a escrita biográfica

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1 A ESCRITA BIOGRÁFICA: REFLEXÕES ACERCA DAS POSSIBILIDADES NARRATIVAS Raquel Czarneski Borges Universidade Federal de Pernambuco [email protected] RESUMO: Este artigo se propõe a pensar o gênero biográfico e explorar suas possibilidades narrativas, a partir de paradigmas contemporâneos e da contribuição de alguns autores como François Dosse, Beatriz Sarlo, Aleida Assmann e outros. Partindo do pressuposto de que o gênero biográfico vem cada vez adentrando o campo da historiografia contemporânea, nos propomos a considerar as implicações teórico-metodológicas dessa transformação. Buscamos trazer as contribuições de alguns autores, dialogando com nossa pesquisa sobre a trajetória do artista Cícero Dias e suas contribuições ao modernismo no Brasil. Considerando o que Beatriz Sarlo chama de giro subjetivo, trataremos da ampliação de fontes e das novas proposições da historiografia, juntamente com as possibilidades narrativas da biografia hoje. PALAVRAS-CHAVE: biografia – narrativa – historiografia - contemporaneidade As profundas mudanças pelas quais vêm passando a pesquisa histórica e a historiografia, mais ou menos desde

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considerações acerca das possibilidades narrativas

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A ESCRITA BIOGRFICA: REFLEXES ACERCA DAS POSSIBILIDADES NARRATIVASRaquel Czarneski BorgesUniversidade Federal de [email protected]

RESUMO: Este artigo se prope a pensar o gnero biogrfico e explorar suas possibilidades narrativas, a partir de paradigmas contemporneos e da contribuio de alguns autores como Franois Dosse, Beatriz Sarlo, Aleida Assmann e outros. Partindo do pressuposto de que o gnero biogrfico vem cada vez adentrando o campo da historiografia contempornea, nos propomos a considerar as implicaes terico-metodolgicas dessa transformao. Buscamos trazer as contribuies de alguns autores, dialogando com nossa pesquisa sobre a trajetria do artista Ccero Dias e suas contribuies ao modernismo no Brasil. Considerando o que Beatriz Sarlo chama de giro subjetivo, trataremos da ampliao de fontes e das novas proposies da historiografia, juntamente com as possibilidades narrativas da biografia hoje.

PALAVRAS-CHAVE: biografia narrativa historiografia - contemporaneidade

As profundas mudanas pelas quais vm passando a pesquisa histrica e a historiografia, mais ou menos desde a dcada de 1960, esto, paulatinamente, colocando para os historiadores novas formas de ver o mundo, ampliando noes e conceitos, introduzindo dimenses da vida humana at ento secundrias na pesquisa cientfica e suscitando diferentes metodologias. Da crtica aos paradigmas tradicionais, do estruturalismo e da histria serial e quantitativa, voltou-se a ateno aos elementos culturais, s trajetrias individuais e experincias cotidianas. Essas dimenses passaram a ter importncia fundamental na pesquisa histrica, em grande proximidade com os chamados Estudos Culturais. Com relao, especialmente, aos estudos biogrficos, Franois Dosse vai salientar que a significativa mudana comea a acontecer no incio dos anos 1980. Segundo ele, as cincias humanas, em geral, e os historiadores, em particular, redescobrem as virtudes de um gnero at ento ignorado, considerado pouco reflexivo. So ressaltados o poder de evocao e a iluso de conexo direta com o passado que a biografia carrega, suscitando nos leitores presena e envolvimento com seus personagens. Dessa forma, a escrita biogrfica ganha um novo flego dentro da historiografia, atestando seu inegvel potencial de comunicao com um grande pblico e o permanente desejo do ser humano de se compreender atravs do outro. Nesse percurso, as trajetrias de vida ou biografias ressurgiram a partir de novos interesses, colocando problemticas diferentes do que se considerava o trabalho biogrfico tradicional. A partir de influncias da sociologia, antropologia, psicanlise e literatura, o gnero biogrfico se instituiu na historiografia