseverança, pontualidade, economia, previdência, higiene moral, higiene intelectual, higiene física, etc.; formação do espírito de inidativa; respdto pelos valores morais e intelectuais.
Actualmente, a Pedagogia consagra a maior atenção à disciplina preventiva, tendente a evitar a desordem. Os m dos geralmente aconselhávds para o efdto , são: isolam ento dos alunos difíceis, irrequietos, etc., emprego adequado do tem po; preparação m etódica das lições; recurso a um progressivo tacto pedagógico; emprego in teligente da emulação; acordo entre o s p rofessores; preparação de um p lano g lob a l pedagógico, etc.” (Viana, 1946a: 510).
Mas continuavam também as ideias ligadas ao usufruto da
liberdade pelo autogoverno. Não era um regime autoritário ou um
anárquico que estabeleceriam as melhores condições de aprendizagem,
mas sim um que criasse uma liberdade que não prescindisse da autoridade
orientadora do educador. Seria uma condição auto-regulada sob limitação
superior, uma vez que “a liberdade deve ser a possibilidade de fazer o que
deve ser feito, quando deve. ser feito”:
106
• "Cette maîtrise de soi, dans la famille, à l'école, dans la société, est la vraie liberté. Elle suppose une autorité libératrice qui s'exerce au profit du subordonné. Cette conception, on a tâché de la réaliser dans la plupart des écoles nouvelles; c'est la 'school-dty' où se pratique le 'self-govemment'. On est parfois tombé dans des excès, mais quand cette pratique est réalisée avec la clairvoyance intelligente des maîtres et qu'elle aboutit à une discipline intérieure comprise et volontairement acceptée, on ne se peut que l'approuver” (Planchard, 1948: 309).
A propósito dos vinte anos sobre a publicação de Surveiller e t Punir,
Jeróen Dekker aparta distintamente a normalização e a disciplina, das
intenções e práticas pedagógicas que, a par com elas, se desenrolaram
(Dekker, 1996b). É exactamente esta compartimentação, pedagogia para
um lado, norma/punição para outro, que ilustra uma perspectiva
aprioristicamente benévola da educação, obscurecendo assim, não raras
vezes, os meios usados para a sua administração. Ao contrário, os
métodos disciplinares são um elemento essencial, pela sua produtividade,
para a acção pedagógica considerando também que, com o tempo, a
aplicação desse quadro disciplinar, de início violento e soberano, tem
vindo, sob os auspícios de um discurso da modernidade, a transferir-se
progressiva e metodicamente, do exterior para o interior dos sujeitos.
A disciplina nunca deixou de constituir um elemento da economia
pedagógica da escola, um artefacto gerendal de grupos e de indivíduos
regulado por um discurso pedagógico científico e endereçado à
construção moral do todo, através de cada um (não era Comenius que já
dizia que uma escola sem disciplina era como um moinho sem água?). A
crescente invisibilidade das técnicas disciplinares não eliminaram os
regimes, eles permaneceram de forma subtil, passando os enunciados
morais a prevalecer sobre as contingências do corpo. Esse todo,
construído pela soma dos indivíduos, carecia da formulação de um
: ■ 107
programa de acção moral endereçado a cada um, preconizado pelos
pedagogistas do início do século XX que, no contexto da procura de
construção da modernidade, procurava afastar-se do utilitarismo de
Bentham e aproximar-se mais de Kant
Tratava-se do encontro da satisfação pessoal com o contributo
para a feliddade alheia: a felicidade pessoal surgia como efeito do dever
cumprido. A educação pelo hábito, uma disciplina da repetição, era
fundamental ser aplicada em conjugação com um sentido de abnegação e
devia ser orientada da seguinte forma:
“Para o aperfeiçoam ento do indivíduo: Desenvolvimento da vontade e inibição de actos contrários a esse aperfeiçoamento. Domínio sobre si, o se/f govem m ent dos pedagogistas ingleses. Rigidez para consigo próprio, endurecimento. Autodisdplina. Pontualidade.Ordem. Diligencia (zelo). Limpeza. Espírito de iniciativa.Esforço. Constância. Perseverança. Brio. Honra. Aspiração ao progresso. Sentimento de dignidade, de personalidade. Reconhecimento dos erros, disposição para os emendar. Coragem. Modéstia. Exactidão” (Coelho, 1915: 2).
É difídl encontrar-se um discurso disciplinar mais exigente e
prescritivo, excepto num ponto: a benevolência do castigo estava já
presente, abdicando da violência física, sendo necessária a capacidade de
ganhar a confiança dos educandos e, “só em casos de grande gravidade o
professor manifestará indignação e em casos extremos a cólera, fazendo
em geral um uso moderado do louvor ou da censura”, permanecendo
sempre a exigência benthamiana de “disposições materiais que permitam
a fácil vigilância” (Coelho, 1915: 2).
A essa constante disciplinar, que tem estado sempre presente
através das relações de poder nas práticas pedagógicas, alguns autores
referem-se-lhe como um “regime de pedagogia” ou regime pedagógico,
enquanto um conjunto de relações de poder/saber, -de discursos e de
práticas exclusivas - da escola como instituição educativa (Gore, 1998:
232). Num estudo empírico, esta autora sistematiza e agrupa em oito
modalidades não hierarquizadas as práticas disciplinares na interacção
pedagógica:
1. Vigilância — exercício de supervisão, observação, expectativa de
se ser observado, etc.
2. Normalização — julgamento normalizador, uso da comparação, da
estatística, da regra e espaço de diferenciação.
3. Exclusão — lado negativo da normalização, processos de rejeição
do não aceitável.
4. Classificação - a pedagogia exerce-se por mecanismos
classificatórios, ordenando saberes e proficiências.
5. Distribuição - técnicas de dispor os indivíduos, organização de
espaços, constituição de grupos, etc.
6. Individualização - recorte do carácter de cada um perante os
outros, separação a qualquer pretexto e endereçamento particular.
7. Totaüzação — criação de grupos que funcionam como unidades, a
fim de facilitar a regulação.
8. Regulação — evocação da regra, da punição ou recompensa, etc.
Tendo adoptado esta grelha ao estudo das práticas pedagógicas
escolares ao nível micro da sala de aula, a autora conclui haver uma série
de continuidades espaciais e temporais na institucionalização das práticas
pedagógicas contemporâneas (Gore, 1998).
109
Para terminar esta parte, poder-se-ia sintetizá-la citando as palavras
provocativas de Ian Hunter.
“The school" system, I suggest, is not bureaucratic and disciplinary by default, having betrayed its mission o f human self-realisation to a repressive State or a rapacious economy. It is positively and irrevocably bureaucratic and disciplinary, emerging as it does from the exigencies o f social governance and from the pastoral disciplines with which the administrative State attempt to meet these exigencies. This does not mean that the school system has been inimiral to the goal o f self- realisation. On the contrary, one of the most distinctive characteristics o f the modem “popular” school — the one that makes its so difficult for its critical theorists to understand — is that, in adapting the milieu o f pastoral guidance to its own uses, State schooling made self-realization into a central disciplinary objective” (Hunter, 1996: 149).
110
A CLAUSURA E A DISTRIBUIÇÃO CELULAR
Se os artefactos estão já disponíveis antes de se racionalizar um uso
para eles, como sugere Nietzsche (2000: 87) a propósito da génese e das
finalidades da punição, também a reclusão surgiu muito antes de ser posta
ao serviço do uso judicial. Na sua História da Beneficência Pública, Vítor
Ribeiro remete-nos para a transição entre os séculos XII e XIII, quando se
refere a uma forma primitiva e rigorosa de clausura, praticada nesse tempo
por religiosas que se fechavam em celas de onde não mais saíam,
denominando-se de “encelladas, inclusas ou emparedadas” (Ribeiro,
1907:10). Esse regime de clausura absoluta, de origem ainda mais antiga,
era disperso e obedecia a uma decisão pessoal normalmente motivada por
“desgostos, demência ou fanatismo”, tendo-se tomado uma prática algo
comum na Europa. O isolamento do exterior era praticamente total, o que
justificava a designação de emparedados aos seus adeptos, sendo a sua
sobrevivência sustentada por alguma comida dada por esmola. Aqui se
encontrava já uma confinação celular associada ao hábito de assistência por
esmolas, embora o carácter espontâneo, desarticulado e disperso, sem
alguma finalidade intencional ordenada por uma razão, não permita falar
ainda de uma tecnologia.
A partir do século XII e até ao século XV, o bispado começou a
congregar os casos isolados de devotos emparedados, reunindo-os
principalmente nas grandes cidades e impondo-lhes regras e vidas
monásticas (Ribeiro, 1907: 10-14). Criou-se assim um sistema de
enquadramento e controlo de um grupo de indivíduos que se dedicavam a111
uma prática comum, mas destituída de alguma orientação ou objectivo
prático. Da sua clausura, da constituição desse universo populacional, não
poderia portanto resultar-nenhum benefício comum.
Essa vida celular estava restrita ao ambiente monástico, não tendo
ainda paralelo na organização social vigente. Foi em finais do século XVII e
durante o século XVIII que se produziu uma profunda alteração na
percepção que a família passou a ter de si própria, percepção essa que,
conjugada com uma nova arquitectura doméstica que permitia modos de
relacionamento inéditos, conduziu a uma retracção da vida social do
espaço público para o do lar. A novidade da redistribuição do espaço
habitacional consistia numa disposição das divisões por um corredor,
criando talvez assim o primeiro dispositivo generalizado de distribuição
espacial celular dos indivíduos, modelo que vai rapidamente difundir-se
noutros' aspectos práticos da vida social (Ariès, 1973: xvi). É uma herança
conventual que se mostrou produtivamente eficaz ao serviço de outras
actividades sociais, permitindo a difusão do enclausuramento como prática
institucional aceitável. Sobre a influência desses novos entrançados
relacionais possibilitados por novos recortes espaciais, Foucault refere-se*
lhes em síntese:
“São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos” (Foucault, 1987: 126).
Também as técnicas de distribuição e hierarquização dos sujeitos
vão chegar à aplicação de uma didáctica escolar reprodutiva. De um ponto
de vista estritamente disciplinar, a articulação proposta na segunda metade
do século XVIII por Joseph Lancaster e Andrew Bell, conhecida por ensino
112
mútuo, tinha um efeito multiplicador da presença, do mestre, normalmente
à razão de. um para dez. Cada um dos melhores alunos, ao tomar-se
decurião por incumbência do professor, ocupava-se de dez condiscípulos,
o que tomava possível um ensino de escala, ideal para a massificação
educativa que se vai ensaiar durante o século XIX. Toda a engrenagem que
se estabelecia, o sincronismo, a vigilância, a didáctica que ainda não
ultrapassara o processo recitativo e o exame, eram protagonizados pelos
alunos mas segundo um código pautado pelas regras dos mestres e
pontuado pela sinalética por estes empregue. Não é um olhar exclusivista,
simplesmente está concentrada em formas disciplinares de distribuição de
sujeitos que transportam e transmitem saberes ou estão encarregados de
manter uma ordem escolar. No entanto esta táctica pode ser lida, como o
faz Caruso (2003), contemplando uma obediência colectiva através do
conhecimento e não exclusivamente por dispositivos de cariz militar,
buscando assim encontrar um significado cultural nas técnicas de
disciplina.
Acrescente-se que numa perspectiva meramente gerencial,
arredando as intenções do método e concentrando-nos na sua forma e
estrutura, afigura-se que a táctica do ensino mútuo era. um dispositivo
praticado há muito nos colégios jesuítas, tendo sido apropriado por um
discurso secular propício à escolarização de populações cada vez mais
vastas. Mandava-se em 1739 no Colégio dos Meninos Õrfaos do Porto,
que o Padre Vice-reitor e o mestre de latim, que poderia ser secular ou
eclesiástico e vir de fora, “nomeassem na classe decuriões, que dessem as
lições aos que eles não podiam dar e também quando por ocasião de
alguma ocupação não pudessem ir ao estudo, dariam lição aos decuriões
que, na aula seguinte, prestariam contas ao Padre Mestre” (Basto, 1951:
: 113
320). Mesmo que faltassem às aulas dos órfãos, devido a algum
impedimento, os padres ou seculares faltosos tèriam forçosamente, a fim
de completarem o horário, de dar lição aos pordonistas, aqueles que
prestavam um contributo pecuniário e prestígio sodal fundamentais para o
Colégio.
Dessa vertente de economato da distribuição como elemento
primordial de governo - uma radonalidade gerencial de proveniênda
empírica, estava consdente o filósofo utilitarista Jeremy Bentham [1748-
1822] ao dissertar sobre as virtudes da clausura correcaonal: “O provdto
que se pode tirar no dia de hoje de uma casa de correcção bem governada,
já não é hoje uma simples probabilidade fundada sobre radoanios; é uma
experiência que tem sortido o seu efeito ainda muito além do que se
esperava” (Bentham, 1822:183).
Toda uma sorte de instituições geradoras de determinados
constrangimentos, onde também pontificavam os colégios, estabeleceu-se
no iníao do século XIX, gerando uma forma social de poder que criou as
condições para que se desenvolvessem modos de produção
sufidentemente generalizados e orientados para um incremento dos
resultados finais. Esta organização de corpos e actividades vai permitir o
áparedmento da produção industrial e, genericamente, do capitalismo
(Foucault, 1994). Aos resistentes a essa agregação sodal produtiva,
esperava-os um qualquer dispositivo que, mesmo que não os reintegrasse,
poderia corporizar uma ameaça sufidentemente eloquente para todos,
evidenciando as virtudes de uma integração social adequada.
Coinadente com o esvaimento da monarquia absolutista, o poder
governamental começa a ser exerddo através de dedsões baseadas em
conhecimentos especializados nos processos económicos, sociais e
114
demográficos, constituindo-se uma aliança qualificada entre. o saber e a
capacidade de o incorporar na acção executiva. ....................
Essa matriz distributiva dos sujeitos, um arranjo que se tomava
mais proveitoso e com um valor produtivo próprio, estava associada a um
fim específico que seria a construção idealizada de indivíduos que deveriam
cumprir, também eles, um ideal de sociedade. Tal, não seria possível sem
uma prévia hierarquização no. reduto escolar: no século XVm, ‘TJne
discipline autoritaire et hiérarchique s’établissait au collège”, alterando
profundamente o uso que as crianças faziam de si e das relações escolares
com os “pedagogos” (Ariès, 1973: 316). Seria portanto uma disposição
ordenada e sincronizada no espaço e no tempo mas, sobretudo,
hierarquizada.
Do pedagogo que albergava os escolares, desfrutando estes fora das
aulas de plena liberdade, transita-se para um modelo no qual a tutela
completa da criança se transfere para uma realidade institucional e distinta
da anterior, situação nova e estimulada pela necessidade de restringir a
capacidade das crianças disporem de si próprias, quando fora das aulas e
das suas obrigações misseiras (Ariès, 1973: 298-317). Da força da vergasta
pessoal dos “pedagogos” à força do colectivo institucional, das obrigações
pontuais das aulas à regulação constante da sua vida pessoal, há todo um
conjunto de processos que se foram sofisticando em tomo de necessidades
novas, cuja evolução fadlita a compreensão da retórica pedagógica e da sua
utilização.
Só no fim do século XIX, com o desenvolvimento das ciências,
mecanismos de avaliação e validação científica eram concorrenciais entre
vários saberes e academias na procura de diagnósticos e prescrições para os
desvios de um comportamento aceitável. A antropologia criminal
115
contrapunham-se a sociologia, e a psicologia criminal, como Deusdado
explicita, refutando as teorias da escola de Lombroso sobre a caracterização
anatómica da criminalidade:
“A resolução do problema da criminalidade não pode vir da análise física do exterior do delinquente, da assimetria facial, do estrabismo, da tatuagem, da desproporção na dinamometria-e no calor, do prognatismo, e de outras anomalias somáticas.Estes materiais terão valor como elemento indirectamente subsidiário para o estudo da natureza psíquica, da sua forma e da' sua evolução, mas a luz há-de nascer do conhecimento dos fenómenos da consciência e dos factos externos e internos que sobre ele actuem” (Ferreira-Deusdado, 1889: 23).
Essa deslocação do enfoque no corpo dos indivíduos para os
mecanismos mais subtis da sua natureza psicológica, é uma
preferendalidade que se irá acentuar cada vez mais. Erigiu-se assim um
poder crescente, alicerçado num vínculo ao radonalismo científico, através
dá apropriação dos seus mecanismos de produção de verdade,
congregando um saber e um poder constitutivos das relações sociais em geral
e dos regimes escolares em particular. E na aplicação desse “sistema de
disciplina”, bem visível nos discursos e nas práticas, que reside uma
prescrição constante, um agente cientificamente legitimador do controlo
produtivo dos corpos e dos quadros de constituição moral propostos.
Na segunda metade do século XIX a nomenclatura médica foi-se
cruzando com a razão teórica da pedagogia, introduzindo assim sistemas
empíricos em quadros exclusivamente morais e filosóficos, alterando
profundamente a natureza da fundamentação da prescrição pedagógica
(Dekker, 1996a). A medicab^ação da sociedade surge então como um
mecanismo de configuração e controlo social, sendo a higiene escolar a sua
expressão poBcial junto do quadro educativo público (Abreu, 1999). O
116
higienismo associava-se às virtudes regeneradoras , do trabalho e disciplina,
prescrevendo modalidades de acção - e instalando-se firmemente nas
instituições que melhor dispunham de grupos populacionais. .
“E necessário realizar nas cadeias a regeneração, e condliá-la com o interesse da saúde e da vida. E necessário que se saiba que nem todos os que lá entram ficam impossibilitados de se reformar, ou condenados a morrer. E uma das maneiras de os conduzir para a regeneração física e moral é o estabelecimento de trabalhos industriais e agrícolas acompanhados de-uma certa disciplina, que lhes crie. o horror ,à ociosidade. Só assim se compreende a reforma penitenciária, à face da higiene” (Namorado, 1877:46).
Começava a tomar-se mais nítido um quadro institucional
multidisciplinar e especializado, em que cada tecnologia deveria dar o seu
contributo para a acção cotrecdonal, chegando a designar-se por
“antropotecnia” o conjunto das “artes que têm por fim dirigir o homem —
medicina, higiene, moral, educação, direito e política” (Ferreira-Deusdado,
1889:211).
Essa acção disdplinadora, resultante da aplicação de diferentes
especialidades, prolonga-se pelo século XX, tendo-se estendido a uma
população escolar em constante crescimento, marcando a sua presença
curricular e exercendo-se principalmente junto daqueles que foram os
primeiros alvos dessas tecnologias: os mais desfavoreddos (Nóvoa, 1994).
Essas tecnologias de regulação dos indivíduos e a sua finalidade ou efeito
produtivo, são centrais para o esforço da compreensão do que Foucault
refere como uma economia de poder. Aqui, um poder muito mobilizador e
em expansão constante, suportado por práticas pedagógicas que se foram
construindo e sustentando por uma discursividade crescente em recursos
teóricos e científicos. Essa extensão pedagógica da medidna, essa
117
“medicalizaçao geral dos comportamentos, das condutas, dos discursos,
dos desejos, etc.,” pode-se considerar ser o ponto de encontro entre um
princípio ■ de ordem jurídica è soberana e uma frente de articulação
mecanidsta e disciplinar (Foucault, 2000).
Em classe, Posiçüo asseniaàa com os braços ao longo do corpo.-Monitora aaziliaodo ama inspiração. Àtençào geral. Uma excepçio-por vaidade. Demonstração pedagógica.
Figura 1 — A disciplina higienista dos corpos e o
exemplo pedagógico da excepção.
Fonte: Organização da pré-aprendizagem (1931).
O internato correctivo — a clausura pedagógica — é também a forma
mais distinta de traçar fronteiras de inclusão e exclusão. Aos novos
sistemas de administração • social vão aliar-se os novos métodos
118
psicológicos que, ao aferirem os menores por referência a um padrão,.as
qualificam ou desqualificam segundo um registo de normalidade
estabelecido pela relação com o que seriam os princípios expressos e
traduzidos e aferidos por uma racionalidade científica.
As inspecções médicas e antropométricas, bem como a avaliação
psicológica, eram regulares e periódicas nos institutos dedicados à
observação e categorização de menores, entre os quais, o modelo dos
Refúgios da Tutoria, a que não faltava matéria de estudo. Aos que
entravam era elaborado um “Registo Biográfico” que ficava apenso ao seu
processo judicial. Eram minuciosamente mensurados e classificados
taxinomicamente; a sua situação social e a da sua família, tal como os seus
antecedentes, incluindo a condição de saúde e as causas de morte dos
progenitores, eram também esmiuçadas, sendo a representação da crença
científica na responsabilidade das origens hereditárias e deformações
fisiológicas responsáveis por desvios comportamentais, não se colocando
ainda por essa altura uma grande ênfase nas causas sociais e na sua
profilaxia. O registo biográfico, sempre assinado por um Director-médico,
terminava com o exame psicológico. Desse registo constavam, entre
outros: “Dados pessoais; Antecedentes hereditários; Influências a que o
menor esteve sujeito; Educação recebida; Antecedentes pessoais; Vacinas;
Exame antropológico e Exames psicológicos”. A avaliação psicológica
inquiria sobre itens como “o sentimento do dever; o amor pelo trabalho; o
medo aos castigos; o amor-próprio; a inveja; a vaidade; a taciturnidade ou
loquacidade; a afeição pelos pais e pelos mestres; o humor habitual; os
maus hábitos”, etc (Portaria n.° 4:463, 1925). A medicina, com a sua
discursividade e tecnologia próprias, vem aliviar a métrica universalmente
aplicada, substituindo-a por uma individualização mais específica e
119
detalhada, dingindo-se agora também ao indivíduo e não somente ao todo,
observando-o, controlando-o e solidtando-lhe o seu empenhamento.
Detenhamo-nos no discurso pedagógico sobre a virtude da
disciplina escolar na viragem do século XIX. O palco é o dicionário
Buisson:
‘Tendant les mouvements généraux, entrée en classe, changements de place, sortie, le plus, grand silence est observe dans les rangs; les élèves marchent en ligne, le corps droit, le bras dans une position uniforme, sois croisés sur la poitrine, soit rejetés en amère avex les mains au dos. On a beaucoup critiqué cette dernière posture qui, dit-on, donne aux enfants l’air de petits
. captifs; elle est cependant, de l’avis des medicines, préférable à la première au point de vue de l’hygiène, car elle favorise le développement de la poitrine et force l’enfant à se tenir droit.Dans les marches ainsi conduits, on ne voit jamais les enfants se bousculer et même se batter, comme cela arrive lorsqu’ils conservent la liberté complete de leur attitude et de leurs mouvements: ils contractent de précieuses habitudes d’ordre er sè préparent au travail par une sorte dé recueillement. Quand ils ont pénétré dans la classe, ils ne se précipitent pas en désordre vers leurs places respectives mais ils marchent d’abord autour des tables en marquant légèrement le pas; souvent un chant ou une récitation cadencée accompagne la marche; chacun alors, au signal donné , se rend à sa place, s’y assied en plaçant ses bras dans la position indiqué par l’usage de la classe. Les enfants aiment ces marches en bon ordre, qui leur évitent beaucoup de punitions, car la repression devient inutile quan le désordre est prévenue” (Gaillard, 1887: 717).
A metáfora ortopédica exerdda sobre os corpos provinha do saber
médico da higiene e a sua distribuição e ordem eram ainda muito militares,
funcionando de acordo com o princípio da obediência aos toques e vozes
de comando. A “saúde” era a contrapartida a uma docilidade que
acarretava frequentemente a humilhação; a gratificação imediata era a
ausência do castigo. A referência a “disciplina” não significa então, por
paradoxal que pareça, a evocação do comportamento dos escolares ou dos
120
castigos nas suas diversas modalidades; não se trata aqui de: rigidez no
cumprimento de normas ou de .intolerância; só num sentido muito
simplista é tudo isso um pouco.mas, essencialmente, é aquilo que pode ser
um instrumento de “submissão da vontade” a uma metodologia de cariz
tecno-político, uma expressão prática de um saber/poder dedicado à
distribuição e controlo dos indivíduos de modo a que se tomassem
colectiva e individualmente mais dóceis, governáveis-e produtivos — um
objectivo básico e comum nos Estados modernos. Assim, nao sendo a
disciplina impositiva mas relacional, tal como a pedagogia, é nos espaços
celulares de educação compulsiva que melhor se cruzam o discurso
pedagógico e as práticas das disciplinas, numa expressão de exigência moral
materializada pela obediência.
A disciplina é um elemento central de uma “economia de govemo”,
não num sentido de rigor, mas no do estabelecimento de uma determinada
ordem, um ordenamento espacial e temporal dos indivíduos, uma gestão de
recursos através de uma disposição matridal de dispositivos e agentes,
correspondendo a uma finalidade politicamente aferida. A esse nível, toda
uma troca de poderes se manifesta em acções, muito diversas em
intensidade ou influência e muitas vezes reduzidas à dimensão do detalhe,
mas sempre produtivas.
“A minúcia dos regulamentos, o . olhar esmiuçante das inspecções, o controlo das m í n i m a s parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital. ou da oficina, um conteúdo laicizado, . uma racionalidade económica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito” (Foucault, 1987: 121).
Não se trata portanto de uma disciplina regulamentar, reduzida ao
prémio e à sanção, nem cumprida na sacralização da norma. Nos regimes
121
disciplinares as punições não necessitam de ser aplicadas para se
sustentarem: a aplicação do castigo é um inconveniente que gera
hostilidades, ressentimento e por vezes a vingança. A verdadeira função das
sanções, a sua universalidade na abrangência de todos os indivíduos, é a sua
existência, a ameaça que induzem, o seu enunciado e a possibilidade
iminente da sua aplicação. A configuração do castigo é o código
institucional de comportamento, mas também é o estímulo à sua fuga: nem
todã a acção é inibida, pelo contrário, ela é muitas vezes estimulada pela
possibilidade de cumulativamente praticar a infracção e conseguir a isenção
sandonatória. A ausênda de castigo esvaziaria este último estímulo. É a
capaddade produtiva do poder que está aqui ilustrada.
“A Cesta — Algumas vezes põem-se os meninos dentro de um saco ou cesta, suspensos no tecto da sala, à vista de todos os outros, que frequentemente se riem dos pássaros na gaiola.Este castigo é o mais terrível que se pode dar aos discípulos de
• senso e habilidade; sobretudo é temido pelos decuriões. O seu nome é bastante, e portanto poucas vezes é usado” (Lancaster,1823: 60).
Os outros castigos menos terríveis induíam as práticas confessionais
de admissão pública de culpa, o uso de uma canga ao pescoço e outra nos
pés, por vezes aplicada a um grupo, a humilhação dos meninos sujos por
uma menina, (<fUm castigo desta qualidade faz com que os meninos
tenham a cara lavada por dois anos” [Lancaster, 1823: 60]), a prisão depois
das aulas, etc.
Os recursòs disciplinares não são opressivos, mas sim, desde a
idade clássica, libertadores dos constrangimentos do ser humano e da sua
condição, são criadores de responsabilidades consdèntes e objectivadores
de todas as sujeições e necessidades que pendem sobre a sua própria
espécie.122
“As disciplinas sào, em primeiro lugar, uma física do espaço .e - do tempo: antes de serem formas da sensibilidade, o espaço e o tempo são fabricações do poder. Trata-se de dispor espaços, constituir células, de .quadricular, de. ordenar,, de definir empregos do tempo, de os acumular, de os programar, de os compor de acordo com exercícios, manobras1 e tácticas, o espaço e o tempo talvez sejam formas, mas formas de poder constitutivas da nòssa sensibilidadè” (Ewald, 2000: 52).
Num regime, de correcção disciplinar não são, somente as
tecnologias distributivas que agem; elas não teriam talvez a eficácia
pretendida sem o acto derradeiro e omnipresente de controlo. E um
terreno fértil, onde todos os dispositivos de vigilância e atenção se
evidenciam pela constância da sua presença, acentuando os efeitos e a
visibilidade da sua actuação, tomando-se reconhecíveis também através da
multiplicidade desses ínfimos detalhes que constituem uma racionalidade
técnica, ou seja, uma economia de poder presente num locus de observação
privilegiada. São essas mesmas técnicas que mantêm uma estreita relação
com os registos de verdade e com a produção de discursos e saber, numa
legitimação mútua e indispensável à construção e apresentação de uma
realidade (Ewald, 2000: 14-15), revelando-se a disciplina como um
elemento essencial de articulação entre os diversos eixos de exercício de
poder, renovando a sua forma de actuação e expnmindo assim o seu
sentido produtivo (Deleuze, 1998).
“Nessa grande tradição da eminência do detalhe viriam a localizar-se, sem dificuldade, todas as metáculosidades da educação cristã, da pedagogia escolar ou militar, de todas as formas, finalmente, de treinamento. Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum detalhe é indiferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer apanhá-lo” (Foucault, 1987: 120).
123
Dois aspectos hajam a reter: o carácter transitório da exclusividade
dos dispositivos disciplinares de controlo estritamente corporal e o
esbatimento da sua presença no discurso pedagógico. Quanto à
transitividade da sua: predominância, ela advém do facto de serem uma
técnica intermédia entre a absoluta desorganização do espaço escolar, tão
ilustrada por imagens anteriores ao século XVII, onde pontuam os pedag>g>s
inseparáveis das chibatas, instauradores de uma ordem única e imediata,
sustentada pelo temor à dor física e o surgimento de artefactos pedagógicos
mais brandos, sofisticados e persuasivos, decorrentes da aplicação de
dispositivos “científicos” de natureza médica, conjugados com políticas
sociais enquadradas por discursos democráticos ou liberais. Quanto à
discrição do protagonismo dessas práticas no discurso pedagógico, pode-se
constatar uma progressiva suavização do uso da coerção físir^
transferindo-se á tónica para a prescrição científica, bem como pela
existênda de um certo distanciamento entre a conceptualidade do actò
pedagógico e as práticas efectivas dos actores nos terrenos educativos. Esse
tempo de transição disdplinar acompanha também uma apropriação
gradual das regras escolares dos colégios religiosos por parte do Estado
que, recorrendo a outras legitimidades morais, pretendia substituir-se numa
grande parcela da função educativa e tutelar que a igreja preenchera até
então. ...
O controlo da criança num regime de escolaridade externa é
repartido entre o espaço escolar, aquele que é supervisionado pela escola e
um outro espaço' privado, onde é tutelado por um poder de tipo familiar.
Com o recurso ao internato, os espaços privados tomam-se de acesso
comum, deixando de sê-lo; a criança estuda, alimenta-se, veste-se, brinca,
ou seja, cresce num únicò espaço no qual todas as suas actividades são
124
determinadas, • controladas e avaliadas pela mesma entidade e à vista de
todos. Assim, esse tipo de instituições tomou-se um instrumento
privilegiado para a observação de comportamentos das pessoas e para a
experimentação de disposições que, embora sob argumentação diversa,
estão vocacionadas para o condicionamento regulado dos sujeitos.
No presente, marcado por uma evolução tecnológica profunda, ao
ponto de criar e difundir rapidamente um conjunto de novas práticas
sociais, possibilitou um pensamento construído por possibilidades hi-tech de
relacionamento de diferentes recursos. A distribuição celular pós-modema
acabou por concretizar o seu paradigma no uso de uma pulseira electrónica
nos reclusos: estando fixos num ponto — a pulseira —, a presença do seu
corpo é dispensada, tomando-se dócil não pela subjugação física do cárcere
mas exactamente pela sua ausênda, criando ao sujeito a responsabilidade
de se constringir a si mesmo na sua componente corporal. Está fixado, por
isso disponível, mas dispensada a sua presença física pelos inconvenientes
que acarreta, continuando a ser um corpo dócil, embora ausente. E, como
vimos com Foucault, a fixação dos sujeitos é uma missão vital da disdplina.
