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Ruy Fausto

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A esquerda encapuçada

por Ruy Fausto

As cegueiras do niilismo neomarxista de Paulo Arantes

Paulo Eduardo Arantes é um intelectual brasileiro fora de série. Até mais ou menos o final dadécada de 80, quando já contava bem mais de 40 anos, seu perfil não se distinguia muito do de seuscolegas. Especialista em Hegel, sua tese, defendida na Universidade de Paris X – Nanterre, tornou-se um clássico da bibliografia filosófica brasileira. Excelente professor, homem de esquerda comomuitos dos seus pares, a partir daquela quadra enveredou por um caminho original.

Primeiro, o que então pareceu insólito, lançou um livro sobre o próprio Departamento de Filosofiada Universidade de São Paulo (USP), onde lecionava – um livro sem dúvida excessivo, pelotratamento um pouco desmedido que ele deu ao objeto, mas muito bem escrito e que teve granderepercussão. Depois, embora professor de filosofia, ou justo por isso, ao mesmo tempo quepublicava excelentes livros que fugiam do ramerrão universitário, foi manifestando uma posturaexplicitamente antifilosófica. Para dar só um exemplo: ele andou criticando Theodor Adorno, ogrande pensador de Frankfurt, porque este ainda era filósofo. Ele, Arantes, caía fora da teia, indoparar aproximadamente lá onde estava o Marx da Ideologia Alemã (um Marx que opunha àfilosofia uma certa ciência e a práxis).

Politicamente, também, ia mudando. Na juventude, Arantes era um homem de esquerda, radicalcomo todo mundo nos meios universitários da época, mas era também, se posso dizer assim,moderado em seu radicalismo. O Arantes nouvelle manière, por outro lado, passa a professar umesquerdismo extremo, porém paradoxalmente mais ou menos desabusado, porque marcado – maisdo que “temperado”– por um elemento quase niilista. Algo assim como a atitude de alguém que sealinha sob a bandeira revolucionária, mas, ao mesmo tempo, supõe que o capital ganhou econtinuará ganhando.

Fui tomando distância em relação aos trabalhos de Arantes, meu velho amigo, a partir de seulivro O Fio da Meada: Uma Conversa e Quatro Entrevistas sobre Filosofia e Vida Nacional (1996),cujo tom me pareceu afetado, e o conteúdo, de um antifilosofismo um pouco sumário. Levei essasobservações a público, o que, como se poderia esperar, foi muito mal recebido por sua torcidauniformizada, que nunca mais me perdoou.

O Novo Tempo do Mundo e Outros Estudos sobre a Era da Emergência, o livro mais recente deArantes, publicado neste ano pela editora Boitempo, é uma coleção de ensaios (mais algumasentrevistas) que culmina com uma longa análise das mobilizações de rua em junho de 2013. Ostextos ali reunidos tratam do fim das grandes esperanças revolucionárias, da revolta nos subúrbiosparisienses, do neoliberalismo e do nazismo, do golpe de 64 e do pós-golpe, do tempo (um tempode longas esperas) no cotidiano das sociedades contemporâneas, das “insurgências” e de suarepressão nas periferias, para não falar de outros aspectos da vida nas sociedades contemporâneas,com o Brasil e o mundo exterior aí reunidos. O que é novo em relação aos livros políticos anterioresde Arantes talvez seja a atitude, senão de otimismo, pelo menos de júbilo diante das mobilizaçõesde 2013, visível no último ensaio. Uma atitude que se destaca do tom em geral cinzento das obras

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anteriores, e mesmo dos outros estudos nesse livro.

Do ponto de vista teórico, em particular, a novidade me parece estar na relação do autor com afilosofia. Se é complicado dizer precisamente onde ele se situa hoje, acho que em alguma medidasua atitude mudou. Se não chega a repor a carapuça, por ele execrada, do “filósofo”, agora seudiscurso toma, muito mais do que antes – antifilósofo ou não, nunca foi fácil escapar de todo dasgarras da velha senhora –, a forma de uma espécie de filosofia da história.

Arantes parece ter-se livrado, além disso, de certas fórmulas fáceis (do tipo Auschwitz + Gulag +Hiroshima, “fórmula trinitária do Apocalipse da civilização capitalista”), cujo simplismo algunscríticos apontaram. Mas O Novo Tempo do Mundo, que certas rodas universitárias e meiospolíticos transformaram em algo como um texto de referência, é ainda, de algum modo, umamelodia de uma nota só: as críticas remetem sempre ao capital e ao capitalismo. O procedimentoimplica uma espécie de simplificação estratégica, que acaba ameaçando a força crítica damensagem.

No plano político, uma das principais insuficiências do livro é a de que o comunismo está muitopouco presente na discussão, o que se justifica mal, dadas as pretensões da obra. Na realidade, ONovo Tempo do Mundo aponta para um deciframento da significação geral da história dos últimos100 anos, o que torna aquela quase omissão um déficit sério. As dificuldades do texto, no planopolítico, não ficam por aí. Há nele uma espécie de carta branca para a violência, que,“revolucionária” ou não, é uma arma perigosa, cujo emprego tem de ser rediscutido. As qualidadesformais do texto, indiscutíveis, não atenuam essas dificuldades. Em alguns casos, podem atéagravá-las.

GRANDES ESPERANÇAS

A

ideia central do primeiro ensaio, que dá o nome ao livro, se constrói com as noções de “espaço deexperiência” e de “horizonte de expectativa”. O espaço de experiência indica a percepção do passado(ou dos estratos do passado) que se tem no presente; o horizonte de expectativa, também dado nopresente, trata do conjunto dos conteúdos (esperanças, temores, utopias) do que se espera para ofuturo histórico. Com o advento da modernidade – escreve Arantes, na esteira de um clássico –,estabeleceu-se um grande distanciamento entre a experiência do presente (com seu passado), quepassa a ser lido muito criticamente, e a expectativa do futuro, em verdadeira ruptura com opresente.

Essa distância, com suas “grandes esperanças”, se manteve até mais ou menos o início dos anos 70.A partir daí, ela encolheu, e passou-se a viver em uma era de “expectativas decrescentes”. O futurojá é presente, e o presente se prolonga em futuro. Como escreve o historiador e sociólogo ImmanuelWallerstein, a partir de ideias do teórico da história Reinhart Koselleck – os dois servem comoreferências fundamentais para o ensaio de Paulo Arantes –, “hoje a tensão entre a experiênciapresente, desvalorizadora do passado, e a espera de um futuro cada vez melhor foi largamenteabolida”.

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“A certa altura do curso contemporâneo do mundo”, diz Arantes, “a distância entre expectativa eexperiência passou a encurtar cada vez mais numa direção surpreendente, como se a brecha dotempo novo fosse reabsorvida, e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era, que sepoderia denominar das expectativas decrescentes.” De fato, qualquer coisa de novo na relação como futuro se estabeleceu no pós-68, e sobretudo depois de 1989. Mas, admitido o fato, seria precisorefletir se as noções de “espaço de experiência” e de “horizonte de expectativa”, bem como a ideia de“expectativas decrescentes”, descrevem, de forma suficientemente elucidativa, o que ocorreu. Nãose trata de questionar a tese de que houve mudança, nem parte da descrição que dela se faz. Oproblema é saber se podemos ficar por aí. Porque, por trás das alterações do regime do tempo, háevidentemente mutação no conteúdo das crenças (até aí dirão que é evidente, porém é precisoexplorar bem esse conteúdo). Mais do que isso, é preciso indagar as causas da transformação,causas que têm muito a ver com aquele conteúdo.

Por outras palavras, “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” são categorias formais(formais transcendentais, se se quiser, do que, aliás, Koselleck está plenamente consciente), mascom as quais não deixa de surpreender que um teórico que se diz “materialista” se contente. Porquese ficarmos por aí, no registro das formas, e por brilhante que seja a teorização que as introduz, elasnão nos dizem muito sobre o conteúdo que as preenche, suas bases efetivas e sua história. Caíramas “grandes esperanças”, é verdade. Mas qual era o teor dessas esperanças? Arantes o indica pormeio de uma palavra hipostasiada: “Revolução”. (Pelo lado da direita, esperava-se antes oProgresso, mas, aqui, nos interessa mais a esquerda.) A hipóstase conotava uma grandetransformação socioeconômica, mediada por um movimento violento, e que instauraria umaespécie de reino da igualdade.

