a encenação cinematográfica sob duas perspectivas

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  • 7/28/2019 A encenao cinematogrfica sob duas perspectivas

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    A encenao cinematogrfica sob duas

    perspectivas

    Cristiano Figueira Canguu1

    AUMONT, Jacques. O cinema e a encenao. Traduo Pedro Eli Duarte. Lisboa: Texto& Grafia, 2008.

    BORDWELL, David. Figuras traadas na luz: a encenao no cinema. Traduo MariaLuiza Machado Jatob. Campinas: Papirus, 2008.

    Uma das caractersticas do campo dos estudos em cinema na ltima dcada tem sido a

    retomada de interesse por seus aspectos plsticos, preteridos desde o fim da dcada de

    1960 em relao a outros problemas de pesquisa. Considerando elucidado o problema da

    forma (e a insistncia nele como formalismo), a maior parte das pesquisas na rea

    voltou-se para questes diversas, como a construo da ideologia, a representao deidentidades, o papel do inconsciente e a natureza da fico.

    No obstante a relevncia desses temas, a importncia de se continuar a investigao

    dos elementos flmicos formais tem sido demonstrada por pesquisadores de variados

    backgrounds. Publicaes recentes dos anglo-americanos David Bordwell, Tom Gunning,

    e Kathryn Kalinak, assim como dos francfonos Jacques Aumont, Andr Gaudreault e

    Michel Marie tm levantado discusses rigorosas sobre as possibilidades estticas do

    cinema e dos meios audiovisuais.

    Um passo fundamental na circulao em portugus dessas pesquisas a publicao e

    traduo em tempo hbil dos livros O cinema e a encenao, de Aumont, e Figuras

    traadas na luz, de Bordwell. Ambos discutem um assunto muito mencionado, mas pouco

    investigado em profundidade pelos tericos de cinema: a encenao. Particularmente, a

    publicao simultnea de ambas as obras evidencia como um mesmo elemento

    cinematogrfico pode ser examinado luz de tradies tericas distintas o cognitivismo

    1

    Mestre em Comunicao e Cultura Contemporneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Doutorandopela mesma instituio. Membro do grupo de pesquisa Laboratrio de Anlise Flmica. E-Mail:

    [email protected]

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    americano e o ps-estruturalismo europeu1 e, talvez mais determinante, sob modos de

    pesquisa diferenciados: encontram-se, em O cinema e a encenao e em Figuras

    traadas na luz, respectivamente uma esttica e uma potica da encenao.

    Aumontdesenvolve em seu livro a investigao iniciada na coletnea La mise-en-scne2

    a respeito da especificidade da encenao no cinema, propondo-se o seguinte dilema:

    como que pudemos hipostasiar a encenao a ponto de nela vermos a qualidade

    essencial do autor, do poeta, do gnio e como se pde conciliar isso com uma esttica,

    uma moral e at uma poltica da arte cinematogrfica [...]? (p.14). Em outras palavras,

    como manter a noo de especificidade do cinema apoiando-se na noo teatral de

    encenao? As tcnicas especficas de encenao no so o tema da obra O cinema e a

    encenao, e sim os conceitos dominantes de mise-en-scne em momentos-chaves dacrtica e da realizao cinematogrfica, analisados sob a discusso esttica da natureza

    do cinema.

    Seu primeiro captulo dedicado a reconstituir a evoluo da encenao flmica, focando

    suas heranas teatrais e as conseqentes rebelies contra o teatro filmado. A luta pelo

    reconhecimento do cinema como arte autnoma e do diretor como seu autor implicaria,

    assim, na libertao frente ao predomnio do texto verbal (os dilogos, a dico, os

    interttulos e o argumento), da pantomima (os gestos estilizados) e da cena italiana (as

    noes de quarta parede e de ponto de vista nico), assim como no reconhecimento da

    vocao do cinema pela revelao do real. Seu resultado seria a passagem do primeiro

    cinema ligado ao teatro ao segundo cinema caracterizado por uma encenao

    propriamente flmica, demonstrada por Welles, teorizada por Andr Bazin e aprofundada

    nos cinemas novos.

    Em seguida, investigam-se as implicaes desse percurso histrico no conceito de

    encenao, relacionando os posicionamentos tericos de realizadores determinantes

    dentre os quais Bergman, Godard, Pasolini, Straub e Ackerman com os seus estilos

    particulares de mise-en-scne. Nessa perspectiva, caracterstica de Aumont3, fazer e

    pensar cinema so indissociveis, assim como o so a mise-en-scne e a autoria (p.125).

    O proponente mais representativo dessa nova idia de encenao seria o crtico Michel

    Mourlet, que a definiria como uma reconstruo criativa do mundo na imagem (p.79-80).

    Porm, apesar da sua importncia na libertao do cinema da acepo excessivamente

    teatral de encenao, conclui-se que a noo defendida por Mourlet seria inadequada

    realidade (p.96, 120).