O pensamento tecnológico contemporâneo criou outros inúmeros
pontos de distribuição de saberes e fixação de corpos, colocando a
educação perante dilemas que a forçam a uma competição entre saberes e
imagens discursivas, rivalizando a escola com a institudonalização mediática,
campo onde a percepção de novos paradigmas educaaonais e disaplinares
só agora está a começar. A sodedade tecnológica vdo reproduzir , velhos
mecanismos de controlo e fixação mas dispensou as velhas metodologias.
O Panóptico tomou-se na vídeo-vigilânda e as novas divisões cdulares já
não são fixas mas móvds, sendo agora simbolizadas pelo governo
electrónico, pela tdevisão, pdo terminal, da internet ou o monitor do
125
computador, pelo habitáculo do automóvel, pelas divisões da casa - que
volta mais uma vez a ser central nos hábitos da vida sodal, restaurada pela
necessidade de acesso tecnológico e reforçada pela paranóia securitária —,
para além do paradoxo do telemóvel (cellular phone) que, apesar de
permitir uma autonomia comunicadonal sem precedentes, tomou-se o
equivalente benévolo e inviável da pulseira electrónica que fixa e admite a
disponibilidade constante dos sujeitos.
126
A EDUCAÇÃO TUTELAR INSTITUCIONAL
As condições em que se exerce o regime de tutela educativa
completa comportam várias especificidades: primeira, trata-se dè uma
população rigorosamente definida, seleccionada e normalmente aferida por
uma avaliação médico-pedadagógica, sob enquadramento jurídico; em
segundo lugar, as suas actividades escolares e educativas em geral,
decorrem num espaço muito restritivo ou confinado e são submetidas a
um estrito planeamento e controlo; em terceiro, a avaliação dos resultados
escolares e do comportamento privado e quotidiano dos internos
sobrepõem-se e condidonam-se entre si, por exigência da regulação intema
da instituição; em quarto lugar, o imperativo da sua educação e dos
parâmetros em que ocorre é definido e imposto por uma instituição e não
pela família; por último, há uma configuração preasa dos resultados que
devem ser obtidos, que é administrativamente definida e justificada pela
invocação de razões morais e sociais particulares, onde o benefído do
sujeito surge assodado ao bem colectivo. Esse conjunto de singularidades
confere à educação tutdar a prerrogativa de se constituir como escola,
família e modelo de articulação social.
O conjunto de contributos para a compreensão da genealogia dos
sistemas tutelares e de compartimentação celular da infância é já vasto e
eluddativo. Alguns autores remontam a Comenius [1592-1670] como
sendo o primeiro pensador a produzir uma obra de síntese, mas também
de rotura, que conduziu ao inído da acdtação da idda de tutela educativa
da criança, chegando por vezes a afirmar-se, como o faz Norodowski, que127
dos seus textos, “emana quase imperceptivelmente o esboço da construção
de uma instituição de.sequestro” (Norodowski, s. d.).
O sodólògo Erwin: Goffman, que se fez internar num hospício
durante mais de um ano para melhor vivendar as experiências do internato,
refere no seu estudo sobre a população submetida ao internamento
terapêutico, o que é a plena posse institucional dos indivíduos (Goffman,
1993,1999a). O seu conceito de “instituição total” é um elemento essencial
à compreensão da dependência completa do indivíduo, criada pelas
restrições sociais que lhe são impostas. Esse conjunto de constrangimentos
que o internamento proporciona é único e vital para que as disciplinas
possam imperar sem grande resistência. Uma vez sob tutela, as linhas de
conduta dos indivíduos são traçadas sem permitir largas margens de
variação, reduzindo a capacidade de criação de alternativas próprias e de
exercício • de alguma autonomia social das crianças. Michel Foucault
designava este tipo de instituições por “completas e austeras” (Foucault,
1979:195).
Quando o regime correctivo inclui o internamento da criança, ou
seja, quando a tutela é completa, ou total, Goffman remete-nos para o
contexto de um regime disciplinar de clausura da criança onde a
mortificação do eu é facilitada pela separação dos objectos externos a que o
seu ser se encontra ligado, não conseguindo entretanto libertar-se do
ambiente interno que o envolve. A presença absoluta da instituição
fúndona também como elemento exponencial da acção por ela exerdda.
128
. CfNas instituições totais há outra forma de mortificação; a partir da admissão, ocorre uma espécie de exposição contaminadora.No mundo extemo, o indivíduo pode manter objectos que se ligam aos.seus sentimentos do,eu.— por exemplo, o seu corpo, as suas acções imediatas, seus pensamentos e alguns dos seus
■ bens — • fora de contacto com coisas estranhas e contaminadoras. No entanto, nas instituições totais esses territórios do èu são violados; a fronteira que o indivíduo estabelece entre o seu ser e o ambiente-é invadida, e as encarnações do eu são profanadas (Goffman, 1999a: 31)”.
Há, uma condição pessoal que se altera duplamente ao inverter-se a
relação que se tinha com a sua pertença externa e a imposição da- sua
transferência para uma domínio interno e isolado, passando o seu ambiente
a ser o que não se construiu nem seria desejado caso imperasse a vontade
do indivíduo. Este quadro configura-se como um elemento muito
favorável à aplicação coerciva ou subjectiva de tecnologias sociais sobre o
sujeito, tais como a disciplina, a pedagogia, o exame, a higiene ou, dito mais
genericamente, toma-se favorecedor da aplicação de uma determinada
economia regimental
Quando, num contexto de receptividade social favorável, os
escolares passaram de comuns pensionistas dos . seus pedagogas, para internos
dos colégios, conseguiu-se estabelecer uma relação hierarquizada com os
mestres e, simultaneamente, estender-se a acção pedagógica à regulação-da
vida privada dos indivíduos. Essa relação, estratificada pelo domínio, entre
grupos, mestres e .escolares, reforçou a natureza institucional da relação
pedagógica^ traduzindo-se no controlo que passou a exercer-se sobre os
pensionistas e nas restrições das liberdades que desfrutavam. Essa separação
de vidas favoreceu o estabelecimento de uma categorização social dos jovens
que, até aí, comungavam a sua vida praticamente em paridade com os
adultos.
129
Bastante mais tarde, quando a tutela exerdda sobre a criança
começou a ser levada a cabo por instituições de controlo estatal — um
colectivo burocrático no lugar de indivíduos com laços , afectivos ou
familiares mais ou menos próximos do menor —, atentando nos diferentes
desenhos dessas organizações e nas suas práticas de regime, percebe-se
uma procura evolutiva de relacionamentos com características mais
funcionais e acções mais pautadas pelo pragmatismo, de tal forma que os
internados chegam a- ser. instruídos em leques profissionais, necessários à
autoconstruçao e sustento das próprias instituições que os encarceram.
Sem perder de vista a diferenciação entre as distintas naturezas e
políticas institucionais — sejam elas protectoras, correcdonais,
reeducadoras, “estimuladoras de vocações”, "anganadoras de mão-de-
obra” ou como as queiramos encarar —, constata-se que muitas instituições
foram, ao passar do tempo, praticando modalidades muito idênticas de
assistendalidade, embora sob designações diferentes ou prestando
assistência diferenciada mas sob uma mesma designação — colégios, asilos,
orfanatos, sociedades de benemerência, refúgios, etc. Essa multiplicidade
de designações constitui por si um empirismo pouco esclarecedor de
conceitos em tomo do auxílio social de menores, dificultado uma
ordenação tipológica das instituições que a têm prestado. À excepção do
título de órfão, fadl de atribuir, o subjectivismo em tomo de termos como
"em risco” ou "desamparado”, “em perigo moral”, “delinquente” ou
“anormal”, “mendigo” ou “indigente”, esconde-se por trás de concdtos
sodalmente construídos em determinados momentos, sendo complicado o
seu uso e a manutenção de fidelidade aos discursos que transportavam essa
terminologia.
130
Quando o discurso científico da medicina se introduziu no
território pedagógico e se aliou à construção jurídica, todas as
categorizações se tomaram definíveis com um rigor até aí inédito. O
congresso científico realizado em Lyon e Bordeaux em Outubro de 1911,
aprovou por unanimidade duas conclusões - uma delas, procurava
estabelecer um princípio • gèral que • delineasse üma fronteira da
normalidade; a partir daí poder-se-ia então criar uma miríade de conceitos
que contribuíssem para uma melhor arrumação social das crianças: '
“Dizem-se anormais, ' todos os indivíduos portadores ' de defeitos constitucionais de . ordem intelectual e . moral, associados frequentemente a defeitos físicos; ao seu tratamento são indispensáveis métodos especiais de assistência educativa”(Castro, 1912: 4).
Quanto à segunda conclusão desse congresso, ela era condsa e
inequívoca ao referir-se aos “métodos especiais”:
“Só o regime de internato pode assegurar a cura e a educação dos menores anormais” (Castro, 1912: 4). . . . .
A inevitável reordenação jurídica em tomo da infanda, que permitiu
indusivamente que o Estado chamasse a si as obrigações dos pais, recortou
no plano tutelar o perfil dos sujdtos da sua acção. Tomaram-se assim
inequívocas, face ao Dirdto Penal, categorias como “delinquente”,
“anormal”, “em risco moral”, “libertino”, etc., para que um quadro judidal
lhes pudesse ser aplicado.
Ao tempo em que foram surgindo essas novas disposições para as
crianças, iam-se desenvolvendo novas possibilidades de articulação política
e novos discursos pedagógicos, constituindo um conjunto de tecnologias
sodais que se entre-legitimam, afiançando entre si um padrão de
“verdade”. Além desse caudonamento redproco, essas artes passam a131
conseguir m ultip licar os recursos- d isponíveis, tom ando-os mais eficazes e
universais, m uitas das vezes usando essas populações de crianças, para
sobre elas exercitarem um a experim entalidade científica e consolidadora
dos seus próprios discursos. Veja-se por exem plo o m ovim ento higienista,
ou o aparecim ento em finais do século XIX da psicologia den tífica ,
estím ulo essencial para que a pedagogia tam bém se dentificasse.
Estava-se numa altura em que a educação compulsiva tinha bom
acolhimento reforçando a ideia de maior eficácia da educação institudonal
e abrindo novos caminhos aos discursos tutelares.
“Bem sabemos a relutância das famílias, filha dos preconceitos seculares, contra a dvilizadora educação. Para extirpar essa relutância assassina é que as nações cultas inventaram um prinapio, que se chama «a educação obrigatória»” (Costa,1885:124).
' ' São as Tutorias que, no inído do século XX, vieram consagrar a
prerrogativa tutelar que o Estado se atribuiu, ao verter em Lei uma
moldura burocrática e minuaosa, orientadora dos prindpios de posse e
reladonamento com a criança arredada de um enquadramento familiar e
social que fosse consistente e regulador. Apesar das distinções jurídicas
entre o que era um delinquente, anormal ou em risco moral, as aplicações
dispõnívds eram semelhantes para todos, aplicando-se-lhes um conjunto
de regras' que acabavam de fa cto por se tomarem indiferenciadas na sua
aplicação. Um simples beneficiário de assistência, p. ex., poderia cair sob a
alçada do Tribunal sendo acusado de indisciplinado caso a instituição a que
estivesse sujeito o considerasse incorrigível (Lei de Protecção à Infanda,
1911: art° 69.° b) e, uma vez internado, acabava por ser tratado sob as
mesmas condições de todos os outrós, sújeitando-se igualmente à
possibilidade de extensão da pena que lhe fosse aplicada, uma vez que
132
careciam até à maioridade de um parecer favorável da instituição de
internamento para obterem a sua devolução à liberdade que, sublinhe-se,-
não era automática, dependendo da resolução jurídica que a instituição
propusesse: ’
Para a Lei de 1911 o menor delinquente “é aquele qiie for julgado
autor de uma contravenção, òu autor, encobridor ou cúmplice de um
crime, punido respectivamente por um regulamento, postura ou lei penal”
(Lei de Protecção à Infanda, 1911: art° 62.^.
Pdo meio-século XX, a UNESCO assumia a categorização do
delinquente como uma “manifestação psico-sodal definida por uma
instituição jurídica”. Perante a generalização progressiva da escolaridade
universal e obrigatória, uma pedagogia preventiva da delinquência era então
preconizada, remetendo para as escolas esse encargo sociaL Compunha-se
assim o triângulo pedagogia/psicologia/aparelho jurídico onde: à escola
caberia a prevenção da delinquência através do exerdao, sobre uma
população progressivamente mais vasta, de uma pedagogia formadora da
personalidade e que arquitectasse uma individualidade autónoma, senhora
de todas as suas faculdades e recursos fisiológicos e psicológicos; à psicologia
caberia tratar o “doente e não a doença”, uma vez que o delinquente seria
um indivíduo que, por alterações de saúde psíquica, contraía
comportamentos anti-sodais que se repercutiam na sua envolvente sodal —
ao tratar o indivíduo, curava-se a sodedade; à legislação incumbia a definição
dos limites que remetiam para a acção judicial adequada (Brosse, 1950).
Este é talvez o momento de evocar a distinção entre o dirdto e a
sua expressão formal, entre ld e jurídico, que Foucault sempre sublinhava,
onde o jogo da norma adquire um poder crescente face ao sistema jurídico
da ld (Ewald, 2000: .77-78; Foucault, 1987).
133
A incorporação dos chegados
Os rituais inidádcos sempre foram importantes como
instrumentos de configuração cultural e marcadores de pertença social. No
campo educativo desde os primeiros colégios do Antigo Regime que há
relatos de “ritos de passagem”, usando a expressão de Van Gennep, que
deveriam ser cumpridos pelos escolares ou, não o fazendo, sofreriam as
consequências da sua recusa.
A constituição de um público para essas instituições de educação
completamente tuteladas também se foi alterando com o decorrer do
tempo. A formação de um corpo de alunos obedecia à definição de
critérios estabelecidos segundo os propósitos da instituição e das categorias
de margnais a que se dedicava. A admissão das crianças era então uma
primeira distribuição a que eram submetidos (dentro/fora), através de um
primeiro exame às condições que a criança deveria preencher.
A primeira configuração desse público é feita pelo estabelecimento
de um conjunto de condições que o candidato deveria preencher. Para se
perceber um pouco como era constituído o corpo de internos de um
colégio do Antigo Regime, padrão pouco alterado durante quase dois
séculos, recorre-se agora a alguns excertos dos normativos dessas
instituições. O capítulo VI do Estatuto do Colégio dos Meninos Orfaos do
Porto relata-nos as exigências de admissão dos internos:
134
“Como estes meninos se rriam em comunidade e-em colégio fechado, parece justo que sejam limpos de toda a raça de judeus, mouros, mulatos ou outra qualquer infecta nação (...); serão órfãos de pai e mãe, serão pobres e miseráveis (...) e quando entrarem saberão já alguma coisa de ler e escrever, sendo possível. Serão de sete anos para dma,' até à idade de doze ou treze porque sendo de mais idade não são tão bons de domar” (Estatutos do Real Colégio de Nossa Senhora da Graça dos meninos órfãos da cidade do Porto,-1653).
Para além das suas origens, estava bem presente a exigência de
grande vulnerabilidade da criança, geradora de dependência absoluta, com
o quesito cumulativo de ser órfa de ambos os progenitores, pobre e
miserável.
Quanto à sua política etária de admissão, esta, ainda é mais
exigente quase noventa anos depois. O padre Manuel Vieira de Sousa,
reitor do colégio entre 1723 e 1750, ao publicar e comentar os escritos de
Baltazar Guedes sobre as condições de admissão [1653], anota o seguinte:
“O costume que hoje [1739] se observa neste Colégio acerca da idade com que hão-de entrar os órfãos, é que, para entrarem devem ter entre quatro e sete anos, oito no máximo, porque a experiência mostrou que, sendo de mais idade (...) não são tão bons de domar e, como conhecem já a vida secular, custa-lhes a sujeitar-se aos rigores desta clausura” (Estatutos do Real Colégio de Nossa Senhora da Graça dos meninos órfãos da cidade do Porto, 1653).
Neste comentário, é nítido o desejo de posse e controlo da criança
para a moldar ao quotidiano e costumes da instituição, tanto melhor
quanto mais novo fosse o órfão, o que facilitaria a adaptação e o êxito da
missão regeneradora. A criança mais nova centrava as preferências por não
trazer vícios de fora, nem ter ainda muito enraizada dentro de si as
vivências da liberdade secular do exterior. Esse patamar etário apresentava-
se assim desligado de qualquer necessidade da criança ou de alguma função
135
social assistendalista, prendendo-se. antes com a procura de efidência
metodológica da instituição no cumprimento dos seus desígnios religiosos.
. Também a certificação de puritate sanguinis continuava a ser exigida
cem anos depois, em meados do século Xvm, tal como não bastava ser
órfao para entrar no colégio: para mais tarde espalhar a fé, tinha que se
fazer acompanhar • duma- certidão de que era filho de um casamento
legítimo, outra do seu baptismo e do de seus pais e avós (Sousa, 1739).
■ As actividades do colégio estavam centradas no seu próprio
interesse, afastando os órfãos que não correspondessem ao que lhes tinha
sido destinado. Os que não colaborassem com os procedimentos
educativos, os “naturalmente maus e de má inclinação, de quem não se
espere emenda, seriam apartados dos bons, para que não os pervertam” e,
a quem reincidisse nas faltas...
“ (...) depois de bem castigado, lhe despirá o padre Reitor o hábito, (...) e o mandarão para o Brasil ou índia, servir a sua Majestade, e não poderá andar nesta cidade, passados três dias sem que logo o prendam e o mandem embarcar, para não servir de desonra a este Colégio” (Sousa, 1739: cap. v ii).
O rigor disciplinar era um elemento constante e praticamente
exclusivo no que concerne aos elos relacionais entre internos e tutores,
assentando esse relacionamento entre tutores e tutelados predominante no
domínio dos corpos através do medo. Por essa altura, era natural o recurso
ao medo como “o principal dissuasor da assumpção de comportamentos
contrários à ordem social e mental de então”, uma técnica sustentada num
“medo legitimado pela própria Igreja e sublinhado pela temerosa relação
com os fenómenos incompreensíveis” (Ferreira, 2000: 335).
No dia da inauguração do colégio, em 1651, o padre Baltazar
Guedes ordenou às polícias que fizessem uma rusga nas docas, donde
136
acabaram por trazer “sete maraus” que por alivse dedicavam à indigência e
que foram imediatamente internados. Estava assim constituído o primeiro
contingente de crianças destinadas a propagar a fé e a tomarem-se uma
expressão dos interesses da Igreja e da Coroa nos temtórios da expansão.
A chegada dos alunos aos colégios era um momento importante e
solene, pontuado por rituais que marcavam o corte com o mundo exterior
e lhes assinalavam a entrada para uma nova sociabilidade, através de uma
encenação ritualizada, colectiva e marcada pela religião. Em 1865, o asilo
D. Maria Pia, em Coimbra, tinha regulamentado detalhadamente o
protocolo que assinalava a entrada dos admitidos:
“No dia e hora marcada para a admissão, que deve ser um domingo ou dia santo, se apresentará o admitido à porta do estabelecimento, e será recebido pela regente e todos os asilados no cimo da escada (...).
Colocar-se-ão em alas com a regente ao fundo, e o novo asilado à direita daquela, caminharão para o oratório e ali recitarão em voz alta as seguintes orações (...). Findas as orações, todos os asilados abraçarão o admitido, beijando a mão à mestra em primeiro lugar.
. . Em seguida será o mesmo lavado, tosquiado e vestido com o uniforme do estabelecimento” (Regulamento Interno para oAsilo de D. Maria Pia, 1867: art.° 4). .
Nas Casas de Detenção e Correcção do início do século XX, os
menores que chegavam começavam por se apresentarem na secretaria,
onde lhes era atribuído um número, a divisão e secção onde ficariam
incorporados. A roupa que traziam era queimada (art° 134.°) e eram
colocados em completo isolamento logo de início, para aprenderem a
disciplina que deveriam cumprir na instituição. Todo o primeiro mês era
137
chamado de “observação e castigo” e só então poderiam começar a
frequentar as aulas, as oficinas e a ginástica, sempre sob estreita vigilânda
dos guardas (art° 161.° e 169.°). Esse período inidal era muito importante
para a doutrinação e submissão à autoridade da instituição.
“Art.° 156 — A prisão de qualquer menor principia pela incomunicabilidade. Esta incomunicabilidade não será inferior a três dias, nem superior a oito, e durante este período tempo o menor será sempre vigiado por um guarda, e amiudadas vezes visitado pelo. director, subdirector,.capelão e médico, a fim de se apreciar o seu estado moral, tendências, estigmas de degenerescêndas e outras manifestações dignas de observação.
§ Único — O preso durante o período de tempo da incomunicabilidade não será empregado em serviço algum e gozará de toda a liberdade dentro da cela” (Regulamento Geral da Casa de Detenção e Correcção de Lisboa, 1901).
Durante esse período mortificador, o interno deveria dedicar-se,
sob a orientação do capelão, ao aprendizado do “Guia dos Deveres
Regulamentares e Morais dos Menores”. Tratava-se de um inventário da
obrigação aos deveres regulamentares, religiosos e sociais, composto por
uma escolhida colecção de máximas morais. Mesmo nos tempos livres
(aceitando-se que um recluso tem tempo üvre), a instituição não abrandava a
sua presença e o seu exercício:
“Art.° 163, § 2.° — Aos presos deverá conceder-se toda a liberdade durante os recreios, porque será a melhor maneira de serem observados” (Regulamento Geral da Casa de Detenção e Correcção de Lisboa, 1901).
No princípio da década de 1930, já no tempo dos reformatórios, ós
rècém chegados continuavam a ser agrupados com os indisciplinados,
passando por um período probatório de rigor que ditaria o diagnóstico e a
sua posterior distribuição (Patacho, 1931). A instituição deveria fazer sentir138
aos seus internos a sua presença constante e -o -significado do .seu
internamento. Também a Colónia Correcdonal feminina de S. Bemardino,
em Peniche [1931], tinha um programa de recepção às .menores que eram
cuidadosamente examinadas à entrada e, segundo a sua idade e “grau de
perversão”, seriam distribuídas por diferentes grupos disciplinares:
“O tempo de internamento ou a vida social cios menòres dentro da .Colónia divide-se em dois períodos. Durante o primeiro, chamado de observação, que pode durar mais ou menos tempo conforme a acessibilidade que a menor oferece, a internada é sujeita, sem dar por isso, a um estudo consciencioso das suas faculdades psíquicas e tendências profissionais” (Sena, 1931: 8).
O Refugio da Tutoria, local onde os menores iniciavam a sua
conversão social, apesar de ser um hospício transitório fazia-os permanecer
lá pelo menos dois meses, antes de serem levados a julgamento, “não só
para sentirem um certo rigor disdplinár pelo acto que motivou a sua
entrada no estabelecimento, mas para melhor serem estudados e receberem
os primeiros elementos de educação moral” (Projecto do Regulamento dos
Serviços do Refugio da Tutoria Central da Infanda da Comarca de Lisboa,
1928: § 9.^. Aquando da sua entrada, os menores eram apresentados na
°Secretaria onde se registava a sua identidade, os motivos do seu
internamento e sob que autoridade fora ordenado, sendo imediatamente de
seguida fotografados, entregues ao enfermeiro què procedia à sua limpeza e
desinfecção, apresentando-os. já uniformizados ao Director-médico que os
aguardava no posto antropométrico. Aí, procedia-se às primeiras
observações científicas, atribuía-se-lhe um número, abria-se um boletim
biográfico e enviava-se o menor para o isolamento e observação, onde
aguardavam os resultados que o iriam qualificar para ser colocado na
constituição de um subgrupo e classe. .139
A aprendizagem do es/are dos saberes
Depois de.se apossar do indivíduo, a instituição poderia então
dedicar-se a exercer sobre ele um conjunto de técnicas educativas,
determinadas pela natureza,, estrutura e finalidades da organização, segundo
a interpretação que delas fazia cada um dos seus protagonistas. O seu
desígnio mais evidente era a alteração compulsiva do comportamento
social dos indivíduos - previamente considerado como inadequado pelo
que, durante a presença da criança na instituição ela seria objecto da
interpretação quotidiana de vários actos educativos visando a modelação da
sua conduta, a fim de que adoptasse um padrão normalizado e nitidamente
distinto — pelo menos na sua aparência — daquele que ostentava à entrada.
Esses mecanismos utilizados, associados a uma intencionalidade
educativa tendente a regular a “condução da conduta” (conduct o f conduct) dos
sujeitos e destinados a fomecer-lhes uma determinada capacidade de se
autogovernarem, acabam por se revelar numa imagem em quatro
dimensões: ontológico, sobre o que se pretende governar em nós e nos
outros através dessas práticas; deontológica, sobre o que se procura produzir,
ascética, referente ao como, que meios e técnicas são utilizados; e numa
teleologa do alcance dessas práticas no que respeita àquilo que queremos ser
(Dean, 1997). São, em suma, técnicas ditadas por uma apredaçao temporal
e socialmente localizada da condição de criança/aluno e. dos discursos e
processos que, sob um formato e conteúdo dito pedagógico, têm sido
criados e aplicados na sua transformação.
A orgânica que sustentava as instituições correctivas da criança vai,
a partir de meados do século XEX, comungar dos dispositivos de relação
entre o poder e os corpos, surgidos com as reformas do sistema penal e do
140
progresso da medicina, contribuindo para uma fis ica característica da
“modernidade” dos Estados. O desenvolvimento axial de diversas dessas
aplicações práticas pode então ser segmentado e agrupado da* seguinte
forma: • • •
Controlo 1 - Observação e vigilância constantes; obrigação panóptica
de tudo ver e transmitir, estabelecimento de uma poliàa> instituição de um
sistema de arquivos e contabilização.
Disciplina 2 - Isolamento e reagrupamento hierarquizado dos
indivíduos; localização dos corpos; utilização conjugada das forças, do
tempo e dos espaços; controlo do rendimento.
Fisiologia — Definição de normas; exclusão e rejeição do não-
conforme; recurso à intervenção correctiva segundo uma ambiguidade
terapêutica e punitiva (Foucault, 1994).
Essas tecnologias de regulação dos indivíduos e a sua finalidade òu
o seu efeito produtivo, são centrais para a compreensão do que Foucault
refere como uma economia de poder. Trata-se de um poder suportado
pelo discurso da pedagogia social correctiva, construído e alimentado num
crescente de recursos teóricos, científicos e técnicos, procurando expandir-
se até à abrangência da totalidade de uma população específica. A natureza
desses artefactos educativos, da sua evolução, disponibilidade e aceitação,
pode-se expor através de uma imagem da vida quotidiana dos educandos
sob diferentes modalidades regimentais e recortes temporais. É uma arte
constitutiva de uma razão pedagógica, ou seja, um exercício técnico-
político de um p od erj saber destinado a “ (...) to observe, monitor, shape and
' Michel Foucault emprega no original a expressão “Optique”.2 Mécanique, no original (idem).
141
control the behaviour of individuais situated whitin a range of social and
economic institutions such as the school (...)” (Gordon, 1991).
O primeiro propósito da acçào regularizadora dessas instituições era
a mortificação do eu do intemo. Os processos inidavam-se logo nos rituais
de admissão: a criança deveria começar a perceber desde o inído que o
mundo exterior que conhecera e vivendara ficaria à porta aguardando a sua
devolução. Durante a sua estadia, os processos de mortificação
multiplicavam-se e manifestavam-se diariamente através das várias facetas
da vida privada da criança — os recursos mortificadores foram praticamente
até onde a imaginação poderia ir, constituindo uma panóplia que se
estendia até às indignidades físicas (Goffman, 1999a). A sua acçào
prolongava-se pelos castigos que procuravam a humilhação (uma
modalidade evoluída que contornava a aplicação de dor física); pela exigência
de reverência, exacerbada pela instituição; pelo tratamento por alcunhas ou
números, estes, usuais nas modalidades de tipo militar, visando a anulação
do nome de baptismo, símbolo de uma outra identidade da criança, a do
exterior, a responsabilização do colectivo das crianças pelo comportamento
individual dos seus membros, o que implicava a aplicação de castigos entre
si e o aparecimento de lideranças suportadas pela força; o uso de
uniformes, anulando assim os bens e as preferências pessoais do indivíduo;
pela regulação burocrática da higiene pessoal; através da responsabilização
individual e colectiva pelo prestígio institucional, ignorando a decisão
individual de adesão, entre tantos outros detalhes que se revelam quando se
avaliam as tecnologias disciplinares aplicadas no esquecimento de uma
identidade pré-institudonal.
142
Figura 2 - Os uniformes na Casa Pia na década de1920.
Fonte: CPL, “Celebração do 150.° aniversário da sua fundação” (1930).
143
. É claro que também a criação de situações que visavam essa
mortificação do eu se foram sofisticando, assumindo formas
progressivamente mais subtis. Com o surgimento de novas modalidades de
aplicação disciplinar e a extensão do seu alcance à vida íntima dos
indivíduos, fadlitou-se o exercício de configuração do se/f de cada um.
A alimentação era uma actividade diária e rotineira, algo atualizada
e celebrada em colectivo, mas transcendendo o plano simbólico uma vez
que estava ligada, à necessidade de sobrevivência física, como nos sugere,
por exemplo, a pirâmide das necessidades pessoais de Abraham Maslow
[1943], que pode traduzir bem o tipo de dependência absoluta da
instituição. Muitos castigos giravam em tomo desse tipo de necessidades
mais básicas, como os relacionados com a privação temporária de
alimentação ou outros interditos fisiológicos. A meio do século XIX, na
CPL, a privação de alimentos era usada como castigo físico, a par das
palmatoadas e da tortura:
“ Art.° 6 - As órfas que perturbarem o silêncio e qualquer acto ou reunião aonde se deva guardar silêncio, serão punidas pela primeira vez assistindo de pé e com as mãos presas ao jantar no refeitório, pela segunda vez comas mãos presas e de joelhos e, pela terceira vez, com vinte e quatro horas de reclusão.
Art.° 8 — As órfas que furtarem alguma coisa pertencente a outras órfas, a empregadas ou à casa, irão com o objecto furtado pendurado ao pescoço assistir por espaço de três dias ao refeitório. Se cometerem o mesmo delito segunda vez, além da assistência no refeitório, jejuarão três dias a pão e água alternadamente” (Regulamento para os castigos das órfas,1850). -
Situações banais do quotidiano sao elaboradas de forma a tecerem
em tomo das refeições um conjunto de acções simbólicas que suscitassem
144
concordância ou discordância, sendo entao apropriadas como estímulo
para á construção de uma determinada consciência moral dos sujeitos: ”
“A I.* secção tem para seu uso apenas colher, tigela e uma caneca. As da II.* juntam àqueles utensílios mais o garfo e o prato. As da III.1 têm o talher completo, o copo, não faltando a toalha de mesa, o guardanapo e as suas flores.' Usufruem assim comodidades a que todas aspiram e para o que se aperfeiçoam, algumas com tenacidade.
Numa das Divisões em que o número das internadas é já : grande e incompatível com as dimensões da sala e número de mesas, as menores da III.* secção sentam-se à mesa das empregadas. É este, talvez, o estímulo de mais valia para a criança, que se vê cercada duma consideração que quase a nivela, no seu espírito, à empregada” (Marques, 1931: 10).