Esse movimento não veio? De certo modo, sim. Aconteceu alguma coisa que a teorização formalsabe, mas explora muito pouco: ocorreu um movimento violento. Pelo menos, supôs-se que o quese teve no mundo, na forma das chamadas revoluções russa, chinesa, cubana etc., era bem aquelemovimento pelo qual se esperara. Assim, a partir do final de 1917, o futuro já existiria sur terre, istoé, no presente, mesmo se longe, e em processo de realização. O futuro estava “lá”, ainda que aalguns milhares de quilômetros de distância, e como futuro em devir.

Esse fato é em si mesmo importante, e não pode ser esquecido quando se descreve o que aconteceu.Porém, para além disso – eis aqui o ponto mais importante –, durante anos a realidade dessespaíses mostrou objetivamente o contrário do que representava o conteúdo das grandes esperanças.A coletivização stalinista custou uns 6 ou 7 milhões de mortos; o Grande Salto para a Frentemaoista, uns 30 milhões.

Ora, apesar dos horrores, durante anos a crença – por parte da maioria – persistiu. De fato, nomomento em que, numa das duas grandes pátrias da Revolução, se perpetravam algumas dasmaiores matanças da história, continuava-se a ver o futuro em pleno processo de realização. Aesperança não diminuíra, até aumentara. Só mais tarde, com a crise desses regimes, revelou-se oenorme engano. A terra prometida foi pulando de país para país, da URSS para a China, da Chinapara Cuba e assim por diante, até sumir do mapa.

Por trás do “encurtamento das expectativas” e da instauração de um tempo de “expectativasdecrescentes”, houve um grande fenômeno histórico, até certo ponto inédito, e que a teorização

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formal, abandonada a si mesma, oculta: um grande movimento de libertação e emancipação setornou o seu contrário, a saber, desembocou em poderes autocráticos e “totalitários” – palavra deque Arantes não gosta, mas que vale, sim, usar. Poderes que superam de longe o que os séculosimediatamente anteriores haviam conhecido em matéria de violência e autoritarismo.

Essa grande inversão (nos seus três momentos: as revoluções, a própria inversão e a crença ilusóriade que o futuro chegara) é um fato decisivo, senão o fato decisivo, para entender a história doséculo XX. Ora, o livro de Arantes – que, malgré lui ou não, oferece uma espécie de filosofia dahistória do século XX (mais o começo do XXI) – trata pouco disso. A história do comunismo estápresente, mas apenas como um contraponto pálido, mesmo se recorrente.

Sem dúvida, a esse respeito o leitor dos livros anteriores de Arantes pode registrar um progresso. Láonde ele se referia a “estados policiais” (felizmente, o autor nunca foi stalinista, mas esses “estadospoliciais” eram pouco mais do que deuses ex machina, sobre cuja origem não se dizia nada), agorafala (quando fala) em “ditadura burocrática” ou “burocracia stalinista”. Mas mesmo isso éinsuficiente. Dizer, por exemplo, que houve “derrapagens fatais” do lado de lá da Cortina de Ferropode ser bem simpático, mas fica muito aquém do que se exigiria de um livro que esboça uma teoriada história dos últimos séculos.

Dada a importância do tema, eu diria que um livro como esse, com mais de 460 páginas, deveriadedicar pelo menos umas 200 ao estudo daquele fenômeno. Fica evidente que o autor não vê commuita clareza o tamanho e o alcance do que ocorreu. Há uma passagem que é suficientementeexpressiva a esse propósito, apesar de se situar numa nota, e de ser muito breve e alusiva. Falandosobre hierarquias e, em primeiro lugar, sobre as do capitalismo, Arantes se dispõe a introduzir umareferência ao “socialismo real”. “É que o capitalismo”, ele diz, “tem necessidade de uma hierarquia,ou melhor, assim como o capitalismo não inventou o mercado e o consumo, ele não inventa ashierarquias, pelo contrário, estas o precedem e o comandam de antemão.” E continua: “Daí ofracasso do socialismo real: não basta suprimir a hierarquia econômica, supondo-se que isso tenhaacontecido.”

No estilo do que se lê em suas obras anteriores, nas quais se explica o fiasco do “socialismo real”pelo fato de que se quis construir o socialismo em duas etapas (como se o problema fosse o das“etapas”), o presente texto nos diz que o “socialismo real” fracassa porque não suprimiu ahierarquia política preexistente (aquela que estava presente sob o capitalismo). Ora, não foi isso oque aconteceu, ou não foi precisamente isso. O que ocorreu não foi que as sociedades burocrático-totalitárias emergentes deixaram de suprimir a hierarquia preexistente. Elas, na realidade, criaramuma nova hierarquia, e uma hierarquia que, sob muitos aspectos, era de base muito maisautoritária do que a anterior. E mais: a nova hierarquia nasceu liquidando os elementosdemocráticos que despontavam no interior das formas antigas ou que haviam surgido no interiordo processo revolucionário.

Esse movimento tem de ser pensado e estudado para entender o que significam exatamente o“encurtamento das expectativas” ou as “expectativas decrescentes”, sem o que não saímos de umaespécie de formalismo, mesmo se inteligente. Com a crise final cai certa mitologia. É verdade quecom a queda dos mitos pseudorrevolucionários (a suposição de que a sociedade burocrático-totalitária era uma sociedade pré-socialista), surgem outros. Brota uma atitude mais conciliadoraem relação à realidade presente no Ocidente, que é a do capitalismo. Mas essa realidade é também a

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da democracia. Há assim um movimento de perdas e ganhos que deve ser estudado de perto ecriticamente, sem dissolvê-lo numa teoria abstrata do tempo.

DEMOCRACIA E CAPITALISMO

A

história do capitalismo, tal como ela é apresentada em O Novo Tempo do Mundo, não atribuinenhum lugar mais ou menos autônomo ao “político” (refiro-me ao Estado e ao governo). Opolítico, no estilo da tradição marxista, aparece sempre como que “arrastado” pela história docapital. E a “política”, entendida como luta política, é sempre, ou quase sempre, a luta contra ocapital. Mais particularmente, nem no plano do político nem no registro da política há algumaautonomia para a democracia. Há um lugar, mas só como um pendant político do capital.

Fica fora da perspectiva de Arantes que as lutas do século XIX tenham sido em considerávelproporção lutas pela democracia (ver o exemplo dos cartistas ingleses) e, mais que isto, que tenhahavido uma oposição fundamental entre capital e democracia, mesmo se o primeiro conseguiuinserir a última no seu “contexto” – mas essa inserção é sempre instável. Pode-se dizer, cum granosalis, que a “democracia” é para ele o que é para Bush, só que com sinais trocados. Um significantepuramente ideológico, verniz político do capitalismo. Como acontece com o conceito de“totalitarismo”, Arantes parece supor que o uso ideológico de um termo exclui a possibilidade deque esse termo tenha paralelamente um significado crítico e rigoroso.

De novo aparece aqui, na obliteração do significante “democracia”, uma das expressões doprocedimento geral operado por Paulo Arantes de hiperbolização do papel do capital e docapitalismo. Não se trata de negar o peso que teve e tem o movimento do capital e o capitalismo,enquanto força social, que ocupa grandes territórios da história moderna e contemporânea. Mas, nolivro que examinamos, o capital e o capitalismo estão em toda parte, são uma espécie de “Sésamo”que abre todas as portas, que explica ou deve explicar tudo. E, se acontecer de o capital não explicaro objeto, é que este não deve existir. É fantasma ideológico, percepção errada ou coisa semelhante.Apesar de tudo o que representam capital e capitalismo, insisto, há aí erro de fato e erro de lógica.