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    Aumont avana seu prprio conceito de mise-en-scne no terceiro captulo, dialogando

    com Pudovkin, Eisenstein, Nol Burch e com manuais de cinema de diferentes pocas. A

    encenao propriamente cinematogrfica, consolidada no segundo cinema, consistiria

    na substituio da tcnica linha-dura da encenao teatral pelo aprendizado de comoutilizar o acaso (p.173). Contudo, a emerso de um terceiro cinema, fortemente de

    montagem e articulado com as novas tecnologias, foi um duro golpe no projeto esttico

    do cinema de mise-en-scne. Como sada, Aumont sugere a busca por um cinema

    autoral de inveno de formas, no ligado ao teatro nem concepo romntica do

    criador (p.177-180).

    Tal exame histrico da ambivalente noo de mise-en-scne um esforo elucidativo e

    proveitoso, porm no livre de problemas: o principal a carncia, talvez resultante doestilo ensastico adotado, de um engajamento terico mais argumentativo. A teoria de

    Aumont acerca do papel da encenao (legada do teatro) na natureza especfica do

    cinema no dialoga, por exemplo, com teses divergentes sobre o assunto. Uma das mais

    relevantes a exaustiva argumentao de Nol Carroll contra o prprio pressuposto da

    especificidade nas artes e no cinema4.

    Tampouco se d espao para desenvolver e sustentar apropriadamente a prpria

    concluso da obra. O substancial exame, engendrado pelo autor, de toda a histria

    conceitual da encenao flmica tem um desfecho surpreendentemente ligeiro: sua tese

    acerca do cinema inventor de formas restringe-se a um curto arremate reviso

    anterior. Resulta, assim, de O cinema e a encenao a impresso de uma teoria esttica

    interrompida prematuramente e merecedora de um desenlace mais desenvolvido.

    David Bordwell, autor de Figuras Traadas na Luz, um dos principais proponentes

    contemporneos da abordagempotica do cinema, seguindo a retomada, pelas estticas

    europias e eslavas do sculo XX, do tratado pioneiro de Aristteles: uma potica um

    estudo dos princpios que regem a construo (poiesis) e os efeitos dos objetos estticos,

    levando-se em conta a relao entre o arranjo dos seus elementos e as funes por eles

    desempenhadas. Bordwell, juntamente a Kristin Thompson, prope um modelo

    institucional-funcionalista que enfatiza a discusso de normas artsticas histricas e a

    anlise das escolhas artsticas como prticas de resolues de problemas5.

    Duas das funes estticas mais importantes no cinema narrativo seriam contar uma

    histria e direcionar a ateno do espectador para as informaes mais importantes. Para

    isso, diversos recursos cinematogrficos so costumeiramente usados, como a

    montagem, a msica, os dilogos e movimentos de cmera. Figuras traadas na luz

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    uma anlise minuciosa do emprego de tcnicas de encenao por quatro cineastas que

    as privilegiam: Louis Feuillade, Kenji Mizoguchi, Hou Hsiaohsien e Theo Angelopoulos.

    O mtodo empregado na anlise histrico-formal da encenao cinematogrfica ligado argumentao mais geral sobre a historiografia do cinema, apresentada em On the

    History of Film Style6 e segundo a qual seriam excessivamente simplistas os modelos

    mais comuns de histria do cinema: postulando sempre uma grande narrativa

    teleolgica para explicar a histria do cinema como um todo, reduziriam cada um dos

    eventos histricos a meros exemplos de uma tendncia abstrata. Bordwell defende uma

    pesquisa mais minuciosa e que leve em conta os agentes concretos e como concepes

    estticas, repertrios de tcnicas, circunstncias de produo, recursos tecnolgicos e

    decises artsticas resultam em configuraes estilsticas concretas (p.69-70)

    7

    estasmuitas vezes divergentes e irredutveis s grandes narrativas abstratas.

    O primeiro captulo de Figuras traadas na luz examina a trajetria das acepes de

    mise-en-scne na literatura sobre cinema e discute os motivos tradicionais (tambm

    discutidos por Aumont) pelos quais as tcnicas de encenao tm sido menosprezadas

    pelos crticos e abandonadas gradualmente pela maioria dos cineastas. Tal abandono

    resultaria no uso intenso e repetitivo de movimentos de cmera e do plano-contraplano,

    ao qual se correlacionariam planos cada vez mais prximos e uma montagem

    crescentemente veloz. A meta proposta por Bordwell consiste em investigar a opo,

    explorada por poucos cineastas contemporneos, de criar movimento dentro de um

    mesmo plano fixo atravs da encenao em profundidade de campo (p.45-57).