A crença regeneradora no trabalho era . associada à via para a
construção de uma nova consciência de si e da sua interacção com os
outros:
“ (...) Como despertar-lhes na alma esses sentimentos que formam o "substratum" da nossa vida psíquica? Pela assòdação e pelo trabalho; pela associação que os fratemize e pelo trabalho que os movimente” (Castro & Barbas, 1912: 16).
Essa fraternidade pela associação nem sempre beneficiou o
indivíduo, revertendo habitualmente para a ideia de satisfação através da
sua inserção no bem colectivo. A maneira de estar com os outros era
condicionada pelo regime escolar em vigor e era desenhada conforme o
que se queria obter do carácter do aluno em determinado'momento -
seria um regime que devesse agir sobre esse “substratum da nossa vida
psíquica”. O timbre de diferentes tecnologias disseminou-se sobre as
formaturas, os rituais de reverência, a segregação dos géneros, o silêncio,
a aparência física consentida, bem como o vestuário e, sobretudo, o
145
aproveitamento disciplinar da prática antiga da delação e do seu incentivo.
A relação com o- outro é constantemente regulada, não pode ser
espontânea porque cada um está sempre enquadrado por uma acção
colectiva onde a sua margem de acção é muito restrita. A sociabilização
que lhe for imposta, por vezes até o isolamento, pode não ser aceite, mas
é a que tem que ser vivida de forma igual todos os dias.
A devolução social do internado
Uma vez internados, depois de submetidos aos propósitos
educacionais da instituição, havia que devolver os sujeitos ao exterior,
embora em situação diferente da que os conduziu lá. O sociólogo e
antropólogo Erving Goffman estabeleceu uma metáfora orgânica dessa
transição para a autonomia pessoal, descrevendo a acção das “instituições
totais” como um “ciclo metabólico” em que a instituição recrutava o seu
público, o digeria e, por fim, o expulsava para o exterior, numa analogia
que, aliada à linguagem usada, suscitou alguma rejeição dos seu pares -
Goffman chegou a usar a expressão “dejectos”, para se referir aos saídos
das instituições (Goffman, 1999: 122-146).
Esse cuidado de estabelecer uma intermediação entre a vida
dependente da instituição e a plena autonomia é uma preocupação antiga:
[1651] “Os que até aos quinze anos de idade não tiverem habilidade para o
estudo ou canto, serão postos a ofício limpo ou mandados para o mar”, a
menos que revelem aptidões para o estudo, saindo então aos vinte anos e já
ordenados, prontos para as missões ultramarinas (Estatutos do Real
Colégio de Nossa Senhora da Graça dos Meninos Órfãos da Gdade do
146
Porto, 1739). Os colégios religiosos funcionavam assimcomo estimulantes
da vocação missionária dos seus asilados, ao assegurar-lhes o futuro ou,
como alternativa para os que tinham pouco empenho ou aptidão para as
artes doutrinárias, os devolviam, sob vigilância, para o trabalho ou para o
desterro na índia, cortando abruptamente a relação do interno com a
“casa”.
O destino pós-institucional continuou a ser uma das preocupações
manifestas no início do século XIX, nomeadamente por Jeremy Bentham, o
influente pensador inglês e autor do estabelecimento de correcção
Panóptico, paradigma da idealização correcdonal da época. Na orgânica
dessa instituição estava prevista a possibilidade de os presos acumularem
poupanças que eram o produto do seu trabalho durante o internamento, a
fim de disporem de um suporte económico inicial, devendo, aquando da
sua devolução à liberdade, passarem por um período de adaptação num
estabelecimento auxiliar, para que não chocassem subitamente com a
liberdade e pudessem organizar com tempo as suas vidas. Teriam ali
também uma oportunidade de mostrar a “sinceridade da sua emenda”,
uma vez que se estava perante indivíduos “a quem não se pode conceder,
sem perigo, uma confiança imediata e absoluta” (Bentham, 1822: 180).
Esse acompanhamento institucional durante um período transitório, em
instalações próprias, consagrava a vontade de reintegração plena dos
reclusos, afastando-se de uma acção exclusivamente punitiva.
O método regenerador apoiava-se numa combinatória de trabalho e
educação, cada um com sua virtude: do trabalho, sairia o seu sustento e o
da organização, dirigida por úm particular que colheria os benefícios da
forma còmo organizasse os processos, obrigando pelo trabalho ao
aprendizado dè um ofício: A educação deveria preencher os tempos que
147
sobrassem das outras actividades para que nunca houvessem pausas na
acção, condição tão necessária para que os internados não prevaricassem:
“A indigência, a ignorância e ' o crime têm ‘ uma estreita afinidade.. Instruir os presos que estão na idade em que as lições facilmente se imprimem, é fazer muitos bens ao mesmo tempo. O ensino é de um grande socorro para mudar os maus hábitos, enriquece o espírito e engrandece o homem aos seus próprios olhos” (Bentham, 1822:176).
A preocupação com o destino dos sujeitos depois da acção
institucional era um problema para a credibilidade que ajudava a legitimar
os métodos empregues pela instituição, que necessitava de contabilizar,
estimar e louvar os casos de sucesso, embora Bentham desconfiasse da
existência de capacidade regeneradora em indivíduos de certas classes
“inferiores” - ex nihib n ih ilfit - dizia. A Colónia Correcdonal de Izêda, no
ano de 1931, contabilizava em 116 os “menores” que, até aí, por lá tinham
passado, tentando a direcção manter-se em contacto com os “reformados”
e inteirar-se das actividades exercidas em liberdade. Foi assim possível
apurar-se que, desses, “82 passaram a viver honestamente, 19 voltaram à
prática do crime e, dos 15 restantes, alguns têm vida duvidosa e outros
ignorada, não se lhes conhecendo o paradeiro” (Rombo, 1931: 10).
O encaminhamento para o aprendizado profissional como via para
o auto-sustento tomou-se uma prática comum nas instituições de
acolhimento, fossem elas religipsas ou laicas. A Casa Pia de Lisboa, na
segunda metade do século XIX, estabelecia acordos com patronos que
subsidiava para o recolhimento e ensino de. um mester aos menores que
estivessem em condições para tal, aproximando-os assim da vida laborai do
exterior. Também neste aspecto, a Federação Nacional das Instituições de
Protecção à Infância, uma instituição republicana, tinha por incumbência
148
estabelecer a ligação entre os Tribunais da Infanda e o patronato,
procurando encontrar colocação para os . seus redusos. A incorporação
militar era. um dos destinos que os tribunais aceitavam com bom agrado,
devido aos considerados benefíaos do seu regime disaplinar. Assim,
muitos menores que nao se sujeitavam de bom grado ao sistema laborai,
facto sufidente para serem considerados não regenerados, procuravam na
vida militar um alívio para os anos correcdonais.
A Casa Pia também foi inovadora neste capítulo quando, em 1889,
formou “batalhões escolares” constituintes de um “corpo escolar
militarizado” e criou em 1903 (Decreto de 29 de Setembro) uma escola de
sargentos que se reorganizou por determinação do diploma da Secretaria
da Guerra de 2 de Maio de 1914, tomando-se bastante activa nesses
tempos da edosão da primeira guerra mundial, onde vieram a partidpar (e
a morrer, certamente) muitos casapianos. Em finais do século XIX, a
condição de aluno e a de militar eram distintas mas fundíveis: o
“adiantamento literário” não tinha nenhuma correspondência com a
hierarquia militar, mas a sanção às infracções eram aplicadas
indistintamente e segundo a lei dviL
Na CPL, a disáplina castrense era imposta também através das
aulas de ginástica sendo ambas, invariavelmente e até muito tarde,
lecaonadas por militares, segundo uma repartição muito hierarquizada
entre inspector do ensino, professores, mestres e demonstradores.
“O professor de ginástica e exercidos militares será o inspector de todo esse ensino, que se professará sob sua inteira e - completa responsabilidade” (CPL - Regulamento para o ensino de Ginástica pura e aplicada, 1895).
A disdplina militar também convivia muito com as crianças
internadas noutras instituições, não só pda ordem imposta e pelas149
disposições hierarquizadas, como também nos aspectos mais banais e
simbólicas das suas vidas (uniformes, praxes, hierarquia muito vertical,
distribuição, sincronismo, formaturas, refeições, sinais de comando, etc).
Na Casa de Correcção de Lisboa, as actividades quotidianas eram regidas a
toque de clarim, o que era considerado “um meio de educação militar
bastante útil” devido à quantidade de menores reclusos que, quando saíam,
ingressavam no exército (Azevedo, 1892: 5). A instrução militar,
inicialmente justificada pela iminência de uma ameaça bélica, vai manter-se
para além dessa conjuntura e ser usada, em parceria com a ginástica, como
uma aplicação disciplinar muito profilática nas práticas de obediência.
A saída militar era tão estimulada que mesmo uma casa como a
Colónia Agrícola Correcdonal de Vila Fernando, em Eivas, vocacionada
para o aprendizado rural, no exercício dos anos entre 1897 e 1902, num
total de 89 alunos colocou 25 como voluntários no exército e somente 15
como trabalhadores rurais. Na mesma Colónia, num total de 62 alunos, dos
que estavam sob a responsabilidade das famílias foram 5 para o exército e
10 para trabalhadores rurais (Vasconcelos, 1904).
Os diplomas de 1911 (LPl) e mais tarde o de 1925 (Decreto n.°
10767) ratificam o alistamento no exército ou na armada como medidas
complementares das punitivas, aplicadas na prevenção, reforma ou
correcção dos delinquentes. Foi assim que a Tutoria de Infanda adquiriu
capaddade jurídica para impor o alistamento obrigatório no exérato ou na
armada dos • menores internados nos Reformatórios e Colónias
Correcaonais com dezoito anos de idade e tendo completado seis anos de
internamento (Castro, 1931:-22; Decreto n.° 10767 de 15 de Maio, 1925).
Numa acta do Tribunal de Infanda exarada em 1928, autorizando a
liberdade de um menor internado há 5 anos por “não querer trabalhar” e
• 150
que tinha atingido a maioridade de 18 anos, pode ler-se que .estava
autorizado a ser incorporado no exérdto como voluntário, “pois aí poderá
ainda completar, se ainda o não está completamente, a regeneração aqui
começada, por no exército haver ao lado de uma certa liberdade uma
disciplina , não menor do que aqui há” (ATML-DGSJ, Mç. :94, proc. 84
[1923]).
O aluno 5714, o m ais nouo nesta d a ta Ú aluno 19 após a re fo rm aFigura 3 — Entrada, processo e devolução.
Fonte: CPL, Celebração do 150.° aniversário da sua fundação (1930). ' '
A preparação militar, quando aliada à educação primária, facilitava o
prosseguimento de uma carreira no exército e a quebra da dependência do
asilo. Instituições de.benemerência particular, .exclusivamente dedicadas ao
amparo, também não dispensaram as possibilidades disciplinares, oferecidas
pela formação castrense, como-o Asilo ..Profissional. do Terço que, em
151
1931, perante o Congresso da Assodação Internacional de Protecção à
Infanda, elogiava assim as virtudes do seu “Ensino Militar Preparatório”:
“E de ver com orgulho a maneira como os nossos queridos rapazes se conduzem, já enfileirados com a mais norteada disciplina, já ostentando os preceitos cívicos de que se vêem possuídos, e em que se assinalam com um garbo admirável” (Monografia do Asilo Profissional do Terço, 1931: 25).
Pelo final do século XIX já estava muito enraizada a preocupação
das saídas profissionais para os asilados. O visconde de Ribamar tinha já
fundado o ensino profissional de forma a preparar os asilados para o
“momento perigoso de ficarem entregues a si próprios”. As educandas
também se procurava proporcionar “casamentos convenientes,” prática
que a Casa Pia também seguiu, bem como deixá-las “aptas para costureiras,
modistas, criadas de servir e outros mesteres apropriados” (Costa, 1885:
201) mas, em meados do século XX, criava uma “Comissão de Orientação
Profissional”, constituída pelos chefes dos Serviços Escolares e de
Assistência Médica e o Subchefe dos Serviços médico-pedagógicos, tendo
por encargo “reunir e coordenar os elementos necessários ao estudo da
orientação profissional de cada aluno”, sendo estes observados para esse
fim até aos 14 anos (Orientação profissional dos alunos da Casa Pia, 1945).
Na década de 1950, no Reformatório Central de Lisboa, a passagem
para a vida livre era feita já depois de um aprendizado profissional, mesmo
assim temia-se que a transição fosse brusca, pois haveriam “muitos
internados para quem uma libertação completa, a seguir ao internamento,
poderia prejudicar gravemente as vantagens adquiridas durante este”.
Criaram então uma secção de semi-intemato para os que estavam prestes a
sair, como meio de os preparar de forma gradual para a liberdade, mas
também para os pôr à prova e melhor os conhecer (Fernandes, 1958: 96).
152
A R e a l Ca s a P ia d e L is b o a e a c o r r e c ç ã o s o c ia l
Não é neste momento nem na dimensão deste trabalho que cabe
uma análise rigorosa e profunda da história da Casa Pia de Lisboa, por
isso, não é tal o que aqui se pretende verter, mas não é possível dissociar
essa instituição da influência e, sobretudo, do pioneirismo que
representou nas tecnologias de correcção social da criança, o que a situa
num percurso muito particular da evolução na modernidade das
instituições correcdonais. A extensão temporal da sua acção, as suas
ongens e os métodos empregues sobre as populações a que se dedicou,
aliadas a algumas personalidades que a lideraram desde a sua fundação,
posicionam a Casa Pia como a mais paradigmática instituição correccional
portuguesa e conferem-lhe um papel distinto e notável no panorama das
suas congéneres europeias. Não comportando aqui, como já se disse, uma
história da instituição, por muito ligeira que fosse, opta-se por traçar
cortes temporais suficientemente alargados para permitirem percepcionar
algumas descontinuidades significativas nos discursos pedagógicos e nas
práticas regimentais que lá vigoraram.
No universo das instituições dedicadas à protecção e acção
pedagógica de reenquadramento social da criança, a Casa Pia evidenda-se
por inúmeras razões, algumas já suficientemente estudadas e
referenciadas, mas nao exclui que se procure aprofundar, sob diferentes
aproximações conceptuais e metodológicas, uma clarificação dos
contributos trazidos à genealogia das instituições correctivas. Entre tantos153
dos seus traços distintivos evidencia-se facilmente a antiguidade da
instituição, a procura consistente de novas metodologias educativas e as
modalidades e especializações adoptadas.
Quanto à precocidade da Casa Pia na instauração de um regime de
apropriação dos indivíduos e ao recurso a práticas escolares que incluíam
afinidades carcerárias, mesmo sem estar a considerar o fim com que o
fazia, se punitivo, educativo, de amparo ou regenerador, recorde-se que, no
sistema penal europeu, o encarceramento como punição não está vigente
antes das reformas francesas de 1780 - 1820 (Foucault, 1997: 23), existindo
formas de detenção sim, mas não consagradas como punição criminal ou
reformadora. A Casa Pia, ao estabelecer-se em 1780 e demarcando já duas
populações distintas, uma, sujeita à punição da Casa da Força, outra,
beneficiando do auxílio do asilo educativo e profissional, toma-se uma
instituição reguladora de comportamentos sociais, recorrendo a um regime
disciplinar de clausura e internato, conjugando-o com uma acção educativa
de tipo escolar ou formativa. Como pretexto de reflexão e estímulo à
investigação, faça-se desde já a justiça de perceber que a mítica casa de
Mettray só surgiu 60 anos depois.
No contexto escolar, no mínimo, a Casa Pia acompanhava as
recentes modalidades surgidas em França, ou em Inglaterra nas pubkc schools
do final do século XVm, mas antedpava-se certamente, embora nem
sempre com o reconhecimento merecido, às instituições que acabaram por
aparecer por vários países da Europa no início do século XIX. Teófilo
Braga, insere-a mesmo na promoção de um movimento crescente de
descoberta da “afectividade” e da “igualdade humana perante o
sofrimento” que, segundo ele, marcou a segunda metade do século XVm
(Braga, 1896).
154
Referindo-se à CPL de finais do século XIX, António Costa, sobre a
CPL, colocava a ênfase na constância de todos os momentos educativos è
da sua importância para a interiorização de valores na construção moral
dos sujeitos:
"A educação moral exerce-se a todos os momentos, em todos os lugares e em todos os assuntos, subordinada aos seguintes preceitos fundamentais: Amor de Deus, da humanidade, da família, da verdade da justiça, da liberdade, da instrução, do trabalho, da economia, e das virtudes domésticas. Em cada uma das aulas se ministram aqueles princípios. É a Moral prática da vida. Deste modo os princípios da moral não são papagueados, para já nos últimos a razão infantil se ter esquecido dos primeiros, mas vão-se entranhando no entendimento dos moços, que em lugar de os dizerem só de memória, os recebem praticamente dos professores, dos prefeitos, do director, ficando-lhes assim gravados, como um cunho de oiro em espíritos de cera”(Costa, 1885: 121).
Foi por esses tempos que se iniciou um conjunto de práticas
assentes no pressuposto da eficácia educativa do regime de internamento
dos escolares, revelando uma visão instrumental e disciplinar da escola e
que teria como fim a constituição de um ser humano idealizado.
155
QUADRO SYNOPTICO
Vista Taclo
Educação dos sentidos ̂OuvidoOlphato Paladar
Educação physica
Educação intellectual
RespiraçãoAlimentaçãoVestuárioAceioHabitaçãoHygieneGymnaslica
Desenvolver as{acuidades 4a alma
SensibilidadePercepçãoAtiençãoJoizoRaciocioioMemoriaImaginaçãoReflexãoVonladeTeudeuciasHábitos
IX “anàlyticaRedacção
Escripta Gallygraphia
descriptiva
Figura 4 — 0 “currículo” casapiano em meados de Oitocentos.
Fonte: (Raposo, 1869).
156
DE EDUCAÇÍO REAL
Educação moral
Princípios naturaes
Sentimento religioso da verdade da justiça da familia da humanidade
Amor
l Historicos 1 Princípios adquiridos Î Tradicionacs
I Convcncionaes
I individual e domestica
rural i 3gnColarural ! eiploraliva
Educação economica induslrial ârtisticafabril
Educação social
commercial
Governos
^Leis
Direitose
Deveres
internaexterna
Monarcbia absoluta ou despótica Monarcbia aristocrata Monarchia roixta ou constitucional Republica ou democracia
Poder legislador Poder executivo Poder judicial Poder moderadorindividuaes familiares civis e políticos sociacs moraes
157
A CPL também foi pioneira nos estudos antropométricos,
começando a estabelecer registos biográficos das observações desde o
último quartel do século XIX, muito antes de a Tutoria existir e poder
utilizá-los. Pela inidativa de José Maria Eugênio de Almeida — um
refundador, mais que um reformista — o emprego de racionalidades de
suporte das funções gerendais aprimoraram-se pelo determinismo
dentífico, sobretudo através da distribuição regulada pda estatística, a
dênda que simultaneamente permite colectivizar e individualizar.
Diferentes aspectos subjectivos da tomada de decisão passam a ter uma
justificação objectiva e harmoniosa com os ditames morais em vigor,
desenhando um circulo de conveniência de exercício de poder em que
havia como que uma administração subjectivamente moral do uso dos
instrumentos radonalistas. Questões- como a logística, distribuição,
qualidade e tipo dos alimentos, o espaço, a cubicagem de ar por aluno, as
normas de higiene, a adequação específica do vestuário e outras condições
sanitárias, passam a ser ordenadas por raaonalidades aplicadas a um
contexto educativo e institudonal muito controlado. A partir de 1860
começaram a instaurar-se na CPL “as novas bases que assentavam sobre os
melhores princípios de administração económica e disdplinar, de higiene e
organização escolar” (Silva, 1899: 12), as bases em que afinal assentavam
também alguns dos fundamentos da modernidade.
É com ó advento da República, que a medicina e os métodos
científicos de observação e tratamento mais se reforçam na CPL pela mão
do seu director, o médico António Aurélio da Costa Ferreira. Depois de
muitas décadas de regimes disciplinares centrados na ordem militar, o novo
poderjsaber da medicina passou a impor o contraponto de uma nova ordem
158
científica aos hábitos inquestionáveis das rotinas castrenses, consolidando-
se assim o modelo médico-pedagógico. Costa Ferreira instruiu o pessoal
auxiliar em outras formas de tratamento com as crianças, seguindo
princípios médicos que determinavam novas formas de analisar
determinados problemas.
Como exemplo avulso dessas alterações de procedimentos, veja-se
como actuou no caso problemático da “micção involuntária nocturna”,
recorrendo aos estudos médicos, à observação comportamental e ; ao.
enquadramento do discurso pedagógico. A incontinência juvenil era um
distúrbio no govemo do internato, implicando consequências gerenciais
com as despesas em oleados e expondo como ineficazes as práticas até aí
seguidas, que consistiam basicamente em castigos e ameaças ao deitar.
Costa Ferreira decidiu que “em todos os colégios se acordassem os
incontinentes, durante o primeiro sono, que os acordassem bruscamente, e
os fizessem urinar e que ao deitar da cama lhes recomendassem sempre,
em tom firme e enérgico, que não urinassem durante a noite ou que se
levantassem para o fazer” (Ferreira, 1913: 230). Após observar diariamente
durante quatro meses os alunos mais regularmente incontinentes, estava
em condições de os classificar em “emotivos” e “apáticos”, sendo “os
m otivos mais fáceis de curar que os apáticos. Na realidade os que mais têm
resistido ao tratamento pedagógico são apáticos e os que mais depressa têm
deixado de urinar são emotivos” (Ferreira, 1913: 232).
Note-se á designação de “tratamento pedagógico” para os estudos
efectuados e medidas de gestão tomadas, tendo Costa Ferreira concluído
no fim do estudo que os incontinentes observados na CPL: “1.°, se
comportam, em regra, nas aulas e recreios, como anormais; 2.°, que se
agrupam em emotivos e apáticos; 3.°, - que o processo de acordar os
159
incontinentes durante o primeiro sono para os fazer urinar, não é, como
muitos julgam, um simples processo paliativo; 4.°, que com simples meios
pedagógicos se pode com vantagem intervir no tratamento da micção
involuntária nocturna e 5.°, (...) pode-se no entanto dizer que a micção
involuntária nocturna é, em grande parte, uma questão de educação”
(Ferreira, 1913: 233). O estudo, originalmente publicado na revista Medicina
Contemporânea de 27 de Julho de 1903 termina com uma frase “de fé e de
razão: Creio napedagogd*.
O professor Palyart Pinto Ferreira, professor primário que se irá
tomar muito relevante na direcção de Costa Ferreira, na sua candidatura à
CPL para professor de Trabalhos Manuais — considerados na época com
uma grande modernidade pedagógica —, expressa bem a relação simbiótica
mas submissa que o discurso pedagógico pretendia manter com o
progresso da dênda, o que supostamente facilitaria o discernimento entre a
adequação ou não da acção pedagógica:
“ Desde que a pedagogia se tomou experimental’ desdobrando- se em arte e ciência, entre os que estudam e aplicam, não pode, ou antes, não deve haver duas opiniões. E o papel do professor primário, do mestre-escola de hoje, deve ser, por um lado, submeter-se às leis que o psicólogo e o pedagogista descobrem todos os dias, orientando o ensino segundo os dados recolhidos; por outro, perscrutar, observar atentamente as mínimas manifestações da actividade infantil e comunicá-las, concorrendo assim para o desenvolvimento da mais sublime das ciências actuais” (Ferreira, 1913: 248).
A “medicina pedagógica” . tinha-se afirmado no discurso
educacional, abrindo caminho a partir daí a especialidades técnicas menos
centradas no controle médico, permitindo que a psicologia e a assistência
social adquirissem uma presença que foi crescendo conforme foi
160
diminuindo a necessidade de exercer constrangimentos < físicos sobre* os
internos. ■ ' . • . •
Uma ideia fundadora e várias populações
A Casa Pia surge num contexto particular do século XVIü, quando
se pretende avançar com a secularização do ensino e destituir de poder a
Companhia de Jesus, cujos métodos praticamente monopolizavam o
ensino e a consequente doutrinação dos escolares. Por isso, o método
educativo adoptado desde o início da CPL foi o da Congregação do
Oratório, que há muito rivalizava com os jesuítas pela supremacia dos
métodos que instituíam nos seus colégios.
Para além de toda a documentação conhecida sobre a vida e a obra
de Pina Manique, talvez a mais antiga narrativa sobre a Casa Pia seja o
manuscrito de Veríssimo Amador Patrício, N arração histórica da fundação e
do estado da Casa Pia no castelo de U sboa (...), foi publicado por Oliveira
Martins (1948) e, por ser contemporâneo dos acontecimentos aí narrados,
tem um valor inestimável. Se muitas personalidades traçaram o rumo da
instituição casapiana, outras definiram a sua história a partir das narrativas
que construíram, gerando assim uma representação praticamente
irrevogável e persistente. É esse o caso de César da Silva [1859-1942]
quando, em 1896, este professor-regente e bibliotecário casapiano publica
a sua Breve H istória, prefaciada por Teófilo Braga, produzindo aquilo que é
e sempre foi uma referência incontomável para quem se dedique ao
estudo da Casa Pia. Embora escrita um século após a sua fundação foi
feita com um profundo conhecimento da matéria em causa e ampla
disponibilidade de acesso às fontes, uma vez que além de professor foi
também bibliotecário da instituição, mas que não dissipa dúvidas sobre a
sua isenção como historiador. Além disso, as suas fontes primárias eram
praticamente inexistentes no que concerne ao primeiro período da
instituição [1780-1807] - que vai da sua fundação no castelo de S. Jorge
até ao encerramento devido às consequências das invasões napoleónicas -
o que seria fundamental para o discernimento da sua natureza e orgânica,
do tipo de populações abrangidas e dos resultados da sua acção,
contrastando-as com outras inovações da pedagogia social no contexto
europeu da época. Apesar de tudo estão disponíveis os livros de assentos
dos que ingressaram na Casa de Correcção para homens desde o seu
início, permitindo obter uma caracterização da população inicial de
internados para fins correcdonais (Real Casa Pia de Lisboa - Casa de
Correcção paira homensi 1780-1785).
Sendo uma obra apologética, como o é aliás a generalidade da
literatura dedicada à instituição, normalmente também produzida por
autores a ela ligados, a primeira Breve H istória da Real Casa Pia foi
publicada por ordem da administração com uma intenção desde logo
manifestada pelo autor.
“Este livro têm por destino ser dado aos alunos, no momento de saírem do.estabelecimento, para que fiquem sabendo o que é e o que foi essa mãe adoptiva, mas desvelada, de cujo regaço se desprendem nessa ocasião” (Silva, 1896: xm).
. A fundação da Casa Pia deve ser compreendida à luz das
circunstâncias particulares da época: para César da Silva, invocando
Latino Coelho e a sua H istória Político M ilitar, o país estava convalescente do
despotismo autoritário do Marquês de Pombal e, com a morte do rei D.
José [1777] e a ascensão ao trono de sua beata filha, D. Maria, os ódios de 162
que Sebastião José era alvo acabaram por conduziTlo à queda política e ao
desterro. Os efeitos. de uma crise social grave, tendo como fundo o
desnorte da administração pública que se fazia sentir, lançando para. as
ruas uma legião de vagabundos e criminosos, abriu caminho para que o
Intendente Diogo Inácio de Pina Manique [1733-1805], adquirisse um
poder em tudo equivalente a um exercício ministerial, já que tinha no
aparato policial um forte instrumento e o seu pleno uso era-lhe
frequentemente solicitado, não se fazendo ele rogado no seu exerddo.
César da Silva não reconhece muita intencionalidade inicial ao
Intendente em criar uma “casa de educação”, referindo-se aos homens e
mulheres que primeiro foram albergados no Castelo como “gente de
maus costumes, que vagueavam pelas ruas”, tendo vindo depois as
crianças miseráveis e abandonadas que povoavam a cidade. Referia-se
certamente à Casa de Correcção de Homens, que seria o estabelecimento
institucional de um meio coercivo de travar a delituosidade a que se
ofereciam, entregando-os ao trabalho nas oficinas do Castelo e que
albergava gente de praticamente todas as idades já que, se a malfeitoria
grassava pelas ruas, os garotos simplesmente miseráveis acabariam por
arrastamento a cair nos mesmos vícios.
Mas a CPL não limitava a sua acção ao trabalho e disciplina
compulsiva, as vertentes de amparo social e intenção educativa também
marcavam presença. Há, nas palavras de César da Silva, dois aspectos
distintos: a da coerção e castigo para os adultos e amparo e protecção
para os mais novos. A Real Casa Pia não se poderia confundir então com
uma penitenciária para os niais velhos, embora possuísse dela algumas
características, um facto já de si absolutamente notável parà à épóca,
como também não era um orfanato, uma vez que os mais novos que lá
163
estavam não eram todos órfãos nem todos delinquentes. Apesar disso,
todos os que lá se recolhiam eram designados por órfãos, levando a que
muitas vezes se referisse e pensasse a Casa como mais um simples
orfanato.
Nesse primeiro ano, [inauguração solene em 3 de Julho de 1780]
entre 1780 e 1781, o livro de assentos da população correccional
masculina, milagrosamente salvaguardado, regista uma heterogeneidade
verdadeiramente impressionante. Desde idosos de 90 anos, o mais velho
encontrado nos registos, até rapazes normalmente de 15, 16 anos ou um
pouco mais, encontrava-se um leque etário completo e, muitos dos que lá
estavam não eram procurados pela autoridade, apresentavam-se por não
terem meio de subsistência no exterior, como se pode comprovar pelos
registos ou pelos averbamentos que lhes eram feitos.
• Os livros de registo dos entrados eram incipientes, anotando-se,
quando era possível, o nome do sujeito, os pais, a naturalidade, onde fora
baptizado e a idade. Como os assentos eram manuscritos em folhas
grandes, haviam margens onde se anotavam algumas particularidades dos
internos, elementos preciosos para se tentar caracterizar a população,
avaliar o seu tempo de permanência ou perceber alguns procedimentos
administrativos. O que mais se evidenda, para além do já referido amplo
leque etário da população, era o poder absoluto do Intendente: havia
notas de inúmeras deasões tomadas por portarias de Diogo Inádo, como
enviar sujdtos de navio para o Brasil ou autorizar saídas para ofíaos que
entretanto aprenderam ou já exerdam antes de entrar.
164
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Figura 5 - Dois dos primeiros internos na Casa de Correcção de Homens da Casa Pia. ‘
‘ Fonte: CPL, Livro de assentos 1780.
Muitos idosos certamente lá se recolhiam por não terem formas de
sustento e mesmo um casal de 60 anos se apresentou, tendo certamente
ficado separado mas sob abrigo. Outros fugiam, sendo por vezes
apanhados ou não. A alguns está anotado a palavra “voluntário”, outros
165
eram militares ou marinheiros desertores, voltando ao fim de uma estadia
correctiva para as suas unidades. Na letra “M” do índice estão registados
alguns mudos, no registo individual está simplesmente escrito “O Mudo”,
pessoas de quem pouco se poderia apurar e alguns cegos também lá se
encontravam.
Uma coisa parece certa e afigura-se importante: as crianças, que
inicialmente não estava previsto serem alvo da acção institucional,
passaram a beneficiar de uma maior abrangência etária, ficando
albergadas em instalações propositadamente ampliadas para o efeito, ou
seja, as crianças estavam separadas de facto da população de adultos, pelo
menos no que respeita ao seu albergue. A 29 de Outubro de 1780, foram
inauguradas as instalações para os mais novos, na presença do próprio
Pina Manique, inaugurando-se também na Casa Pia o carácter de “casa de
educação” que até ali não tivera (Silva, 1896: 16).