contempornea, buscando a complexidade das experincias, a partir dos percursos e relaes de um indivduo, transgredindo, assim, o que Franois Dosse chamou de o tabu desse gnero de pesquisa e escrita. De acordo com o autor:Os tempos atuais so mais sensveis s manifestaes da singularidade, que legitimam no apenas a retomada de interesse pela biografia como a transformao do gnero num sentido mais reflexivo (...). A pergunta sobre o que o sujeito e os processos de subjetivao alimenta essa renovao da escrita biogrfica, que a nosso ver j entrou na era hermenutica, a da reflexividade (DOSSE, 2009, p. 229). A fora do singular e do individual no contemporneo vem fazendo, ento, com que se busque renovar o gnero biogrfico, introduzindo novas questes pesquisa. Dessa forma, a nfase no est mais nas estruturas e categorias sociais, onde o indivduo era um componente, tampouco a histria de uma pessoa tratada como exemplar para a compreenso de uma experincia. No se buscam as estruturas despersonalizadas, e no se quer tambm o sujeito fora de suas relaes, o excepcional. Como fazer, ento, para que essas dimenses dialoguem? Esse um dos desafios da escrita biogrfica hoje e um pouco do que nos motiva na escrita desse texto e nas reflexes sobre as possibilidades narrativas das biografias na contemporaneidade.A narrativa entra em questo e toma um aspecto fundamental em nossas reflexes, pois a partir dela que criamos as histrias; atravs dela que damos vida ao passado e, assim, o reinventamos a partir do nosso olhar. Para Rezende, querer narrar e no desistir de narrar assegura a continuidade dos tempos histricos. Podemos manter-nos vivos por meio da narrativa dos outros, como tambm reinventamos o mundo (2010, p. 27). Ao nos propormos escrever uma biografia, buscamos estar conscientes da dimenso que pode adquirir nossa narrativa de historiadores, nos situando num universo de diferentes falas sobre uma vida, onde pretendemos incluir mais uma. E sendo assim, no devemos perder de vista, o que Rezende salienta quando diz: O historiador tem tambm um toque de imaginao no seu ofcio. No cabe a ele reproduzir o passado como ele realmente aconteceu, mas ele no um ficcionista. Desenhamos nossos caminhos dentro de territrios mltiplos, de fronteiras mveis e frgeis. (REZENDE, 1997 p. 14) A aproximao da histria com a literatura tambm ajudou a colocar em foco a questo da narrativa para os historiadores e a estreitar os laos entre cincia e fico. Se a ordenao factual deixa de ser importante e a cronologia no orienta tanto a nossa perspectiva de tempo, nos voltamos para a dimenso imaginativa de nosso trabalho. Tm-se a clareza que a histria se escreve sempre a partir do presente, num constante ato de criao. O historiador, ento, se depara com o poder instituinte da sua prpria narrativa e comea a pensar nas muitas possibilidades de contar e recriar o passado por meio da sua escrita. O trabalho do bigrafo se assemelha, ento, ao do romancista. Afastamos-nos da iluso do real e comeamos a valorizar a criao de significados a partir de nossa escrita, refletindo sobre como contar uma histria e para quem. Sobre essa dimenso da reflexo historiogrfica e da narrativa, Paul Ricouer se dedica profundamente em sua obra Tempo e Narrativa. Articulando as noes de tempo, narrativa e experincia, buscamos pensar sobre a tarefa de escrever uma vida. Ricouer nos fala que o tempo torna-se tempo humano na medida em que est articulado de modo narrativo; em compensao, a narrativa significativa na medida em que esboa os traos da experincia temporal. (1994, p.15)Em nossa pesquisa, estamos caminhando por esse territrio um tanto incerto da escrita biogrfica. Considerando as mudanas pelas quais o gnero vem passando, nos propomos a analisar as trajetrias artsticas e intelectuais de Ccero Dias[footnoteRef:1], e sua construo de redes, relaes com outros em Recife, no Rio de Janeiro e em So Paulo, e a configurao do modernismo no Brasil. O interesse no estudar Ccero Dias para explicar o modernismo ou vice-versa, mas ver como os caminhos so construdos