O capital e o capitalismo estão presentes quase por toda parte no mundo, no século XIX e maisainda no XX. Resta saber como. Arantes trata o capital como se ele fosse a essência ou ofundamento de tudo. Ora, apesar da sua hegemonia, a rigor, o capital não é essência. Pelo menosnão o é por toda parte. Eu diria – omitindo aqui referências mais extensas à Ciência da Lógica deHegel, para não sobrecarregar o leitor – que ele é antes base do que essência. Ele está “por baixo”de quase tudo, como uma espécie de solo, mas esse solo não diz sempre o que circula por sobre ele.

Um exemplo interessante desse procedimento permanente de hiperbolização do capital aparece nadiscussão sobre a natureza do nazismo e dos campos de extermínio nazistas. Arantes opõe duasteses: a dos que aproximam o nazismo do capitalismo, e a dos que, como o historiador marxistaMoishe Postone, professor da Universidade de Chicago, acentuam o lado anticapitalista, mesmo se

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simbólico, no nazismo. “O campo de extermínio nazista”, escreve Postone, “não representa umaversão terrível da fábrica capitalista [...], mas, muito pelo contrário, precisa ser visto como a suagrotesca negação‘anticapitalista’.” (A tese de Postone é a de que os nazistas procedem a umaespécie de morte ritual do capitalismo. Eles liquidam em massa os judeus, de quem eles haviamfeito previamente a própria encarnação do dinheiro e do capital.)

Não vou discutir em detalhe essas teses. O que quero ressaltar é como, com esse deslocamentoexplicativo, finalmente nos deslocamos muito pouco. Ou os campos nazistas seriam homólogos dasfábricas capitalistas, ou então eles seriam o seu oposto. Vê-se o que há de comum nas duas teses(que aliás poderiam coexistir, e que são, ambas, de extração marxista). A referência é sempre ocapitalismo. Mas, se nazismo e capitalismo se “tocam” de algum modo (tudo se toca de algum modona história contemporânea e, no caso, o laço vai mesmo, sem dúvida, além dessa afinidade geral),isso não quer dizer, seja o sinal positivo, seja negativo, que o nazismo possa ser definidorigorosamente através do capitalismo.

O nazismo se define muito melhor pela democracia. De fato, ele não é anticapitalista, mas eletambém não é essencialmente (no sentido de que o capitalismo daria a sua definição) pró-capitalista. Ele é, sim, antidemocrático. Os chefes nazistas afirmaram e reafirmaram que sua tarefaera liquidar de vez a revolução igualitária dos liberais e dos socialistas, revolução que teve início noano maldito de 1789. Ora, quem não é capaz de pensar a democracia senão como ideologia nãopode entender nem definir o nazismo.

Partindo de um livro extraordinariamente interessante, Souffrance en France (1998), do psiquiatraChristophe Dejours, e de alguns outros textos, Arantes se dispõe a pensar o nacional-socialismo apartir da noção de “trabalho”. É possível. Mas o resultado é precisamente o de operar umaaproximação excessiva entre o nazismo e outras formas sociais (o capitalismo, em particular), o queconvém a certa leitura marxista. Num dos raros textos em que o autor compara os campos nazistasaos campos stalinistas, ele contrapõe o “genocídio como trabalho” praticado pelos nazistas ao“extermínio pelo trabalho”, que caracterizaria a versão stalinista dos campos. Ora, o denominadorcomum a obter dessas fórmulas, apesar das aparências literais, não é o significante “trabalho”, masos outros dois, quase sinônimos: “genocídio” e “extermínio”. Para chegar até aí, entretanto, seriapreciso se libertar um pouco mais da “grade” (no duplo sentido do termo) marxista, que oaprisiona.

A GUERRA CIVIL MUNDIAL

S

e a história moderna e contemporânea é, num registro estrutural, mais ou menos reduzida àhistória do capital e do capitalismo, no plano das lutas (mas, finalmente, há pouca “luta” no livro deArantes) ela é, senão “luta de classes”, pelo menos “guerra civil” (sem que fique muito claro atéonde vai uma, até onde vai outra, ou se o autor assimila esta àquela). Bem entendido, houve muitaguerra civil e também luta de classes no século XX, mas o século teve muito mais do que isso. Omínimo que se poderia dizer é o que escreve Orlando Figes no prefácio do seu muito importante ATragédia de um Povo: a Revolução Russa 1891–1924: “A revolução [foi] todo um complexo de

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diferentes revoluções, desencadeadas em meio à Primeira Guerra Mundial, e que provocaram umareação em cadeia de mais revoluções, guerras civis, [guerras] étnicas e guerras entre nações.”

Ora, no esquema arantiano (que, bem entendido, deve ao filósofo e jurista Carl Schmitt, mas cominflexão materialista) a realidade é mais simples. Ele diz: “[...] as ‘potências’ vitoriosas na PrimeiraGuerra Mundial formaram uma outra Santa Aliança sob liderança norte-americana para esmagar arevolução europeia iniciada em 1917 e que nos anos 20 já assumira as proporções de uma GuerraCivil Mundial em que se confrontavam revolução e contrarrevolução.” A ideia aparece novamentenuma referência às “marchas e contramarchas da luta de classes ao longo da Guerra Civil Europeiada primeira metade do século XX”. Em outro exemplo, a “guerra social havia se convertido em umaGuerra Civil Europeia, como ficaria claro depois de 1917”.

Assim, a história da primeira metade do século XX seria a história da “guerra civil”, na qual sereconhece a presença da luta de classes. Vê-se o alcance negativo da redução. O choque entrepoderes de Estado, que foi um dos elementos maiores da história do século XX, se transforma emepifenômeno, simples ilusão fenomenal, nada mais do que uma aparência. Ele é substituído poruma suposta essência: a Guerra Civil dos poderes contrarrevolucionários lutando contra aRevolução. Repito: claro que houve guerra civil ou mesmo luta de classes no século XX, mas nadajustifica reduzir toda a história do século ao confronto entre uma frente de poderescontrarrevolucionários, o dos vencedores da guerra de 1914–18, e uma frente revolucionáriapopular.

Na Espanha, por exemplo, houve uma verdadeira guerra civil, mas os contrarrevolucionários nãoeram aliados dos grandes vitoriosos da Primeira Guerra, mas da Alemanha e da Itália. As lutas noTerceiro Mundo, no mesmo século, tiveram uma dimensão classista, mas muito mediada por outroselementos, entre os quais o peso da Terceira Internacional, pretenso comando mundial doproletariado. Quando os dados empíricos confirmam pouco uma tese, tanto pior para esses dados epara a boa empiria. Entre o esquema ditado pela visão “revolucionária” dos fatos e a realidade,quem tem sempre a última palavra é o esquema, e não a realidade.

O mesmo poderia ser dito da forma pela qual é tratado o jogo de forças mundial no nosso presente.O quadro é o de um domínio esmagador do capital, na forma transfigurada do capital financeiro etambém da dominação política. E, apesar de umas poucas referências à China, a dominaçãoaparece, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista político, como essencialmenteamericana e, apesar de tudo, numa figura que lembra muito a do antigo imperialismo.

Mas a verdade é que nem o domínio americano é assim tão incontestável, nem representa ele hoje,sem mais e sempre, o lado “pior” (mesmo se ele está longe de ser “bom”). Sim, porque háatualmente muitos focos de opressão e de exploração do lado dos “pequenos poderes”. O sinistroCalifado Islâmico, onde vendem mulheres e degolam e crucificam prisioneiros, é o último e melhorexemplo. O esquema de leitura do autor é simplista no balanço das forças e no julgamento político.Lembra o discurso de esquerda da época em que se travavam guerras coloniais.