No relato de César da Silva, no Castelo passou a haver aulas
formais segundo um currículo desenhado por José Anastácio da Cunha -
um matemático e astrónomo cuja dedicação às letras lhe tinha valido o
desterro aplicado pelo Santo Ofício —, que veio a tomar-se a alma
educativa da instituição e um homem chave para o Intendente. No
Castelo começou a ensinar-se Matemática, Óptica, Química, Artilharia e
Fortificação, Astronomia, Inglês, Francês, Latim, Alemão, Contabilidade
Comercial, Anatomia, Princípios Cirúrgicos, e Obstetrícia (Silva, 1896:
18). Fora para reconduzir esses desditosos e regenerá-los pelo trabalho,
em ambiente de internamento que embora compulsivo não era de
encarceramento, que a Casa Pia foi idealizada.
166
De«iyott^âo do« « torc ld oj» Bmtm '
L e re n to r .......................................................................Knttr, íizer a limpe» e »5 ramaSj e b r e r .....................Vir f»ra oclaoáifo e recreio . . . . . . . .GyirmaJJto peral do e b it t tro .............................................Almoço dos »Uimnaa . . ............................................Aliiwço dos empregados e recreia A » zIüojbcs . . . .Aulas gerees - . . .Aula <le eyiramtica a uma e h s » .......................................Aob de ueamlio a uma elarse............................................Rccrcto do» »lomoos das aulas e gymn&sitca aoto* de jantarJantar dos alumous....................................................... .....Jawar dos emproados e recréâo dos afmbrwj . . . .A ala* p e r a n .......................................................................Aula do pvmuastkaa uma cJasso . . . . , . .Aula de (fesenlu a uma cbsse ......................Merenda dos alamnos das aulas g o n u u ............................Kccreto â excepção da aab <U #ym uasüc»......................Merenda aos aluuuos do deseobo................................... .Gymnastiea geral . . . . . . . . . . . . . .ftieráo g e ra í........................................................Estudo peral ............................................................Ceia dos a lu m u o s ....................................................... .....CVia dos emprrçados e rffrtío geral dos aJamoos , . Ir para o» eútíegios, rezar t d e i t t r .................................
5 i / i ' n f/*-6 6-éi/2 ‘
e i/i-7 t/í 7 1/4-7 3/i7 3/4-« i / i8 1/2-11 i/i
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H 1/2-12 12-12 3/4
i ' i 3/4-1 1/2 i 1/2-4 i / i
3-6 3 1/2-8 1/2
4 1/2-5 5 -5 3/4
5 1/2 -53/45 3/4-6 1/46 1/4-6 l/ í 6 1/2-7 1/2
7 1 /2 -8 8-8 1/2 • • 8 1 /2 -9
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O D trecter
Figura 6 — A ocupação total do tempo de um dia
lectivo.
Fonte: Portarias da Administração, CPL (1869).
A polivalência da CPL inaugural, que seguramente incluía técnicas
correccionais que mais tarde se vão especializar em Mettray, vai esbater-se
na segunda metade do século XIX, assumindo-se então como vocação
principal — ou orientação estratégica — o cuidado de órfãos. Mas as
necessidades regimentais que se manifestavam nessa época não
retrocederam para a ideia inaugural do Intendente, uma vez que Mettray
167
já funcionava e se tinha im posto com o m odelo . É im portante rem eterm o-
nos para o que escreveu sobre este assunto o hom em que deu um
segundo fô lego à CPL — e que praticam ente in iciou um a d irecção
dinástica —, Jo sé M aria E ugênio de A lm eida:
“Fora muito melhor ainda que se fundassem entre nós colónias penitenciárias semelhantes, por exemplo, à que há dois anos, tive ocasião de examinar em Mettray (França), obra do célebre e virtuoso Demetz. Esses rapazes incorrigíveis para
. ali são mandados, por um certo tempo, e sujeitos a um regime austero, que reprime o espírito de insubordinação e as tendências funesta que manifestam. Isolados da sociedade, separados por classes, fora de todas as distracções, sem contacto uns com os outros, ocupados sempre, tomam-se acessíveis às boas influências, e muitos deles voltam à sociedade corrigidos e regenerados. São inumeráveis as curas morais operadas nessas colónias penitenciárias.
Nessas mesmas colónias, ou em outras de um regime análogo, fazem entrar, para ali receber uma purificação moral, os rapazes vagabundos, que aparecem sempre no meio das grandes cidades, e que não podem ser retirados logo das ruas para os colégios de educação como este é, sem vir corrompê- los com a sua dissolução e com os seus vícios.
168
Já ouvi num lugar onde menos esperava,' censurar a administração da Casa Pia, porque, em vez de praticar esses actos dè disciplina de que acima fiz menção, muitó ‘incompletos sem dúvida, mas únicos que se podem praticar e alem disso manifestamente legais, não tinha estabelecido na cerca da Casa Pia uma colónia penitenciária. Sem falar da- • impropriedade insanável, que a todos os respeitos oferece para aquele fim o local que se apontou; sem falar das muitas despesas que a fundação dele exige, e para- as quais faltam os recursos, do muito tempo que é preciso para o formar, sem falar da falta que há entre nós de homens, de um homem sequer, para dirigir esse estabelecimento novo; sem falar das muitas despesas que a fundação dele éxige, e para as quais faltam os recursos, do muito tempo que é preciso para o formar, da pretensão quimérica de expor, nesse longo intervalo, uma tão populosa casa de educação a v iver' no abandono moral sem temor das correcções, uma razão só explica por que a Casa Pia não fez nem fará, na cerca ou noutra parte, a colónia penitenciária que se lhe recomendou. É porque falta uma lei que permita que essa colónia uma vez criada não se tome um objecto de brinco ou irrisão. Quando o provedor da Casa Pia, depois de ter fundado com muitas fadigas e despesas uma colónia penitenciária, mandasse para ela, a fim de lá estarem por tempo indeterminado, os órfãos para os quais ela se havia feito, no dia seguinte as mães ou'as famílias deles podiam bater à porta, e exigir que lhes entregassem os seus filhos. E não havia direito de lhos recusar, porque, enquanto não houver lei que autorize essa retenção, tal acto seria uma sequestração arbitrária e um atentado contra os direitos da família” (Almeida, 1862: 28-29).
Essa lei chegaria uma década depois, libertando a CPL para a
assumpçào da sua valência de orfanato e amparo, afastando-se das
técnicas e intenções que certamente presidiram à fundação da Casa no
Castelo mas nunca abandonando o rigor disciplinar que, apesar de não
incluir a clausura, não dispensava as atribuições e severidade próprias do
internato.
Todo um conjunto de indícios faz crer que as reformas
Pombalinas pretenderiam incluir a CPL num projecto político orientado,
169
onde se considerasse o éncarceramento não só como dispositivo penal,
mas incluísse também intenções educativas e de recuperação social por
uma via disciplinar não exclusivamente punitiva, o que certamente
justificará um aprofundamento da investigação destes aspectos
fundadores. A CPL simplesmente não era uma instituição especializada
como viria a ser Mettray, mas algumas das tecnologias que se
generalizaram no século seguinte estavam já precocemente embrionárias
na Casa Pia do Castelo. Já dispunha de uma segmentação selectiva e
especializada da sua população, bem como de instalações especificamente
construídas para cada uma delas — a Casa da Força, a Casa de Correcção
para homens, albergando indivíduos que voluntária ou coercivamente
trabalhavam nas oficinas de tecelagem das instalações e havia ainda
colégios e assistência para órfãos. Para a Casa da Força, a secção
correccional, eram enviados os indivíduos de ambos os sexos que
estavam sujeitos ao trabalho e a medidas disciplinares severas devido aós
seus delitos. No seu conjunto, as váriás secções da Casa Pia e da Casa da
Força tinha previsto o albergue de 2.500 pessoas, mas as instalações
nunca chegaram a ser construídas e a população nunca ultrapassou, à
época, de umas escassas centenas. Acresce que a CPL proporcionava a
vertente educativa e o desejo de inserção social através do aprendizado
profissional, do ensino das primeiras letras ou do patronato de estudantes
que se notabilizavam em diversas áreas, como relata César da Silva,
chegando a regressar a Lisboa estudantes vindos de Roma, fugidos dos
exércitos napoleónico que acabaram por chegar também ao Castelo de S.
Jorge.
Um século depois do relatório de José Maria Eugênio dé Almeida,
nos anos de 1960, à semelhança de inúmeras instituições congéneres,
170
também a CPL protagoniza uma imensa reforma que a conduz a um
expansionismo aberto a formas diferenciadas de auxílio a populações
escolares muito diversificadas e cada vez mais numerosas.
. A ordem disciplinar casapiana e o normativismo
Como que metaforicamente, a Casa Pia no seu início sempre
ocupou instalações militares ou religiosas: entre 3 de Julho de 1780 e 29
de Novembro ,1807 - o Castelo de S. Jorge; entre 1807 e 1811 - não
funcionou; entre 11 de Agosto de 1811 e 24 de Julho de 1833 - Convento
do Desterro e entre 28 de Dezembro de 1833 e Outubro de 1859 -
Convento dos Jerónimos.
A CPL foi sempre uma instituição disciplinar de controlo social,
desde a sua abertura. O leque populacional nesse final de século XVTII em
que foi fundada e as diferentes modalidades em que eram ocupados os
internos, exigiram desde sempre uma rigorosa disposição disciplinar e um
exercício de controlo e logística complicado, o que requeria um sólido
economato de govemo. Quanto às práticas regimentais, elas iniciaram-se
por uma disciplina industrial organizada em tomo do trabalho ,e foram
evoluindo durante o século seguinte para a militarização das suas técnicas
de regulação dos sujeitos, adoptando o uso de uniformes e os alunos em
“Companhias”. A um exercido rigoroso deveria, corresponder uma
disdplina férrea e uma racionalidade gerendal que pudesse governar um
sistema a diversos nívds complexo, mesmo dispondo de recursos
económicos abundantes (Silva, 1896).
171
O- normativo disciplinar escrito era o meio de estabelecer uma
ordem de relacionamento interno, embora haja desde sempre neste tipo
de instituições fechadas, uma ordem informal, não escrita mas também
disciplinar e estritamente rigorosa, que reja a conduta dos sujeitos entre si
sem a intermediação institucional. Na CPL tudo se registava e
descriminava, numa operação contabilística que foi sempre crescendo em
volume, em pormenor e, sobretudo, na capacidade de cálculo, tendo
muito provavelmente essas tecnologias sido apropriadas dos
conhecimentos da logística e intendência militar, dada a influência
castrense na governação da Casa. Desde 1780, começou-se a inscrever
sumariamente os entrados, más ainda com poucos indicadores: o nome, a
idade, a naturalidade, o lugar e a data de baptismo e um ou outro dado
considerado relevante, por vezes a causa da sua permanência lá. Com a
sua saída, anotava-se na margem do livro a data, o despacho que o tinha
libertado e ocasionalmente o seu destino.
Çerca de cem anos depois, a especialização contabilística tinha-se
desenvolvido e ocupava-se agora dos corpos dos alunos, da sua medição,
ponderação e caracterização, da normalização da sua higiene, do
nutriáonismo, da lavandaria, do cálculo das despesas correntes e
extraordinárias, da gestão de um imenso património, das relações com o
patronato externo, das despesas com o pessoal e com os fornecedores,
dos resultados académicos, da tipologia das doenças, do gado, da
agricultura, da militarização e de todas as outras actividades
indispensáveis à economia de instituições congéneres.
O regulamento disciplinar dos órfãos da Casa Pia — de 1850 e que
ainda vigorou bastantes anos — era lido obrigatoriamente aos sábados em
todos os colégios, testemunhando bem da centralidade da norma no
172
governo da instituição. A contabilidade disciplinar- casapiana dessa época
fez um grande esforço na diminuição dos castigos e -na regressão mais
rápida dos físicos que dos morais, uma vez que em 1867 o total de castigos
registados pela administração ascendia aos 7520 (fig. 4), fazendo supor uma
cadeia administrativa de gestão das aplicações e registos disciplinares.
8000
7000
6000
5000
4000
3000
2000
10000
I
* ,* > * > '»■ ; ■ « v » ; • >j % j f r- k? f C l ’ .V > a * ; .
&
I S » !KSS*1867 1868 1869 1870 1871 1872 1873 (...) 1878 1879 1880
□ Castigos morais □ Castigos físicos
Figura 7 — Evolução dos castigos físicos e morais na
CPL.
Fonte: CPL. Relatório da administração (1881).
Fica por contabilizar o que não era contabilizável, ou seja, os
castigos extrajudiciais aplicados inter-pares e que sempre constituíram uma
regulação hierarquizada no interior daquele tipo de populações a viverem
sob o mesmo tecto para além, claro, dos castigos informalmente aplicados
por funcionários ou professores e que não seriam registados. Muitas dessas
regulações disciplinares aplicadas aos alunos por outros alunos tinham o
beneplácito do corpo institucional, que via assim aliviada uma tarefa
173
sempre, desagradável de exercer, reforçando por interpostos agentes uma
regulação moral interna dos diferentes grupos, justificada por códigos de
honra consentidos pela instituição, não lhe convindo levar essas situações
para o terreno pedagógico, ou seja, tomar para si a responsabilidade de
institucionalizar e gerir algo que era auto-regulável, alijando o dever de
cuidar das eventuais vítimas de abusos internos não abrangidos por
normativos.
A autoridade pela norma e o recurso a processos hoje conhecidos
como burocráticos conduziam a CPL nos seus mais pequenos detalhes.
Na colecção de Portarias da Administração da P ea i Casa Pia de U sboa
publicadas pelo provedor José Mana Eugênio de Almeida (1862) podem-
se encontrar exemplos de como a norma devia pautar os mais pequenos
gestos de alunos, professores e funcionários, chegando a encontrar-se
uma portaria ordenando que “o vaqueiro chame as vacas pelo seu nome”,
evocando o respeito pelos animais. Tudo era anotado e regulado pelas
omnipotentes fórmulas das portarias da direcção, um procedimento dos
tempos de Pina Manique:
“Os regentes mandarão lavar os pés aos alunos uma vez em cada semana, e sendo de verão duas vezes (art.° 16.°, p. 209);
Nos dias em que • deva haver passeio se distribuirão os bonets aos alunos e debaixo de forma sairão do estabelecimento”(art.° 11.°, p. 208).
Com a crescente especialização disciplinar chegou-se à
individualização dos internos e à sua inserção numa contabilidade
composta pela discursividade do higienismo. O corpo orgânico do sujeito
tinha deixado de ser unicamente um alvo de submissão física, tomando-se
174
merecedor de um trato que, enquanto elemento socialmente produtivo, o
optimizasse nas suas aptidões físicas:-
Figura 8 - A celebração colectiva da refeição.
Fonte: Boletim de Assistência, n.° 1 (1931).
Alguns elementos dos batalhões escolares da CPL, como as chefias
e alguns subordinados que fariam maiores esforços, como os corneteiros,
quando autorizados tinham direito a ração reforçada. A nutrição tomara-se
um princípio essencial para a formulação do cálculo logístico, mas também
para a autenticação dos princípios científicos do higienismo e da biologia,
constituindo um dispositivo disciplinar com uma valia da qual as
instituições se sentiam bem conscientes. As refeições possuíam um valor
simultaneamente funcional e simbólico na ordem disciplinar casapiana —
como em todas as instituições congéneres devido à situação de sequestro
em que se encontravam os alunos e ao palco que o refeitório constituía ao175
reunir todo o público interno da instituição num local e num momento,
assistindo às punições que procuravam dissuadir o cometimento de
desvios, lembrando, neste último aspecto, a exposição pública dos
supliciados e o vexame.
Pela capacidade de ilustrar de forma tão clara o regime disciplinar
do meio século XIX na CPL e que, certamente, não seria muito diferente
em outras instituições, merecem uma atenção especial alguns articulados do
“Regulamento para os castigos dos alunos, mandado observar pela
comissão administrativa da Casa Pia em sessão de 20 de Março de 1850”:
“Art.° 1 — Os alunos que nos respectivos colégios cometerem faltas leves serão punidos, pela primeira vez, com o castigo de estarem de joelhos por um quarto de hora no mesmo lugar onde tiverem cometido a falta, péla segunda vez de joelhos por meia hora e pela terceira vez uma hora.
Art.° 2 — Os alunos que, por negligência, forem pouco asseados no seu vestuário, serão punidos, pela primeira vez com quatro palmatoadas, pela segunda vez com seis, e além deste castigo trarão, por espaço de seis dias, no braço esquerdo, uma tira de pano branco com a palavra «Desleixado».
Art.° 3 — Os órfãos que, sem motivo justificado, faltarem a qualquer toque de chamada para reunião, pela primeira vez assistirão de pé sobre um banco ao jantar, pela segunda vez levarão seis palmatoadas quando estiverem para entrar para o refeitório. § Único — Se a falta for cometida à hora da reza, os que faltarem serão obrigados a rezar de joelhos, no seu respectivo lugar, durante meia hora.
176
Art.° 4 T- Gs alunos que forem encontrados, - sem motivo • justificado fora do lugar que lhes estiver destinado, serão punidos pela primeira vez estando de joelhos no púlpito assistindo ao jantar, pela segunda vez o mesmo castigo, mas lendo em voz alta um livro. Se porém não souber ler, o castigo será repetido durante dois dias.
Art.° 11 — Os órfãos que forem encontrados a jogar às cartas, ou qualquer outro jogo proibido serão, pela primeira vez punidos com doze palmatoadas, que lhes serão dadas na frente de todos os órfãos formados em quadrado, depois assistirão ao jantar, onde estarão de joelhos com as cartas ao pescoço.
Art.° 12 — Os alunos que proferirem palavras desonestas, serão punidos com oito palmatoadas e assistirão de joelhos ao almoço, jantar e ceia.
Art.° 16 - Os alunos que tiverem desordens ou desavenças entre si, serão castigados, pela primeira vez assistindo ao almoço e jantar de joelhos e com as mãos presas; pela segunda vez com o mesmo castigo e oito palmatoadas.
Art.° 19 — Os alunos que desertarem do estabelecimento ou da casa dos mestres onde se encontrem a aprender ofícios, quando forem de novo conduzidos ao estabelecimento,-serão punidos pela primeira vez com dez palmatoadas em cada um dos três dias sucessivos à apresentação; pela segunda vez com o mesmo castigo e nesses dias serão sustentados somente a pão e água.”
A dependência fisiológica da alimentação da criança em. relação à
instituição era constantemente exposta, evidenciando o tipo de submissão
que era exigida aos alunos. Um deles tinha caído de uma escada, ferindo-se,
sendo necessário tomar medidas para impedir a recorrência desse
acontecimento perturbador:
177
“Art.° 7 — Para evitar a repetição de quedas, todos os alunos que forem encontrados debruçando-se sobre os corrimões das escadas, serão punidos, pela ' primeira vez com oito palmatoadas e um dia de serviço extraordinário no refeitório ou colégio, pela segunda vez com o mesmo castigo, assistindo além disso de joelhos ao almoço, jantar e ceia no refeitório.”
Os castigos, embora de uma proporcionalidade discutível, eram
graduados e progressivos sendo administrados imediatamente após as
averiguações, que. deveriam ser brevíssimas. . Eram técnicas físicas de
recurso à dor, à humilhação, ao espectáculo colectivo do exemplo
individual, estabelecendo uma ligação ao espiritual pela genuflexão e pelas
rezas, o que lhes acrescentava um simbolismo penitencial. Esse tipo de
situações,’ embora com menos aspereza, mantêm-se até muito tarde e,
claro, eram momentos que os supliciados também podiam capitalizar pela
oportunidade que tinham de demonstrarem a sua coragem física, pela perca
do medo ao castigo1, servindo também para reajustar as lideranças que
disputavam entre si. Os castigos não só eram hierarquizados segundo a
gravidade e recorrência da falta como, eles próprios, eram hierarquizadores,
na medida em que eram aplicações que orientavam e ordenavam relações
de poder dentro das comunidades onde existiam.
Á este propósito, é oportuno fazer um salto temporal até à primeira
década da República para ouvirmos Aurélio da Cósta Ferreira, um espírito
científico com uma curiosidade inesgotável, que tanto estudava à socapa as
ossadas de D. Catarina de Bragança no Mosteiro dos Jerónimos como as
patologias das crianças, chegando mesmo a gabar-se de diagnosticar o
carácter dos alunos pelo aperto de mão. Com essa agudeza dedicou-se
1 Cfr. Ferreira, António Gomes (2000: 319). Gerar Criar E ducar—A Criança no Portugal do Antigo Regime. Teses, vol. 7. Coimbra: Quarteto.
178
pessoalmente ao estudo da linguagem usada pelos alunos mais antigos da
instituição, o calão utilizado.na Casa em meados do século XIX, que ele se
propôs registar. Foi assim que se referiu aos témpos da aplicação do
regulamento de 1850:
“Há vocábulos e expressões que merecem atenção especial. A expressão andar ou marchar à forte, que se emprega quando alguém anda de cabeça levantada e bamboleando-se, vem do tempo em que todos os dias, a hora certa, em regra antes das refeições, formavam os colégios todos para assistirem à aplicação; dos castigos corporais, na presença do Director ou seu representante, hora em que o prefeito geral ia chamando os alunos condenados para lhes aplicar as palmatoadas que a- autoridade superior prescrevia. Os fortes estendiam alternativamente e à altura do ombro, ora uma ora a outra mão e depois iam para o seu lugar com os olhos enxutos, de cabeça erguida e bamboleando-se, caminhando à fo r t t ’ (Ferreira, 1914:327).
Em 1895 é publicado o Regulamento da Ginástica onde se tabelam
e graduam todos os exercícios que deviam preencher os currículos das
diferentes classes, conferindo mais eficiência disciplinar às técnicas de
distribuição pela conjugação da instrução militar com a ginástica. Não só se
geria através delas a organização regimental da Casa, como se organizava
melhor os actos individuais dos alunos e se dispunha melhor do colectivo.
“Compete aos alunos graduados das respectivas .companhias, conduzir os mesmos dos claustros para as camaratas e daí para
('i todos os pontos que se destinem, com excepção das aulas, .dando-lhes as vozes que forem convenientes, em harmonia . com a ordenança e ficando responsávéis pelos erros que cometerem (art.® 41°).
179
Para lavagens na casa de banho, banhos no mar ou corte de cabelos, o aluno graduado que conduzir os outros, chegando ao • ponto a que se destina, mandará sair da forma todos os graduados oficiais e, depois da voz à vontade, entregará o grupo que conduzir ao empregado encarregado do serviço, de quem depois os receberá mandando entrar em forma e seguir todos os demais movimentos da ordenança para se pôr em marcha (art. 42° § único).
É da exclusiva competência do comando geral a distribuição . pelas companhias, não só do pessoa e alunos graduados, como ainda dos simples alunos que devam constituir os efectivos. §Único. Sempre que seja necessário transferir alunos de uma para outra companhia, essa transferência será indicada na ordem dos batalhões escolaref* (CPL - Regulamento para o ensino de Ginástica pura e aplicada, 1895: art.° 46°).
Uma racionalidade sobre a organização e comando dos alunos,
seguindo um figurino militar, continuou a desenvolver-se depois da
viragem do século e de duas guerras mundiais, acolhendo o Estado Novo
de bom grado esses regimes disciplinares e a intensa regulação normativa
interna que também abarcava a vigilância moral, num ambiente de domínio
fácil e redutor dos problemas às disposições escritas. Em 22 de Julho de
1945, o Provedor manda publicar uma Ordem regulamentando toda a
organização è funcionamento dos acampamentos de férias em 75 artigos
onde, mesmo havendo um Director e um comandante nomeados para o
acampamento, todas as actividades e ocupação de tempo estavam previstas
pela provedoria, não deixando espaços para improvisos ou desvios morais
ou doutrinários. Antes do recolher, entre as 20: 30 e as 21: 30, o serão era
ocupado da seguinte forma:
180
“17 — À noite reunir-se-rão todos os alunos e terá lugar-a «Chama da Mocidade». Deverá executar-se um programa que abranja canções, • música,. recitações, anedotas ou quaisquer outras distracções, além das observações que o Director e o comandante do acampamento julguem oportunas.
Impnmir-se-á a esta reunião um ambiente alegre, sem esquecer que ela tem por fim criar uma oportunidade, para num meio são, se lhes elevar o espírito dos alunos. Por consequência, não deverá dar-se-lhe um aspecto de diversão tão acentuado que deixe de ser possível tratar com gravidade qualquer assunto de carácter moral ou disciplinar. O Director deverá proceder a uma censura dos vános números apresentados pelos alunos de modo a evitar qualquer canção, redtativo ou anedota com aspectos menos educativos.
A «Chama da Mocidade» terminará com os Hinos da Mocidade Portuguesa e o arrear da Bandeira. Seguir-se-ão as orações da noite.” (Instruções sobre a organização dos Serviços dos Acampamentos de Férias, 1945).
Os trabalhos para as férias também não estava esquecidos, servindo
como elemento de propaganda cívica pela ligação às comunidades onde
estivessem acampados:
“42 — Realizar-se-ão nos acampamentos trabalhos de utilidade pública, como construção e reparação de caminhos, construção e reparação de muros e vedações, cruzeiros, etc., devendo cada acampamento ao levantar deixar nos trabalhos realizados uma inscrição onde fique assinalado o trabalho dos alunos da Casa Pia” (Instruções sobre a organização dos Serviços dos Acampamentos de Férias, 1945)..
Apesar de os castigos corporais terem sido formalmente abolidos
e de se ter proibido o uso da palmatória desde 1889, a sua prática
continuou de forma corrente:
181
<<Lembrome que no dia 30 de Abril de 1926, dia em que completei 12 anos, fui chamado a Aritmética. Falhei e apanhei meia dúzia de reguadas, bela prenda!...” (Poiares, 1994: 20).
As normas procuravam abarcar o maior número. de situações
possíveis, ora através de uma grande abrangência ou de uma especificidade
minudosa que queria regularizar o estar dos alunos nos seus mais pequenos
gestos. A evolução da regulação pela regra para o normativo ocorreu na
CPL durante a segunda metade do século XIX, na sequênaa das reformas
iniciadas por José Maria Eugênio de Almeida. Foi durante esse período que
a norma se toma uma particularização da regra, produzindo-se de uma
maneira própria e segundo um prinapio de valorização. A norma, afere-se
pela regra, mas já não se reporta a uma ideia de rectidão mas a uma média
que distingue o normal do anormal. Foucault (1987: 173) via nesta
transição da regra para a norma uma alteração ria natureza da disaplina, a
que chamava uma “inversão fundonal das disdplinas”, já que deixavam de
servir exdusivamente como coerção e bloqudo de acções não autorizadas,
para se tomarem estimulantes e orientadoras dos actos no sentido da
obtenção de maiores benefíaos.
“A norma é predsamente aquilo pelo qual e mediante o qual a sodedade comunica consigo própria a partir do momento em
• que se toma disdplinar. A norma articula as instituições disciplinares de produção, de saber, de riqueza, de finança, toma-as intmüsdplinares, homogeneíza o espaço social, se é que não o unifica” (Ewald, 2000: 83).
182
Uma lição de ginastica
Oatra lição de ginastica
Figura 9 — A ginástica, o corpus e a formação militar. Fonte: Boletim de Assistência, n.° 1, Outubro de 1931.
183
P A R T E I I I
EDUCAÇÃO CORRECCIONAL E MODERNIDADE
Art° 29.° — Nào darão mostras de amizades particulares aos companheiros, separando-se para falar a sós e em segredo, escrevendo bilhetes entre si, ou buscando
com preferência os mesmos companheiros. Regulamento do Colégio dos alunos do Maria S.S. Imaculada (1875)
0 racfbor <fc níraSe tu quisesses que as pessoas desejassem ser tuas amigas, o que dirias para
realçar as tuas qualidades? O que dirias para as convencer de que seria estupendo para elas conhecerem-te
e terem a tua amizade? Quais são as tuas características mais positivas?
‘E nsinara estudar - A prender a estudar”, Porto Editora (2000: 28)
185
U m a le it u r a de m odernidade no cam po reeducativo
A conexão entre a condição modema e as instituições de correcção
social aqui apresentada justifica-se pelo surgimento de teorias críticas que
apontam para um despertar de liberdade mas também de submissão
institucional, no período moderno. Segundo Peter Wagner (1994), ao
quadro de libertação e estímulo do individualismo proporcionado pelas
garantias das instituições modernas opôs-se, precisamente através das
mesmas instituições, um quadro de submissão. Isto é, o desenvolvimento
de novas racionalidades e aplicações institucionais libertadoras enunciava
simultaneamente a existência de novas aplicações constrangedoras. Se o
discurso optimista e libertador das instituições modernas tem sido
predominante durante mais de duzentos anos, o que parece legítimo, isso
legitima também que se lhe possa contrastar um discurso dos efeitos da
submissão que foi necessária, e exigida, pelos regimes decorrentes dessas
mesmas instituições. Wagner (1994), avança mesmo que a primeira
justificação para a atitude crítica do discurso da submissão é o facto de as
liberdades nunca terem ocorrido da forma como as ideias liberais as
haviam concebido.
Como já vimos atrás, a ambiguidade a que se presta a temática da
modernidade, importa clarificar como se podem identificar alterações
regimentais tomadas como manifestações simbólicas do pensamento
moderno. Em primeiro lugar, é preciso estar consciente de que, nunca
estando a instituição estática, embora por vezes pareça cristalizada, a erosão
temporal e a invisibilidade que se vai apoderando dos gestos mais187
quotidianos acentuam o exercício de um poder constante de que nos fala
Foucault, produzindo efeitos que, por sua vez, conduzem a outras acções,
num “perpetuai motion” como Bemadette Baker (2001) descreve a
natureza desse poder. Nesta linha de pensamento que atribui uma natureza
constante e fluida aos efeitos de poder, este, não se exerce directa e
impositivamente entre sujeitos, mas através do exercício de “acções sobre
acções de outros”, num jogo estratégico aberto de possibilidades éticas e
práticas. Essa necessidade de o poder agir sobre as acções dos outros,
implica que os outros tenham sempre uma margem para algum tipo de
acção (Gordon, 1991: 5), tomando possíveis contínuas trocas de poder em
que se desenvolve sempre um efeito de corrosão, mesmo que as práticas
permaneçam inalteradas.
Em segundo lugar, o arco temporal necessário ao surgimento de
determinadas práticas não é coincidente com a emergência textual referente
a essas práticas. Por vezes, determinadas concepções pedagógicas
antecediam em séculos o vislumbre do seu uso efectivo. Outras vezes, as
mesmíssimas aplicações eram apropriadas por diferentes discursos que se
sucediam em busca de novas verdades. Como tal, o surgimento de
discursos que procuraram induzir rupturas e as práticas que neles se
sustentaram não são elementos síncronos mas diacrónicos. Michel
Foucault (1997: 40) alerta ainda para que a análise do atributo de
“exterioridade” do discurso deva ser feita partindo das suas regularidades e
recorrências até às “condições externas de possibilidade” de ocorrências
aleatórias mas de fronteiras demarcadas.
Por conseguinte, pelo desfasamento temporal entre práticas e
discursos, como observa Wagner (1994: 29), “entre as ideias e as
instituições da modernidade, existe afinidade, mas não identidade”. Por
188
fim, o padrão usado na procura de viragens regimentais ou textuais não se
fundamenta somente nas alterações normativas, o que não .faria .sentido,
mas numa leitura do arquivo que atribui provavelmente tanta importância a
um decreto como a um acontecimento obscuro.