e como os indivduos tambm se constroem neles. Buscamos no fechar esses conceitos e ir em busca da sua prpria construo tanto do artista Ccero Dias, como do movimento modernista. Essa preocupao aparece para que uma dimenso no se sobreponha outra e d espao a explicaes ou concluses reducionistas. [1: Artista plstico, nascido na cidade de Escada, Zona da Mata de Pernambuco, em 1907. Filho de uma famlia tradicional da regio,comea a estudar pintura no Engenho Jundi, com uma tia. Aos treze anos vai estudar no Rio de Janeiro e, mais tarde, matricula-se na Escola Nacional de Belas Artes para cursar Arquitetura. Comea a frequentar ambientes intelectuais e bomios na companhia de outros artistas como Lasar Segall, Manuel Bandeira, Ismael Nery e outros. Em 1928 realiza sua primeira exposio individual no Rio de Janeiro. ]

No caminho dessas proposies, diferentes metodologias vo se construindo. Abre-se espao para novas fontes e novas perguntas s fontes. Como colocamos anteriormente, outras dimenses da vida humana vo se inserindo na prtica da pesquisa e demandam do historiador abrir perspectivas e diferenciar os olhares para seus temas de estudo. Nesse sentido, todo um conjunto de fontes privadas tambm entra em cena na reconstruo dos sujeitos biografados, abrindo o campo de viso do pesquisador, para detalhes que antes pareciam no ter importncia, na sequncia de fatos que se considerava de destaque. O que antes era considerado ntimo, da dimenso do afeto e da subjetividade, do mbito privado, visto a partir de uma separao da razo, da ao e da esfera pblica, agora passa a ser elemento fundamental para a aproximao da complexidade que uma vida. Os detalhes nfimos que poderiam ser descartados assumem muitas vezes o papel de fios condutores das narrativas, assumindo o primeiro plano na investigao do bigrafo. No caso da nossa pesquisa, to importante quanto os trabalhos artsticos de Ccero Dias e os textos escritos por ele e sobre ele, esto a correspondncia trocada com seus amigos e colegas, seus bilhetes, rascunhos e projetos, fotografias, desenhos, etc. Tudo aquilo que, talvez, nem fosse importante por no assumir o status de obra, agora considerado relevante para que possamos ampliar o olhar e desconstruir significados dados. Este movimento est relacionado proximidade da histria com a memria, da narrativa com a experincia e da vontade de se compreender o passado a partir de sua prpria lgica. Esta vontade vista por Beatriz Sarlo como uma utopia que vem movendo a histria, dentro de uma mudana maior, chamada por ela de giro subjetivo. Essa virada subjetiva viria desde as dcadas de 1970 e 1980, junto com o chamado giro lingustico e estaria introduzindo na pesquisa histrica acadmica as dimenses da rememorao da experincia, a revalorizao da primeira pessoa. Nesse caminho, a valorizao da histria oral e dos testemunhos como acesso diferenciado a dimenses da experincia. (SARLO, 2012, p. 23-24)Baseados nesses caminhos apontados por Dosse, Sarlo, Ricouer e outros, podemos tambm olhar com ateno para nossa pesquisa e dialogar com esses movimentos recentes da historiografia, buscando entender em que ponto nossas preocupaes tocam problemticas da histria enquanto campo. Nesse momento, o conceito de campo de Pierre Bourdieu aparece como uma noo importante, tanto para compreendermos os movimentos da historiografia, seus avanos e recuos, como para olharmos nossos temas de pesquisa, as configuraes de grupos, para alm das aes individuais. Dessa forma, podemos relacionar alguns conceitos de Bourdieu como de campo e habitus, assim como as reflexes que ele faz sobre a atividade biogrfica ou a iluso biogrfica.Por mais que os conceitos de Bourdieu tenham um alcance mais estrutural, e no dialoguem diretamente com a perspectiva do singular e subjetivo que estamos nos aproximando aqui, eles so importantes nesse momento da nossa pesquisa e das reflexes sobre a historiografia contempornea. A partir dele, podemos estabelecer um dilogo entre a ao individual e o coletivo, entre aquilo que o indivduo encontra