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IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ENABED)
A ESTRATÉGIA DE LIDERANÇA REGIONAL DA TURQUIA: INFLEXÃO DA
POLÍTICA EXTERNA PÓS-2011 E LIMITES DO MODELO
Área Temática 03 – Estudos Estratégicos
Willian Moraes Roberto
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas
(UNESP-UNICAMP-PUC-SP)
Florianópolis
06 - 08 julho, 2016
Resumo:
Desde 2003, com a ascensão do governo do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), a
Turquia tem passado por um processo de reaproximação com o Oriente Médio. De um lado,
vinha adotando uma política externa pautada na mediação de conflitos e na aproximação
econômica – doutrina de “Zero Problemas com os Vizinhos”; de outro, consolidava-se como
modelo político regional ao combinar um governo de partido islâmico em uma república
secular democrática. Entretanto, com o início das revoltas árabes e a eclosão do conflito na
Síria a partir de 2011, a Turquia novamente passou por uma inflexão em sua política externa.
O governo turco passou a adotar uma postura assertiva, assumindo uma posição de grande
influência tanto no conflito sírio quanto junto aos novos governos de partidos islâmicos na
região. Diante disso, esse artigo busca investigar a seguinte pergunta de pesquisa: quais
foram os objetivos buscados pela política externa turca a partir de 2011 e por que a mesma
encontrou limitações? Argumenta-se que a Turquia procurou assumir uma liderança regional
fundamentada em uma estratégia de apoio ao que esperava ser novos regimes baseados no
próprio modelo turco, estando inserida nessa lógica a decisão de se opor ao regime de Assad
– ato apoiado e encorajado pelos EUA. Entretanto, esta análise aponta que, já em 2013, essa
política passou a enfrentar limitações. Não só o governo de Assad resistiu e o conflito sírio
radicalizou-se, com a emergência de movimentos autônomos curdos na Síria, como também
os novos governos islâmicos sofreram derrotas ou golpes militares, além da própria Turquia
ver sua situação política interna agravada. Como consequência, o governo turco passou a
enfrentar crescentes desafios, atestando limites e dificuldades em sustentar a política externa
adotada a partir de 2011.
Palavras-chave: Turquia; Política Externa; Geoestratégia; Revoltas Árabes; Oriente Médio;
Síria; Islã Político.
1. Introdução
A Turquia, localizada em um ponto geoestratégico central entre a Europa e o Oriente
Médio, historicamente tem sido um ator relevante no cenário internacional. A República turca,
fundada em 1923, é herdeira do Império Otomano, e, durante a Guerra Fria, tornou-se um
importante membro do bloco ocidental, aproximando-se dos países da atual União Europeia
(UE) e dos Estados Unidos, e passando também a compor, em 1952, a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – a aliança militar ocidental. Durante esse período, a
Turquia majoritariamente adotou uma política externa que se abstinha de envolver-se na
região do Oriente Médio e privilegiava suas conexões com a Europa e os Estados Unidos
(FULLER, 2008; KINZER, 2008).
A despeito de alguns ensaios e aproximações pontuais com o Oriente Médio, nos anos
1980 e 1990, foi somente com a ascensão do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, em
turco) ao governo da Turquia, no final de 2002, que o país deu início a um processo efetivo
de redefinição do seu papel no Oriente Médio (KINZER, 2008; ROBINS, 2007; ROBINS,
2013). Gradualmente, a Turquia abandonou a política de evitar estabelecer vínculos com a
região e deixou de negar seu passado comum. Uma aproximação efetiva foi iniciada pelo
governo do AKP através de uma política externa pautada na mediação de conflitos – doutrina
dos “Zero Problemas com os Vizinhos” – e na criação e aprofundamento de laços político-
econômicos com Estados da região (KINZER, 2008).
Entretanto, essa postura, que já se diferenciava do passado da política externa turca,
foi novamente alterada a partir de 2011 frente a eclosão das revoltas árabes. O país, que até
então vinha aproximando-se do Oriente Médio de maneira cautelosa e pragmática, passa a
destacar-se por sua assertividade frente aos novos fatos regionais, sobretudo na Síria. O
governo AKP passou a apoiar diretamente grupos islâmicos que poderiam emular o “modelo
turco” como exemplo político: um partido islâmico governando e coexistindo dentro de uma
burocracia estatal secular (ROBINS, 2013; FULLER, 2008). Nas palavras do então Ministro
das Relações Exteriores, Ahmet Davutoğlu, a Turquia “[iria] liderar os ventos de mudança no
Oriente Médio, não apenas como uma amiga, mas como um país que é visto como articulador
das ideias de mudança e de uma nova ordem” (BARKEY, 2016, online, tradução nossa).
Diante de tais fatos, tem-se como perguntas de pesquisas: Por que a Turquia passou
por uma inflexão em sua política externa a partir de 2011? Quais foram os objetivos externos
por ela buscados a partir de então? Este artigo, portanto, tem dois objetivos: 1) analisar o
processo e os motivos que levaram a Turquia a alterar sua política externa de maneira tão
significativa a partir das revoltas árabes em 2011; e 2) compreender qual foi nova estratégica
buscada a partir de então e identificar seus objetivos. Como hipóteses, argumenta-se que: 1)
a alteração na política externa turca deveu-se a dois principais choques externos – revoltas
árabes e relativo desengajamento dos Estados Unidos do Oriente Médio – e às mudanças
domésticas e na esfera exterior implementadas pelo AKP desde que chegou ao poder; 2) o
novo objetivo buscado pela Turquia foi construir-se como uma espécie de liderança regional
no Oriente Médio através do apoio a grupos que poderiam emular seu modelo político; e 3)
que a nova estratégia turca enfrentou limites inesperados e que acabou por contribuir com o
processo de desestabilização regional, sobretudo através de sua atuação na crise síria.