Veja-se, num pequeno parêntesis, . como uma ilustração de
“acontecimento obscuro” e de “margem de acção” necessária para que o
jogo de poder se efective, o desfecho do caso de uma menor que, ao atingir
a maioridade num reformatório, vê a liberdade ser-lhe negada por um
parecer técnico que a remetia para uma colónia correcdonal, decidindo
então ingerir mercurocromo numa tentativa de suicídio. O Conselho
Técnico vai visitá-la ao hospital e estabelece um pacto com a menor: a
liberdade será concedida contra uma promessa escrita afirmando a “boa
resolução de bom comportamento futuro” (ATIL, 1924-9, proc.° n.° 180).
Ocorrem as palavras que encerram o livro de Colin Heywood (2001: 171),
A H istory o f Childhood - Children and Childhood in tbe West jrorn M edieval to
Modem Tvner. ‘Terhaps one should never underestimate the power of a
child”.
Prosseguindo, Phillipe Ariès foi talvez quem primeiro articulou a hierarquia
e a disciplina com o processo educativo, além de ter sido ele quem
primeiro assinalou a sua implantação como um momento de.ruptura aquele
em que “o estabelecimento definitivo de uma regra disciplinar consegue a
evolução que conduz a escola medieval ao colégio modemo, instituição
não somente de ensino, mas de vigilância e enquadramento da juventude”
(Ariès, 1973: 185). A partir daí marca os progressos das práticas de
disdplina, desde a hierarquia, a delação e a punição até ao abandono dos
castigos e do estabelecimento de uma ordenação de tipo militar.
Considerações para provar qne a riç io diaría dada aos orphSos da Casa Pia è mais qao soQ3cieD(e
Para a eon&crvaçío da vida no nsindo imrmal, atlentas as perdas oecasionadas pela rcspirnçfli» «•. cxcrcçóüs, d necessário fornecer ao organismo sultsljinrin* que «m lm iliniu proximamente 310 grauiinas de earbonio c SO de awiUs.
ft esta á iiuHLia achada pelo disliiiclo chimico Pavon para os adultos.
lícUieby preeisn m ais a «jnctilflo, o nprosetiia a seguinte labella para regular a alimoulaçâo ti cxla idade, cunformd o grau do traba- ÍIk).
Axata C a to o »
Trabalho a c t i v o ................................. 53 ,9 ' 378,5Trabalho usual...................................... 50.7 373,0Sem t r a b a lh o ................................... 15,t 219.7
As quantidades de azolo e earbonio, indispensáveis para a s repa-raçOcs das perdas oceasionadas un organismo, variara portim rom as idades e cstSo mais ou raeucu cui Ivu-monia cora o peso do indivíduo.
Apresenta-nos Sinilli o seguinin quadro regulador:Puerícia (<l«rx m m os): nçso nirdio — Precisa azole, por k i-
logram ura do i* .«) vivo, 0*A 9 ; carimnio, 7s,2.Pubcrdndo (dnrcscis aonns): irrao médio 43l .62 .— Precisa azote,
por kilogramma de peso vivo, (fcylG; earboni», 5a,0.Portanto, para av an ças «mire riex e dezoilo nnnos, servitido-iios
da percentagom maiur, ad iflm «« «pio a nlimetitacSo devo conter azotç c carlronio uas seguintes propnrç«»*: azole, 15,20; carlmnio, 518.10.
Uma cotnmissáo c-|>ecial, t(iiii|Hista do mediros dístindos (cm França), Bérard, GilcUc, l-uvram l o Alibert, fumlailus nas observaçOes foilas nos melhoics hospitaes. prescreveram, como mgra a seguir, que a carne para alimentação do nrvauças entro quinze o dezuito nnuoa, fosse de 280 çrwniuns, crua ou raizida, o snm oaao 140; do doze a
Suínze annos, 540 graniuias, cm 151) sem n sso ; o pura as do novo a ozo annos 200 gramtnas crua, uu 100 cozida n sem osso.Façamos aptdieaçio aos orpltaos «la Gasn Pia, ap rcsa itam b a re-
íe iç io do ura dia nas poiores comlipJes.
A lm oço
CJri cora leito e pâo sccco. Asola1 gramroa de ehá da lu d ia . . . 0,01
■ Leite; O1, ! ou 103*.2 . . . . . 0,08P io, 500 g r a m m a s ......................... 3,00Assúcar, 10 g ram m as....................
4,50
Figura 10 — A dieta científica casapiana. Fonte CPL — Relatório da administração (1881).
Uutn»0,108,25
76,005,12
89,47
190
*53..
Note-se que os aluirmos uiaiores (teui 26o gramraas de ração do pão.
Jan ta r
Carne cozida, sopa.de pão, pão, JVucta, vinho. Carne de vaccu 160 granimos, descontando '/i de osso íkam 128 granuuaa.
A to le Caxboulo
Cnrne, 128 grammas................ a.84 14,08Pão, 151 grammas..........................2,70 57JIO\iüho, 0',05 ou 5 grarnmas . . - 0,20Toucinho, 5 grammas................... 0,05 3,551 la ran ja ........................................ - ^
6,50 75,13
Bolacha d merenda, 50 grammas 1,10 15,50
Ceia
Carne guisaria com balatas, pão. Carue de vacca 130 granunos, ou sem osso 104 granunas.
A to ie Cartwnio
Caroo. ....................................... 3,12 11,44 .Batatas, 60 grarnmas................... 0,19 6,00Pão, 100 granunas....................... 1,80 38,00Toucinho, 5 gramraas................... 0,05 • 3,55
5,10 59,50
Total, 17,13 de azo te; 239.69 de carbonio. Total da carne ci-ua 290 graminas; sem osso, 232 grarnmas.
Os physiolo^istas estabelecem que a carne deve entrar no sustento na rasSo dc 2j por cento do peso lotai da comida. O peso total da comida que figura no nosso exemplo è de ()k,890,2 ; 25 por cento 222 graminas, c nós damos 232 gramraas; logo a nossa ração de carue d avantajada.
Begulando-nos pelo hygiunisla Smilh, o nual exige para a epochn da puberdade elementos nutritivos, que contenham em si equivalentes de azote 15,26 c 218,10 de carhouio, vemos qua u ração adoptada na Casa Pia,'no easo mais desfavoravél de alimentação, satisfaz plenamente, por isso que os seus equivalentes perfazem 17,13 de azoto e í39,G9 de carbonio.- -
Comparaudo com as indicações da commissSo francesa, chegãmnx ao segninlé resultado:
Temos na actualidade 274 orphãos de seis a doze annos, 54 d» di»e a quinze, e 6 de quinze a dezoito annos; ao lodo 334.
Sfio as quantidades estabelecidas pela commissão franeeza. como dissemos, dc 200 graramas para os primeiros, 240 para os segundos e 820 grainmas para os terceiros..
Da escola medieval que homogeneizava a criança e o adulto passou-
se ao colégio que estabeleceu um princípio de modernidade regimental de
governação hierarquizada, embora pedagogicamente ainda aglutinasse
crianças e adolescentes numa mesma massa de escolares. No século xvm ,
o uniforme militar vai ajudar a destrinçar as crianças dos jovens, reforçando
junto destes uma imagem de virilidade que não se associava à meninice:
“Cette notion d’adolescence transformera la pédagogie: les. éducateurs reconnaissent désormais à l’uniforme et a la
discipline militaire une valeur morale. T .’assimilation de l’adolescent et du soldat, à l’école, conduit à accentuer des caractères jusqu’alors négligés, de rudesse, de virilité, désormais recherchés pour eux-mêmes. Un sentiment nouveau est apparu, quoique encore embryonnaire distint de celui de l’enfance: le sentiment de l’adolescence” (Ariès, 1973: 297). '
As ideias científicas positivistas e a ascensão da psicologia como
métodó diagnóstico e prescritivo dotaram essas instituições correctivas
com uma função terapêutica que exigia avaliação científica do estado da
criança, bem como a posterior avaliação do resultado das suas aplicações
educativas. Essa acção continuada de classificar/configurar/devolver, constituiu
uma genuína contabilidade pedagógica, facilitando o estudo e a aferição
permanente de resultados denotando, através dessa conjugação de práticas
e discursos educativos, a‘evolução da condição e responsabilidade social da
criança perante um Estado que pretendia consumar a integração de todos
òs segmentos populacionais da infanda nos seus mecanismos de
governação política.
Embora os regimes de correcção se constituíssem por técnicas e
conceitos disponíveis em cada momento, sendo pois evolutivos e não
disruptivos, pode-se discernir alguns pontos de viragem na formulação
regimental que distinguia essas instituições e, Sobretudo, na evolução dos
192
discursos institucionais sobre “o que é a criança”, subjacentes à sua acção.
Alguns desses “momentos de viragem”, nas formas de govemo da criança
delinquente adquiriram expressão prática através -de instituições pioneiras
numa acção correctiva que traduzisse os enunciados da modernidade, ao
assumirem modalidades inovadoras de terapia e inclusão social que se foram
desenvolvendo por vias progressivamente mais especializadas e liberalistas.:
Partindo de uma metáfora de camadas sedimentares como uma
ideia da progressão da .modernidade, pode-se adoptar o exercício de
aglutinar determinados regimes disciplinares numa temporalidade
fraccionada em fases ou camadas sedimentares, uma vez que cada novo
período de vigência regimental, resultante de novas formações discursivas e
de novos saberes, surgia por ter adquirido o seu espaço de poder
conquistado a uma ordem antecedente. Pode então fazer-se uma tentativa
simplista de operadonalizar temporalmente algumas inovações regimentais
na correcção social de menores, agregando as instituições mais
paradigmáticas dos diferentes modelos disciplinares do seguinte modo: .
I Fase -1780-1870:
Instauração de um regime correcaonal com intenções educativas e
de auxílio público, graças à abertura da Casa Pia de Lisboa. A originalidade
da instituição, a sua abertura à flexibilidade educativa e a experimentalidade
dos seus métodos pedagógicos e de interacção soaal, apontam a CPL
como deasiva. para o inído da modernidade no campo das práticas
disaplinares que ambidonavam corrigir por mdos institudonais as crianças
sodalmente desreguladas. . ..
. II Fase-1870-1911:
Trata-se de um período relativamente curto, para a época em
apreço, mas representativo de uma. grande transição nas prátiças
193
regimentais e no discurso pedagógico, afirmando definitivamente um
pensamento moderno. A legislação que concede a abertura da Casa de
Detenção e ■ Correcção de Lisboa, ao separar definitivamente a
responsabilização penal dos menores da dos adultos, consagra a criança
como uma população autónoma e passível de aplicações de práticas de
govemo especializadas, tal como a expansão da escola de massas fazia
junto de populações de menores socialmente enquadradas pelo govemo da
família. Este período coincide com a acção do P.e António de Oliveira,
figura central nessas reformas políticas que estabeleceram em definitivo as
formulações da modernidade no que respeita à relação com a criança
marginal.
- m Fase-1911-1962:
j Materializa-se o alastramento e consolidação da intervenção do
Estado,, que erige um modelo duradouro segundo a orientação das ideias
republicanas; prevalência crescente dos métodos científicos de avaliar e
medir, introdução da psicologia e das noções terapêuticas; obscurecimento
gradual da evidência dos métodos disciplinares na relação pedagógica.
Elevado número de pequenas reformas mas sem grandes rupturas.
IV Fase-1962: ' >
- Reforma de fundo com a criação dos institutos de reeducação. E
uma décâda em que se inicia o declínio do internamento compulsivo como
dispositivo recomendado. Nikolas Rose (1999: 237), invocando Stan
Cohen (1985), aponta os finais dos anos sessenta como o início do
“desencarceramento”, caracterizando assim uma mudança nas estratégias
de controlo social que se traduziu na prática pela diminuição significativa
das populações em instituições de sequestro e controlo e, por outro lado,
assistiu-se ao incremento dos dispositivos médico-psiquiátricos e dos
194
cuidados comunitários. Não foram • as instituições e os sistemas que
desapareceram, foi o esbatimento das fronteiras entre o “dentro” e o
“fora” dos sistemas de controlo social devido à dispersão de mecanismos,
contribuindo para a invisibilidade dos sistemas • que, ao espalharem-se. e
especializarem-se ainda mais, se dedicaram a infracções da. ordem
normativa cada vez menores (Rose, 1999: 238). :
O presente está-muito -marcado pelas mudanças no paradigma
relacional com a criança, ocorridas numa década que deu início a um
pensamento designado por muitos como “pós-modemo”, período em que
a publicação da Carta dos Direitos da Criança contribuiu para desencadear
consequências fundamentais nos discursos da “pedagogia social” , da
infância, mas essa proximidade do objecto afasta-se do âmbito deste
trabalho, delimitando assim o arco temporal escolhido. Pode-se
acrescentar, no mínimo, que em Portugal, pela natureza do regime da
época e pelo contexto criado pela administração dos territórios coloniais, as
mudanças podem ter chegado mais tarde mas acabaram por se produzir,
pelo menos no que toca às práticas correccionais de menores.
O excurso seguinte, , feito pelas instituições de correcção social, não
pretende ser um inventário dos estabelecimentos de reeducação — que se
foram sempre multiplicando sob diversas e inúmeras formas, embora
mantendo entre si uma uniformidade em tomo das posições discursivas
dos pedagogistas .sociais pretende, sim, traçar um- quadro , breve mas
expressivo dos estabelecimentos onde se inauguraram modalidades
regimentais até aí inéditas, segundo1 o ângulo da emergência de uma
tecnologia educativa e disciplinar específicas, aprofundando mais o olhar
sobre aquelas que talvez tenham originado rupturas mais- significativas e
fomentado uma descendência genealógica das pedagogias correctivas que
195
representaram. Exemplificando, a Colónia Correcdonal de Izêda, aquela
que se tòmou talvez a mais importante entre as suas congéneres, não
inaugurou nenhuma modalidade disciplinar ou educativa inédita, pelo que
não é aqui destacada na proporção do prestígio institucional que adquiriu.
O mesmo se aplica à Colónia Correcdonal de S. Bemardino para o sexo
feminino, uma população que desde 1903 dispunha de instituições que
sobre ela aplicavam espeaalidades correctivas, apesar de o seu Director o
negar expressamente na Monografia que traçou da instituição, quando se
lhe refere como uma “Colónia Correcdonal para o sexo feminino, tipo de
estabdedmento que até então não existia em Portugal” (Sena, 1931: 14) ou
o caso do Instituto Navarro de Paiva, continuador e não fundador da
institudonalização das técnicas empregues no Instituto Aurélio da Costa
Ferreira havia quinze anos.
O período selecaonado [1870-1962], para além da CPL já ter sido
abordada no final da parte anterior, é aquele em que mais se intensificou e
acelerou a produção discursiva pedagógica e a difusão de instituições que
procuraram práticas educativas e regimentais que se pudessem associar a
viragens na evolução da modernidade pedagógica no âmbito correcdonal.
Pára facilitar uma visão macro desse arco temporal tão extenso e
das zonas tecnológicas que o ocuparam, segue-se um quadro sinóptico que
servirá de introdução e referênaa cronológica à parte seguinte, sendo
deliberadamente pouco detalhado, pois a investigação sistemática e
rigorosá dò percurso de todas as instituições que se dedicaram à correcção
sodal dos menores é um empreendimento a que este estudo não procura
dar resposta.
196
D etenção e Correcção
Colónia Penal Agrícola
CorrecçãoFem inina
T ribunais de M enores
M edicinaPedagógica
1871
*
1880
Casa de Detenção e Correcção ■
Colónia Agrícola de Vila Fernando
(Eivas)■
1895 (Mórõcasaté1903) (Inibo de
actividade)
1903 Casa de Detenção e
Correcção de Lisboa
(feminino)1911
1915 Eseob Central de Reforma de
Lisboa
Escohde Reforma de
Lisboa
Tutoria de ln ân cb
Refugio da Tutoria1925
Reform ator» Central de
Lisboa “PadreColónia Agrícola Correcdonal de
Refoccnatódo de Lisboa
Instituto Médico-
. Pedagógico
1927 António de Obvein
V ib Fernando Colónia • Correcbonal de S. Bernardino,
Peniche (feminino)
1962 InstinitDS de Reeducação
Figura 11 — Cronologia da especialização correctiva institucional
197
A S INSTITUIÇÕES MODERNAS (1871-1962)
Embora as questões regimentais sobre a educação da infanria e as
modalidades de governação dos escolares obedeçam a racionalidades e a
tempos próprios, elas não ficaram imunes a uma aceleração reformista que
se notabiliza sobretudo no último quartel do século XIX, começando o
Estado a empenhar-se progressivamente no estabelecimento de instituições
especificamente dedicadas à regularização do comportamento social da infância.
Os territórios tutelares de crianças, fossem eles lares, colégios,
seminários, asilos ou orfanatos, constituíram sempre um campo empírico
rico e inovador, tomando-se por isso atractivos para um grande número de
pedagogos e estudiosos àcntíficos. Essa disponibilidade experimental de
populações em restrição é identificada por Foucault como já estando
presente na concepção panóptica de Bentham, no início do século XIX,
sendo essa disponibilidade essencial para que os seus efeitos práticos
produzissem resultados. O pensamento foucaulriano debruçou-se sobre
aspectos aparentemente funcionais e mecanidstas, mostrando-se
indiferente à natureza cruel de certos procedimentos, mas detendo-se
imenso nas possibilidades de amplificação do poder, contidas nesses
processos. Assim, permite-se inventariar a polivalência das suas aplicações:
199
“Serve para emendar os prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalÍ2ar os operários, fa2ef trabalhar os mendigos e ociosos. E um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder, de definição dos seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões.Cada. vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado; (...) é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura uma economia (em pessoal, em tempo, em material); assegura a sua eficácia pelo seu carácter preventivo, pelo funcionamento contínuo e pelos seus automatismos. E uma maneira de obter poder” (Foucault, 1987: 170).
Trata-se de uma visão tecnológica e experimental, uma maneira
melhor de fazer que pode ser aplicada a vários saberes e de cujas
potencialidades Bentham estava bem consciente, nomeadamente da
aptidão produtiva que tinha “uma casa bem governada”. O que distinguia
este género de poder de um poder de tipo soberano, era o facto de o
incremento na obtenção de resultados vir de dentro, ou seja, provinha da
inerência contida no artefacto em si mesmo, tomando-se assim o poder
mais subtil, mas mais presente pela sua constância, facilitando o exerddo
de uma economia mais produtiva.
Quanto à vigilânda fixa, ao olhar permanente, pode-se considerá-la
como um dispositivo de evolução moral pois dispensava a prática da
delação de que nos fala Ariès (1973): a partir do século XV, quando se
hierarquizaram as rdações dentro dos colégios, estabelecendo uma nova
disaplina de governo da instituição, o director deixou de ser o primeiro
entre os seus pares, para passar a scr o depositário de uma autoridade
superior. A partir desse momento, ainda segundo Ariès, o rigor desse tipo
200
de disdplina pode caracterizar-se pela presença de uma vigilância constante
de origem monástica; pela delação como princípio de govemo institucional;
pela aplicação de punições corporais. A vigilância assegurava a delação, o
que implicava o castigo (Ariès, 1973: .265-297). Enquanto técnica de
informação e regulação disciplinar — “la discipline est fondée sur la
délation”1 - a delação foi usada até muito tarde, sendo inclusivamente um
recurso do ensino mútuo, usando-se ainda hoje de forma remanescente.
Um grupo de alunos
Figura 12 — Asilo Nuno Álvares, fundado cm 1911; • lotação: 600 alunos. '
Fonte: Boletim de Assistência, n.° 1,(1931).
1 C£r. Règlement des Écoles chrétiennes de La Salle, in Ariès, Phillipe (1973: 284). UEnfant et la viefamiliale sous fanden régime. Paris: Editions du Seuil.
201
Foucault considerava o autor do pahóptico e Rousseau como sendo
ambos representativos do Iluminismo, acrescentando com alguma ironia
que, por meios distintos, Bentham complementava Rousseau, pois este,
com a sua nòção de transparência sodal, poderia encontrar através do
inglês a possibilidade de se dispor um olhar omnipresente (Dekker &
Lechner, 1999: 43).
A herança benthamiana deixou raízes nos sistemas educacionais
com recurso ao internamento, cruzando-se aí as situações mais extremadas
e delineando-se com rigor institucional o papel social da infanda perante o
Estado. Se cumpre à Escola desenvolver sujeitos socialmente aceites e
capazes, o desafio que os menores tutelados constituíam oferecia também
uma oportunidade soberana para se desenvolverem metodologias
pedagógicas que, em prindpio, funaonando com populações complicadas
seriam, depois de devidamente adaptadas, instrumentos útds para as
cn an çá s normais numa escolaridade normal A vigilânda era, contudo, uma
técnica rapidamente tomada indispensável mas insufidente do ponto de
vista pedagógico, atraindo o espírito aentífico experimental e o seu lote de
discursos de diferentes disriplinas radonalistas para a procura de outras
soluções complementares.
Muitò da discursividade de índole pedagógica alimentava-se da
apropriação de práticas empíricas ditadas por necessidades pragmáticas,
teorizando sobre esses gestos práticos e assumindo sobranceiramente a sua
autoria ou abjurando-as. Novas lógicas procuraram enquadrar problemas
antigos, obtendo por vezes as mesmas soluções para as mesmas questões,
enunriadas e problematizadas à luz de novos discursos, novas
sensibilidades e melhores possibilidades técnicas.
202
Embora contemplasse, apenas os escalões etários mais baixos, o
Código Penal de 1852 e posteriormente o de 1886, já reservavam uma
especificidade no tratamento da infanda, ao criarem casas de correcção ou
educação e colónias pemtendárias para os imputáveis —.primeiro até aos
sete anos, depois até aos dez —, ou para os que, tendo menos de catorze
anos, agiam “sem discernimento”. Aos restantes estava destinado o regime
prisional geral (Castro, 1931).
Em finais do século XIX, pela Carta de Lei de 19 de Junho de 1871,
cria-se em Lisboa a primeira Casa de Detenção e Correcção, abrindo no
ano seguinte no Convento das Mónicas onde permanece até 1903,
passando depois desse ano a alojar uma população feminina. Dedicava-se
ao internamento de menores delinquentes do sexo masculino dos 10 até
aos 18 anos e para os menores de 21 anos que fossem desobedientes e
incorrigíveis, sujeitos à correcção patema Era uma vulgar cadeia, apenas só
com menores, sofrendo das deficiências mais tarde apontadas pelo padre
António Oliveira, que lá iniciou a sua acção como capelão: sem ar nem luz
ou conforto de qualquer espécie e que, em lugar de recuperar, se limitava a
punir (Camacho, s.d.: 32). O P.' António Oliveira [1867-1923] inidara o
seu trabalho junto da instituição quatro anos após a abertura, em Junho de
1899; das suas funções iniciais de Capelão, tomou-se Sub-director e,
posteriormente, .Director e mentor da acção reformista das instituições
correccionais, sendo a sua obra indissociável da modernização da
Tedagogia Social” e das práticas das instituições de amparo e recuperação
de jovens delinquentes.
A Casa de Detenção e Correcção (1871)
203
O regime vigente no estabelecimento, decorrente ainda do Código
Penal de 1886, era em tudo semelhante ao prisional, com um grande rigor
de processos e controlo dos internados, mantidos afastados de contactos
com o exterior. Com a Casa de Detenção e Correcção formava-se uma
delimitação da população juvenil delinquente, separando-a definitivamente
dos adultos mas não; trazendo ainda nenhuma prática inovadora na
recuperação e reintegração dos jovens. Seria uma instituição cuja acção se
apoiava ainda no pensamento clássico dos penitendalistas e
correcdonalistas (Martins, 1995: 169-174), embora a norma legal que a
constituiu já consagrasse princípios reveladores de preocupações
“profiláticas” e “terapêuticas”.
Essa consagração da especificidade jurídica de uma população,
definida pelo seu nível etário, não constituía novidade nem no direito penal
nem nas práticas institucionais. Em Espanha, desde 1834 que essa realidade
fora estabelecida paia os menores de 18 anos, não havendo porém uma
concordância sistemática entre o discurso jurídico e o que acontecia nas
instituições, entre outras, a obrigação legal de as Casas proporcionarem
escolaridade básica aos internos nas instituições de correcção, uma medida
que seria importante tomar mas .que nunca se efectivou (Santolaria, 1997:
294). Em Ingfaterra, a separação. dos menores da demais população
prisional só se concretiza em 1905 com o “Child*s Act”, enquanto no
Brasil, só em 1890 se legislou para colocar em estabelecimentos espeaais os
maiores de 9 e menores de 14 anos e em 1916 se publica um decreto
colocando os menores abandonados sob alçada de um juiz que lhes
nomeava um tutor ou os colocava numa instituição e, em 1927, é
promulgado um decreto conhecido como Código de Menores, abrangendo
os menores de 18 anos de ambos os sexos, abandonados ou delinquentes
(Lima & Rodrigues, 2003).
O projecto dé lei propondo a fundação da Casa de Correcção de
Lisboa, apresentado à Câmara de Deputados em 1 de Junho de ' 1871,
identificava os perigos do contágio entre “aqueles a quem o crime
endureceu e os que, no verdor dos anos, fugiram do Berii sem o conhecer
ainda, e talvez praticaram o crime por não ‘o compreenderem”.
Consideravam que essa mistura etária conduzia a que muitos entrados na
prisão por delitos leves, depois de frequentarem essa universidade do crime, e
terem sido punidos, voltavam para a sociedade cometendo piores crimes.
Acreditava-se, no efeito reprodutivo da cadeia, tomando tambcm os mais
jovens como os mais permeáveis.
No final de 1870, estavam detidos na Cadeia Gvil de Lisboa 487
menores de 20 anos, misturados com adultos condenados por todo o tipò
de crimes. Quando a Casa de Correcção é inaugurada, a 20 de Oütubro de
1872, nela deram entrada 32 reclusos menores de 18 anos, vindos do
Limoeiro (Azevedo, 1892: 4), um número muito reduzido para que tivesse
capacidade de substituir a Cadeia Civil. Era a capacidade das instálações
que condicionava as populações de delinquentes e nãò a aplicação da
norma jundica ou do exercício judieiáno. Da necessidade de ampliação e
melhoramento das instalações dava conta, em 1900, o próprio director da
Casa dé Correcção, ao justificar “Aqui èstão 120 rapazes, mas mais do
dobro necessita entrar para cá. Há juiz que se vê constrangido a absolver
pequenos delinquentes [por falta de vagas], quer dizer, voltám para o
caminho da perdição!” (Pinto, 1905: 7-8). Apesar de tudò, a média anual de
intemòs foi subindo sempre, até aos 140, tendo nos primeiros vinte anos
[1872-1891], por lá passado mais de 7.000 rapazes (Azevedo, 1892: 7). A
205
Casa Pia, compare-se, predsou de. um século, para receber 11.401 alunos,
114 de média anual (Valladas, 1881).
A proposta legislativa para a criação da instituição, em boa verdade,
reconhecia à partida a insuficiência da actuação dos estabelecimentos que
pretendia fundar, uma vez que teriam “muito de detenção e pouco de
correcção”, mas manifesta simultaneamente uma ideia de acção
regeneradora associada à educação, ao trabalho e à privação da liberdade.
No seu preâmbulo, considerava-se que, com esses regimes que só
proporcionavam a clausura, não ficaria completo o sistema sem o
suplemento das instituições de assistência:
“Depois destas casas de correcção vêm os estabelecimentos que vão ali buscar os que já cumpriram a pena, ou os que entram na liberdade provisória. A educação correcdonal, para produzir os seus. verdadeiros frutos deve ter por complemento as instituições de protecção” (Projecto de Lei n.° 29,1871).
Essas instituições de. protecção eram bem consideradas, e as
referências feitas aos Asilos na proposta de Lei de 1871 situava-os como
detentores de uma acção e de um modelo reconhecido como eficaz,
embora os parlamentares não o seguissem. Ou seja, apesar de se considerar
a acção ;das cadeias de menores como insuficientes na recuperação da
delinquência juvenil, sendo inclusivamente acusadas até de exercerem um
efeito contaminador, havendo já essa expressão de impotência, mantinha-
se a ideia de continuar a ser necessário a aplicação de um castigo adequado,
recorrendo para isso à privação de liberdade dos menores. Esta distinção,
não só definia uma população de menores que se constituía através da
delinquência, como se reconhecia tardiamente uma certa incapacidade do
Estado, sobretudo quando contrastado com outras instituições congéneres,
206
para agir na reeducação e devolução social integrada desses menores. A
acção dos asilos era, no referido diploma, elogiada nos seguintes termos: '
“O asilo vai procurar a infahcia desvalida ou abandonada,. educa-a, ensina-lhe.a religião, a moral e os costumes,-prepara-a. para o trabalho, e entrega mais tarde à sociedade ddadàos úteis, os que poucos anos antes fora buscar ao seio da miséria e do abandono” (Projecto de Lei n.° 29,1871).
Mas, àpesar de as Casas de Correcção não serem instituições de
beneficência, estavam equiparadas a “asilo dé mendiàdàde,
estabelecimento pio, de beneficência ou de educação gratuita”, para
poderem beneficiar de doações, legados ou heranças (Diário do Governo
de 19 de Junho - Carta de Lei, 1871: art.0 14.°).
O modelo apontado para a criação de um novo estabelecimento,
que corporizasse essa separação dos menores e os reeducasse, encontrava-
se em Mettray, França1, e não, surpreendentemente, na Casa Pia de Lisboa,
instituição que afinal se enquadrava perfeitamente nos processos e no ideal
regenerador dos asilos, tão do agrado dos políticos. O argumento aduzido
era o dos excelentes resultados obtidos pela famosa Colónia Correcdonal
francesa na integração social dos seus internos, chegando os sêüs
defensores e proponentes da legislação ao óbvio exagero de pretender que,
“de entre 1040 mancebos saídos da colónia”, a totalidade, contabilizada por
profissões, se tinha estabelecido num ofício, quando anteriormente áo
estabelecimento dessa- “exemplar escola” a média de reincidência era de
1 C est là, à cinq kilomètres au nord de Tours, que se trouve le vaste domaine de 700 hectares que le vicomte Bretigmères de Courteilles donna, en-1838 à.la société La Paternelle pour y implanter une colonie agricole destinée à recevoir les enfants acquittés par les tribunaux ou placés par mesure de correction paternelle pour y être élevés et enfermes pendant tel nombre d'années que le jugement détermine”, in
httP.7/WWW,1U5Dce-PQiJV.fr/motscles/alphabet.htm site ofidal do Ministério da Justiça do Govemo Francês, Agosto de 2001.
207
75%,, alegando isso em seu abono. A . alteração regimental ocorrida em
Mettray, que aparentemente proporcionara tão bons resultados, residia no
facto de se ter passado a acumular o cumprimento da pena.com o trabalho,
levando agora os internos consigo, quando saíam do estabelecimento, “a
habilitação do trabalho”. -
“Incumbe à sociedade, que deve castigar o crime, aliar a expiação com a ideia de reabilitar moralmente o culpado. Este princípio, base hoje do nosso sistema penal, aplicado à correcção dos menores, exige o emprego de um sistema baseado todo na educação moral e nos hábitos do trabalho” (Projecto de Lei n.° 29,1871).
Não era uma solução consensual, a do trabalho, e muitos teóricos
se insurgiam contra o recurso ao “trabalho educativo” como elemento
correcdonal argumentando que, sendo esse trabalho coercivo, os sujeitos
não reconheceriam o seu efeito benéfico e, uma vez em liberdade, os
delinquentes voltariam à mesma vida (Ferreira-Deusdado, 1889: 147).