Claro que Arantes não elogia nenhum califado, mas a impressão que se tem, lendo as passagens doseu livro relativas a esses temas, é a de um cenário de assimetria radical. O que simplifica muito oprocesso, e o deforma. Na mesma linha de ideias, há uma curiosa tendência a reduzir diferentesagências e organizações internacionais humanitárias a simples instrumentos do capital. Isso às

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vezes é o caso, mas nem sempre. A primeira coisa a observar aqui é que os erros e crimes dosocidentais não estão sempre no fato de intervir – às vezes eles residem justamente na nãointervenção, como no massacre de Srebrenica, na Bósnia, ou no genocídio em Ruanda, ambos nosanos 90. Pode parecer um detalhe, mas não é, porque mostra a complexidade da situação. E, nessecontexto, seria importante lembrar que, no caso do massacre dos tútsis em Ruanda, o Médicos SemFronteiras fez apelos dramáticos em favor de uma intervenção, apelos, aliás, que foram finalmenteouvidos, mesmo se tardia e limitadamente. Um exemplo importante que mostra o quanto o mote“intervenção internacional e filantropia” é simplificador e, por isso mesmo, falso.

“ESTADO DE EXCEÇÃO”

S

e a narrativa oferecida por Arantes padece de uma compreensão melhor das relações entredemocracia e capitalismo, insuficiência que vem do impacto, apesar de tudo poderoso, do modelomarxista, a análise da história dos séculos XX e XXI, sobre a qual já falei alguma coisa, vemdominada por uma tese cada vez mais em voga, tese que tem sua origem nas ideias de Carl Schmitt– replicada depois por Walter Benjamin e, mais recentemente, pelo filósofo italiano GiorgioAgamben. Trata-se da ideia de que a política do século XX pode e deve ser decifrada a partir danoção de “estado de exceção”: “[Há um] argumento geral desenvolvido por Giorgio Agamben naforma de um diagnóstico de época formulado nos anos 1990”, escreve Arantes, “segundo o qual o‘estado de exceção’ – [...] état de siège [...], emergency powersou martial law [...] – tende cada vezmais a se apresentar como paradigma de governo dominante na época contemporânea.”

Em O Novo Tempo do Mundo, o “estado de exceção” ou de “urgência” – figura jurídica quesuspende direitos e garantias constitucionais dos cidadãos, a ser adotada em princípioprovisoriamente em situações de emergência, como guerras ou calamidades públicas, paraaumentar a eficácia do Estado – aparece como uma fórmula que encerra uma verdadeira teoriageral da história do século passado e do que já se viveu do século atual, fórmula que vale para ocapitalismo liberal-democrático, para os regimes mais ou menos autoritários, mas também para onazismo. Quaisquer que sejam as aparências de um desses regimes políticos, o “estado deemergência” é sempre o seu segredo.

Para mostrar a universalidade do seu papel e o caráter, senão derrisório, pelo menos adjetivo decertas distinções entre regimes tidos como mais democráticos e outros claramente autoritários,invoca-se frequentemente a passagem da República de Weimar ao nazismo. Hitler pôde proclamara lei marcial em 1933, após o incêndio do Reichstag, porque a Constituição da República de Weimarreconhecia essa possibilidade no seu capítulo sobre o estado de exceção. Reconstituir-se-ia assim alinha de continuidade entre a República de Weimar e o regime nazista.

Mas de que vale a tão falada tese de que o “estado de exceção” define a soberania na épocacontemporânea? Mais importante do que isso, até onde vai o poder explicativo da tese? Emprimeiro lugar, seria preciso definir melhor o que a “exceção” representa. A primeira questão é a desaber se devemos considerá-la enquanto efetiva ou como virtual. O livro cita um texto de Agamben,que comenta Schmitt: “O funcionamento da ordem jurídica baseia-se, em última instância, em um

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dispositivo – o estado de exceção – que visa tornar a norma aplicável suspendendo,provisoriamente, sua eficácia.”

E Arantes observa que seria falso afirmar, como escreve um comentador, que, segundo a teseschmittiana sobre o estado de exceção, “toda a ordem legal ‘seria como que uma latente eintermitente ditadura’”. Muito bem. O estado de exceção tem de permanecer latente para se efetuar.Com isso, diz-se de fato alguma coisa. Porém, se ele se efetuar, o que acontece? A máquina nãofunciona, escreve Agamben, ou, como sugere Arantes, passar-se-ia à ditadura.

De novo, eu diria, muito bem. Porém, entre essas duas situações, de que ordem é a diferença?Apesar de suas explicações, Arantes (a partir de Schmitt e de Agamben, pelo menos tal como ele oslê) não vê certamente aí uma grande ruptura. Na realidade, a despeito das advertências, quer setrate do Brasil, quer se trate da Europa, o livro não cessa de aproximar os períodos democráticosdos períodos de ditadura. A ditadura militar no Brasil e os governos que a sucederam seriamdiferentes, mas não essencialmente diferentes. Sugere-se uma “substituição’’ de violências, fala-sede um “primeiro” e de um “segundo regime de violência”, um pouco como se, no primeiro caso,tivesse havido “matança seletiva” na cidade, e, no segundo, assassinatos “indistintos” na periferia.Mas a verdade é que não houve substituição de massacres: sob a ditadura, os dois morticínioscoexistiam e se acumulavam.

Se o tema das afinidades entre a ditadura e a pós-ditadura no Brasil é do autor, o da quasecontinuidade entre Weimar e o nazismo é introduzido a partir de Schmitt e de Agamben. Enfim, afamosa teoria sobre “estado de exceção”, para tomá-la na sua expressão geral – teoria que é pobrena forma e errada no conteúdo –, tem antes de tudo a função de obscurecer a distância entre asdemocracias e as ditaduras, o que evidentemente limpa a barra das últimas e suja a das primeiras.Tal é, no fundo, o segredo da tão falada tese.

O primeiro resultado, desastroso, de tal teoria é que ela não vê o que há de radicalmente novo nonazismo. Este não é um avatar, mesmo extremo, do estado geral de exceção. O nazismo é umaforma social original, monstruosa, bem entendido, mas que se revela essencialmente diferente dosregimes de capitalismo liberal-democrático, e mesmo de capitalismo autocrático. A referência à leimarcial de Hitler, proclamada com base no artigo sobre o estado de exceção contido naConstituição de Weimar, ou, antes, as consequências que se pretende tirar disso são um engodo.Que Hitler se tenha valido daquele artigo para declarar a lei marcial não explica nem a gênese donazismo nem a sua essência.

Quanto às limitações sucessivas da liberdade sob Weimar, se derivam em parte dos projetosantidemocráticos das forças conservadoras, elas se explicam também, e muito, na origem,precisamente pela ameaça que representavam os nazistas para a República. Mas não só os nazistas,também os comunistas. Comunistas e nazistas sabotaram a República de Weimar. O que secostuma dizer é que a democracia de Weimar, como a democracia em geral, é “fraca”. E do “fraco”desliza-se para o “culpado”. Se a democracia é fraca, há que fortalecê-la, e não liquidá-la, como sepretende nos meios neoschmittianos... de esquerda.

Voltando ao tema geral. Talvez o mais interessante na crítica daquela, a meu ver, muito miserávelteoria sobre a história contemporânea, teoria que enquanto esquema jurídico e único acabaapagando as descontinuidades presentes nessa história, seja insistir no fato de que ela tem como

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base, e não muito oculta, a crítica da democracia. A saber, a ideia de que a democracia é apenasuma variante de um mesmo poder autocrático.

Mas aqui essa indicação ganha um interesse particular, levando-se em conta o que escrevi sobre opeso do marxismo na leitura da história do capitalismo que o livro oferece, em particular sobre oeclipse do lugar das lutas democráticas e da democracia em geral. É que a tese schmittiana-agambeniana vem reforçar o déficit marxista em matéria de análise da democracia. Se a democraciaaparecera antes, na esteira teórica do marxismo, como pouco mais ou menos do que como umepifenômeno do capitalismo, agora ela desponta como um simples avatar da trajetória do “estadode exceção”.

Para não prolongar muito mais esse ponto, essencial entretanto, faço apenas mais duasobservações. Uma, a de que o nazismo e a Shoah acabam passando literalmente para um segundoplano, reduzidos a uma espécie de episódios do “caminho alemão”. Paulo Arantes escreve:“Entendido o antissemitismo nazi como uma tentativa paranoica de ultrapassar violentamente ahistória percebida como uma perene ameaça de descontrole e degenerescência, e ultrapassá-la pormeio do Terror, o Holocausto passa para um discreto segundo plano, e o Nazismo, por sua vez,entra na conta das aberrações regressivas da via prussiana [...].”