A fim de alcançar tais objetivos, pretende-se, em primeiro lugar, realizar uma análise
da política externa turca de maneira histórico-estrutural, identificando o que Robins (2007;
2013) e Huntington (1996) identificam como “vocação” ou “tradição” – dois tipos ideais de
orientação externa entre os quais a política turca se movimenta: o chamado “Kemalismo” e o
“Islamismo”. Estas serão analisadas dentro do contexto de formação e evolução do Estado
turco, conforme a análise de Fuller (2008), a fim de compreender o legado desse processo
sobre a atuação externa da Turquia até o século XXI. Tal abordagem será explorada na seção
seguinte, “A formação histórica da política externa turca: entre o Kemalismo e o Islamismo”.
Em seguida, busca-se compreender sua alteração de rumo em 2011 através do
modelo de Hermann (1990), que busca identificar agentes de mudança tanto no âmbito
doméstico quanto externo. Em relação ao contexto doméstico, analisa-se as mudanças
trazidas pelo AKP para a Turquia a partir de 2002, com base nos trabalhos de Kinzer (2008),
Robins (2013), Fuller (2008) e Davutoğlu (2007). Para os choques externos de 2011, usam-
se, sobretudo, as análises de Gerges (2012) e Robins (2013). Tal análise se desenvolve na
terceira seção do artigo, “A inflexão pós-2011: condicionantes domésticos e externos”.
Por fim, objetiva-se compreender a estratégia, de modo geral, implementada pela
política externa turca a partir de 2011. A situação síria recebe particular atenção dado a
centralidade que tomou para a Turquia. Além das análises de Robins (2013) e Bandeira
(2013), utilizam-se outros artigos acadêmicos sobre o tema. Tais pontos são desenvolvidos
na seção “A nova política externa turca de liderança regional: implementação e limites”.
Esse artigo, assim, procura colaborar com o aprofundamento da discussão sobre as
mudanças recentes na política externa turca. A Turquia é um país localizado em região de
geoestratégica importância e detém capacidades destacáveis – 80 milhões de habitantes, 18ª
maior economia do mundo (EUA, 2016), uma democracia de população majoritariamente
muçulmana, segunda maior potência em termos militares no Oriente Médio e segundo maior
efetivo permanente da OTAN (FULLER, 20008). Compreender as razões para o país estar
agora se inserindo de maneira tão assertiva no Oriente Médio é, portanto, importante não só
pela novidade do fato, mas pelo impacto que este gera tanto em termos de segurança regional
quanto em termos de efeito sobre as alianças turcas ocidentais – UE e Estados Unidos.
2. A formação histórica da política externa turca: entre o Kemalismo e o Islamismo
A fim de que seja possível analisar as mudanças da política externa turca a partir de
2011 e o debate em torno de suas consequências, é necessário compreender de que maneira
se estruturou a atuação externa da Turquia desde sua formação até o momento presente. A
construção e evolução estatal turca deixou um legado de forte influência sobre a condução de
sua política externa, sendo responsável tanto pela preferência de alianças com o Ocidente
em detrimento da aproximação com o Oriente Médio quanto pela construção do que sempre
foi considerado ameaça pelo Estado.
Em seu livro “O Choque de Civilizações”, Samuel Huntington (1996) classificou a
Turquia como um clássico país dilacerado (torn country), apontando para os problemas de
identidade que a perpassam desde a fundação da República Turca, em 1923. De acordo com
Huntington (1996), um país dilacerado seria aquele cuja sociedade tem uma cultura
específica, que segundo as classificações do autor a ligaria com uma civilização em particular,
mas cuja elite almeja transformá-la em uma outra civilização.
No caso turco, a sociedade teria uma forte vinculação com a civilização islâmica dado
o legado Otomano. Entretanto, as elites governantes, em sua maioria, teriam historicamente
procurado transformar a Turquia em uma sociedade europeia e ocidental (HUNTINGTON,
1996). Sem pretender entrar no mérito da discussão acerca dos conceitos de “civilização”,
“civilização ocidental” ou “civilização islâmica”, o que faz a obra de Huntington (1996) é
apontar para uma tensão societária estrutural da Turquia, criada durante o processo de
construção nacional.
Tal processo teve início após a derrota Otomana na Primeira Guerra Mundial, quando
o território do Império foi ocupado pelas potências estrangeiras europeias. Estas subjugaram
o sultão em Istambul e fizeram-no assinar o Tratado de Sèvres, em 1920, que reconheceu o
desmembramento Otomano. Movimentos de resistência, liderados por Mustafá Kemal,
efetivamente conseguiram expulsar parte dos europeus ao longo de uma guerra de
independência até que, enfim, em 1923, negociaram a revogação de Sèvres e a assinatura
do Tratado de Lausanne, que reconheceu a independência turca com as fronteiras hoje
conhecidas (CLEVELAND; BUTTON, 2009; AHMAD, 1993).
Mustafá Kemal, eleito presidente pela Assembleia da nova República Turca, passou a
empreender um grande esforço de mudança radical na sociedade turca após a libertação. De
acordo com sua visão e a de seus apoiadores, a fim de modernizar-se e poder equiparar-se
às potências europeias, a nova Turquia deveria abandonar seu passado islâmico e Otomano,
implementar o secularismo e criar uma nação turca etnicamente homogênea, diferente do
Império, que fora multicultural, multiétnico e islâmico (CLEVELAND; BUTTON, 2009; AHMAD,
1993). A monarquia Otomana foi abolida, bem como a instituição do califado – ambos os
pilares que sustentavam a legitimidade imperial anteriormente. Adotou-se o calendário
gregoriano, aboliu-se a sharia1 como base das leis e instituiu-se um novo código civil e penal
baseado no de países europeus, retirou-se da constituição o Islã como religião oficial e
modificou-se o próprio alfabeto, antes de escrita arábica e agora com escrita latina
(CLEVELAND; BUTTON, 2009; AHMAD, 1993). É importante ressaltar que todo o processo
foi conduzido de maneira centralizada pelo Estado, regido por um sistema de partido único. A
legitimidade social que detinha Kemal advinha justamente do seu papel como libertador da
Turquia e de suas promessas de transformação e modernização, e a superação de anos de
humilhação estrangeira (AHMAD, 1993).