O uso de técnicas carcerárias nas populações juvenis e o seu
carácter disciplinar, estão bem presentes nas palavras dispensadas por
Foucault sobre a instituição que serviu de modelo e pretexto ao surgimento
de congéneres suas em Portugal, tal como em outros países europeus.
“Tivesse eu que fixar a data em que se completa a formação do sistema carcerário, não escolheria 1810 e o Código Penal, nem mesmo 1844, com a lei que estabelecia o princípio do internamento celular; talvez não escolhesse 1838, mas 22 de Janeiro de 1840, diata da abertura ofidal de Mettray. (...) Porquê Mettray? Porque é a forma disciplinar no estado mais intenso, o modelo em que se concentram todas as tecnologias coercitivas do comportamento. Tem algufna coisa “do claustro, da prisão, do colégio, do ;regimento” (Foucault, 1987:243).
208
É também nesse fim de século que o Estado reforça a vontade de
instituir a capacidade de retirar- a' tutela dos- filhos' aos familiares
considerados incapazes de os sustentar, ou de lhes oferecer cuidados
suficientes ou tratò adequado. A proposta de Lei que criava a detenção de
menores, estabelecia já uma equivalência entre os cuidados institucionais e
OS da fa m íl ia .
“A educação da família é o preceito moral da natureza; para os moços delinquentes privados de f a m í l i a ou sujeitos ao domínio de pais imorais, o irformatório completado pelas instituições de protecção, ocupa o lugar dos pais e é assim o refugio aberto para a emenda futura” (Projecto de Lei n.° 29,1871).
Em 1877, Joaquim Namorado, 0 médico das Cadeias Civis e da
Casa de Correcção, pessoa influente e conhecedora da situação e historial
dos internos, maiores e menores, dirigindo-se directamente ao Conselheiro
Procurador Régio — e não à direcção do estabelecimento, como a
hierarquia faria supor —, recomendava a criação de “uma severa legislação
penal” aplicável aos pais que não cuidassem devidamente dos seus filhos,
incluindo aí uma responsabilização colectiva, pautada por um dever de
vigilância que recaía sobre toda a sociedade. Continuava-se assim a abrir
caminho para que, em certos casos a definir, o Estado assumisse a tutela
directa dos menores é a inibir a prerrogativa familiar sobre a súâ educação.
“Deve também ‘ fiscalizar os exemplos de mais ou menos moralidade que 6s pais dão aos filhos; deve punir severamente o desprezo com que aqueles olham para os indivíduos a quem deram existência, importando-lhes pouco ou nada quê estes trilhem a vereda do vido e frequentem a escola do crime; tutelas desta ordem devem ser proibidas pela lei, porque os maus exemplos são ainda mais pemidõsos que o próprio abandono” (Namorado, 1877: 9).
209
Na sua exposição, clamava também pelo alargamento do número
de instituições correctivas, e pela sua abrangência ao género feminino (foi
necessário esperar 26 anos, até 1903), e reivindicava a necessidade de
construir de raiz edifícios apropriados à função que iriam desempenhar,
pois apenas estavam a ser usados para esse fim antigos conventos. Ao
invocar a sua ciência médica para a justeza de certas opções, procurava
dilatar os limites da sua acção até à distribuição da aprendizagem dos
ofícios:
“E o que é facto é que na distribuição que se faz consultam-se as vocações do menor, em lugar de ouvir previamente a voz da ciência. (...) Quando o menor entra, o médico deve imediatamente observá-lo e dar opinião sobre a indústria em que pode exerdtar-se” (Namorado, 1877: 12).
... .O aprendizado nas oficinas do estabelecimento era incipiente e a
especialidade era escolhida por vontade dos internos. Só a instrução
elementar, a cargo do capelão, era de frequência obrigatória. Mas, não só o
ensino dos ofícios não representava propriamente uma formação eficaz, na
medida em que muitos reclusos saíam antes de ter adquirido razoável
proficiência para em liberdade poderem exercer autonomamente uma
profissão, como algumas oficinas eram encerradas se os seus produtos não
tivessem boa receptividade no exterior. Havia no entanto a preocupação de
remunerar os rapazes pelo trabalho das oficinas, dando-lhes a prerrogativa
de o gastarem como entendessem (Azevedo, 1892: 4-5).
O higienismo, uma corrente forte e em crescimento na época,
estava também presente nas preocupações que o médico manifestava pelas
condições de salubridade e alimentação que eram proporcionadas aos
internos, exigindo a criação de amor ao trabalho; alimentação abundante e
variada; agasalho conveniente; e “exercitá-los na ginástica de modo a
2 10
acompanhar a evolução natural dos órgãos” (Namorado,' 1877: 12). A sua
acção deveria' dirigir-se aos indivíduos, mas sobretudo aó conjunto que
formavam, transpondo a medicina para uma tecnologia de intervenção
alargada, ao serviço do Estado e da sociedade. O seu discurso assentava na
ciência médica, pois era “o médico que, como sacerdote da higiene, deve
aconselhar medidas que a ciência recomenda não só para bem dó indivíduo
mas paira bem da comunidade” (Namorado, ! 877: 15).
O Regulamento Geral de 1901 vem consagrar um novo
reconhecimento, do valor social da educação: “a finalidade educativa
fomece ao indivíduo os méios indispensáveis para melhorar a süa própria
existência no seio da família, da natureza e da sociedade”, tal como a
reivindicação do dever moral de maior intervenção do Estado ou dos seus
agentes na esfera familiar, se vai reforçar depois de consignada em letra de
Lei:
“Na oficina, na aula, no recreio e no descanso, incumbe aos ’ ' ‘mestres, aos professores, aos empregados menores e aos t ; • dirigentes uma parcela de paternidade” (Regulamento Geral da Casa de Detenção e Correcção de Lisboa, 1901).
Eram soluções de natureza administrativa e não ainda de natureza
jurisdidonal, mas o caminho já se prenunciava. A evolução das estratégias
de administração social vai produzir-se pela apropriação da linguagem
científica e das suas racionalidades, acreditando-se que assim se permitiria a
organização de políticas sociais coerentes, capazes de dar resposta através
de formas de governação racionalizadas, às necessidades de construção da
individualidade das crianças e dos pais (Popkewitz & Bloch, 2000). Os
recursos humanos à disposição do pessoal dirigente eram entretanto
escassos e de formação incipiente: para todos os alunos havia apenas três
guardas e três prefeitos-professores que tinham uma sobrecarga enorme211
uma vez que se encarregavam da segurança das .pessoas e instalações onde
também viviam, d a . vigilância e observação individual dos alunos, da
logística e, no.caso dos prefeitos-professores, ainda tinham de leccionar, o
q u e os obrigava a viver, dentro da instituição.
Nessa viragem de século, aumentavam as preocupações com a
humanidade dos regimes,, aproximando-os mais da ideia de escola (a
correcção não é, pois, um asilo, como não é uma prisão) e de uma crescente
orientação, para as saídas profissionais. Algumas instituições
proporcionavam instrução profissional para ofícios artesanais como
alfaiate, sapateiro, marceneiro serralheiro e latoeiro, cursos submetidos a
exames periódicos, teóricos e práticos; os resultados — que incluíam a
avaliação do carácter moral dos internos - eram estimulados por prémios
públicos, somente simbólicos ou mesmo pecuniários (Regulamento Geral
da Casa.de Detenção e Correcção de Lisboa, 1901).
Com a reforma de 1901, pertencendo a tutela correcdonal ao
Ministério dos.Negócios Eclesiásticos e da Justiça, confirmava-se o papel
.clerical no delinear e na supervisão dos contornos morais que presidiam a
esse tipo de instituições. Na Casa de Correcção, o padre capelão tinha por
obrigação... ,
“...estudar cada um dos menores; visitar as oficinas, as aulas, os recreios, as prisões, as camaratas e as enfermarias; assistir aos exercícios ginásticos, às refeições, aos exames médicos e a
. todos os actos onde possa observar as aptidões intelectuais, físicas e morais dos reclusos, para, com conhecimento próprio,
' poder'graduar e régular os seus ensinamentos evangélicos, de maneira que o carácter moral e cristão dos menores, se forme a par do seu desenvolvimento físico e intelectual” (Regulamento Geral da Casa de Detenção e Correcção de Lisboa, 1901).
212
Na Casa funcionava um ordenamento por secções, correspondendo
a situações jurídicas diferentes com os seus respectivos regimes:
I* Secção: Detenção Preventiva; para os menores que esperam
sentença ou estão às ordens das autoridades administrativas, sendo tratados
por “detidos”
II* Secção: Detenção Prisional;• para os menores que cumprem
pena de prisão, sendo chamados “presos”. Por aqui passavam ainda
aqueles que, durante um mês, iam “expurgar-se de velhos e maus hábitos
inveterados, tomando-se aptos para ir receber instrução junto dos seus
companheiros”. .............................................
Hl.* Secção: Correcção; os menores são “alunos”.'
Os que lá cumpriam pena poderiam aí ser retidos, de forma quase
meramente burocrática, até atingir os 21 anos mas, ainda assim, o art°
256.° do Código Penal permitia que depois de cumprida à pena os “vadios
e mendigos” fossem entregues ao Govemo “para lhes dar trabalho pelo
tempo que pareça conveniente’ (Henriques, 1901: 10). Os menores vadios’ou
mendigos que fossem postos à disposição do govemo e tivessem origem
em meios rurais eram enviados para a Colónia Agrícola Correcdonal de
Vila Fernando, assim como os que estando fisicamente debilitados
pudessem melhorar com o ar do campo (Regulamento Geral da Casa de
Detenção e Correcção de Lisboa, 1901: art° 21.°). Seriàm também
enviados para o trabalho agrícola de Vila Fernando os que não
demonstrassem habilidade para nenhuma aprendizagem ministrada na Casa
(Regulamento Geral da Casa de Detenção e Correcção de Lisboa, 1901:
art° 213.°). . ..
Este modelo correcdonal estabelece-se também no norte, com a
criação por Carta de Ld de 17 de Abril de 1902 da Casa de Detenção e
2 13
Correcção do distrito , do Porto, inaugurada .com 13 menores que se
instalaram no Convento de Santa Clara. Entre 1902 e 1931, por lá
passaram 344 internados, dos quais, 302 foram condenados por vadiagem e
furto. Com as reformas republicanas transforma-se em reformatório e em
1944 é entregue aos Salesianos, que elegeram a designação de Esçola
Profissional de Santa Clara, evitando conotações pejorativas e adoptando
os métodos mais humanísticos pregados por D. João Bosco, o seu patrono
(Canavarro,-1931; Santos, 1984).
Novos modelos institucionais vão suceder-se em boa cadênda, cada
um pretendendo constituir uma inovação no campo da correcção de
crianças, produzindo uma discursividade concorrencial e rdvindicativa de
originalidade e efiaênda. Basta ver quantas instituições reclamavam ter
sido as primeiras a ensinar Trabalhos Manuais, Ginástica ou Música e
como buscavam entre os seus educandos aqueles que mais se
notabilizavam publicamente. É também com uma certa urgênda de
desdobrar o modelo, multiplicando-o para absorver uma população
crescente, que o P.c Oliveira é encarregado de estabelecer uma instituição
congénere no Porto, logo em 1902. Essa necessidade de expansão é um
demento , recorrente, até muito tarde, exigindo-se sempre mais instituições,
sobretudo, a partir do momento em que os discursos se especializam cada
yez mais, trazendo as suas categorizações, terapêuticas e necessidades
fundonais próprias.
O carácter educativo e regenerador da Casa de Correcção só é
verdadeiramente reforçado com a reforma proposta pdo P.* António de
Oliveira, substantivada no Decreto de 27 de Maio de 1911, que vai fazer
transparecer esse intuito reeducativo logo na sua designação, passando a
ostentar o nome de Escola Central de Reforma, expressão de um modelo
214
que irá manter-se até 1962, o “reformatório”, altura em que, através de
revisão legislativa, se consagra a'designação de “instituto de reeducação”1.
O P.c António de Oliveira continuou assim o - seu projecto em plena
transição da Monarquia para a Republicai tomando-se a personalidade mais
decisiva na progressão da modernidade dessas instituições, na atenção
pedagógica e na evolução da-iristrumentalidade disciplinar para lidar com
os menores desviados dos normativos sociais -é 'morais vigentes, que
cairiam sob a alçada da lei ao ritmo que as instituições o permitissem.
Nesse virar dó século XIX para o XX, procuravam afirmar-se então
os discursos pedagógicos da “Escola Activa” e da “Arte na Escola”,
consubstanciados em actividades curriculares como: a “Ginástica Succa,
em classe, com o tronco nu, ao ar livre e com qualquer tempo”; as Ciências
Naturais, “como meio de observação e cultura”; a Música e o Canto Coral,
vistos como “elementos de educação estética e auxiliares de regeneração
moral dos internados”, ou os Trabalhos Manuais e o Desenho, disciplinas
então consideradas como “elemento de observação e estudo das tendências
e predisposições dos alunos para as profissões existentes”. Para além destes
métodos escolares, a experimentalidade científica estendeu-sé pela criação dè
um ‘Tosto Antropométrico” para a observação médico-pedagógica,' por
actividades de jardinagem e horticultura, pelo inquérito sódal, etc.,
(Monografia do Re formatóno Central de Lisboa "Padre António de
Oliveira", 1931: 9-10) perfazendo um conjunto de instrumentos que se
estabeleceram na época e passaram a sustentar também à acção pedagógica
1 Entre os anos de 1995 e 2000, estas instituições designaram-se por “Colégios de Acolhimento, Educação e-Formação”. Com a Lei Tutelar Educativa, promulgada em Janeiro de 2001, adoptou-se a designação de “Centro Educativo”.
■ 215
de outras instituições como a Tutoria e o Refugio, indo posteriormente
difundir-se por inúmeras outras instituições1.
No ano de 1931, no Convento da Cartuxa, em Caxias [1903-1958],
a população do Reformatório era de 140 internos, sendo a média de
duração do internamento de seis anos, fazendo com que a maioria dos
rapazes saísse com a idáde de dezanove anos. A organização disciplinar do
Reformatório fora reformulada em 1927, e obrigava agora à frequência do
curso de ensino primário, para além do aprendizado profissional e da
música, sendo de frequência obrigatória o Orfeão e a Ginástica, sobretudo
a respiratória, considerada como “meio útil e eficaz de educação da
atenção” (Monografia do Reformatório Central de Lisboa "Padre António
de Oliveira", 1931:15).
A simples repartição dos alunos em secções, segundo o seu estado
de cura moraly mantinha-se, mas sendo agora ordenada pela divisão etária:
pré-púberes, púberes e pós-púberes. Cada uma dessas divisões etárias é
então seccionada segundo “critérios de selecção e agrupamento de valores
morais idênticos”, sendo distribuídos pelos que estão “em prova”, ou seja,
que ainda não tinham dado provas de confiança; pelos “melhorados”, que
já registavam evolução na sua obediência, e pelos “apurados”. Por cada
uma dessas' divisões etárias existia um preceptor, com um auxiliar e um
guarda, que acompanhavam os menores em todas as actividades
desenvolvidas no internato e tinham por missão “a sua reeducação moral,
devendo orientar-lhes a actividade no sentido de fazer nascer e alimentar
todos os sentimentos que possa lèvá-los à prática do que é bom, belo e
1 Sobre o higienismo e a medicina escolar, entre outros, cfr. Abreu, Carlos (1999). Limpos, Sadios e Dóceis. Dissertação de Mestrado em Oénáas da Edfcft^w-Universidade de Lisboa, Lisboa.
216
A Colónia Agrícola Correcdonal (1880)
A primeira instituição rural de correcção foi criada pela Carta de Lei
de 22 de Junho de 1880, em Vila Fernando, perto de Eivas. Começará a
funcionar somente quinze anos depois de autorizada, em 6 de Outubro de
1895 e destinava-se à “correcção e educação de menores delinquentes de
10 a 18 anos, que por despacho judicial sejam postos à disposição do
governo ou aqui são internados a requerimento dos pais ou .tutores que
subsidiem a sua sustentação” (Colónia Agrícola de Vila Fernando
Catálogo.dos artigos com que concorre à Exposição Agrícola do:Paládo de
Cristal Portuense, 1903)..
A instrução proporcionada limitava-se ao exame do 1.° grau, mas o
leque de aprendizados era vasto, incluindo especialidades agrícolas,
artesanais, de vestuáno e calçado, vinícolas, tratamento de gado, etc.. Este
potencial de mão-de-obra disponibilizado por 230 internos [1908] tomava
a instituição completamente auto-sufidente, obtendo ainda importantes
recdtas com a venda dos excedentes de produção e de outros serviços. A
quantidade e qualidade dos seus produtos provava “como são
vantajosamente aprovdtadas as forças e . aptidões de indivíduos nela
recolhidos que, há instantes, eram um perigo social, um factor mesmo de
perturbação, e que hoje. marcham progressivamente para. uma reabilitação
completa por meio do trabalho” (Colónia Correcdonal Agrícola de Vila
Fernando - Catálogo dos artigos com que concorre à Exposição .Nadpnal
do Rio de Janeiro, 1908: 6).-E marchavam mesmo para o trabalho, como se
pode observar em fotografias da época, com as enxadas no lugar de
espingardas. Os internados organizavam-se em formaturas e, sob vozes de
2 19
comando, dirigiam-se para o trabalho rural segundo um recorte
caracteristicamente militar.
Inquérito fe ito no acto da m atrfcvh aos 64 colonos entrados no anno economko th 1903-1904
Situação moral e sodal das farelBas
u ObtifytfSiiar
(P m .......................................................... i9 8 d'cst** eeloaosFalledâosi M ie .......................................................... 20 ts e a mais d» dex
(Pm « Ufta ............................................... S prisSe* • 81 dotPim , eojo du tiae A itK M h è d d o ........................ 9 rostaates mais doPae e Ml© em boa eitaaçto moral * social. 6 does prisOes.E xportes...................................................................... 4Paca cri min o*oa............................. ............................. 1Inalo* corrcocton*«* ............................................... 7Pm * tíwm m** «p arado * ..................................... tsAmsacebadojj * M
14Pm * ak eeU co s ........................................................... 33Paes a ü so a d o s ...........................................................
Crimes porque foram enviados
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4ts
loeonrigÍT*i* A' sdoesçlo potorno (pmdooUtos)..............................Vadiagem.................. ..... .................................................... ..... . . .P o rte s ..........................................................................................................
3ta8
£naaca . . . 64
Instrecção roBgíosa
Com regalar iostroççlo. ....................................................................... 8Ssbsado o Psârs»Mosse o A v e -U ari* ................................................ 27Igooraooia completa d’eota lostnieçio . ..........................................
goeunfl . 64
Figure 13 — Caracterização dos colonos e seus
antecedentes.
Fonte: Vasconcelos (1905: 26).
220
A natureza economidsta do estabelecimento era assumida como
uma vantagem associada à regeneração dos colonos, como o seu director
afirmava:
“A grande obra de reabilitação moral para delinquentes desta natureza e de graduação mais-ou menos delituosa, estaria com grande êxito financeiro na organização simples e eminentemente moral dos pequenos estabelecimentos agrícolas que são, sem contestação, uma.escola de virtudes do trabalho, e que têm uma característica tão salutarmente económica” (Vasconcelos, 1905: 9).
O uso do campo como espaço educativo vem constituir uma
novidade decorrente de outras experiências instrumentais do século XIX,
mas que, no particular caso português, foi reforçada também por uma
necessidade demográfica, embora a razão expressa fosse a eficiência do
método correcdonal desenvolvido em tomo do trabalho no meio rural:
“O regime correcdonal ao ar livre, que. é o fundamento pnmário desta instituição, testemunha com este estabelecimento a superioridade política, económica e higiénica sobre os outros processos correcaonais” (Colónia Agrícola de Vila Fernando - Catálogo dos artigos com que concorre à Exposição Agrícola do Paláao de Cristal Portuense, 1903).
A questão da distribuição demográfica levava a que o sistema de
patronato, ao procurar absorver os alunos, os fixasse na região, sendo
vistos com suspdção os colonos que pretendiam abandonar os locais onde
se tinham inidado no trabalho. Esse problema levou mesmo a que o seu
director pugnasse pela fundação de uma aldeia no Alentejo que, “sob as
vistas da sodedade de patronato, se formasse nem dos baldios desta
extensa provinda e que fosse povoada por casais tirados dos antigos
correcaonais” (Vasconcelos, 1905: 30).
221
Se a instrução literária era considerada como meio para diminuir o
analfabetismo associado a alguma origem criminal (os internados eram
praticamente todos analfabetos), não havendo ainda uma grande crença na
sua capacidade regeneradora, já quanto à educação religiosa, as suas
virtudes regeneradoras eram incontestáveis. O ensino da música era
considerado como uma boa via profissional e um “auxiliar do
desenvolvimento e da transformação moral” capaz de despertar
sentimentos elevados nos colonos (Vasconcelos, 1905:21-22). Havia a
vontade de distribuir os indivíduos segundo as “causas da cnminalidade”,
não juntando os que sofriam de “epilepsia ou taras indeléveis”, que
deveriam ser enviados para um manicômio, com os incorrigíveis, que
deveriam estar noutro estabelecimento correcdonal, de maior rigor
disciplinar.
Esta modalidade correcdonal sustentava-se pela alegação de ser
capaz de sanear os jovens delinquentes “na sua moralidade e na sua
afectividade, dependendo esse êxito dos meios necessários que é predso
empregar individualmente, da oportunidade da sua sequestração e da
duração indeterminada seu internato consoante o seu progresso moral e o
grau de confiança que possa porventura merecer” (Vasconcelos, 1905: 35).
222
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Figure 14 — Movimento disciplinar em Vila Fernando.
Fonte: Vasconcelos (1905: 52)
223
A Correcção Feminina (1903)
Pela Carta de Lei de 27 de Abril de 1903, inaugurou-se exactamente
um ano depois um estabelecimento para a detenção de menores do sexo
feminino entre os 10 e os 18 anos, delinquentes, vadias e mendigas,
desobedientes e incorrigíveis, funcionando sob a designação de Casa de
Detenção e Correcção, estabelecida no antigo convento de S. Agostinho
(conhecido pelas Mónicas), em Lisboa (Castro, 1931). Nesse ano, o P.c
António de Oliveira é nomeado também capelão e superintendente da
Casa de Correcção Feminina e, com as reformas que impulsionou e com o
capital político que entretanto tinha granjeado, consegue que em 1911 a
instituição passe a funcionar na Costa do Castelo e a partir de 1927 na Cruz
da Pedra, em Benfica.
Quando entravam, era-lhes cortado o cabelo curto, passando a ser
tratadas por um número de ordem (Patacho, 1926: 5). Seguidamente, as
alunas eram arrumadas no reformatório em três grandes classes ou
“famílias”, como também eram designadas: “impúberes, púberes e pós-
púberes”. As discípulas de cada uma dessas famílias estavam
completamente isoladas do contacto com as de outras famjQias, mesmo no
recreio. Cada um desses grupos estava, por sua vez, subdividido em três
secções, “apuradas, melhoradas e entradas e difíceis”, numa relação em que
a hierarquia entre as internadas era estabelecida segundo as “concessões de
ordem moral” por parte das alunas e traduzia-se pelas condições materiais
que lhes eram proporcionadas no quotidiano: higiene, conforto, vigilância,
alimentação, mobiliário, roupa, etc. As refeições, agrupavam-se por mesas
que eram “iguais na forma, mas caracterizadas pelo lugar que ocupam e
pela forma como estão guameddas” (Patacho, 1931: 6).
■ 224
R e fe itó r io s d a scc çS o fem in in a
i n t e r n a d a s em trab a lh o s a g r íc o la s
Figura 15 - Correcção Feminina
Fonte: Monografia da Tutoria do Porto
O pessoal erá praticamente todo interno, acentuando a sua
permanência junto dos alunos, anotando os seus comportamentos, o que
: 225
se iria juntar ao registo de tudo o que dissesse respeito às alunas, como
“exames médicos, físicos, psíquicos, antropométricos, periódicos, faltas,
castigos, recompensas, bons movimentos e acções”. A vigilância, o
controlo e avaliação eram contínuas, possuindo as preceptoras, as mestras e
as auxiliares, cadernetas com fichas nominais onde figuravam “as notas dos
factos, das suas observações e das suas impressões pessoais. O extracto
destas notas - indispensáveis nas deliberações do conselho técnico ~ e
todas as observações e exames, são coligidos nos cademos-boletins,
destinados a acompanhar o processo quando da saída do Reformatório,
seja qual for os seu destino” (Patacho, 1931: 12).
Ministrava-se o ensino primário e elementar em salas de aula, mas a
ocupação mais importante das àlunas era o ensino educativo doméstico,
desenvolvido entre sessões de culinária e salas de costura para confecção e
arranjo de roupa, que incluíam gabinetes de provas para os clientes do
estabelecimento. A finalidade do Reformatório afirmava-se, no plano
material, com tendo por pririieira ambiçãõ “preparar cada internada com o
máximo possível de conhecimentos necessários ao bom desempenho do
papel superior da mulher no lar, aspiração que, infelizmente, tantas vezes
não é possível conseguir” (Patacho, 1931). Todas as internas aprendiam a
ler, escrever e contar e, para as que não eram protegidas pelos laços do
matrimónio, procurava dar-se-lhes recursos que as habilitassem como
profissionais de costura ou serviçais, sendo assim capazes de subsistirem
por si próprias.
\226
* * .
Com a República surgiu uma actividade legislativa intensa, onde a
necessidade de profundas alterações jurídicas motivadas pela mudança de
Regime vai abranger igualmente o universo das crianças. Assim, vai
desenhar-se uma profunda alteração no campo jurídico e judiciário,
expressão de um grande e voluntarioso desejo de actuação no âmbito do
relacionamento do Estado com a infância. Uma nova logística vem
substituir os sistemas punitivos e terminar gradualmente com a submissão
da infância aos Códigos Penais dos adultos. Verifica-se, a partir de então, o
aparecimento de detalhada e profusa legislação de enquadramento
assistendal e educativo, a par do nascimento de diversas instituições ou do
ajustamento ao recente quadro legal de outras já existentes.
A Lei de Protecção à Infanda vdo marcar a distinção da criança
perante a organização -judicial, ao estabelecer um aparelho jurídico e
institudonal inteiramente dedicado às crianças, ,separando-as decisivamente
do quadro penal aplicado aos adultos. O surgimento de tribunais especiais
dedicados aos problemas do controlo de populações juvenis
desenquadradas de determinada ordem social e familiar, foi acompanhado
pela criação de instituições adequadas ao encaminhamento desses menores,
tendo em vista o seu reenquadramento social e a sua posterior inserção no
mundo do trabalho. Essa separação da população juvenil da adulta foi
decisiva para a aplicação de práticas pedagógicas em lugar das penais.
Alguns meses antes da criação das Tutorias, de que foi um embrião,
uma Comissão de protecção a menores de 16 anos foi lançada a titulo227
A TUTELA JURISDICIONAL DE MENORES (1910)
experimental e presidida pelo P.c António de Oliveira, destinando-se a
ambos os sexos, em perigo moral, pervertidos ou delinquentes, que fossem
encontrados na via pública na área de Lisboa, com os fins de preservação e
reforma, sendo sua função “examinar investigar e classificar, sob o aspecto
físico, mental, moral . e social, os menores detidos que lhe fossem
presentes” (Castro, 1931; LPI, 1911). O P.c António de Oliveira, um
homem “com o pensamento mais elevado que os domínios da Disciplina”
(Pinto, 1905: 5), pode dizer-se, foi quem melhor personificou a evolução
dos regimes punitivos para os regenerativos, tomando como princípio
pedagógico a “conversão da prisão em casa de educação” (Martins, 1995:
59; Pinto, 1905: 6).
É nessa distinção populacional de ordem etária perante a norma
jurídica do Direito Penal que reside a origem formal das Tutorias,
instituições que vêm representar um enorme avanço na atenção social de
que as crianças são objecto, bem como na inovação de metodologias
relacionais enquadradas por uma racionalidade subjacente ao discurso
médico e à norma jurídica, a que se juntava a pedagogia científica. A
própria orgânica do Tribunal de menores traduzia essa combinação, sendo
os julgamentos realizados por um juiz de Direito e dois juizes assistentes
sendo um, o médico da Tutoria, o outro, um professor do liceu, fechando
assim o triângulo da Medicina, do Direito e da Pedagogia.
* As questões educativas ocupavam então um papel de relevo,
estando já consolidada a ideia de serviço público, considerando-se a
instrução um dever e um direito do Estado, não se podendo dizer no
entanto que houvesse já uma rede escolar abrangente, uma vez que a
escolarização em Portugal encontrava-se com um grande atraso em relação
a outros países da Europa.
228
O esforço de sistematização da escolaridade e a adesão das
instituições correcdonais às práticas pedagógicas podem ser interpretadas
como o esforço de instauração de uma nova ordem social, funcionando
assim a instrução e as escolas, como uma racionalidade de configuração
dos indivíduos, fruto de um novo alinhamento dos poderes políticos e de
novas técnicas de governação. Nesse sentido, pronuncia-se António Nóvoa
(1994: 187) nos seguintes termos:
“O interesse republicano pela coisa educativa não se funda numa preocupação essencialmente pedagógica, mas antes na convicção de que a ‘Verdadeira” República só será possível através de uma outra educação, pois as instituições revolucionárias não podem construir-se a partir de um sistema escolar do passado. A ruptura tem de ser radical, como em 1789. Trata-se de um duplo desafio: por um lado, a cidade republicana será o produto de um homem novo, formado no seio de instituições libertas do espírito jesuítico e monárquico; por outro lado, a organização de uma educação republicana s ó . se poderá fazer no quadro de uma sociedade nova.”
As competências das Tutorias vão-se alargando e, com a criação das
Tutorias Comarcãs, pretende cobrir-se o máximo de população possível. O
decreto n.° 10767 de 1925 ambiciona estender o seu alcance a toda a
população de delinquentes entre os 16 e os 18 anos. Nesse ano começam a
funcionar as Tutorias de provinda, ultrapassando a centena e meia e
continuando a exigir-se mais estabelecimentos, mas a portaria n.° 4882 de
1927 achou mais realista retirar competêndas às Tutorias provinciais, uma
vez que não dispunham de sufidente pessoal habilitado nem postos de
observação, remetendo-as para instituições complementares das Tutorias
Centrais (Amaral, 1931). Em .1930, pelo decreto n.° 18996, toma-se
competência das Tutorias a aplicação de medidas de - protecção aos
229
menores filhos de casamentos desfeitos e proceder criminalmente contra
aqueles que, tendo por obrigação alimentar um menor, não o fizessem.
A Tutoria e o Refugio da Infanda (1911)
O decreto de 27 de Maio de 1911 criava a Tutoria da Infanda,
tribunal colectivo, especial de equidade, destinado a “guardar, defender e
proteger os menores em perigo moral, desamparados e delinquentes, sob a
divisa: Educação e Trabalho”. Era uma descendência assumida do primeiro
tribunal de. infância fundado em Chicago em 1899, e destinava-se a
menores com menos de 16 anos de idade de ambos os sexos. Actuando em
conjunto com o. Tribunal, os Refúgios, eram instituições destinadas à
observação e detenção provisória de menores de ambos os sexos. Foi
também instituída pelo mesmo diploma a Federação Nacional dos Amigos
e Defensores das Crianças, como união jurídica e moral das instituições de
protecção à infanda, oficiais e privadas. Após essa iniciativa legislativa, os
institutos particulares de acolhimento e reforma já existentes, foram
devidamente informados dos novos prinapios orgânicos e educativos a
seguir, subordinando assim as suas iniriativas a uma metodologia definida
por uma entidade que procurava unificar, de um ponto de vista técnico e
dos preceitos morais, os procedimentos aplicados às crianças beneficiárias
dessas casas, o que pretendia ser uma grande inovação como estratégia
preventiva de administração social.