Em segundo lugar, voltando ao belo livro de Christophe Dejours, que se ocupa do sofrimento notrabalho, observemos que Arantes extrapola muito as teses do autor. Dejours analisa a banalizaçãodo “sofrimento social” sob o neoliberalismo, banalização que se tornou célebre em outro contexto, asaber, a propósito do “mal” que praticaram os atores do projeto nazista. Entretanto, a comparação(nos dois casos, trata-se de “banalização”, melhor do que “banalidade”), que é perfeitamente válidadentro dos limites do que escreve Dejours, não permite afirmar que só com o neoliberalismo“podemos enfim atinar com a mola secreta do poder nazi”. A mola do nazismo era outra.

É importante ressaltar ainda, a propósito do livro de Dejours, o fato de que ele introduz umaespécie de fundamento para a crítica de esquerda, a ideia de “sofrimento social”. Fundamento que,bem entendido, é heterodoxo em relação a Marx (ao Marx maduro de O Capital, em todo caso) e serelaciona, como assinala Arantes, com a ideia de “alienação”. O “sofrimento social” é tratado porDejours como uma “injustiça”, o que também nos leva para longe de Marx, que, como se sabe, eramuito avesso aos termos “moralizantes”.

Mas, se ter dado destaque ao que escreveu Dejours é certamente um mérito de O Novo Tempo doMundo, pode-se perguntar em que medida Arantes incorporou esses elementos heterodoxos comofundamentos gerais para uma crítica do capitalismo, em particular, e da exploração e opressão, emgeral. Claro que aquelas noções estão de alguma forma presentes, pelo próprio fato de que o autorse utiliza abundantemente do que escreveu Dejours. Mas elas não “informam” ou, em todo caso,certamente não informam de um modo suficientemente claro e não contraditório, o conjunto dotexto.

“NÃO QUEREMOS MAIS SER GOVERNADOS”

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O

Novo Tempo do Mundo confere um lugar importante a certa literatura sociológica e crítica quetrata da miséria e da violência nas periferias, nas favelas e em outros espaços do mesmo tipo. Aquestão central é a da violência policial. A realidade desta é indiscutível, e é com razão que o autordá um relevo especial ao tema. Entretanto, também aqui há hipérbole. E esta corre o risco deenfraquecer o argumento, quando não de liquidá-lo.

Para dar um exemplo, muito característico, não posso deixar de comentar o que Arantes escrevesobre as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), forças de intervenção policial que atuam nasfavelas do Rio, combinando ocupação do território e trabalho social. Não estou em condições defazer uma avaliação precisa do que significaram e significam as UPPs. Elas obtiveram certamentealguns resultados na luta contra o tráfico. Mas sua atividade ficou marcada ou manchada porviolências contra a população, além do fato de que, frequentemente, os traficantes abandonavam azona sob intervenção para se instalar em outros pontos do território. Porém, o que de qualquermodo parece chocante no texto de Arantes é que ele vê as UPPs como um simples elemento derepressão policial, “trabalho social armado” que visa pacificar as populações. E da dualidaderepressão/trabalho social (ecoando o arcuseano welfare/warfare) passamos à Batalha de Argel, àGuerra da Indochina ou às ações imperialistas na América.

Ora, quaisquer que tenham sido as violências praticadas pela polícia em diferentes situações, eindependentemente do que escreve tal ou qual ideólogo, do lado de cá ou do lado de lá, que Arantesgosta de citar, as intervenções do tipo UPP não são de forma alguma comparáveis, mesmo mutatismutandis, a eventos como as intervenções norte-americanas ou europeias na América, África eÁsia. Por uma simples razão: é que, de uma forma ou de outra, mesmo se concluirmos por umacondenação geral das UPPs, existe um fator, aí presente, que estava ausente nos outros casos, doqual o autor esquece (ou quase esquece, porque há menções, mas tão poucas e tão escondidas nasnotas que a gente perde de vista). Este elemento é a criminalidade.

Ele cita um texto em que se afirma que “a presença de grupos armados é [...] um pesadelo para oconjunto da população carioca”. Há outras breves referências. Mas nada disso o impede de incluiras intervenções do tipo UPP num esquema mundial de intervenções imperialistas. E, talvez aindamais importante, a intervenção do Estado acaba sendo reduzida a pouco mais do que um tipoespecial de banditismo. A partir de operações como a das UPPs, Arantes chega à “evidência de queo Estado está voltando a ser a relíquia que sempre foi, um bando armado que vende proteção”. Ora,se é verdade que ações brutais de uma polícia arquicorrupta tendem a fazer do Estado algo comoum poder de gangue entre outros poderes de gangues, nem de direito nem mesmo de fato o Estado,e mesmo o Estado brasileiro, representa hoje rigorosamente tal coisa.

Exagero na crítica? Arantes não quis dizer exatamente isto? A verdade é que, afinal, a gentepergunta: o autor acredita ou não que, de uma forma ou de outra, só através do Estado será possívelcombater a grande criminalidade? Porque finalmente não se sabe bem se Arantes é a favor oucontra o Estado. Existe, aliás, uma antinomia na palavra de ordem (que ele aprecia): “Nãoqueremos mais ser governados, ou não mais assim.” Não queremos mais ser governados? Ou nãoqueremos mais ser governados assim? Vai aí uma diferença que não é pequena.

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Há um modo mais universal de desconstruir a hipérbole da explicação pelo capital, pelo capitalista,ou pela “forma atual de acumulação do capital”. Eu o insiro aqui, no final dessa sucessão de toposcríticos, como um argumento que, de certa maneira, os resume. Arantes não cessa de denunciar asaberrações e violências do capitalismo contemporâneo. No que ele, em geral, tem certamente razão.Tudo é objeto de crítica. Mas aqui seriam necessárias algumas observações.

Há na realidade social – a distinção é utilizada por Marx, que, no seu sentido geral, a tomou deempréstimo de seu mestre Aristóteles – uma forma e uma matéria. Há uma base tecnológica, ligadaa certo nível de desenvolvimento da ciência, além de certos pressupostos demográficos etc., o que,tudo junto, representa a matéria do social. Mas há também uma forma social, que, no caso dasnossas sociedades ocidentais (e hoje, bem mais do que isso), é a forma capitalista. Bem entendido, aforma impregna a matéria, modifica-a, dá-lhe um caráter particular. De qualquer modo, nãodesapareceu a distinção entre forma e matéria. Perdê-la de vista é operar um movimentosimetricamente inverso, mas não menos redutor, ao da crítica reacionária que transforma a formaem matéria (transforma o capitalismo em “sociedade industrial”). Aqui, pelo contrário, é a matériaque vira forma (a forma capitalista faz perder de vista a matéria).

Escamoteia-se, assim, o desafio que representa tentar pensar uma sociedade altamentedesenvolvida do ponto de vista tecnológico como uma sociedade – o que ela poderia ser –emancipada. Que não se diga que a crítica não está obrigada a tanto. Ela não estava, de certo modo,no tempo de Marx, ou para Marx. O comunismo havia de resolver (quase) todos os problemas, e eramelhor não abarrotar as “panelas do futuro”. Argumento válido, dentro de um certo quadro depensamento, mas que não serve mais. Se é que alguma vez serviu.

Para dar um exemplo, a partir de certos autores, e no contexto de uma análise dos territórios emque domina uma ordem disciplinar, o autor escreve: “As companhias aéreas [...] são antes de tudoinstituições disciplinares.” Em geral, não duvido, embora haja exagero nisso. Mas não se trataapenas de exagero. Há aí um problema maior. Arantes não discute o que poderia ser uma sociedadeemancipada em que, por exemplo existiriam aviões. Sim, porque podemos – e até devemos –imaginar uma sociedade emancipada em que haveria aviões. De fato, um projeto de emancipaçãonão deve propor a liquidação de grandes conquistas tecnológicas, pelo menos na sua forma geral. Ese é assim – independentemente da disciplinarização que existe, certamente, no nosso tempo –, éevidente que a presença daquela tecnologia implicaria um certo número de exigências, do tipohierarquia de comando, organização da espera, e mesmo, conforme a situação, inspeção do que seembarca a bordo dos aviões etc.