De acordo com Fuller (2008, p. 14), a narrativa histórica predominante advinda desse
período era de que o chamado Kemalismo “transformou o Estado pós-Otomano em um
Estado-nação ocidentalizado, homogêneo e de base étnica. Percebido como uma parte
natural da civilização ocidental, esse novo Estado-nação rejeitava o passado islâmico,
considerado atrasado e repressivo”. Entretanto, esse processo de inovações realizadas “por
cima” – pelo Estado e de maneira autoritária – acabou tendo excessos e mudanças bruscas
demais em alguns aspectos em relação à cultural turca tradicional, ligada ao passado
Otomano e islâmico (FULLER, 2008).
Nesse sentido, acabou-se por introduzir diversas formas de discriminação e clivagens
na sociedade que geraram, segundo Fuller (2008), três problemas estruturais. O primeiro
deles é um legado de autoritarismo que nunca foi abandonado pelas elites Kemalistas, o que
é representado pela persistência dos militares em interferir na vida política, visto se
considerarem herdeiros e guardiões do legado de Kemal Atatürk. Sempre que consideram
que o secularismo ou a pretensa homogeneidade étnica do Estado encontram-se ameaçados,
interferem através de golpes, como em 1960, 1971, 1980 e 1997, criando no país o que Kinzer
(2008) chama de “mentalidade autoritária” e Kuru (2012) de “tutela militar”2. O segundo
problema é a exclusão e supressão das identidades étnicas não turcas, como os curdos, que
compõe quase 20% da população da Turquia, mas que não são constitucionalmente
considerados como tais – o que implicou no não reconhecimento de qualquer vestígio cultural
ou linguístico curdo, gerando, posteriormente, problemas políticos e securitários graves,
1 A sharia é um conjunto de leis baseadas na religião, que tem como principal fonte de jurisdição o próprio Corão e que baseia diversas legislações de países. 2 O primeiro golpe militar, em 1960, foi realizado por jovens oficiais das Forças Armadas contra o governo eleito do Partido Democrata de Adnan Menderes, em um contexto de dificuldades econômicas e acirrada polarização ideológica. Uma junta foi formada e se implementou nova constituição em 1961, criando duas câmaras no Parlamento e consolidando o secularismo e diversos novos direitos individuais, dando espaço para um novo período de pluralismo ideológico e de movimentos sociais. Entre 1961 e 1980, houve intensa polarização entre os partidos liberais e movimentos de esquerda marxista-leninista, além do surgimento de partidos islâmicos. Em 1971, durante o governo eleito do Partido da Justiça, o Primeiro-Ministro Suleyman Demirel, em meio a grandes greves e problemas econômicos, é intimado a sair pelos militares, em um novo golpe onde dessa vez não assumem o poder. Já em 1980, um novo golpe contra o governo de Demirel é realizado. Dessa vez, os militares assumem o poder e mudam a constituição em 1982, criando o Conselho de Segurança Nacional (CSN), responsável por tutelar o governo civil desde então, e cláusulas que permitiriam ao governo suprimir os direitos garantidos em caso de ameaças nacionais. O mais recente golpe foi em 1997, com um ultimato contra o governo islâmico de Necmettin Erbakan, acusado de estar ferindo o secularismo do Estado (CLEVELAND; BUTTON, 2009; AHMAD, 1993).
majoritariamente com o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão)3. Por fim, o terceiro
problema, de acordo com Fuller (2008), seria a construção da percepção do Islã como uma
ameaça, o que acabou alienando grandes setores mais religiosos da população turca, que
viam no secularismo estatal uma forma de supressão e negação de suas escolhas religiosas.
Tais problemas acabaram gerando uma situação em que os militares, ao se
apossaram do título de guardiões do legado Kemalista, acabaram tornando-se extremamente
resistentes a mudanças sociais que poderiam configurar-se como ameaças aos “princípios do
Estado turco” – ou seja, qualquer movimento curdo, islâmico ou mesmo de partidos de
esquerda marxista-leninista. Assim, como coloca Kinzer (2008, p. 13, tradução nossa), a elite
governante da Turquia acabou se tornando “inimiga do ideal que a deu vida”: ainda que o
Kemalismo tenha originalmente se dedicado a libertar a nação turca dos dogmas Otomanos,
seus defensores teriam tornando o próprio Kemalismo um dogma, o qual passou a servir como
ferramenta de supressão da diversidade étnica, religiosa e política dentro da sociedade. A
democracia seria aceita se, e somente se, não entrasse em conflito com a ideia de
secularismo e de nação – etnicamente homogênea e indivisível (KINZER, 2008). Esse legado
criou, em relação ao Oriente Médio, uma política externa securitizada, vendo a região como
possível foco de ameaça e geradora de instabilidades dentro da Turquia já que regionalmente
proliferariam ideais pan-islâmicos ou de solidariedade curda entre as populações dessa etnia
na Síria, Iraque e Irã (FULLER, 2008).