estabelecido e aquilo que ele institui, cria. Com relao configurao de campos artsticos, por exemplo, o autor coloca:Tal passo necessrio para que se possa indagar no como tal escritor chegou a ser o que , mas o que as diferentes categorias de artistas e escritores de uma determinada poca e sociedade deviam ser do ponto de vista do habitus socialmente constitudo, para que lhes tivesse sido possvel ocupar as posies que lhe eram oferecidas por um determinado estado do campo intelectual e, ao mesmo tempo, adotar as tomadas de posio estticas ou ideolgicas objetivamente vinculadas a estas posies. (BOURDIEU, 2009, p.190)Com relao Iluso biogrfica, Bourdieu chama a ateno para a construo de trajetrias individuais supostamente lineares e organizadas e que pressupem identidades estveis e coerentes. As consideraes do autor so importantes para pensarmos a pretenso da totalidade na pesquisa e considerarmos a multiplicidade da experincia, bem como a parcialidade do nosso prprio acesso ao passado. Alm do mais, quando vamos escrever uma biografia, nos deparamos com uma variedade de relatos e com um, em especial, que provavelmente exercer grande fascnio sobre ns: a autobiografia. O relato em primeira pessoa, do prprio sujeito da experincia tem o poder de revelar para ns uma dimenso de verdade que nunca ser substituda pela nossa escrita. Se no tomarmos cuidado, corremos o risco de reproduzir a fala do biografado, nada acrescentando com nossa narrativa e respondendo questes que o prprio relato autobiogrfico se prope a dar conta muito melhor do que ns. Ou, ao contrrio, podemos cair na pretenso arrogante de negar a experincia do biografado, atribuindo-nos um olhar conclusivo e julgador para com o passado e vivncias do outro, o que nos empobrece e esvazia enquanto historiadores. Assim, a compreenso da especificidade da fala na primeira pessoa essencial ao bigrafo para estabelecer a relao com o indivduo biografado e dialogar, ento, com aquela preocupao a que Beatriz Sarlo se refere, de entender o passado a partir de sua prpria lgica. E sabemos que boa parte do fascnio de um relato de vida, se deve fora dessa comunicao direta, o relato da experincia. Para Dosse:A fonte autobiogrfica tem, certo, uma importncia capital porque d ao bigrafo a iluso de penetrar no mago da personagem e chegar bem perto d sua intencionalidade. O uso de memrias, confisses ou registros autobiogrficos adotado de formas diversas nas biografias; d a entender que se est mais prximo da restituio autntica do passado. Acha-se na origem de um efeito do real surpreendente (...). (DOSSE, 2009, p. 68)E ressalta:Por outro lado, escrevem-se sempre biografias novas das mesmas personagens, o que no apenas se deve descoberta de documentos inditos, como se explica pelo surgimento de questes novas, de novos paradigmas interpretativos, e tambm pela intuio e imaginao do bigrafo ou seja, por sua capacidade inventiva. (DOSSE, 2009, p. 68)

Assim, nos perguntamos, como achar o ponto em que a fala do biografado encontra com a nossa, de maneira no especificamente harmnica, mas onde uma no anule a outra? uma questo, assim como tantas outras que colocamos nesse texto e que no temos a inteno de resolver agora, mas propor para a reflexo e lembrarmos no momento da escrita do trabalho biogrfico. Situar nossa escrita nesse ponto de confluncia, de coexistncia entre ns e o outro, entre aquilo que somos e dizemos sobre o passado e o que o outro fala da sua prpria experincia, eis a arte do bigrafo. Outro ponto importante tambm a prpria noo de sujeito, noo atravs da qual podemos encerrar e sufocar nosso outro biografado. Mencionamos anteriormente que procuramos no trabalhar com categorias pr-definidas, que possam dar margem a explicaes que reduzam, ao invs de ampliar as possibilidades narrativas sobre uma vida. E a nosso ver, Paul Ricouer apresenta um conceito que vem nos ajudando a pensar nessas questes: o de identidade narrativa. Essa noo de Ricouer nos foi apresentada no texto da pesquisadora Isabel Cristina Moura Carvalho, quando ela se