Com a Tutoria da Infanda, o Estado estende a sua jurisdição à
condição familiar, instaurando novas e diferentes normas de inibição do
poder paternal. Essas modalidades tutelares tinham o seu extremo na
230
fórmula “sob a guarda, defesa e protecção da República”, que produzia a
inibição total do poder paternal ou tutelar, abrangendo todos os direitos
conferidos legalmente ao pai e à mãe sobre todos os seus filhos ou pupilos,
maiores e menores de 16 anos, e seus descendentes (Lei de Protecção à
Infanda, 1911), o que vinha constituir uma possibilidade até aí inédita.
Os defensores da Tutoria consideravam vergonhosa a sujeição de
menorés aos tribunais criminais comuns, o que fez com que encenassem os
julgamentos dos menores ou das famílias em salas comuns, de aspecto
doméstico como uma sala de família, ou em bibliotecas convertidas em sala
de audiências, sem lugares para público ou assistentes, procurando
produzir um ambiente familiar e bondoso. Assim o atestava a propaganda
què os próprios faziam na época, ao publicarem fotografias comparativas
dos seus tribunais com os outros, os tribunais comuns, procurando transmitir
pelas imagens um ambiente acolhedor e paterno (Moura & Amaral, 1931),
o que fazia todo o sentido, já que se tinham criado tribunais especialmente
para menores, pretendendo-se diferentes e mais adequados à população
que recebiam.
A. reforma de 1925
. . . Com a publicação do Decreto n.°- 10767 foram., alargadas as
competências , dos tribunais .de menores, introduzindo , assim, com a
reforma a cargo dos Serviços Jurisdidonais e Tutelares de Menores,
algumas alterações na.taxinomia .de menores e na sua sequente distribuição
institudonal, especialmente com a ..criação de instituições devotadas ao
231
tratamento da “anormalidade”, embora as aplicações no terreno
continuassem praticamente inalteradas.
Lei de Protecção à Infanda 1911:
Em perigo moral (abandonados, pobres, maltratados)
Menores desamparados (ociosos, vadios, mendigos, libertinos)
- Indisciplinados
- Delinquentes .
- Anormais patológicos
Decreto n.° 10767 de 15 de Maio de 1925:
- Em perigo moral
- Indisciplinados
- Delinquentes (dos 9 aos 16 anos, culpados de delitos).
Com o decreto n.° 10:767 de 15 de Maio de 1925, fomenta-se uma
extensão- das competências das Tutorias e é estabelecida uma nova
nomendatura para os institutos de detenção (Refógios), reforma
(Reformatórios) e correcção (Colónias Correcáonais). Assim, de acordo
com a lei:
Refugos. - são estabelecimentos de detenção e . internamento
provisório destinados a receber e guardar os menores sujeitos a julgamento
e a proceder ao seu exame e observação (art° 101.°);'
Reformatórios - são destinados a regenerar os menores que por
decisão das Tutorias neles devam ser internados por não se encontrarem
ainda gravemente pervertidos, sendo susceptíveis de se corrigirem
232
mediante uma acção reformadora pelo trabalho profissional, pela educação
moral e pelos meios disciplinares adequados (art° 107.°);
Colónias com cáonais - são as destinadas a corrigir os menores que por
sentença das Tutorias nelas devem intemar-se por se julgarem em
adiantado estado, de perversão mas ainda susceptíveis de sèr regenerados
pelo trabalho profissional, pela educação moral e mediante uma rigorosa
acção disciplinar, acompanhada ou não de detenção (art 108.°).
A intervenção discursiva da psicologia científica está
definitivamente presente no diploma — o distiguindo-o bastante da LPI —,
sendo o seu preâmbulo sustentado por fundamentos que invocam, entre
outros, Claparède, Biner, Simon, Decroly, para tentar superar as
dificuldades apresentadas pela definição das categorias e da fronteira entre
a patologia e a anomalia.
Veja-se. por exemplo como o Decreto n.° 10.767 altera a categoria
de “desamparado”, extinguindo-a, redistribuindo os sujeitos entre a
“delinquência” e o “perigo moral” (Cfr. Ilustração 10). Esses novos
movimentos taxionómicos e distributivos, impulsionados pela nova
legislação, levaram a que os menores processados pela Tutoria por “perigo
moral” aumentassem de 76 em 1927 para 361 e chegassem a 1.065 no-ano
de 1930. Era uma política preventiva, aquela que passou a remeter os
menores . para a categoria de “perigo moral”, em risco de serem
contaminados socialmente mas ainda recuperáveis: “agindo cedo,
preveniam-se males maiores”. -
233
1200
— Delinquentes —a— Desamparados
—o— Perigo Mora! —* — tndiscipünados
Figura 16 — Processos contra menores, entrados na
Tutoria Central de Lisboa.
Fonte: Relatório da Tutoria (1931).
Uma rede vasta, mas insuficiente para os seus propósitos, pretendia
cobrir o país através de unidades locais designadas por Tutorias Comarcas,
e que se contabilizavam já em 154 unidades disseminadas pelo território
(Castro, 1931). O decreto vai complicar ainda mais a já quase inextricável
legislação orgânica existente e contribuir para uma crescente inoperânda e
dificuldade no uso coerente de critérios e procedimentos, continuando a
falta de pessoal qualificado para as diversas funções exigidas a ser outro
grande entrave ao bom funcionamento do aparato correctivo.
No âmbito do tratamento de anormais patológicos, o diploma
previa simplesmente que, à falta de estabelecimento adequado ao
internamento dessa população, fossem subsidiadas as instituições que se
dispusessem a essa encargo. Na prática, tal não sucedia, acabando os
anormais internados no manicômio ou a deixando a Tutoria da Infanda a
braços com o seu destino que, invariavelmente, os remetia para uma secção
espeaal do Reformatório Central de Lisboa ‘Tadre António Vieira”.
0 elenco de interditos
A consulta do Arquivo do Refugio e Tutoria Central, da Infanda de
Lisboa, presentemente à guarda do Tribunal da Infanda de Lisboa,
permite-nos perceber a facilidade de acusação de menores, sob os mais
diferentes pretextos1. O menor, que nunca prestavajdedaraçÕes, podia ser
inicialmente julgado e condenado a uma pena leve mas, se não se adaptasse
à disaplina da instituição e ao meio social onde estava compulsivamente
inserido, a sua estadia ia-se dilatando, por vezes até à maioridade, porque
era preciso que o parecer do Conselho Técnico da instituição, presente ao
tribunal, fosse favorável, dando a criança como apta à libertação. Veja-se,
como ilustração do teor dessas deliberações, parte da acta do Conselho
Técnico do Reformatório Central de Lisboa ‘Tadre. António de Oliveira” a
propor a libertação de um menor, datada de 8 de Janeiro de 1930:
“- Fez exame de instrução primária - 4* classe. -
1 Sobre os processos penais de menores na Tutoria e no Refugio e demais documentação processual, cfr. Carmo, Daniela Sá & Lopes, João Teixeira (2001). A Tutoria do Torto - Estudo sobre a Morte Social Temporária. Porto: Edições Afrontamento; Martins, Ernesto Candeias (1995). A Problemática Sodo-Educativa da Protecção e da Reeducação dos Menores Delinquentes e Inadaptados entre 1871 a 196Z Dissertação de Mestrado- Faculdade de Gêndas Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa; Santo, João Miguel R S. (2000). "Crianças Malfdtoras" a contas com a Justiça - Os menores catalogados pelo Refugio da Tutoria Central da Infanda da Comarca de Lisboa 1920- 1930. Dissertação de Aíftrt>wdi>-Universidade de Lisboa — Faculdade de Psicologia e de Gêndas da Educação, Lisboa.
235
, - Faz - parte da Banda do Reformatório, sendo um vulgar executante,. nao tendo revelado disposições especiais para a música.
- Aprende o ofício de marceneiro não tendo ainda concluído a aprendizagem do ofício. (...) Não tem faculdades de trabalho, sendo de seu natural indolente e apático. Nao tem também iniciativa própria, pouco cuidado pondo na confecção dos trabalhos de que o mestre o encarrega.
- E m :19-1-1929 tentou suicidar-se por enforcamento. Em 19- 3-1929 foi em isolamento para as celas por, juntamente com outro companheiro, ter tentado evadir-se.
- É um onanista inveterado, que chegou muito cedo à idade da puberdade. De temperamento sensual, masturba-se frequentemente e apaixonou-se por certos companheiros a quem escreve cartas amorosas, ficando desolado, deixando mesmo de comer, quando são interrompidas essas ligações.
- A sua actividade é nula. Apresenta-se sempre de fisionomia parada, inexpressiva. É dotado de inteligência e possui alguma habilidade tanto para o ofício como para o desenho. Tem-se
. mostrado insensível a qualquer espécie de estímulo.
- A mãe é uma pobre pessoa, muito amiga do filho, que sempre que pode o visita. Trabalha como “governanta” numa casa de gente rica. Sofre do . coração e dão-lhe frequentemente ataques epilépticos que a prostram como morta por longos
' espaços de tempo.”
Resta acrescentar que a criança ficou internada durante seis anos, na
sequência da queixa apresentada pela própria mãe, a 6 de Janeiro de 1924,
onde consta o seguinte teor da acusação ao seu filho...
236
“ (...) menor de 13 anos, e consigo residente, em virtude de terem resultado infrutíferos os seus esforços para bem o encaminhar nos seus primeiros passos da vida, recusando-se este a trabalhar e, nas poucas vezes que o faz, gasta em seu proveito as pequenas férias, abandonando a casa materna por dias e noites seguidas, vagueando pela cidade e tendo já por várias vezes descido à prática de pequenos furtos,. que a suplicante vem pagando com sacrifício, por ser extremamente pobre” (Arquivo do Refugio e Tutoria Central da Infância de Lisboa).
No seguimento da denúnáa, o juíz-presidente manda à Inspecção
de Assistência a Menores Desamparados e Delinquentes que investigue a
vida do menor, e sintetiza a natureza dos delitos: “Relutânda para o
trabalho, furto e vadiagem”. O menor arguido “confessou os delitos”. Esse
género de infracções ocupou a maior parte dos casos da Tutoria logo no
primeiro ano do seu exerado judicial, quando as acusações de roubo,
mendiadade e vadiagem, preencheram 197 casos num total de 337. Essas
condenações eram muitas das vezes sustentadas por testemunhos de
terceiros, geralmente familiares ou vizinhos, que tinham “ouvido dizer”. O
menor não era ouvido nem na instrução do processo nem durante o
julgamento. Tal não seria necessário, dado que todos ali estavam para o seu
bem e mais tarde haveria de ser cuidadosamente “observado”.
Se a vadiagem e a mendiadade eram as acusações mais comuns nos
primeiros tempos, estando intimamente ligadas por causas sodais, havia
uma distinção moral no tipo de acusações, mais grave no caso da
vadiagem, estando esta intimamente associada aos mecanismos políticos de
regulação social, devido à demissão das obrigações da família e do laxismo
moral que isso evidenciava. Como tal, havia também que agir junto do
sentimento das populações através de uma determinada representação
sodal da criança: havia que refrear a visibilidade da condição da criança,
237
recolhendo-a ou tutelando , a sua vida privada e a sua envolvente social e,
simultaneamente, obnubilando a imagem da criança ao escamotear os
factos noticiosos mais negativos sobre o comportamento moral da
infanda. Para esta segunda medida, o governo dispunha de um mecanismo
censório desde que a LPI de 1911 decretara a proibição de notídas
envolvendo casos de delinquência juvenil:
“E expressamente proibida a narração dos casos de vadiagem, mendiadade, libertinagem, contravenções ou crimes cometidos pelos menores de que trata este decreto, ou suiadios dos mesmos, com ou sem a publicação dos seus retratos, ou mesmo a notícia simples daqueles casos, ou ainda a publicação de extractos dos respectivos julgamentos” (LPI,1911 — art.° 103.°).
A legislação reformadora de 1925 vdo reforçar esta disposição,
chamando para ela particular atenção e exigindo o seu cumprimento no
art° 120, incorrendo os infractores em multas ou penas de prisão. Esta
procura de ocultar a situação de crianças problemáticas e a mendicidade, é
um sintoma da modernidade que surge porque se alterou a percepção
política do potencial da educação e construção moral da infância,
originando dispositivos como o exemplo referido.
As infracções dos menores estavam associadas aos “maus hábitos”,
normalmente apontados como sendo vícios de carácter. Algumas dessas
ilegalidades morais eram cometidas através de práticas sociais como o
tabagismo, o abandono ou rejeição do trabalho, a frequência de
animatógrafos, de salas de jogo ou de prostíbulos, constituindo um corpo
de interditos que demarcava os limites da correcção social do menor. Devia
trabalhar mas não deveria ir ao cinema, ou isso seria um agravante.
Sobre as raparigas era recorrente a acusação de prostituição, na rua
ou em casas de “toleradas”. Se fossem criadas de servir em casa de
' 238
“senhores”, sendo trabalhadoras e obedientes, significava um bom cenário,
de cumprimento de um papel social que lhes evitava degradação maior.-A
visibilidade da mendicidade e da prostituição tomara-se ‘ insuportável,
conduzindo à procura da remoção das ruas de todas que as exerciam,
criando necessidades institucionais incomportáveis, no mínimo, pela
quantidade, embora o preâmbulo do decreto de 27 de Maio de 1911
atribuísse como primeira das medidas “o furtar a criança desprovida aos
ambientes viciados, que lhe envenenam a alma e o corpo,' aos meios de
infecção íntima que depravam e inutilizam uma parte considerável da nossa
população”.
239
M apa dem onstrativo do m ovimento da T u toria C entral d a Infancia-' de Lisboa, no m£s de J tâ h o de 1913
HUBMcaftao
KM TOTAL-
9 1 to97 11 108
, . . . y 99 10 6b197 17 144
S a l t u ................... 1 128 1 299 2
F k v ta liU m ta .< 1 __ 18 3
• «6 17 109tu traeçU ............. 57 5 63
15 151 _ 1
n i i i ç i i ................. '14 110
69 8 70104 14 118
HatsnlMtd*............ 50 8. 58Coloniza................ ............................ ................ 9
9 2>• 36 _ 86
4 9883 1 3319 8 97
8 8$ • 69 •2 9 4
l i t h i ia o ír t d i . 6 9 fc4 48 _ 6
1Anna proibida............. ................................ . 1
4— 1
41 1
1 11 a4 4
83 1 6467 67
Mendicidade....................................................... 544
— 544
Prh*a u tírier- s o t i u f r U a . .
2 _ 2.7 _8 • 1 • 46 b5 _ 5
Transgressão............................... ....................... 163
47
9010
8 8
JtKNORES E x is m r r s s m 31 OS JUNHO dx 1913:R efugio 1.* Secçfto .............................................. * 1*5Refugio a-1 SeççSo-..................... ............... 36Escola de Reforma d e L é b ô a . . ............ 95 "
Secretaria da Tutoria Central da Infaoda de Lisbôa, 31 de Julho de 1913.
- O juiz Presideote da' Tutoria — 5Wn> 9L iP ereira d e C astro. .
Figura 17 - Movimento, categorias, infracções e
demografia de internos. . .
Fonte: A Tutoria, n.° 11, Setembro de 1913.
A natureza das interdições formava uma assimetria entre as mais
antigas, tais como os comportamentos sexuais, o roubo ou a agressão, e os
que mais recentemente tinham surgido na vida urbana e de cariz mais
cosmopolita, como o tabaco, o “foot-ball”, andar de bicicleta ou o
animatógrafo. Este último item foi alvo de particular atenção, talvez por se
considerar ter um efeito contaminador e corruptor mõraL Depois de feita a
prova em tribunal,, o inquérito social apenso aos autos, a cargo dos
Assistentes Sociais, entre inúmeros quesitos sobre a vida privada da família
e sobre o ambiente que envolvia a criança, interrogava cuidadosamente os
hábitos do menor “É amigo dos pais, dos amigos, dos animais, das
plantas?"’ — “Quais os seus divertimentos predilectos?” — “Frequentando
animatógrafos, quais preferia?” - “Fumava?” - jogava?” (Portaria n.°
4463, 1925). A questão sobre o jogo referia-se, nessa segunda década do
século passado, não só aos jogos de azar mas também ao futebol1,
modalidade referida com frequência nos inquéritos dos Assistentes Sociais,
fazendo pensar sobre o impacto cultural que esta modalidade desportiva, a
par e em simultâneo com o moderno animatógrafo — a televisão —
produzem nos jovens de hoje.
A vigilância e a censura sobre os.cinemas, que se irá manter
durante muito tempo, estavam ligadas ao discurso das más influências
contaminadoras a que o menor poderia estar exposto, por isso, “pelo que
se refere a lugares de diversão - melhor dito de corrupção (...), não basta
cuidar do menor no seu ambiente estritamente familiar é preciso também
1 Tratava-se de futebol de rua, espontâneo, pois a sua prática organizada em clubes, sob supervisão, era louvada pelas suas virtudes. Praticava-se na Casa Pia desde 1893, constituindo a sua equipa um grande motivo de orgulho para a instituição. C£r. Rocha, Moraes & Barreto, Fernando (1987). Subsídios para a H istória da Educação Física na Casa Pia de Lisboa (1780-1987). Lisboa. No início dos anos de 1960 ainda a polícia continuava a perseguir as brincadeiras de futebol de rua nas áreas urbanas.
241
estar atento aos lugares que ele — para trabalho ou diversão frequenta”
(Fonseca, 1949: 113). Esta vigilância estava rigorosamente consagrada na
letra da reforma de 1925, conferindo competências à Tutoria para instaurar
processos e julgar donos e porteiros de estabelecimentos que permitissem a
infracção. .
“Os menores com menos de 16 anos completos não podem frequentar, sob pretexto algum, casas de toleradas ou de passe, de jogo proibido, clubes e tabernas nem assistir a espectáculos em cinematógrafos que possam ferir o seu pudor, desmoralizá- los ou pervertê-los (Decreto n.° 10767 de 15 de Maio, 1925: art.° 120.°)
Mais tarde, nos anos de 1950, vão-se encontrar novas preocupações
dentro dos inquéritos sociais. A pergunta sobre as influências do meio
soaal a que o menor esteve sujeito começam a surgir respostas
contemplando outras práticas cosmopolitas acrescentadas às anteriores,
como “muito influenciado por guloseimas, jogo dos bonecos nas tabernas,
tabaco, cinema, más companhias e táxis” (ATEL-DGSJ [1956], Mç. 1154).
Os matraquilhos, as gulodices, o andar de táxi, o luxo e a autonomia que
projectavam na aparência social, eram considerados impróprios para
menores e incluídos num enunciado de interditos.
Uma distribuição demográfica
Quanto à capacidade judicial de intervenção demográfica e
temtorial, a rede já estabelecida de Tribunais de Infanda dispunha de
mecanismos que repatriavam para as terras de origem as crianças apanhadas
pelos “avicos” nas ruas de Lisboa, sob os mais diversos pretextos. A
população da capital crescera praticamente para o dobro, entre 1890 e 1930242
(Sétimo Recenseamento Geral da População, 1931), engrossando também
ó número de menores abandonados, indigentes ou delinquentes, o que vai
constituir uma legitimação política suficiente para ós que nâó tivessem a
sua origem na capital, fossem devolvidos às suas terras de origem. Aliás,
um dos motivos de entrada na Tutoria era o de “emigração clandestina”,
um sinal nítido da pretensão de controlo demográfico.
O desejo de fixar os menores transparece bem nas palavras com
que o Director da Golónia Correcdonal de Izêda,José Rombo, encerra a
monografia da instituição que dirige. Depois de dogiar as virtudes do
regime correcdonal, atando caso exemplares de regeneração, como o de
“L. A. R., condenado por tríplice assassinato, estupro e roubo, actualmente
um dos colonos melhor comportados e mais trabalhadores, tendo até
mesmo sido um dos candidatos à última distribuição de prémios”, remata o
seu rdatório com um curto parágrafo:
“Alguns colonos, provindos dos meios urbanos, têm-se fixado nesta região, nela constituindo família e exercendo a profissão que aprenderam no estabelecimento.” (Rombo, 1931: 11).
Avançava-se na distribuição e fixação demográfica. Não se tratava
só de devolver os rurais à ruralidade, mas conseguir que alguns urbanos
por lá se fixassem e o uso dessas técnicas não ficou por aí, pois havia
também os territórios de além-mar.
O decreto de 1 de Janeiro de 1911 que criava a já referida Comissão
de protecção a menores, presidida pelo P.c António de Oliveira,
considerava no seu preâmbulo que “as colónias muito terão a aproveitar na
sua riqueza e prosperidade, quando a elas afluírem operários portugueses
com uma excelente preparação geral e uma sólida competência
profissional” (Protecção à Infânda - decreto de 1 de Janeiro, 1911).
243
. . A. ideia de utilizar crianças com intuitos colonizadores, depois de
preparadas para algum fim, era uma apropriação republicana de uma
aptidão desenhada pela Igreja: o sentido missionário. Já vimos como o
Colégio, dos meninos órfãos do Porto, desde o tempo do P.e Baltazar
Guedes,. no século X vn , enviava crianças para as colónias portuguesas,
introduzindo uma prática que persistiu e que nos conduz ao P.c Joaquim
Alves Correia e à sua tese apresentada ao X-° Congresso Internacional de
Protecção.à Infanda [1931], onde, sobre a necessidade do povoamento de
Angola, sugere:
• “Il faut absolument trouver une population pour occuper ces vastes étendues inoccupées. Où la trouver plus prête à servir que dans ces pépinières, dont les jeunes plantes n’ont encore ancune attache, qu’il leur soit bien pénible de rompre au sol que les a vues naître?” (Correia, 1931: 7).
Era uma intenção que recolhia no campo político o entusiasmo de
Norton de Matos e que as instituições interessadas acolheram de bom
grado tendo, em 20 de Maio de 1927, o Conselho dos Serviços Tutelares
de Menores do Ministério da Justiça, enviado ao Ministério das Colónias
um parecer preconizando a colonização europeia por crianças abandonadas
da metrópole (Correia,1931).
• Como potência colonial, Portugal tinha de estender a jurisdição do
direito penal de menores às. populações dos territórios ultramarinos, onde
existiam as mais diversas culturas e religiões. Em Março de 1925 reuniu-se
em Nova Goa o AT Congresso Provincial da índia Portuguesa, concluindo
pela carência de uma casa de educação para crianças, um instituto
correcdonal agrícola e um tribunal de tutela de infanda, ordenando que
fossem estabeleados, a fim de se. prevenir “as pragas sociais que podem
244
trazer a perversão ou « 'criminalidade” a crianças dé ambos os sexos até aos
catorze anos.
Em Angola fixou-se em 1930 a Liga Protectora de Infanda, sob os
auspídos da esposa do Govemador-geral, uma obra de assistência social,
não havendo ainda nenhuma casa destinada ao trato da delinquência,
embora em Moçambique já existisse desde 1905 instituições de ensino
profissional aos filhos dos deportados. Mais tarde, é a Casa Pia que
estabelece lá uma secção, para onde eram encaminhados os rapazes
recolhidos na rua por infracções, sendo dirigida por um sargento da Polida.
Na Guiné, os diplomas n.° 282, de Julho de 1925 e n.p 415, de Julho
dc 1928 dcddiam pela fundação dc uma Colónia Agrícola Correcdonal. O
seu regulamento previa uma escola de regeneração de menores do sexo
masculino, previamente divididos em três categorias:
- Delinquentes irresponsávds, pela sua pouca idade ou falta de
discernimento;
- Vagabundos ou mendigos, sujdtos à tutela do Estado;
- Reincidentes para internar, sob pedido dos pais ou tutores.
As estadias na Colónia teriam obrigatoriamente uma' duração' entre
5 e 8 anos, ministrando cursos de literatura elementar, ensino básico de
artes e ofícios, agricultura e seus derivados, moral e cultura física, regidos
pelos princípios fundamentais da “prática regular da higiene, da moral do
trabalho e da disciplina”, devendo os colonos combater firmemente “os
defeitos e os maus hábitos que provêni dos usos e costumes indígenas,
incompatíveis com o espírito fraternal e ó amor da humanidade”
(Gonçalves, 1931). ; ~ : "
Em Cabo Verde, não havia queixas significativas de delinquência
juvenil, tal como em Timor, onde a pobreza do território não constituía um
245
problema judicial mas de carênda educativa, tendo o Decreto n.° 12485 de
1926, o Estatuto, das Missões, autorizava um colégio para educação de
rapazes e três conventos para raparigas..
' “Fixar é um dós primeiros objectivos das disdplinas” (Foucault, 1987: 180).
' O Refugio da Tutoria (1911)
Os menores detidos, enquanto aguardavam a definição do seu
destino, permaneciam à guarda de um estabelecimento de transição, onde
eram observados para que os deasores possuíssem um conjunto de dados
“dentíficos”, de ordem antropométrica, médico-pedagógica, psicológica e
sodal, que os orientasse no destino a, dar aos menores. Instituído em
conjunto com as Tutorias e . a Federação Nadonal dos Amigos e
Defensores das Crianças, o Refugio da Tutoria reflectia bem a tendência
para a especialização no tratamento dos assuntos relativos aos menores sob
alçada, judicial. Sendo a sua orgânica enquadrada pela legislação em vigor,
as suas -funções e estrutura interna pautavam-se pela “obediência aos
preceitos . da ; modema orientação . dentífica” e . pela procura de
desenvolvimento em “harmonia com a evolução, das dêndas biológicas e
soaais” (Fonseca, 1928).
O carácter , experimental-das . aplicações exerddas sobre os alunos
era muito valorizado nesse tipo de instituições. Não . só os seus directores
eram . normalmente médicos e estavam em condições de: levar a cabo os
seus estudos, como dispunham de populações controladas e disponíveis.-O
Refugio, no final da década de 1920, dispunha de “serviços sanitários de
246
higiene e profilaxia”, de “serviços de investigação científica, fundada nos
modernos princípios da antropologia criminal e psicologia experimental”.
No plano curricular, a Educação Física e os Trabalhos Manuais, estavam
associados aos “estudos das tendências ou aptidões manifestadas por cada
menor”, mas também o Canto Coral, a Ginástica e os Exercícios Militares
eram cursos usados para a recolha de informações que constavam nos
boletins biográficos. Essas observações destinavam-se também a detectar e
separar os anormais patológicos e a classificá-los segundo a suas
“diferentes manifestações e formas de anomalia” (Fonseca, 1920). Pelos
estudos de orientação profissional, responsabilizava-se o próprio director,
segundo relatório da “secção cspedal de psicologia aplicada” (Fonseca,
1928).
Quer os Trabalhos Manuais que a Ginástica eram agora
apresentados como científicos, ou pedagógicos, criando um distanciamento
discursivo sobre as mesmas práticas. A Ginástica pedagógica era . uma
alternativa, civil à Instrução Militar Preparatória e a sua utilidade era
defendida pelo professor de, repare-se na designação, “Educação Física”
no Refugio do Porto com as seguintes palavras: “A nossa juventude tem
muito a lucrar com a sua prática, quando- orientada por professores
perfeitamente conhecedores do método e com dedicação • para
introduzirem o gosto pela sua prática, tomando as lições atraentes,- e
dando-lhe uma feição científica e não empírica como se pratica nos outros
sistemas, infelizmente ainda hoje sem adeptos, mais por ignorância do que
por outro motivo ponderável” (Aragão, 1913: 92).
' ' No regime disciplinar do Refugio figurava um controlo minucioso
de toda a.vida dos internos, exercido por “dois guardas que se substituem,
de forma a exercerem uma' vigilância permanente sobre os menores,
247
acompanhando-os de dia e de noite em todos os actos da vida do
internato, excepto nas aulas” (Projecto do Regulamento dos Serviços do
Refugio da Tutoria Central da Infanda da Comarca de Lisboa, 1928:§40.C).
Os menores internados eram agrupados por idades - 9 a 12,12 a 14 e 14 a
16 em três secções denominadas “Classes disciplinares”. Cada uma
dessas classes estava por sua vez “dividida e subdividida em grupos e
subgrupos”, de cerca de quarenta alunos cada uma, frequentando a
instrução primária. Esses grupos eram constituídos, por cada classe, por: a)
entrados pela primeira vez e não julgados; b) julgados para detenção até
seis meses; c) reincidentes ou julgados para Reformatórios ou Colónias
Correcdonais. Era um arranjo de alunos que ignorava o dito “efeito de
contágio”, ao privilegiar o seccionamento por idades, separando os mais
velhos dos mais novos, mas juntando os mais reincidentes com os entrados
sem cadastro e sem sequer terem ido a julgamento.
A organização estava encabeçada pelos “Serviços de Investigação
Científica”, que tinham a seu cargo a observação médico-pedagógica,
antropométrica e psicológica, além da investigação e estudo das condições
jurídicas e sociais dos menores e das suas famílias. A disdplina e a
instrução eram dingidas pelo mesmo gabinete, denominado “Serviços
disciplinares e de instrução”, a que incumbia a organização e regime da vida
do internato, a instrução literária, a educação moral e dvica, de observação
psicológica, educação física, trabalhos manuais e estudos das tendências e
aptidões dos menores. A orgânica da instituição estava complementada
pdos “Serviços Sanitários” e pelos “Serviços Administrativos”.
• . . O número de processos instaurados a menores sofre um acréscimo
muito significativo no ano de 1928, com um total de 1.028 casos, contra
248
616 no ano anterior, um aumento que se contabiliza pelo acréscimo de
acusações d e ‘Terigo Moral” (1927-76 casos; 1928-369 casos).
Para além duma métrica de avaliação, classificação e distribuição, os
tribunais de infância exerciam' a sua influência social segundo uma
racionalidade exercida à dimensão micro da- célula familiar, -mas
projectando também a sua intervenção à escala do controlo demográfico^
distribuindo os tutelados por diversas instituições que se vão dispersar pelo
território.
Perante os pais e tutores, em casos particulares, tinham a capacidade
jurídica de lhes retirar a tutela completa ou parcial dos menores a seu cargo,
substituindo*se em representação do Estado nessa responsabilidade, c
tinham o poder oposto de substituir os pais a pedido destes, uma vez que
os pais podiam internar os filhos considerados “indisciplinados”. Embora
de início estivesse previsto que fossem internados na qualidade de
pensionistas, ou seja, as famílias teriam de possuir meios para pagar
antecipadamente o internamento por periodos de seis meses (Decreto de
27 de Maio de 1911, art° 71, 72), depressa se vai tomar relativamente fácil
para os pais internarem os filhos que não podiam ou queriam sustentar, ou
que eram relapsos ao trabalho e relutantes à autoridade dos progenitores
ou tutores. Era uma prática antiga, cujo uso correcdonal foi retomado na
Casa de Correcção de Lisboa, receber gratuitamente os filhos considerados
incorrigíveis pelos seus pais, que para lá os enviavam sob ordem do
respectivo juiz (Azevedo, 1892: 6). A reforma de.1925 continua a permitir
essa possibilidade, mas a troco de uma pensão paga pelos pais.