De todo modo, mesmo frente ao processo de construção Kemalista do Estado turco, o
país internamente teve de conviver com esse outro conjunto de ideias e valores mais ligados
ao islamismo e que se originavam em meio à sociedade civil. Tais ideais, cristalizados em
partidos islâmicos somente a partir de 1969, foram historicamente vistos pela elite Kemalista
com desconfiança e, em último caso, como uma ameaça a ser reprimida. Esses grupos
islâmicos reconheciam paralelos entre o Kemalismo e as reformas iniciadas no período
Otomano de Tanzimat4, o que, portanto, apontava para um paralelo entre o que os Kemalistas
consideram como moderno (sic) e o Império. Além disso, também desejavam revigorar ideias
3 Os curdos são considerados a maior minoria étnica sem Estado do mundo e estão presentes na Turquia, Síria, Iraque e Irã. Aproximadamente, quase 20% da população turca é curda, o que faz a Turquia o país com o maior número de curdos absolutos e também relativos entre os quatro citados. Os curdos demandam um reconhecimento de sua cultura e língua, direitos que a constituição turca negou desde sua formação estatal – antes estes não eram nem sequer reconhecidos como minoria. A estratégia estatal sempre foi de assimilação, enquanto estes buscavam reconhecimento da diversidade identitária. Desde 1984, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) iniciou uma revolta armada, com bases no Iraque e na Síria, liderados por Abdullah Ocalan. Demandavam a separação do Curdistão turco e a formação de uma República socialista. Após anos de conflitos, o PKK, hoje com bases principalmente no Curdistão iraquiano, demanda apenas maior autonomia (BARKEY; FULLER, 1998). Ocalan está preso desde 1999. Um cessar-fogo e um processo de paz foi iniciado em 2013, mas em 2015 já desmoronara. 4 O período de Tanzimat, que literalmente significa “reorganização”, ocorreu entre o período de 1839 e 1876 no Império Otomano. Uma elite intelectual próxima dos sultões implementou por decretos reais uma série de processos e reformas baseados na concepção de Estado europeia. Destacam-se a criação da nacionalidade Otomana, contribuindo para a ideia de Estado-nação, a criação de Ensino Superior para civis, a secularização do sistema educacional, antes sob tutela religiosa, a criação de um Ministério da Justiça e novas cortes não baseadas na sharia, bem como um novo código civil e penal baseados no francês.
endógenas e não europeias da Turquia, ligadas à religião e suas manifestações culturais.
Mais recentemente, principalmente através do AKP, os grupos islâmicos passaram a afirmar
a possibilidade da convivência entre democracia e religião, vendo o secularismo não como a
supressão por parte do Estado das escolhas religiosas da população, mas como a indiferença
estatal para com elas (FULLER, 2008; HUNTINGTON, 1996; ROBINS, 2007).
Essa tensão construída durante a formação do Estado turco perpetuou-se através de
uma clivagem político-identitária constante na história da República Turca (ROBINS, 2007).
Essa diferença, segundo Robins (2007), afeta a política externa do país e pode ser entendida
segundo o conceito de “tradição” de Martin Wight: um conjunto de valores e ordenamentos
específicos que delimitam o caráter e as preferências de abordagem dos atores. Robins
(2007) aplica para a Turquia esse conceito de tradição, que Huntington (1996) também adapta
mas chama de “vocação”. Dessa forma, a Turquia sofreria influência tanto da
tradição/vocação Kemalista como da Islamista.
A interação dessas duas tradições teria, portanto, impacto importante na formulação
da política externa do país, para além das pressões regionais e sistêmicas (ROBINS, 2007).
Grosso modo, traduzem-se como, do lado Kemalista, um privilégio às alianças com o mundo
ocidental (Estados Unidos, União Europeia e OTAN), do qual a Turquia seria parte
constituinte, e uma preferência pelo não envolvimento no Oriente Médio. Do lado Islamista,
reconhece-se os benefícios do pragmatismo e a importância das relações com o mundo
árabe-muçulmano, bem como valoriza-se as raízes históricas que os ligam. Essa ideia é
melhor desenvolvida em obra posterior de Robins (2013), que define a Turquia como um
“Estado de Dupla Gravidade”: um país que sente contrastantes “forças de atração
gravitacionais” de normas e comportamento de pelo menos duas regiões, e que encontra
dificuldades em reconciliar esse conjunto de reinvindicações.
Ainda que tenham havido alguns ensaios e aproximações pontuais com o Oriente
Médio – principalmente durante os governos de Turgut Özal5 (1983-1993) e Necmettin
Erbakan6 (1995-1997) – a República turca sempre foi reticente e evitou as relações com essa
região, havendo predomínio da tradição Kemalista em sua política externa (ROBINS, 2013;
5 O período Özal ficou marcado pela abertura econômica do país e uma estratégia de crescimento baseada nas exportações para mercados externos – os quais incluíam o Oriente Médio. Durante a guerra Irã-Iraque, a Turquia manteve-se neutra e beneficiou-se do comércio com ambos os países. O Iraque chegou a ser destino de 12% das exportações turcas. Ainda, em 1991, Özal pessoalmente garantiu o envolvimento turco na coalizão da Guerra do Golfo liderada pelos Estados Unidos, inclusive fechando o oleoduto iraquiano que atravessava a Turquia (FULLER, 2008). 6 Erbakan foi polêmico ao defender ideias como uma moeda islâmica unificada, uma Nações Unidas Islâmica, uma OTAN Islâmica e mesmo uma versão islâmica de União Europeia, além de ter afirmado que libertaria a Turquia das mãos dos “infiéis da Europa” e de que havia “reinventado” o país (KINZER, 2008, p. 66). Suas viagens ao Irã e a Líbia também foram polêmicas. Em relação ao primeiro destino, declarou que esse era “o começo de uma campanha pela solidariedade muçulmana global, que, ele prometia, retornaria a Turquia à posição de liderança islâmica que detinha durante os séculos em que Istambul era o trono do califado Islâmico” (KINZER, 2008, p. 68). Quando foi à Líbia encontrar Kadaffi, criou-se grande polêmica pelo fato do Primeiro-Ministro não ter respondido às acusações do líder líbio de que o lugar da Turquia não era na OTAN e de que era errado a relação turca com Israel, inclusive afirmando que os turcos estariam “sob ocupação das potências ocidentais” (KINZER, 2008, p. 69).
KINZER, 2008; DAVUTOĞLU, 2007). Será somente com a ascensão do AKP ao governo
turco, no final de 2002, que a Turquia efetivamente dará início a um processo de redefinição
do seu papel no Oriente Médio (ROBINS, 2013; KINZER, 2008; DAVUTOĞLU, 2007).
3. A inflexão pós-2011: condicionantes domésticos e externos
A ascensão ao poder do AKP em 2002 foi um momento de mudança importante na
histórica turca. O partido foi responsável, internamente, por extinguir a tutela dos militares
sobre a política a fim de evitar novos golpes e também por procurar mostrar a compatibilidade
entre os conceitos de democracia e islamismo. Externamente, a política externa do AKP
buscou harmonizar as duas vocações – Kemalismo e Islamismo – ao buscar aprofundar a
relação com a UE ao mesmo tempo em que repactuava seu papel no Oriente Médio –
procurando ser um “ator euro-muçulmano”, utilizando o conceito de Robins (2013), que teria
forte influência e presença em ambas as regiões. É dentro desse contexto doméstico
específico de alterações realizadas pelo AKP que esse governo decidiu mudar a política
externa turca a partir de 2011 diante dos choques externos das revoltas árabes e do
desengajamento relativo dos Estados Unidos da região do Oriente Médio.