refere s interpenetraes da histria e da fico, pela ficcionalizao da histria e a historicizao da fico. Segundo ela, o conceito de identidade narrativa de Ricouer importante para no encerrarmos o sujeito em uma identidade estvel e, para o prprio autor, ele entendido como o frgil rebento oriundo da unio da histria e da fico (RICOUER apud CARVALHO, 2003, p. 290). Essa noo nos ajuda a pensar tambm o efmero, a multiplicidade de relatos, a transitoriedade e os diferentes aspectos que o passado assume nos relatos do presente. E nos ajuda, tambm a estabelecermos uma relao mais satisfatria, a nosso ver, com a fala da autobiografia, medida que Ricouer coloca:O sujeito mostra-se ento constitudo ao mesmo tempo como leitor e escritor de sua prpria vida. Como a anlise literria sobre a autobiografia verifica, a histria de uma vida no cessa de ser refigurada por todas as histrias verdicas ou fictcias que um sujeito conta sobre si mesmo. Essa reconfigurao faz da prpria vida um tecido de histrias narradas. (...) a identidade narrativa no uma identidade estvel e sem falhas; assim como possvel compor vrias intrigas acerca dos mesmos incidentes os quais com isso j no merecem ser chamados de os mesmos acontecimentos assim tambm sempre possvel tramar sobre sua prpria vida intrigas diferentes e at opostas. (RICOUER apud CARVALHO, 2003, p.291)Dessa forma, a noo de identidade narrativa encontra alguns dos desafios colocados por Dosse na construo dos percursos biogrficos, bem como dialoga com o giro subjetivo de Beatriz Sarlo e a considerao do fragmentrio, do no linear na experincia humana. Dessa forma, quando pensamos nas experincias de Ccero Dias e o acesso que teremos a elas a partir de relatos e outros tipos de registros, estamos atentos tambm ao que lacuna, ao que vazio, ao que pode ser silncio e descontinuidade, ao que pode nos surpreender e deslocar o rumo da narrativa, levando em considerao, com Arlette Farge que:Na atualidade, ora trgica, ora melanclica, h lugares para a histria que permitem confrontar o passado e o presente, interrogando de outra forma os documentos e os acontecimentos, buscando articular o que desaparece com o que aparece. (FARGE, 2011, p. 9)

Arlette Farge, inclusive, mencionada no livro de Franois Dosse como uma autora que empreendeu uma nova forma de explorao da singularidade a partir de pequenos traos de identidade. Segundo Dosse, Arlette Farge, na sua pesquisa em arquivos judicirios do sculo XVIII, encontra pistas menores, fragmentos parciais que poderiam parecer insignificantes: braadeiras de pergaminho ou papel amarrados ao punho dos sujeitos pesquisados, com fitas vermelhas. Retomando a noo de Michel Certeau de que o historiador um poeta do detalhe, a pesquisadora se detm no que poderia passar despercebido, oculto, e esses pequenos traos sero fios condutores da histria que ela ir escrever sobre essas pessoas. Desconstruindo o exotismo do detalhe, ele passa a ser fundamental na sua narrativa (DOSSE, 2009, p. 300). Os fragmentos ou detalhes significativos remetem oralidade, segundo Dosse, e tambm aproximam a histria da memria e da experincia. Dessa forma, se tem acesso a registros de memrias que j no fazem parte da memria comunicativa - aquela definida por Aleida Assmann como a que liga at trs geraes consecutivas pela oralidade e nem mesmo teriam condies de assumir um status e legitimidade de fonte que constitusse a memria cultural de um grupo (ASSMANN, 2011, p. 17). So detalhes aparentemente esquecidos e que dependem de uma virada no olhar do historiador para considerar as diferentes contribuies dos registros que encontra, bem como a importncia que eles podem ter na renovao de paradigmas histricos.Essas reflexes nos chamam a ateno tambm para o lugar do presente ao olhar o passado. Faz-nos refletir sobre o que estamos buscando nas experincias passadas e o que consideramos ou deixamos de lado na construo de nossas verses para elas. Ao estudar Ccero Dias enquanto um artista importante na configurao de um campo artstico modernista, sua atuao, suas