    Os quatro captulos seguintes so anlises detalhadas das tcnicas de mise-en-scne dos

    quatro cineastas escolhidos. Examinam-se, primeiramente, a explorao extenso do

    proscnio no eixo da profundidade (p.95-96) e o jogo de encobrir e expor personagens

    (p.97), desenvolvidos por Feuillade e outros no estilo tableau do cinema mudo europeu.

    O captulo sobre Mizoguchi investiga as mudanas nos filmes japoneses com a chegada

    dos filmes americanos e com a instaurao do dos festivais internacionais de cinema,

    cenrio dentro do qual este cineasta construiria uma cinematografia anormalmente

    focada na dimenso puramente pictrica da encenao. Analisa-se em seguida como os

    arranjos de cena altamente abstratos de Angelopoulos se articulam com tendncias as

    narrativas anti-clssicas do cinema europeu moderno. Por fim, compara-se o estilo

    marcado de Hou Hsiao-Hsien de encenar com lentes longas, zoom e uso de espao off

    com as solues estilsticas do cinema asitico contemporneo. Todas as anlises so

    fartamente documentadas com fotogramas, o que ajuda imensamente o leitor8.

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    A concluso de Bordwell levanta dois argumentos. Primeiro, reitera a tese do On the

    History of Film Style, defendendo a substituio dos macro-esquemas da histria de

    cinema pela anlise concreta de casos: em vez de moldes gerais, notar-se-iam

    continuidades e descontinuidades mais bem compreendidas como o resultado deagentes humanos trabalhando nas instituies e explorando a capacidade de mdia de

    realizar certas funes, quase sempre por tentativa e erro (p.308-309). O segundo

    uma defesa da sua abordagem transcultural da arte que afirma, ao modo de Gombrich, a

    validade de pesquisar regularidades estticas que transcendam as culturas individuais.

    Aqui, o extenso debate com Slavoj Zizek parece fora de lugar, pois este, um dos ps-

    estruturalistas mais extremos, no pode ser tomado como o mais representativo crtico

    idia de universais transculturais9. Seria mais rentvel, por exemplo, uma discusso

    escrupulosa com os principais tericos dos estudos culturais.

    Outro problema da obra, de natureza editorial, mas no menos importante, a sua

    dependncia do livro On the History of Film Style (ainda no traduzido). evidente na

    leitura de ambos que este livro uma continuao daquele10, mas no h indicao

    prvia nem na edio original em ingls. Talvez tivesse sido mais adequado Bordwell

    lanar a obra mais recente como um segundo volume do mesmo estudo, visto que a

    argumentao incompleta neste livro.

    O cinema e a encenao e Figuras traadas na luz constituem obras relevantes que

    tiveram a vantagem da traduo em tempo hbil por colees acadmicas dedicadas ao

    cinema (a Mi.m.sis, da editora lusitana Texto & Grafia, e a Campo Imagtico, da

    Papirus). Com sorte, esses lanamentos demonstram a viabilidade de prover literatura

    terica atualizada de cinema s escolas e ao pblico mais amplo, oferecendo um

    contraponto situao difcil de livros fundamentais nunca traduzidos (o Film Art e o

    Narration in the Fiction Film, do prprio Bordwell), ou lanados somente aps longos

    perodos de tempo11.

    1 Para um exame das correntes cognitivista e ps-estruturalista, cf. RAMOS, Ferno Pessoa (Org.). Teoria

    contempornea do cinema. So Paulo: SENAC, 2005. 2 volumes.2 AUMONT, Jacques (Org.). La mise en scne. Paris: De Boeck, 2000.3 AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Traduo Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 2004.4 Cf. CARROLL, Nol. Questioning Media. In:Theorizing the Moving Image. Cambridge, UK: Cambridge

    University, 1996. p.1-74.5 BORDWELL, David. Historical Poetics of Cinema. In: PALMER, R. Barton (Org.). The Cinematic Text: Methods

    and Approaches. New York: AMS, 1989. p.369-398.6 BORDWELL, David. On the History of Film Style. Cambridge, MA: Harvard, 1997.7 Outra referncia relevante BORDWELL, David. Estudos de cinema hoje e as vicissitudes da grande teoria. In:

    RAMOS, Ferno (Org.). Teoria contempornea do cinema. v.1. So Paulo: SENAC, 2005. p.25-70.

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    8 Entretanto, a edio nacional descuidou dos painis originalmente coloridos (p.240-241) que, impressos em

    preto-e-branco, reduziram-se a manchas escuras.9 No apenas pelo relativismo radical, mas tambm por seu estilo retrico idiossincrtico, a cuja tentativa de

    desmonte Bordwell dedica diversas pginas.10 O que Bordwell admite em seu site. http://www.davidbordwell.net/books/figures_intro.php?ss=511 S se conseguiu publicar em 2009 a traduo brasileira do importante A narrativa cinematogrfica, de

    Andr Gaudreault e Franois Jost, quase 20 anos aps a publicao original.