Portanto, para que se entenda essa inflexão da Turquia, é necessário analisar tanto
as variáveis externas de mudança na região quanto o contexto doméstico, que vinha se
alterando desde que o AKP chegou ao poder. Como ferramenta de análise, emprega-se o
modelo de Hermann (1990), que analisa fatores responsáveis por influenciar alterações na
conduta externa de um país – os quais o autor chama de agentes primários de mudança.
Segundo Hermann (1990), estes seriam: 1) a ação do(s) líder(es), 2) a ação dos componentes
da burocracia, 3) a estrutura política doméstica e 4) a conjuntura internacional. Nesse sentido,
ao identificar uma mudança de curso na política externa de um país, Hermann (1990) separa
essas quatro variáveis e procura entender se há continuidade ou mudança.
Ademais, o autor também classifica em diferentes níveis a profundidade das mudanças
de política externa causadas por alterações daquelas variáveis. Para ele, as mudanças podem
ser no nível de: 1) ajustes – mantém-se objetivos e meios, mas alteram-se a ênfase em
determinada política (maior ou menor intensidade); 2) mudança de programa – mantém-se
objetivos, mas via outros meios; 3) modificação de objetivo – mudam-se os objetivos e, por
consequência, os meios; e 4) alterações fundamentais – mudanças profundas e raras que
resultam na total reorientação interna do país.
A aplicação do modelo de Hermann (1990) no caso turco permite comparar o momento
anterior e posterior à mudança em 2011, apontando: 1) continuidade em relação a ação do
líder, com a permanência da centralidade do Primeiro-Ministro Recep Tayyip Erdoğan; 2)
continuidade, e mesmo intensificação, da ação dos burocratas, dada a chegada do influente
Ahmet Davutoğlu ao posto de Ministro das Relações Exteriores desde 2009; 3) mudança na
estrutura política doméstica, frente a diminuição da capacidade de interferência política dos
militares, possibilitando maior liberdade ao governo; 4) grandes mudanças na conjuntura
internacional, com um choque externo causado pelas revoltas árabes e pela percepção da
opção do governo dos Estados Unidos em seguir com seu desengajamento seletivo da região.
Como resultado, a mudança na política externa turca teria se dado no nível de “mudança de
programa”: o objetivo continua a ser criar influência na região do Oriente Médio e tornar-se
um Estado Central (DAVUTOĞLU, 2007), mas os meios são alterados, gradualmente
abandonando a doutrina de Zero Problemas com Vizinhos e empregando uma via de ação
mais assertiva, com envolvimento em conflitos ao lado de grupos que emulariam o exemplo
do modelo político turco na região (Figura 1).
Figura 1 – Agentes de mudança para inflexão na política externa turca em 2011
Passando a análise mais aprofundada de cada variável a fim de melhor compreender
tal processo, é imprescindível iniciar com a ascensão do AKP na Turquia em 2002. A chegada
de Erdoğan ao posto de Primeiro-Ministro e a presença na burocracia de figuras influentes
nas concepções de Relações Internacionais do partido, como Abdullah Gül e Ahmet
Davutoğlu, permitiram a implementação de um conteúdo programático que trouxe importantes
mudanças ao país e que também explica, em grande medida, a nova inflexão a partir de 2011.
O advento do AKP ao poder marcou o início de um período de coabitação no governo
turco, onde um partido com raízes islâmicas foi obrigado a governar junto a um aparato estatal
Kemalista, que tinha o laicismo como base de sua visão de mundo (ROBINS, 2007). A
convicção central do partido e de Recep Tayyip Erdoğan, seu fundador, era a de que
Agentes primários de mudança
Ação do Líder
Erdoğan
Continuidade
Burocracia
AKP (Davutoğlu e Gül)
Continuidade
Estrutura Doméstica
Diminui influência militar
Diferença
Conjuntura Internacional
Revoltas árabes
Desengajamento EUA
Diferença
Mudança de programa
Manutenção de objetivos,
mas mudança de meios
Decisão por
mudança na
política externa
Decisão por mudança
Nível de mudança
democracia e Islã não eram incompatíveis, e que, inclusive, o maior desejo de grande parte
dos turcos era poder desfrutar de ambos (KINZER, 2008). Em sua campanha, em 2002,
Erdoğan pregava por uma “normalização” da política, o que significava “que os resultados
eleitorais sempre devem ser respeitados, os líderes eleitos devem ter autonomia total e os
generais devem parar de tentar governar o país” (KINZER, 2008, p. 21, tradução nossa), além
de defender “a coexistência e o mútuo respeito entre os vários grupos da Turquia em vez de
pretender que eles [os curdos] não existem” (KINZER, 2008, p. 21, tradução nossa).
Assim, o AKP optou desde o início por evitar uma confrontação direta com o
establishment Kemalista. De fato, Erdoğan e Abdullah Gül, que veio a ser o Ministro das
Relações Exteriores entre 2003 e 2007 e posteriormente Presidente turco entre 2007 e 2014,
criaram o novo partido após perceberem os erros do Partido do Bem-Estar de Necmettin
Erbakan, partido do qual também faziam parte nos anos 1990. Este optara por uma via de
embate mais direta com o establishment Kemalista, o que levou à sua destituição em 1997
por pressão militar, um chamado “golpe brando” (soft coup) (CLEVELAND; BUTTON, 2009).
Nesse sentido, a criação do AKP, em 2001, fora o resultado de um processo de
amadurecimento dos grupos islâmicos e sua visão em relação à democracia (FULLER, 2008).