propostas, o que ele considerava importante e como colocou isso em prtica, atentamos para as questes que, no presente, se colocam para artistas e intelectuais na realizao de seus sonhos, de seus trabalhos. Invariavelmente, vamos fazer nossas perguntas ao passado. Avaliar certas questes nos faz pensar sobre a importncia que damos a uns ou outros registros e nos faz ver a parcialidade do nosso conhecimento e da narrativa que vamos construir. Aleida Assmann, ao trabalhar com a memria e a reconstruo do passado, cita uma colocao de Italo Svevo importante para pensarmos as flutuaes das memrias comunicativa e cultural e do conhecimento histrico, bem como da eterna resignificao das experincias passadas: O passado sempre novo. Ele se altera constantemente, assim como a vida segue em frente. Partes da vida que parecem ter afundado no esquecimento reaparecem, enquanto, por outro lado, outras afundam por serem menos importantes. O presente conduz o passado como se este fosse membro de uma orquestra. Ele precisa desses tons somente e de nenhum outro. Assim, o passado parece s vezes curto, s vezes longo; s vezes soa, s vezes cala. S influenciam no presente aquelas partes do passado que tenham a capacidade de esclarec-lo ou obscurec-lo (SVEVO apud ASSMANN, 2011, p. 21). Se hoje temos a sensibilidade de olhar para os fragmentos e aceitar uma diversidade muito maior de registros sobre o passado, talvez seja porque a complexidade do nosso presente est nos exigindo, enquanto pesquisadores, um olhar mais amplo e, ao mesmo tempo, menos totalizante da experincia humana, o que pode parecer paradoxal. A virada subjetiva e os desafios que se colocam ao historiador no momento presente aparecem, a nosso ver, como renovao de uma perspectiva racionalista e centrada na ao. Vem abrindo espaos, j h algum tempo, para tudo aquilo que escapava do olhar ordenador do historiador tradicional e renovando as perspectivas historiogrficas. Seja com relao s indagaes e elaboraes narrativas, seja pela construo dos percursos metodolgicos e diversificao das fontes. Nesse sentido, interessante que o gnero biogrfico volte em questo para ser repensado, rediscutido a luz de tantas contribuies tericas e metodolgicas, possa ser ampliado a partir de uma noo de indivduo que no seja unvoca. Possa atender ao desejo de reconhecimento que temos a partir da experincia do outro. Entendemos tambm, que o prprio reconhecimento das pluralidades possa fazer o historiador mais ciente do seu lugar social, na perspectiva de Michel de Certeau (CERTEAU, 1982), como algum responsvel por mais uma narrativa sobre o passado, parcial e incompleta, dentre tantas outras.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICASASSMANN, Aleida. Espaos da recordao: formas e transformaes da memria cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.BARROS, Natlia Conceio da Silva. Arquivos da vida, arquivos da histria: as experincias intelectuais de Joaquim Inojosa e os usos da memria do modernismo. 2012, 269 f. Tese (Doutorado em Histria). Centro de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012. BOURDIEU, Pierre. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: A economia das trocas simblicas. So Paulo: Perspectiva, 2009.CARVALHO, Isabel Cristina Moura. Biografia, Identidade e Narrativa: elementos para uma anlise hermenutica. Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n 19, p. 283-302, julho de 2003. CERTEAU, Michel de. A Escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1982. DOSSE, Franois. O Desafio Biogrfico: escrever uma vida. So Paulo: Edusp, 2009.FARGE, Arlette. Lugares para a histria. Belo Horizonte: Autntica, 2011.REZENDE, Antonio Paulo. (Des) encantos Modernos: histrias da cidade do Recife na dcada de vinte. Recife: Fundarpe, 1997. __________. Rudos do Efmero: histrias de dentro e de fora. Recife: Editora da UFPE, 2010. RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994.SARLO, Beatriz. Tiempo Pasado: cultura de La memria y giro subjetivo. Uma discusin. Buenos Aires: Siglo veintiuno, 2012.