Alguém pode dizer que me ocupo de banalidades, mas é a partir das banalidades que se pode ver oque não funciona na obra que examinamos. Minha tese é a de que Arantes confunde crítica daforma e crítica da matéria. Ou, antes, atribui à forma todos os problemas, inclusive aqueles que sedevem à matéria. Isso certamente facilita as coisas para ele, mas não serve à crítica. Um pontocurioso é a denúncia que ele faz da fila, em particular da “fila para comer”. Esta remeteria, emúltima instância, às prisões e aos campos, como afirmaram sociólogos críticos.

Ah, que horror fazer fila para comer! Horror banalizado, já que, no que se refere a essa forma dedisciplina, ter-se-ia perdido ou recalcado a reação original, que era de repulsa. Ora, a fila (incluindoa fila para comer) decorre muitas vezes de condições e exigências, por assim dizer, técnicas, quepouco ou nada têm a ver com a opressão. Faz-se fila na cantina de uma escola. A cantina é umainstituição repressiva? É opressivo, que, na cantina, cada um se sirva obedecendo a uma fila? Claro

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que poderia ser de outro jeito, mas o arranjo seria mais livre? Pode haver fila até em piquenique deamigos, quando somos suficientemente numerosos, e alguém prepara uma sopa para todo o grupo.

Na realidade, apesar dos horrores das filas imensas à espera de alimentos escassos ou outrosprodutos de primeira necessidade, e das filas para fazer pedidos às autoridades, pedidos que nãoserão satisfeitos e nem sequer respondidos, a fila, em si mesma, não tem nada de opressivo ouirracional. Pelo contrário, eu diria que ela é um procedimento igualitário, que serve a umasociedade democrática. Nunca me esqueço da minha primeira volta ao Brasil, quando em vez deesperar a minha vez, à maneira europeia, fazendo democrática e pacificamente uma (pequena) fila,fui obrigado a lutar contra um bando de gente agressiva, amontoada em torno de um balcão.

Tudo isso pode parecer insignificante, repito, mas importa mostrar o caráter hiperbólico e por issoinoperante do estilo crítico do livro que examinamos. Aliás, a propósito de filas, diria ainda quetambém quando se fala em público, em discussões, mesas-redondas ou colóquios, é preciso fazerfila, isto é, aguardar a vez e respeitar democraticamente o tempo de palavra. Quem quiser falarmais, que espere primeiro, na fila, os minutos de intervenção de cada um dos outros. É pelo menoso que fazem os que têm o mau hábito de respeitar a disciplina democrática.

DEPOIS DE JUNHO

É

hora de examinar o que representa propriamente a política em O Novo Tempo do Mundo. Como jáobservei, o que desde o início incomoda na política de Arantes, tal como aparece no presente livro, éque ela se constrói tendo como fundo uma entidade hipostasiada, a “Revolução” (com maiúscula).Uma tese importante nesse contexto é a de que hoje não se é fiel à Revolução. O lugar dessaentidade teria sido tomado por outras, em primeiro lugar a “Urgência” (também com maiúscula).Se antes se falava em Revolução, o grande evento que a esquerda desejava e a direita execrava, hojenão se fala mais dela, e seu lugar foi tomado por algo assim como a “grande catástrofe” – nuclear,climática, biológica –, que alguns temem e outros denunciam como mito.

Só que as coisas não se passaram exatamente desse modo. Essa descrição da mudança é acrítica. Amudança real (porque houve uma), do ponto de vista crítico pelo menos, que é o daqueles queprivilegiam o destino das lutas emancipatórias, se escreveria mais ou menos deste jeito: as lutascontemporâneas pela emancipação passaram a ter múltiplos objetivos; elas deixaram de visarapenas à igualdade e à liberdade (aliás, esta última, à luz do que ocorreu no século XX, ganhou umaforça inédita), e a elas se somou a luta pela “melhor sobrevivência” da espécie no planeta. Para nãofalar em outras lutas. Todo o problema da esquerda atual é saber como articular essas diferentesfrentes.

Ora, Paulo Arantes não desce até aí. Em vez de tentar combinar elementos, ele prefere colocá-losem oposição. Em vez da “Revolução”, que visaria à igualdade, teria surgido uma nova entidade, a“Urgência”. E aí, ai da Revolução. E que não se diga que houve uma nova distribuição de forças, deum lado os que acreditam na Urgência e que temem catástrofes mais ou menos iminentes, de outroos que não acreditam nela. Em O Novo Tempo do Mundo, a diferença entre uns e outros,

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“catastrofistas” e “integrados” (é essa a sua terminologia), não é fundamental. Uns se somariam aosoutros no mesmo gesto de repúdio à Revolução, ou ao seu equivalente à direita, o Progresso.

Por esse caminho é muito difícil entender os problemas contemporâneos, em particular os quetocam às lutas de emancipação. Em primeiro lugar, seria necessário precisar bem o que o autorconsidera real, e o que, para ele, é fictício em matéria de catástrofes eventuais. As fronteiras entrerealidade e ficção seriam imprecisas? Não creio. Ou nem tanto assim. De qualquer modo, se nãodistinguirmos bem o que é real do que é aparente, é impossível lutar, senão sobreviver.

Ora, o livro de Arantes evolui numa zona cinzenta, às vezes não sabemos bem se o objeto (ou oevento possível) a que ele se refere seria real ou imaginário, se para ele o risco da catástrofe seriamesmo real (acho que sim, mas há passagens ambíguas). No que me concerne pelo menos – emuita gente pensa do mesmo modo –, o risco é real, muito real, quer se trate da acumulação deco2 na atmosfera, do “acidente” nuclear ou da proliferação de certos vírus. Mas, se tal é o caso,

parece também, salvo melhor juízo, que devemos tomar posição diante dele, assumir nossasresponsabilidades, como se costumava dizer, pelo menos no plano do discurso, e não se refugiar nasdelícias e no brilho do nosso discurso.

Descrevi o lado dos que afirmam que o perigo é real. E eles não se limitam a afirmar. Muitos sedispõem a lutar (em organizações diversas, ONGs, partidos políticos) para que o pior não aconteça.Estão aí, em nível mundial, manifestações importantes contra a utilização da energia nuclear econtra todos os atentados graves ao meio ambiente. Essa gente, seja lembrado, invoca muitas vezeso chamado “princípio de precaução”. Pois, coerente com o curso geral dos seus argumentos,Arantes joga fora o “princípio de precaução”, junto com o seu contrário, que se poderia chamartalvez de “princípio de audácia”, ou melhor, “de temeridade”, o que professam aqueles que nãoacreditam em perigo nuclear e quejandas ficções. Como vimos, tudo vai para a mesma lata. Umpouco como uma nova versão da famosa “lata de lixo da história”, de tão triste memória. Só quenessa nova versão entra todo mundo. Este me parece ser, infelizmente, o contexto geral da políticaarantiana.

Mas vamos ao particular. E aí há que falar principalmente das mobilizações de junho de 2013. Ah,as mobilizações de junho! Como já sugeri, Paulo Arantes professa em geral um pessimismo teórico-prático. Ele descreve o mundo capitalista como uma realidade mais ou menos fechada, uma“máquina do mundo” no interior da qual não há lugar nem para a reforma, nem a rigor para a“Revolução”, nem, ainda, para o “reformismo radical”. Até aí, alguma verdade. Mas respiremos. Seé meia-noite no século, é também meio-dia. Os jovens se mobilizaram. Não se trata do velhoproletariado, nem do proletariado em geral, mas de uma camada nova, sui generis. Certo. Enfim,eles se mobilizaram, e com isso entramos num novo registro, o do “depois de Junho”.

Deixo claro que simpatizo com as manifestações de junho e que, além disso, estou convencido desua importância. O problema é saber o que elas significaram, que perspectivas têm, e o que sepoderia dizer da maneira pela qual foram conduzidas. Arantes as teoriza a partir de Agamben, o quesignifica em geral fazer uso de fórmulas pedantes e, tudo somado, superficiais.