Quando Gül e Erdoğan romperam os laços definitivamente com Erbakan e criaram seu novo
partido, defendiam a democracia e ao mesmo tempo uma outra interpretação do secularismo,
não mais como a supressão das escolhas religiosas individuais, como fora empregado pela
elite Kemalista, mas como a liberdade do indivíduo de poder escolher no que acredita
(KINZER, 2008). “[A emergência de Erdoğan] deu aos devotos turcos, que por gerações foram
mal acolhidos na vida pública, um sentimento de que eram uma parte integral e valiosa de
sua nação” (KINZER, 2008, p. 58, tradução nossa). Destaca-se que essa tentativa de
harmonização entre democracia e Islã foi fundamental para começar a tentar resolver um dos
problemas estruturais criados no processo de formação do Estado Turco, conforme apontado
por Fuller (2008): o da percepção do Islã como ameaça, que acabara alienando grandes
setores da população.
Já em relação à política externa, quando Erdoğan assumiu o posto de Primeiro-
Ministro, deixou claro que sua primeira prioridade seria liderar a Turquia em direção ao posto
de membro da União Europeia, o que surpreendeu a elite Kemalista (KINZER, 2008). Essa
opção do governo se deu não apenas para consolidar a imagem de que o AKP era um partido
“pós-Islâmico” e, portanto, pragmático, podendo seguir a tradição Kemalista (ROBINS, 2007),
mas também para impulsionar reformas domésticas que tirassem poder político dos militares
– os principais algozes dos partidos islâmicos precedentes ao AKP (ROBINS, 2013).
Acreditava-se, assim, que, ao ancorar a Turquia na UE através da aprovação de pacotes de
harmonização legislativa, o governo civil poderia desarmar a ameaça militar de golpe. A busca
pela aproximação com a Europa seria, portanto, a característica principal da primeira fase da
política externa do governo AKP, entre 2003 e 2005, onde a “força gravitacional” europeia
teria sido preponderante (ROBINS, 2013).
De fato, a aproximação com a UE serviu, domesticamente, para dar início a um
processo bem-sucedido de diminuição do poder políticos dos militares, o que incorreu,
utilizando a terceira variável de Hermann (1990), em uma mudança na estrutura política
doméstica do país. Em 2003, o parlamento turco passou um pacote de reformas que
transformou o Conselho de Segurança Nacional (CSN) em um órgão genuinamente de
aconselhamento, removendo sua influência sobre o governo e a burocracia e também fazendo
possível ao governo apontar um civil como seu Secretário-Geral. Em 2004, outro pacote da
UE aboliu as Cortes de Segurança do Estado7. O ponto culminante foi, em 2007, quando o
candidato dos militares perdeu a eleição popular para presidência da República para o
candidato do AKP, Abdullah Gül, mesmo sob ameaças de um novo golpe (KINZER, 2008).
Posteriormente, após alguns escândalos envolvendo os militares8, o governo, em
2010, aprovou novas legislações que acabaram com a independência das escolas militares
em relação ao Ministério da Educação, o qual passou a interferir no currículo; encerrou a
jurisdição que as cortes militares detinham para julgar civis e passou a permitir que as cortes
civis julgassem militares; e, por fim, autorizou que o parlamento passasse a sabatinar o
orçamento das Forças Armadas, até então blindado de controle governamental (KURU, 2012).
Dessa forma, em 2011, quando há a inflexão externa da Turquia, os militares já não mais
representam uma ameaça considerável de golpe para o governo, que se encontra mais livre
desse antigo contrapeso para manobrar externamente.
Entretanto, na medida em que diluía a ameaça interna de golpe militar através dos
pacotes legislativos, o governo AKP começou a sofrer derrotas políticas em sua relação com
a UE, o que foi enfraquecendo o argumento da Turquia aproximar-se do bloco europeu.
Problemas em relação ao Chipre e nas negociações de acesso à UE9, fizeram com que a
atração que a Europa exercia sobre a política externa turca fosse esmorecendo. Tal vácuo foi
7 As Cortes de Segurança do Estado, instituídas desde 1982 pela constituição escrita após o golpe militar de 1980, eram responsáveis por julgar os considerados “crimes contra o Estado”, cuja interpretação amplamente subjetiva já havia sido responsável por punir diversos grupos islâmicos, de esquerda e ligados aos curdos (KURU, 2012) 8 Dois casos na Turquia foram responsáveis por danificar a imagem dos militares. Em 2005, descobriu-se o envolvimento de grupos paramilitares com a implantação de bombas em ataques que eram falsamente atribuídos ao PKK (KURU, 2012). Tanto estes quanto oficiais ligados a eles foram condenados pelas cortes civis. Já em 2006, após o Conselho de Estado ter realizado uma decisão polêmica de que seria inapropriado para professoras utilizarem o véu mesmo em ruas públicas, um atirador invadiu a corte e assassinou um dos juízes. Culpando incialmente grupos islâmicos, descobriu-se depois que o atirador era ligado a uma organização ultranacionalista liderada por oficiais aposentados chamada de Ergenekon. A investigação da organização levou à descoberta de vários conspiradores militares, que foram presos em julgamentos seguintes (KURU, 2012). 9 Em 2004, o governo AKP revisou sua postura frente ao problema no Chipre e aceitou o Plano Annan da ONU que propunha um referendo para a criação de uma federação cipriota. Não apenas a Turquia aceitou como os cipriotas turcos votaram a favor do plano. Os cipriotas gregos, porém, votaram contra no referendo. Mesmo assim, o Chipre grego tornou-se membro da UE logo em seguida, e os cipriotas turcos ainda perderam os benefícios econômicos que o bloco europeu antes fornecia (ROBINS, 2013). Ademais, depois que, em 2005, a UE abriu as negociações para a Turquia tornar-se membro, o processo foi emperrado pelo presidente francês, Nicholas Sarkozy, que se opunha publicamente à entrada turca no bloco (ROBINS, 2013).
sendo preenchido pela “força gravitacional” do Oriente Médio, região que também era central
para a nova estratégia encabeçada por Ahmet Davutoğlu e Abdullah Gül – Ministro das
Relações Exteriores até 2007 (ROBINS, 2013).