O recorte disciplinar do-Refugio da Tutoria, pelo seu regulamento
de 1926, mantinha técnicas antigas com algumas adaptações e mais alguma
humanização, mas procurando alargar a sua eficácia através do acréscimo
249
de outras subjectividades. A prática da delação já não era sistemática e
adquinu uma funcionalidade moral que previamente não tivera, pois tinha
que ser justa, uma vez que a instituição pretendia acrescer ao olhar vigilante
entre pares, a capacidade de um juízo prévio do delator ‘Toda a queixa ou
acusação contra os seus companheiros ou contra os empregados, que seja
reconhecidamente falsa ou caluniosa será severamente punida” (Projecto
de Regulamento dos Serviços do Refugio da Tutoria Central da infância da
Comarca de Lisboa: 1928, art° 131.?, § segundo).
Embora com uma suavidade maior e contemplando algumas
espedfiddades individualizadoras dos sujeitos, as punições associadas à
humilhação, à privacidade, à alimentação, à exposição perante o colectivo e
à clausura continuam presentes, mantendo-se técnicas há muito usadas,
como se pode apreciar nas disposições sobre a aplicação de penas
disciplinares que poderiam se aplicadas aos menores, segundo a gravidade
dos factos:
“1.° - Repreensão particular ou perante a classe;
, 2.° - Privação de recreio, passeios e outros favores;
3.° - Privação de visitas e da correspondência à família;
4.° - Redução da alimentação;
5.° - Estacionamento de pé no recreio ou refeitório;
6.° - Serviços na cava na cerca, ou corte de lenha;
7.° - Isolamento na cela até oito dias.
250
§ Único — A aplicação destes castigos fica subordinada ao amor-próprio, temperamento e carácter de cada internado.” (Projecto de Regulamento dos Serviços dò‘ Refugio da Tutoria Central da Infanda da Comarca de Lisboa: 1928, art.° 133.°).
Uma constante, foi sempre a lotação completa das instalações
existentes e a redamaçào da sua ampliação. A mdo do século XX, quarenta
anos depois do aparecimento das Tutorias e dos Refúgios, o número de
internados não cessa de aumentar, sendo agora ■ tantos' * quantos’ os
processos judiciais instaurados no referido ano de 1938, còncentrando-sè
mais de metade nos Refúgios.
MENORES INTERNADOS
ANO 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956
Estabelecimentos de observação, correcção e vigilância de menores
1104 1171 1485 1316 1317 1128 1239
Colónias Comccionais 101 68 117 82 64 123 92
Escolas Profissionais 14 22 36 32 38 25 16
Pçformatórios 161 129 152 198 167 150 158
Pxfúgos das Tutorias Centrais ■ 798. 933 1130 964 995 784 945Institutos Particulares de Pegnerafão 30 19 50 40 53 46 28
Figura 18 — Estatística Judiciária de 1956. Fonte: INE.
As instituições Médico-Pedagógicas (1915)
Mobilizado em tomo de um discurso dentífico impositivo, o
aparato médico e a sua plêiade de especialistas vai reforçar-se com a criação
251
em 1915 do Instituto Médico-Pedagógico da Casa Pia, sob a iniciativa e
direcção de António Aurélio da Costa Ferreira, um médico que já fora
director interino da Provedoria da Assistência Pública de Lisboa que, com
esta instituição especializada, vai definir uma população carente de
cuidados médicos e educativos especiais.
Com Costa Ferreira está também o professor Palyart Pinto Ferreira,
pedagogo que levou muitas novidades à CPL, entre elas, a recuperação dos
mutilados de guerra que não faltavam no fim do conflito de 1914-18. Em
1918, Palyart Ferreira, então Chefe da Repartição Pedagógica de Instrução
Primária e Normal e Professor do Instituto Médico-Pedagógico, publicava
um trabalho sobre a reeducação profissional dos mutilados de guerra,
sendo bastante critico em relação à situação em França onde, por
conhecimento directo, comentava: “ (...) escolas de reeducação profissional é
coisa que não existe em França”, acrescentando, “Há uma ausência completa
de educação em todas as escolas que visitei”.
Em 1927 começa-se a cuidar da população feminina com o
Instituto Médico-Pedagógico das Florinhas da Rua, mas só em 1930, com
o legado pessoal do Juiz Navarro de Paiva, é criado o instituto que recebe o
seu nome, destinado a “anormais” do sexo masculino, que no ano seguinte
recebe, para além dos enviados por outras instituições, 12 anormais
patológicos enviados pelo Reformatório. Albergando inicialmente um
grupo reduzido de internos (45) e dirigido por pessoas de sólida formação
técnica, o instituto cuidava de preocupações reveladoras de uma
sensibilidade especializada que começava a afirmar-se nos enunciados
pedagógicos. Na concepção arquitectónica do edifício, oficialmente
aprovada em 1931, pode encontrar-se uma preocupação de separação
252
populacional por pavilhões divididos em células individuais. Encontra-se
uma justificação.neste trecho da monografia:
“ (...) convinha não perder de vista que se tra de uma população a que foi imposta, contra a sua vontade, por vezes violenta, muitas vezes astuciosa, a perda da liberdade. E se a melhor maneira de conduzir uma população destas é . a de a aproximar tanto quanto possível da vida real de todos nós e de todos os dias, afastando sobretudo dos seus olhos os sinais evidentes da sua clausura, tinha no entanto . de . tomar-se medidas de segurança de precaução, indispensáveis. (...) Para servir esta preocupação, em certa medida, cada rapaz terá o seu •- • quarto que será tanto melhor arranjado quanto melhor for o seii aproveitamento moral. A camarata é uma instituição abolida neste estabelecimento; não convém por aquelas razões . .. e mais porque é preciso evitar o contágio dos vícios sexuais que com aquele sistema de vida de internato mais se * desenvolvem e progridem” (Instituto Dr. Navarro de Paiva para Anormais do Sexo Masculino, 1931:10-11).
O que mais distinguia este instituto do de Aurélio Costa Ferreira .era
a natureza da sua população, uma vez que aqui não eram aceites anormais
por deficiências sensoriais, estropiados carentes de reeducação ortopédica
ou outros necessitados de cuidados médicos continuados. Sob o patrocínio
de Faria-de Vasconcelos, Director do Instituto de Orientação.Profissional e
do Instituto de Reeducação Mental e Pedagógica, o “Navarro de Paiva”
destinava-se aos anormais delinquentes do sexo masculino dos. 9 aos 16
anos. As suas bases educativas e o seu programa regimental assentavam nas
seguintes técnicas:
“1) Internato no campo — como o meio mais completo e favorável
não só sob o. ponto de vista, físico, mas também psico-pedagógico.para a
sua educação; . . . . . . . ,
253
2) Agrupamento dos menores — nunca em número superior a
quinze, em pequenas famílias, tendo por chefe um preceptor, de modo a
assegurar uma vida familiar adequada, benéfica para a sua formação;
3) Os menores são distribuídos em grupos homogéneos em
harmonia com a natureza e grau da sua anormalidade e as suas condições
de educabilidade;
• 4) Individualização da educação e ensino tomando em conta as
particularidades fisio-psicológicas dos menores, com o fim de obter um
maior rendimento educativo e social pelo tratamento apropriado a cada
caso;
5) Aplicação de métodos e processos de educação e ensino
fundados na actividade pessoa e integral do menor - física, manual,
intelectual, moral e social —, nos seus interesses, tendências e capacidades,
com o fim de cultivar o corpo e o espírito;
6) Programa de actividade tendo por objecto:
a — a ginástica fisiológica e psicológica dos menores para
exercício e treino das suas capacidades físicas e mentais;
b — a aquisição dos conhecimentos indispensáveis para a vida
e para á prática de um ofício, em harmonia com as aptidões dos
menores (...)” (Instituto Dr. Navarro de Paiva para Anormais do
Sexo Masculino, 1931:13-14).
A educação elementar compreendia “noções relativas à natureza, ao
meio físico, social e ao trabalho”, assim como “cálculo, leitura, escrita e
desenho”. A educação profissional proporcionava o aprendizado dos
ofícios de “jardinagem, trabalhos agrícolas, fabrico de cestos, fabrico de
cordas, fabrico de escovas e capachos e serviços domésticos”.
254
A partir de 1942, depois da morte do- seu fundador, o
estabelecimento-então-dependente do Ministério. da Educação Nacional,
enceta uma série-de reformas que estabelecem por lei as seguintes
valências:
— Constituir um centro de observação para os menores portadores
de anomalias mentais; •
• Preparar • o * pessoal técnico destinado aos, serviços de higiene
mental infantil;
— Suscitar a criação de instituições diferenciadas para administrar o
ensino, tratamento e assistência às crianças nas condições acima
mencionadas;
— Proceder a pesquisas nesta especialidade (Fontes, s. d.).
. Figura 19 —“O Sr. Presidente da Republica [Teixeira
Gomes] assistindo a um dos exercidos no Instituto
de Surdos-mudos”.
Fonte: Anuário da CPL (1924).255
. . . O pessoal incluía um director, .médico psiquiatra, três médicos
adjuntos com a mesma especialidade, seis psico-pedagogos, dois assistentes
sociais e um auxiliar social, um enfermeiro, um preparador de laboratório,
vigilantes e pessoal administrativo. A sua população de internos era
constituída por menores oriundos de escolas, assistência pública, dos
serviços jurisdidonais de menores, de clínicas de pediatria e psiquiatria,
atendendo também o público em geral que se lhes dirigisse. Após um
primeiro diagnóstico eram constituídas classes de observação e deadia-se
se o menor deveria ficar internado ou não, considerando-se as vantagens
do internato as seguintes:
“Outra d as . possibilidades de observação que dá o internamento é ser o lugar de apredaçâo do seu valor terapêutico. A vida de internato, judiciosamente orientada e agrupando os menores segundo determinadas características psicológicas, constitui uma verdadeira terapêutica de grupo e além disso ela é benéfica à criança não somente pela simples mudança de atmosfera, mas também porque-a sua actividade se encontra regulada” (Fontes, s. d.).
Em simultâneo com a terapêutica do menor, intensificava-se a
acção das assistentes sociais que agiam junto das famílias, procurando
estruturá-las melhor e. instruí-las sobre como deviam voltar a acolher os
menores quando saíam do internamento. A essas assistentes incumbia a
observação dos sujeitos e a organização de um arquivo que permitisse o
conhecimento e a gestão. minudosa dessas populações problemáticas,
através da elaboração de três tipos de fichas:
- ficha s familiares, onde se registava o apelido, morada, nome das
pessoas que a constituíam, idades, naturalidade, estado, grau de instrução e
habilitações, observações psicológicas, estado de saúde dos vários
membros da família, legalidade da mesma, religião que professa, situação
256
económica, características da habitação, diligências feitas pela assistente
sodal e resultados obtidos; •
- Fichas individuais, contendo um resumo da vida da criança desde o
nascimento até a data da entrada no Instituto, com referências de carácter
médico, psicológico, escolar e sodal;
- Inquéritos médico-socims, onde se pretendia captar - para além de
todas as minúdas possívds que os médicos e os psicólogos pudessem
detectar — as condições económicas e morais da família e os seus
antecedentes hereditários.
O historial da família conduzia a uma lógica causal quanto aos
efdtos nefastos que poderia ter o mdo familiar
“ Os antecedentes pessoais sâo, nos inquéritos, capítulo de grande interesse pelo que podem eluddar acerca da origem e passado das alterações o observando, descrevendo-se a m a n e ir a como decorreu a gravidez e o parto, as doenças que teve, a evolução do desenvolvimento físico e mental, os vidos adquiridos, o carácter, as tendências manifestadas em casa e fora do ambiente f a m i l i a r , as adtudes usadas para com as outras crianças e os demais detalhes que a assistente sodal julgue necessários para um melhore estudo da criança, finalizando com um resumo da impressão geral que tem sobre. o caso, e sugerindo mesmo a solução que reputa mais conveniente sodalmente, em vista das condições do mdo da ' famüia” (Nunes, 1943:156).
A observação e terapêutica estavam centradas nos fundamentos da
psicanálise, que tarhbém interpretava a origem dos problemas: <fNous ne
pouvons pas jamais oublier qu'une grande partie des attitudes des élèves
son le résultat de complexes qu'ils n’ont pas résolu: Et l’étude et la
thérapeutique psycho^pédagogique de l'enfant sera possible lorsqu’on
envisage aussi la thérapeutique des adultes” (Fontes, s. d.).
257
São* instituições regradas pela ordem jurídica e pela ciência médica
que, em nome duma causa pública se dedicam à aplicação de sistemas de
contabilização, avaliação, terapia e controlo das suas populações internas
“especiais”, constituindo-as em tomo de um exercício segrtdador,
contribuindo também com essa economia de sujeitos “anormais”, com o
detalhe do seu conhecimento e govemo especializados, para a instauração
de uma progressiva numeraU^ação do mundo - “the world is becoming
numerical” (Hacking, 1990).
A Escola Agrícola de Reforma (1919)
Este estabelecimento correcdonal, inserido na especialidade rural da
reeducação, sequela da colónia de Vila Fernando, foi criado pelo Decreto
n.°.6117, de Setembro de 1919, promulgado pelo Ministro da Justiça, o Juiz
Conselheiro Artur Lopes Cardoso, que tinha vivido na região. Situado a
cerca de 40 km de Bragança, fúndonava num edifíao que, com o advento
da República, fora usurpado a uma congregação religiosa de padres
espanhóis. A. sua valência prinapal era o trabalho agrícola, onde se
aplicavam os colonos internados. Havia também oficinas de sapateiro,
alfaiate, carpinteiro e . serralheiro. Foram os próprios colonos, aliás, a
reconstruir em boa parte. o edifíao que, de iníao, poucas condições
ofereda para os albergar.
A partir das reformas de 1925 adopta a designação de Colónia
Correcdonal de Izêda, com a promulgação do Decreto n.°10767 de 15 de
Maio. Em 1951, começa a ser construído com mão-de-obra prisional um
novo edifíao, passando o estabelecimento a chamar-se Escola Profissional
258
de Santo António, sendo a sua. administração e direcção entregue em 1961
aos missionários da Sociedade Portuguesa-Salesiana, que lá permanecem
até 1977, altura em que o antigo director, um médico militar que lhes tinha
entregue a Colónia em 1961, para lá voltou. Para gerir essa mão-de-obra
para a construção civil foi especialmente criada a Brigada de Trabalho
Prisional de Izêda que funcionou durante nove anos, os necessários para
acabar a obra (Beça,. 1985: 6-9).
Na década de 1920, os internados estavam divididos, em três
escalões de acordo com o grau de desenvolvimento físico e etário e, dentro
de cada escalão, estavam divididos segundo a evolução comportamental
apresentada, um procedimento comum na época, simbolizando para cada
criança o grau de proficiência adquirida, atribuído pela instituição por
contraste com os outros. Assim, existiam as habituais três secções: l . a,
correspondente aos “recém chegados”; 2.a, os “melhorados” e a 3.a para os
“apurados”. A pertença a determinada secção trazia regalias diferenciadas e
a sua identificação fazia-se através de três tamanhos diferentes de uma
estrela usada nos uniformes.
As crianças trabalhavam oito horas por dia (10-14 e 16-20) para
além da limpeza e outras tarefas próprias da vida em clausura. Entre as 7:30
e as 9:30 frequentavam aulas de instrução primária onde aprendiam a ler, a
escrever e a contar, embora não fosse um estudo muito aprofundado.
Queixava-se o seu director José Pinto Rombo, na monografia que assina
em 1931, que os trabalhos agrícolas prejudicavam a aprendizagem e, apesar
de se congratular com o facto de 15 alunos em dois anos terem obtido o
exame da 2.a classe, para um universo de 80 alunos, revelava - poucas
aspirações relativamente ao sucesso da escolarização dos internados.
259
Aos domingos a rotina diária era alterada. Havia aulas de ginástica
entre as 8 e as 9:30 e entre as 14 e as 16 a Banda tocava música, um ensino
que era ministrado a todos. Mais tarde, reservava-se uma hora para a leitura
de “qualquer trecho educativo e instrutivo que um colono costuma fazer à
comunidade, com a assistência de um funcionário superior” (Rombo, 1931:
9)-Quando em 1961 começa a funcionar como escola profissional,
ministra-se o ensino básico mas as actividades centram-se na
aprendizagem, mantendo-se a formação mais tradicional como a sapataria
ou a agricultura dos 150 hectares de terreno, mas criando também
especializações mais modernas como o melhoramento das instalações
tipográficas e os primeiros cursos de mecânica.
260
C o n s id e r a ç õ e s f in a is
A genealogia que aqui se expôs procurou revelar uma
indissociabilidade entre os regimes disciplinares e a vontade de
transformação da criança através da acção educativa institucional, o que faz
das práticas regimentais uma articulação funcional intimamente associada
às práticas pedagógicas. O discurso disciplinar da modernidade foi-se
progressivamente ausentando, dissimulando-se sob a discursividade
pedagógica concentrada na “suavidade dos métodos”, isto é, a pedagogia
tem-se socorrido mais da articulação funcional da disciplina, do que a sua
presença no discurso pedagógico faria supor.
Nem sempre foi assim. Tempos houve em que a obediência e a
disciplina foram louvados pelas suas virtudes de construção moral mas,
com o surgimento do liberalismo, da secularização da providência e de um
discurso pedagógico cientificado, o exercício soberano dos rigores
disciplinares foi gradualmente conduzido para um governo de estilo mais
pastoral e menos evidente, não significando o seu desaparecimento mas a
assunção de formas de governação dos escolares menos violentas fisicamente
e, por isso, menos visíveis.
Foi Foucault quem teorizou sobre o exercício de um poder pastoral,
ilustrando-o metaforicamente com as relações entre pastor (representante de
Deus) e o rebanho (comunidade), presentes na cristandade. Essa relação
manifesta-se pelo trabalho do pastor na constituição e reunião do grupo, na
sua condução, na salvação de cada um e de todos no seu conjunto e na
devoção ao conhecimento de todos os elementos e de cada um na sua261
individualidade. As instituições modernas que aqui foram apresentadas
representam bem esse momento de viragem no protagonismo dos regimes
disciplinares, devido à emergênda desses novos artefactos pedagógicos
suportados no plano textual pelo discurso dentífico, numa relação que se
consolidava em tomo da configuração moral dos indivíduos. Essa inflexão
da configuração moral sob “sujeição” para um regime de “liberdade
regulada”, constitui um traço genealógico da modernidade nas instituições
educativas.
Este texto é também uma procura de aproximação ao universo
vivendal da criança em regime de internato educativo, matéria
abundantemente ilustrada na literatura ficdonal alemã conhecida por
Btldungsromany ou romance de formação,1 por vezes designada em
português por “romance psicológico”, género que retrata a existendalidade
da infância e adolescênda num ambiente educativo compulsório. A
literatura portuguesa também é fecunda, senão em dimensão e escolástica,
■ pelo menos na qualidade dos romances dedicados a essa situação particular
da criança, contando-se entre os autores, João Gaspar Simões com
‘Internato”; Urbano Tavares Rodrigues com “Casa de Correcção”; João
Marmelo e Silva com “O Adolescente Agrilhoado”; José Régio com “Uma
Gota de Sangue”; Aquilino Ribeiro com “Uma Luz ao Longe” e Virgílio
Ferreira com “Manhã Submersa”, entre certamente alguns outros.
Em toda essa literatura perpassa um assombro da criança perante a
sua condição, o • seu quotidiano e a envolvênda social que o rodeia e
condiciona em todos os actos da sua vida, mesmo os mais íntimos,
justificando que se esmiúce de forma metódica e multidisdplinar, o
1 Sobre este género literário cfir. Carmo, Carina Infante do (1998). A doksctr m Clausura.Faro: Universidade do Algarve - Centro de Estudos Aquilino Ribeiro.
262
nascimento desse universo tão singular como é o da educação da criança
em clausura, bem como a imagem que a literatura construiu a .partir dela. A
presente abordagem ao universo correcdonal de menores, procura, balizar
um campo de investigação e. buscar uma validação metodológica e
conceptual também nesse sentido.
Há, portanto, um conjunto de linhas de investigação a.aprofiindar,
no sentido de perceber melhor como interagiam os discursos pedagógicos
com as práticas disciplinares nos territórios educativos preenchidos pela
criança totalmente governada por uma instituição tutelar, ou com regime
semelhante. Um desses rumos passa pela Casa Pia de Lisboa, uma
instituição que foi pioneira na modernidade disaplinar e pedagógica dos.
seus regimes de práticas, tendo ultrapassado já os 200 anos de existência e
visto, a luz de quatro séculos diferentes. As metamorfoses que sofreu
reflectem bem a vontade de adaptação às alterações sodais.. que
testemunhou, assim como constituem um objecto merecedor de uma
análise mais detalhada que deverá ser, pela exigência da sua dimensão,
melhor abordada e em momento mais adequado.
Este trajecto pelas instituições que pretenderam transformar
coercivamente a criança, transporta-nos a um universo .educativo, tantas
vezes esquecido no meio da proficuidade discursiva da pedagogia
contemporânea e da divergência política, campos esses quase
exclusivamente preenchidos pelas questões em tomo da. universalidade da
“escola de massas” e da sua. eficácia social. No entanto, se essa menor
atenção do interesse, pedagógico. se deve talvez ao diminuto universo
abrangido, por. algum tipo., de educação correctiva, ..já é. menos
compreensível o afastamento do tipo de regimentalidade a que esses alunos
são constrangidos e dos processos educativos de submissão absoluta, para
263
que se opere neles uma profunda alteração do eu, capaz de lhes incutir uma
capacidade de se autogovernarem e integrarem, da forma mais pacífica e
produtiva, numa sociedade moralmente “normalizada”. É nesse sentido
que a Escolà assume também uma função terapêutica, ao procurar agir
precocemente sobre a integração social dos menores
As sucessivas revelações públicas de abusos cometidos sobre
internos, surgidas-um pouco de todos os lados, desde os anos de 1970
sobre um internato para aculturação de índios no : Canadá até às mais
recentes sobre a Casa Pia, para não falar das instituições religiosas, vieram
validar socialmente a maior atenção que as circunstâncias do quotidiano
dessas crianças devem merecer, não só do ponto de vista dos seus direitos
sociais mas, principalmente, no uso escolar dos artefactos tutelares
caucionados pelo discurso pedagógico e integrantes dos regimes educativos
que lhes são aplicados. São consequências favorecidas por sistemas pouco
centrados no objecto da sua existência, os menores que ficam dependentes
de sistemas institucionais predominantemente administrativos e
descaracterizados do ponto de vista afectivo sendo, pela natureza do seu
fechamento, pouco acessíveis a um controlo extemo que não se limite à
consistência burocrática.
Esta'espécie de consciência tardia veio criar uma necessidade de
rever as condições em que são albergados e educados os menores sob
tutela institucional e, sobremaneira, compreender os regimes disciplinares
em que a sua educação deve decorrer. A questão da disciplina não se refere
ao comportamento dos aliinos — com o qual muitas vezes é confundida —,
mas ã toda a panóplia de práticas dirigidas ao arranjo das pessoas, dentro da
organização, enquanto- expressão do enquadramento de uma entidade
pedagógica.
264
Se as ordens religiosas foram durante séculos detentoras dos rigores
e mestria disciplinar, com a secularização gradual de instituições sociais, as
disciplinas de índole militar foram substituindo as pontuações monásticas.
A regulação das práticas de regime procuraram ser inicialmente
uma expressão do discurso pedagógico, um espaço que a partir da
segunda metade do século XIX se foi repartindo entre o discurso médico e
o jurídico. Ao infiltrarem um campo discursivo predominantemente
pedagógico, a ciência médica e a norma jurídica continuaram a manter
como referente os próprios enunciados da pedagogia, mas passavam a
espartilhá-los por uma ratificação científica e quantificada -dos-ideais
filosóficos da razão pedagógica. Esta relação conduzia, por sua vez, a que
o discurso pedagógico sofresse ajustamentos impulsionados pelos
contributos do discurso científico. Nada pode ilustrar melhor a
concepção foucaultiana de poder que esta constante perturbação de
entropia, cujo movimento alguns autores como Baker (2001) ilustram
com uma metáfora de movimento perpétuo ou dança, ou como Ó (2003)
quando se refere a um “tango”, uma acção que não é isolada e onde um
avança e outro recua mas deslocando-se ambos para a mesma direcção
indeterminada, num movimento constante em que -se houvesse .uma
ruptura a eficácia produzida pela consonância se apagaria. Nietzsche
referiu-se a essa progressão do poder, tal como Foucault, como. não
tendo uma orientação ou. um centro de emanação, algo onde “a forma é
fluida, o «sentido» é-o ainda mais...” (Nietzsche 2000 [1887]: 87).- ■
No virar do século XIX para o XX, com a crescente afirmação do
positivismo e da psicologia científica, os requisitos técnicos para o
desempenho funcional nas instituições, correccionais tomaram-se mais
exigentes, contrastando com a formação incipiente dos que tinham a seu
265
cargo aplicar novos modelos de relacionamento pedagógico, bem como a
aplicação de práticas científicas novas que procuravam expandir-se e
generalizar-se. Esta dissonância entre a lex e nprax is produzia um abismo
quase paradoxal entre a retórica política e a realidade vivida no seio das
instituições.
Pode-se imaginar, que os regimes disciplinares produzem os seus
efeitos através da relação pedagógica em dois planos: um, de tipo gerendal
e tendendalmente mais objectivo na sua acção, exerce-se essencialmente
sobre os corpos e a forma de os agregar e sincronizar, outro, de índole
moral e subjectivo, agindo sobre os valores e a sobre a forma como nos
percebemos e relacionamos com nós próprios e com os outros. Numa
dimensão de economia política de governo dos alunos, a articulação física
dos seus corpos permite a sua presença — embora nem sempre a sua
disponibilidade para o exercício de uma relação pedagógica; na dimensão
moral, as práticas disciplinares estão orientadas para uma orientação
pessoal no sentido dos valores colectivos. Ambas, conjugadas pelos
auspícios da pedagogia, orientam os menores no sentido das articulações
sociais com os outros e das suas escolhas morais para a interacção consigo
próprio e com o colectivo em que deverá participar de uma forma activa e
útil. ■
Se em cada um desses planos procurar-mos particularizar alguns
exercícios, num, pode-se descortinar uma objectividade estrutural e
fúndonalista em tomo da repartição do tempo e do espaço, na forma de
agregar os indivíduos e de racionalizar a disponibilização dos seus corpos e
gestos para determinado fim de ordem gerendal. São exemplo os horários,
a indumentária, a maneira de assodar os alunos, a distribuição dos tempos
livres, as refdções oü a margem de disporem de si que a instituição lhes
266
concede. Não se nega que hajam aqui efeitos de subjectivação, mas sim
que, axialmente, são actividades que tendem para o extremo mais
objectivo. Já num plano' mais subjectivo e menos evidente, a acção
disciplinar está intimamente ligada'à prática do exame, ao discurso dos
valores, à relação com o sentimento de dever e à culpa e gravidade do
gesto, sendo aferida por regulamentos e princípios não escritos mas
previamente inculcados. É uma variável disciplinar que impulsiona a
descoberta dentro-de cada um dos defeitos que possa emendar em si, uma
prática confessional a que as técnicas “psi” conferiram um grande
incremento ao longo, do século XX, favorecendo a edificação de uma
almejada “disciplina que vem de dentro”, herdada de finais do século XIX,
permitindo assim a transição da ênfase na penitência para a culpa. Do
castigo que punia passou-se à cura e depois à autocura: a emenda pelo
“cuidado de si” que permite que os sujeitos se auto governem.
Esses enunciados e modalidades regimentais, extremados na
procura de corrigir socialmente crianças ingovemadas, ou seja, que não
estavam submissas à soberania educativa e sociabilizadora de uma família ̂
de um patronato ou instituto, são mecanismos que perduram e se
encontram transversalmente presentes nos sistemas educativos
contemporâneos através das práticas de relacionamento pedagógico. Nas
instituições • correccionais, solicitava-se aos menores que,
simultaneamente, representassem o papel de alunos, aprendizes de um
ofício, trabalhadores,-por vezes militares, elementos de um corpo social
de pares que os obrigava aos deveres de pertença,. produtores,
consumidores, etc., tudo como hipoteca do seu futuro.
O internato educativo, particularmente a visão do seu potencial
correctivo, que conheceu grande popularidade durante quase.um século,
267
começou em declínio na segunda metade do século XX, tomando-se uma
modalidade menos credível e algo dissonante dos valores sociais
contemporâneos.
Actualmente, os discursos pedagógicos podem estar cada vez mais
moderados e inócuos e as práticas disciplinares mais brandas e
esterilizadas, rejeitando abertamente o contacto corporal, mas isso não
significa a sua ausência pois as mesmas necessidades de construção dos
sujeitos e o mesmo tipo de problemas ditados pela necessidade de
promover uma integração social pacífica de todos manter-se-ão enquanto
continuar o mesmo tipo de paradigma educativo da “escola de massas”,
ditado pela necessidade de construir e governar populações escolares cada
vez mais vastas.
Algures e em algum tempo das nossas vidas, um subsistema social
govemamentalizado vai reclamar a nossa “passagem” e exigir uma
prestação de cada um de nós. Com o desaparecimento gradual da
obrigatoriedade universal de cumprimento do serviço militar, com a
dispersão das práticas religiosas e da descentralização e pulverização dos
cuidados de saúde, a equidistância politicamente ponderada entre a
administração da justiça e o risco, o fim do Estado providência, as
alterações demográficas e os cambiantes da família como célula social,
entre tantas outras mudanças sociais ocorridas na segunda metade do
século XX, alterando os papéis institucionais de sociabilização e
construção social da criança, resta ao Estado modemo pouco mais que a
disponibilidade regimental de um aparelho disciplinar centralizado e
universal que continua a consolidar-se e a expandir-se: a Escola.
268
FONTES DOCUMENTAIS E BIBLIOGRÁFICAS
Ar q u iv o s e C e n t r o s d o c u m e n t a is
Arquivo do Instituto Histórico da Educação.
Arquivo do Ministério do Reino, Torre do Tombo.
Arquivo do Tribunal de Menores de Lisboa.
Biblioteca do Ministério do Trabalho e Solidariedade.
Biblioteca Gulbenkian da FPCE, Lisboa.
Biblioteca do Instituto Superior de Segurança Social.
Biblioteca Nacional.
Centro Cultural Casapiano.
Centro de Documentação do Instituto de Reinserçâo Social.
Espólio particular do vereador Alexandre Franco.
FONTES DOCUMENTAIS
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Assistência, Direcção Geral de (1931b). Instituições Particulares de Protecção à Infância Existentes na Cidade de Lisboa. Direcção Geral de Assistência, Lisboa.
Colónia Agrícola de Vila Fernando — Catálogo dos artigos com que concorre à Exposição Agrícola do Palácio de Cristal Portuense (1903). Porto: Tipografia da Real Oficina de S. José.
Colónia Correccional Agrícola de Vila Fernando — Catálogo dos artigos com que concorre à Exposição Nacional do Rio de Janeiro (1908). Porto: Tipografia da Real Oficina de S. José.
CPL - Regulamento para o ensino de Ginástica pura e aplicada (1895). Portaria n.° 209.
Decreto-lei n.° 33262 de 24 de Novembro (1943).
Decreto n.° 10767 de 15 de Maio (1925).
Decreto n.° 15162 de 5 de Março (1928).
Decreto-lei n.° 36448, de 1 de Agosto (1947).
272
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Decreto-Lei n.° 44288 de 20 de Abril - Organização Tutelar de Menores (1962).
Diário do Govemo de 19 de Junho — Carta de Lei (1871).
Direcção Geral de Assistência. (1931). Boletim de Assistência -r n.° 1, Outubro de 1931.
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Instituições Particulares de Protecção à Infância Existentes na Cidade de Lisboa (1931). Direcção Geral de Assistência, Lisboa.
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