Devo sublinhar que nem tudo o que ele escreve sobre essas mobilizações me parece falso. Porexemplo, é feliz ao insistir sobre a coexistência de reivindicações bem precisas e aparentemente

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minúsculas – abaixo o aumento de 20 centavos –, de um lado, e de outro uma perspectiva implícitaou explicitamente mais ampla, além de aberta para um leque virtual de exigências. Mas o temacentral é o da “profanação”: profanar, segundo Agamben, significa “restituir ao livre uso o que antesestava indisponível, confiscado e preservado fora do alcance em sua aura”, nos diz Arantes.

A

tese geral que está por trás do mantra da profanação é a de que o capitalismo, hoje, não se afirmamais “unicamente através da repressão”. O autor começa por citar um texto do coletivo PassaPalavra, segundo o qual o capitalismo quer que “os de baixo” sejam “engajados e participativos”,mas desde que engajamento e participação aconteçam “dentro de espaços preestabelecidos”. Agoraé Arantes quem fala: “Um dos choques insurgentes de junho consistiu justamente na profanaçãodesse confinamento.” Vê-se mal o quanto se avança – ou não avança – com esse mote da“profanação”.

Mas o pior é que, entre as “profanações” atribuídas ao movimento, e que constituiriam a suaoriginalidade e grandeza, está a profanação... “da estratégia da não violência”. Sim, pois Arantesincorpora o movimento, por assim dizer, em bloco. Ele o saúda, não só sem fazer restrições aos atosde violência que, em alguns momentos, o acompanharam, mas considerando esses atos, ao queparece, como um dos pontos fortes e originais do movimento.

Em mais de um momento O Novo Tempo do Mundo abre alas para os black blocs: “Mais uma vez:jamais esquecer, como se esqueceu na hora em que a tática black bloc tornou-se a bola da vez, adimensão inédita assumida pela tática da ação direta adotada pelo Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra (MST) – ocupar, resistir, produzir –, o que lhe rendeu de volta a fúria assassinados proprietários e seu braço estatal.” Ou ainda: “O fenômeno black bloc nos acontecimentos dejunho não era trivial.”

Tocamos aqui no problema da violência. As manifestações de junho foram violentas? E, se o foram,por iniciativa de quem? Qual a atitude primeira do Movimento Passe Livre diante da violência?Ora, se estudarmos as primeiras declarações de seus membros (já que, por definição, eles não têmchefes), veremos que havia uma tendência evidente, por parte deles, em direção à não violência.Havia até um exagero nesse direcionamento: os MPL se dispunham a dançar nas manifestações, enão queriam nem carro de som – para não “oprimir” os manifestantes –, nem, ao que parece,serviço de ordem. Não posso exibir documentos, mas creio que foi essa a atitude deles.

Depois as coisas mudaram um pouco. Claro, houve violência, e grande violência por parte da políciamilitar. Alguns manifestantes reagiram. Mas, principalmente, apareceu um grupo, os famosos blackblocs, ativistas encapuçados, que se propuseram a enfrentar a polícia e também a destruir peças dopatrimônio público ou privado. Com os resultados que conhecemos: alguns feridos, também dolado de lá, e mais prisões. Deixo de lado outros problemas, como o da presença de elementos que sepodem considerar como “de direita” no interior das manifestações, o que, sem dúvida, complicou oquadro.

Mas o que me impressiona, em sentido negativo, é que os militantes dos grupos que estão na

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origem das mobilizações de junho (e, em parte, das manifestações anteriores) foramprogressivamente definindo uma atitude de quase respeito, respeito político, ou talvez até mais doque isso, pelo grupo violento dos encapuçados. Insisti, em textos anteriores, sobre o quanto issorepresentou um engano lamentável, fruto sem dúvida do fetichismo da violência que domina parteda esquerda desde pelo menos um século. Ora, Arantes não distingue as atitudes presentes naspráticas dos manifestantes, tampouco assume uma posição crítica diante do que é uma concessão,de gente que na origem tinha uma postura não violenta, às ações de um grupo notoriamenteviolento. O que me parece extremamente grave.

Eu distinguiria sim, na contramão do discurso arantiano (oh, ilusões reformistas e angelistas, dirãoeles!), os manifestantes pacíficos dos quebradores de ônibus e incendiários de automóveis. Explico-me: não se trata de afirmar que, no frigir dos ovos, seja sempre possível impedir a um manifestanteque ele reaja à violência com um gesto de defesa mais ou menos brusco. Isso pode ocorrer, e de fatoocorreu. Mas não se trata disso. A questão é que se constituiu um “bloco” de violentos e, atravésdeles, um éthos de violência, cujas consequências, estou convencido, são funestas para omovimento. Bem entendido, a violência maior vem do lado de lá. Mas não é esse o ponto. Haja ounão violência do outro lado da barreira, devemos coibi-la do lado de cá, e não adotá-la comobandeira. Isso, por duas ordens de razões. Na linguagem antiga, razões táticas e razões estratégicas.

Táticas, porque as reações violentas levam a violências ainda maiores do outro lado, eevidentemente não somos os mais fortes, não venceremos nessa luta hiperdesigual. E o preço que sepaga por ela, em termos de prisões, ferimentos e mortes, é muito alto. No outro plano, há doisargumentos decisivos. É absurdo pensar que chegaremos ao poder ou a algum tipo de vitória maior,em médio ou longo prazo, apelando para aqueles gestos violentos. Sem dúvida houve, é claro, nahistória movimentos violentos que foram vitoriosos. Mas isso se deu em circunstâncias muitoparticulares e muito diferentes das nossas.

Para além disso, parece evidente que a formação de um grupo violento é a pior coisa que podeacontecer para manifestantes que pregam a autonomia, isto é, que têm uma agenda libertária. Ogrupo “armado”, como todos os grupos armados, vai se cristalizando em “grupo de vanguarda”, istoé, em grupo dirigente – e, com isso, a autonomia do movimento vai por água abaixo.

LÓGICA E POLÍTICA

N

ão faço concessão a uma fórmula convencional ao ressaltar tudo o que se pode encontrar em ONovo Tempo do Mundo. Já falei da prosa de ensaio, sob muitos aspectos invejável, da riqueza dabibliografia, das análises sobre o tempo e a tortura da espera sob o capitalismo contemporâneo –análises que culminam com o recurso às obras literárias de Kafka e de Beckett –, da presença de umlivro tão importante como Souffrance en France, de Christophe Dejours. Não é pouca coisa. Eentretanto...

O Novo Tempo do Mundo sofre de um déficit lógico e de um déficit político. Esses dois déficits secruzam e se refletem. O livro tem alguma coisa de errado também num registro que se poderia

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chamar de retórico. Começo por esse último ponto. Apesar da beleza do estilo, ou talvez por causadele, o tom de O Novo Tempo do Mundo não convence. O brilho da prosa incomoda às vezes, e porvárias razões. Um conteúdo que se revela deficiente, envolto numa prosa brilhante, é muitas vezesuma solução pior do que um conteúdo imperfeito, expresso em prosa sem brilho. A primeirasituação, que é, em geral, a do livro, é muito mais mistificante. Depois, o virtuosismo da prosa àsvezes passa do limite. E, em alguns casos – veja-se o capítulo com a entrevista “Tempo de exceção”–, o virtuosismo degenera em prosa de “piloto automático”, numa avalanche de palavras.

De forma geral, o tom de O Novo Tempo do Mundo é eminentemente elitista, senão aristocrático. Onarrador encarna, de certo modo, o “espírito absoluto” hegeliano. (O hegelianismo de Arantes,infelizmente e de forma surpreendente na pena de um tão bom conhecedor de Hegel, é menos o dadialética, como discurso crítico, do que o do idealismo dogmático.) Ele oficia demasiadamente “láde dentro”, ou do alto demais, o que vem a ser a mesma coisa. Às vezes nos perguntamos se essetom é de alguém que está realmente preocupado com a sorte da humanidade. Lendo a prosaarantiana, tem-se a impressão não só de que ele prega para convertidos, mas de que ele fala tendodiante de si algo assim como uma mesa... posta.