Ahmet Davutoğlu, acadêmico de Relações Internacionais e diplomata de carreira,
serviu como assessor-chefe de Erdoğan entre 2003 e 2009, como Ministro das Relações
Exteriores entre 2009 e 2014 e Primeiro-Ministro entre 2014 e 2016, e foi o responsável por
criar as bases conceituais da política externa do AKP no período. Davutoğlu postulava a ideia
da Turquia se tornar um “Estado Central” com “Profundidade Estratégica”. Para ele, a Turquia,
durante a Guerra Fria, teria sido um país de fronteira, a borda oriental do bloco ocidental;
durante os anos 1990, teria sido uma ponte entre o Ocidente e o Oriente (DAVUTOĞLU,
2007). Entretanto, a posição turca, geoestrategicamente central, permitiria ao país que ele
fosse mais do que simplesmente uma ligação entre duas áreas geográficas. Para Davutoğlu
(2007), a Turquia deveria tornar-se um Estado Central, aquele que, por conter múltiplas
identidades regionais – europeia e oriental –, deveria manobrar de forma ativa em várias
regiões simultaneamente, sem definir-se de maneira defensiva, reativa e como pertencendo
a apenas uma identidade geográfica. Deveria ter, portanto, uma ação externa ativa e criativa,
com promoção de iniciativas diplomáticas em todas as regiões ao seu redor – uma clara crítica
ao excesso de atenção europeu da vocação Kemalista.
Essa política externa pautar-se-ia pela doutrina dos “Zero Problemas com Vizinhos”,
ou seja, a Turquia agiria como provedora de ordem, estabilidade e segurança em seu entorno
ao engajar-se pragmaticamente com todos os atores possíveis, incentivando o uso da
diplomacia para resolução de conflitos e o aprofundamento das relações econômicas como
forma de criação de interdependências (DAVUTOĞLU, 2007). Como consequência, a
diversificação de parcerias geraria maior autonomia para o país, garantindo o que ele
chamava de “Profundidade Estratégica” (DAVUTOĞLU, 2007). Em suma, a doutrina de Zero
Problemas com Vizinhos forneceria a Profundidade Estratégica necessária para a Turquia ser
um Estado Central, capaz de manobrar simultaneamente e ativamente em diversas regiões
sem limitar-se a apenas uma definição identitária de pertencimento. Esse é o conteúdo
programático de política externa que mudou a Turquia nos anos 2000 e que continuaria
baseando, segundo as variáveis do modelo de Hermann (1990) aqui aplicado, a ação do líder
e da burocracia estatal a partir de 2011.
Nesse sentido, o foco da política externa turca passava a ser o Oriente Médio, onde o
governo esperava alcançar vitórias para, mesmo com problemas frente ao bloco europeu,
ainda consolidar-se como um Estado Central. O país gradualmente abandonou a política de
evitar estabelecer vínculos com o Oriente Médio e foi adotando a doutrina dos “Zero
Problemas com os Vizinhos” de Davutoğlu, reforçando a ideia de que a política externa turca
começava a seguir a vocação denominada Islamista (DAVUTOĞLU, 2007; ROBINS, 2013).
Esse foco predominantemente no Oriente Médio seria a segunda fase da política externa turca
sob o governo AKP, entre 2005 e 2011 (ROBINS, 2013).
Diversas foram as iniciativas que apontavam para a consolidação da Turquia como
ator de grande influência na região. Destacam-se dentre as várias: a melhora significativa nas
relações com a Síria; o reconhecimento do resultado das eleições palestinas de 2006 que deu
a vitória ao Hamas e o posterior engajamento político com o grupo mesmo à contragosto dos
aliados ocidentais; o estabelecimento de relações comerciais e a criação de interdependência
energética com o Governo Regional do Curdistão iraquiano através de investimentos em
oleodutos; a aproximação com o Irã e o acordo nuclear firmado junto do Brasil em 2010,
também contrário aos interesses dos aliados ocidentais; e, por fim, a escalada de tensões
com Israel, que envolveu sérias acusações de Erdoğan à Shimon Peres no Fórum Econômico
Mundial em Davos após a guerra israelense contra Gaza em 2009-9, e culminou com o
rompimento das relações diplomáticas entre os dois países em 2010, após incidente onde
civis turcos em uma flotilha no Mediterrâneo foram mortos em uma operação militar de Israel
(ROBINS, 2013).
Além disso, cabe destacar que o modelo político turco de coabitação de um partido
islâmico em uma burocracia estatal secular também passou a receber destaque. Diversos
acadêmicos, principalmente ocidentais, passaram a vê-lo como uma possível fonte de poder
brando e objeto de emulação para os países árabes e muçulmanos. Dessa forma, os países
ocidentais eram encorajados por acadêmicos e políticos a apoiar a Turquia como um possível
modelo “estável e moderno” para a região (ROBINS, 2013; FULLER, 2008). Os Estados
Unidos foram mais rápidos que os europeus em perceber os potenciais da Turquia em ser um
modelo de governança para o mundo muçulmano, apoiando o que consideravam a prática
turca do Islã (ROBINS, 2013). Segundo a percepção do governo em Washington, essa era
uma forma de aliviar a visão do conflito de civilizações e possivelmente colaborar para a
estabilização de uma região tão sensível (GERGES, 2012). Essa é uma mudança bastante
significativa, pois representa que o principal país ocidental aliado da Turquia via com bons
olhos, e até incentivava, a tradição Islamista de sua política externa, parecendo também crer
que é possível harmonizar ambas as vocações turcas.