Passemos aos problemas propriamente substantivos. O Novo Tempo do Mundo é na realidade umaformidável máquina identitária. Tudo corresponde a tudo, e tudo leva finalmente ao “novo regimede acumulação” do capital. O que não conduz a isso não é real. Dir-se-ia, parafraseando uma frasecélebre – e frequentemente mal entendida –, que no livro “tudo o que é real é capital (remete aocapital), e tudo o que é capital (remete ao capital) é real”. Poder-se-ia dizer também: “Tudo o que éracional é capital”, porque não haveria racionalidade fora do âmbito de efetividade do capital.

A isso se soma o grande déficit político do livro: a história do comunismo está ausentecomo tema. Isto é, a análise dessa história está ausente. E como o comunismo, praticamente mortono final do século XX, é entretanto um fantasma arquipresente no XXI sob a forma dos populismosautocráticos e, em geral, pela presença maciça, embora muitas vezes insuspeitada, do leninismo,principalmente nas esquerdas do Terceiro Mundo, essa ausência condena in limine toda tentativade esboçar uma teoria da história dos últimos 100 anos. E tanto mais porque a ausência docomunismo vai junto – em parte coincide – com o esquecimento da maior parte da história daslutas sociais nesse período. O Novo Tempo do Mundo é um livro com pouca memória, um textoque, no que se refere aos movimentos sociais, joga a carta da ruptura, uma ruptura que é em grandeparte ilusória.

Mas, precisamente, o que o livro não enxerga? Ele não enxerga em todo o seu alcance – volto aoponto porque resume o argumento – a formidável inversão que se opera no século XX. Um grandemovimento de emancipação que desemboca em ditadura totalitária. Porém o pior é que aincapacidade de pensar a grande inversão se manifesta não só na leitura do passado, mas tambémcom relação ao futuro. Se Arantes não vê – ou vê pouco – a grande catástrofe que foi a história deum movimento de emancipação conduzindo a um neodespotismo genocida, ele também nãoenxerga (ou, antes, lhe é indiferente) a possibilidade de que esse fenômeno (ou um fenômenoaparentado com aquele, por exemplo um populismo autoritário) possa ocorrer também no futuro.Para Arantes, “populismo” é “entidade fantasmagórica” – assim, autoritarismo “de esquerda”, comocenário político presente ou futuro para a América Latina, também deve ser.

Em resumo, o que o autor de O Novo Tempo do Mundo não percebe com olho crítico é que os

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atuais movimentos que, em princípio, vão no sentido da emancipação podem, sob certas condições,se tornar o seu contrário, isto é, levar a regimes, se não totalitários, pelo menos populistas eautoritários.

As condições a que me refiro podem ser várias, mas uma delas pode ser identificada examinando osmeios de que se valem esses movimentos. E aí somos reconduzidos ao problema da violência. Aescolha e a prática de meios intencionalmente violentos são, pelas razões que indiquei, um índicedo risco de que movimentos emancipatórios se transformem em projetos autocráticos.

Existe assim, para os dois casos – passado e futuro –, um déficit lógico-político, que é o de umaleitura pouco dialética da realidade histórica – observe-se que o termo “dialética”, não rarovulgarizado, tem aqui um uso rigoroso –, uma leitura insuficientemente aberta às inversões desentido que podem se produzir na história.

Há, em O Novo Tempo do Mundo, um problema geral de fundamentação. Mais precisamente – masas duas coisas vão na mesma direção – uma dificuldade no nível dos fins que ele propõe, na medidaem que é um texto político. Pode-se perguntar: quais são os objetivos políticos do discurso? Porque,por um lado, o livro revela uma tendência a recusar os problemas que, em princípio, poderiam serresolvidos dentro do capitalismo. Um exemplo extremo da liquidação, fácil, de um problema dessetipo está no tratamento dado à questão dos automóveis na cidade, isto é, da necessidade depromover o transporte coletivo. Pensando, talvez, em fazer um trabalho de desmistificação, o autorremete à descrição de um projeto de cidade sem automóveis que estaria sendo feito em um emiradohiperautocrático. Não bastasse o caráter caricatural do argumento, acabamos sendo informados,depois de três páginas de leitura, que o tal projeto não se realizou, nem se realizará... E fica tudo poraí.

O objetivo seria então a revolução? Nada menos claro. Tem-se a impressão de que Arantes põe etira a “Revolução” do bolso do colete. Ele utiliza o termo quando lhe convém (para opô-lo a“Urgência”, por exemplo), e o retira quando não lhe serve (quando fala das ilusões do passado, porexemplo). Alguém pode argumentar que a ambiguidade e a indefinição são objetivas. O autor só asrefletiria. Não é assim. Ainda que difíceis, as respostas existem, e podemos chegar a elas; mas só seformos capazes de recusar as ambiguidades retóricas.

Como vimos, o livro de Dejours fornece alguns conceitos que poderiam representar verdadeirosfundamentos e fins, conceitos de resto muito pouco ortodoxos. Em primeiro lugar, a ideia de“sofrimento social” (também a ideia de “injustiça”, que tem a originalidade de não ser nadaoriginal). Se tivesse realmente servido como fundamento do projeto teórico-prático que o livroencerra, esse tipo de conceituação permitiria construir uma crítica muito mais aberta ao real emuito menos dogmática. Afinal o “sofrimento social” não vem só do capitalismo; há, mesmo hoje –basta ver o Oriente Médio, e até, em parte, a China e a Rússia –, muito sofrimento social que nãotem propriamente origem no capitalismo.

Mas, fora o capítulo mais diretamente afinado com o livro de Dejours, O Novo Tempo doMundonão vai exatamente por aí. Ele antes mistura “sofrimento social” com “revolução”, e“revolução” com o seu contrário, “o fim das grandes expectativas”. O resultado é uma espécie deniilismo, mas niilismo apesar de tudo marxista, ou neomarxista.

Aliás, às vezes o livro descamba para o pior marxismo ou, antes, vai do marxismo para algo pior doque ele. Arantes não hesita em utilizar – sem advertir o leitor sobre a perspectiva geral dos autores

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que cita – teóricos notoriamente stalinistas, do tipo dos italianos Domenico Losurdo – que escrevelivros contra “a lenda negra (sic) de Stálin” – ou Luciano Canfora – que toma a defesa da falecidaRepública Democrática Alemã (para Canfora, esta era democrática mesmo). Também se dispõe afazer um elogio discreto do populista Chávez, e a chamar o homem político de esquerda (anti-Chávez) venezuelano Teodoro Petkoff de “renegado”.

Se nos fixarmos sobre a ausência do topos crítico, fundamental, da inversão do movimentohistórico a que me referi; se notarmos o dualismo simplista na leitura da política internacional, porexemplo; e ainda a ausência desse grande instrumento crítico que é a contra-história, uma vez queo autor raramente pensa na possibilidade de que outra coisa pudesse ter acontecido – então, paraalém da complexidade dos argumentos, da sofisticação do raciocínio e da multiplicidade e riquezadas referências, O Novo Tempo do Mundo se revelará, finalmente, como um livro cuja filosofia é, nofundo, um progressismo mais ou menos vulgar.

Eu não hesitaria em dizer que, no plano teórico-crítico, o livro naufraga. Fico tentado a afirmar queele é teoricamente “torto”, no sentido de que abandona aquele que por razões subjetivas e objetivaspoderia e deveria ser seu curso, o da crítica dialética, a rigor ausente. Quanto a seus efeitos no planoprático-político, se pensarmos no entusiasmo pela violência que parte da juventude manifesta, naconfiança ingênua que não raro deposita nela, parece evidente que O Novo Tempo do Mundo, obrade um grande intelectual que abraça sem crítica a chamada violência revolucionária –principalmente se o livro for adotado por certa juventude politizada, como parece que já vemacontecendo –, certamente fará, naquele registro, muito mais mal do que bem. Não direi mais.