Entretanto, esse processo de aproximação da Turquia com o Oriente Médio se
defrontou com o choque externo a partir de 2011 das revoltas árabes, uma das variáveis de
Hermann (1990) – conjuntura internacional – que é fortemente alterada. Naquele momento,
uma série de grupos islâmicos passaram a se apresentar como um novo modelo político para
seus países, após anos de regimes autocráticos e de repressão à oposição, organizada em
partidos como a Irmandade Muçulmana. Havia a percepção de que tais grupos islâmicos
poderiam alçar-se ao poder e então implementar um regime relativamente mais aberto que
seus antecessores (GERGES, 2012). Diante desse contexto, o governo turco percebeu como
uma oportunidade o fato de que vários destes movimentos olhavam para a Turquia como um
exemplo: era ela um Estado governado por um partido islâmico dentro de uma burocracia
secular, que apresentara níveis de crescimento econômico e estabilidade política
significativos nos últimos anos. Portanto, a partir de 2011, o governo em Ancara passou a
desenvolver uma política externa que procurava capitanear os movimentos regionais que
eventualmente viessem a emular o modelo turco (GERGES, 2012; ROBINS, 2013).
Esse movimento de inflexão na política externa turca contava com o apoio dos Estados
Unidos, principais parceiros securitários da República turca, que vinham diminuindo sua
presença diplomática e militar no Oriente Médio sob a presidência de Barack Obama
(GERGES, 2012). Esse desengajamento relativo estadunidense também significava que, em
vez de o governo em Washington ter de assumir sozinho responsabilidades securitárias no
Oriente Médio, esperava que os próprios atores regionais assumissem maiores compromissos
(GERGES, 2012). Dentro dessa lógica, a aliança com a Turquia ganhava destaque.
De fato, desde que chegou à presidência, Obama já apontava para a centralidade
dessa relação: a primeira viagem internacional do novo presidente foi à Turquia, onde Obama
discursou no parlamento turco e chamou a relação dos Estados Unidos com o país de
“parceria modelo”. Em 2010, Obama também chamou a Turquia de “grande democracia
muçulmana” e “um modelo criticamente importante para os outros países muçulmanos da
região” (BARKEY, 2016, online, tradução nossa). Nesse sentido, como coloca Gerges (2012),
Obama reconhecia na Turquia um país muçulmano, exemplo de progresso, crescimento
econômico e democracia estável, e que ainda representava um símbolo de que uma parceria
mutuamente benéfica entre os Estados Unidos e uma nação islâmica seria possível.
Com a eclosão das revoltas árabes, o governo em Washington não apenas apoiou e
incentivou a ideia do modelo turco como exemplo aos movimentos regionais, como
aproveitou-se do fato de a Turquia ter assumido um papel proeminente frente à oposição síria
– reforçando a ideia estadunidense de dividir responsabilidades e de evitar novas
interferências militares diretas (GERGES, 2012). Em 2014, a postura estadunidense foi
cristalizada com um discurso de Obama na academia militar de West Point, onde o presidente
explicitamente afirmou que os Estados Unidos não mais interviriam diretamente sem a
constatação de uma ameaça direta ao país e que, portanto, quando crises regionais
surgissem “deve[riam] mobilizar aliados e parceiros para tomar ações coletivas” (EUA, 2014,
online, tradução nossa).
Portanto, percebe-se que, a partir de 2011, a Turquia passou a adotar uma política
externa mais assertiva tanto em razão da eclosão das revoltas árabes quanto do incentivo
trazido pelo relativo desengajamento dos Estados Unidos do Oriente Médio – mudanças na
variável conjuntura internacional de Hermann (1990). O país passou a utilizar-se da ideia de
liderança regional através de seu modelo político, que seria emulado por grupos que
receberiam apoio turco. Essa nova postura teve tal forma em virtude da doutrina de política
externa do governo AKP – envolvendo, assim, tanto a variável ação do líder, o qual continuava
sendo Recep Tayyip Erdoğan, quanto a variável burocracia, que continuava seguindo a visão
de Davutoğlu e mesmo Gül. O AKP, ainda, via-se mais livre para implementar sua nova
política externa em virtude da diminuição do poder político dos militares graças às reformas
ligadas aos pacotes de harmonização legislativa da UE – que aponta para mudanças na
variável estrutura política doméstica.
4. A nova política externa turca de liderança regional: implementação e limites
Diante da nova conjuntura externa, o governo AKP coordenou uma inflexão em sua
política para o Oriente Médio. Conforme já mencionado, a ideia do “modelo turco” de partido
islâmico e democrático em um ambiente estatal secular tornou-se um poderoso instrumento
de poder brando para a Turquia diante da ebulição política e social trazida pelas revoltas
árabes. Munida dessa nova confiança de que poderia ser uma fonte de inspiração e objeto de
emulação, e incentivada pelos Estados Unidos, passou a agir de maneira mais direta e
assertiva, buscando apoiar ou capitanear os movimentos regionais que poderiam implementar
variações do sistema turco. Assim, mantinham-se os objetivos de projetar-se como Estado
influente na região, mas mudavam os meios de atuação – uma “mudança de programa”,
segundo a classificação de Hermann (1990). Essa nova postura externa acabou levando a
Turquia a se envolver no conflito sírio ao lado da oposição ao governo de Bashar al-Assad e
a apoiar a Irmandade Muçulmana no Egito – casos aqui escolhidos como demonstrativos por
terem sido alvo de maior envolvimento turco. Gradualmente, porém, a estratégia turca sofreria
reveses, principalmente na Síria, mas também no Egito e no âmbito interno.
Quando as revoltas contra Hosni Mubarak eclodiram no Egito, entre 25 de janeiro e 11
de fevereiro de 2011, o governo turco apoiou desde o início as movimentações, com enfáticos
discursos de Erdoğan no parlamento clamando para que Mubarak deixasse o poder
(GERGES, 2012). Em setembro de 2011, meses após a deposição de Mubarak, Erdoğan
realizou uma viagem pelas “capitais libertadas” da Tunísia, Egito e Líbia. No Cairo, onde foi
celebrado por manifestações populares em seu apoio, o Primeiro-Ministro turco concedeu
entrevistas onde enfatizou que o Egito deveria abolir sua antiga constituição baseada na
sharia e que a principal lição que a Turquia poderia oferecer aos árabes era a importância do
secularismo (GERGES, 2012).
Os laços entre Turquia e Egito aprofundaram-se ainda mais depois da eleição de
Mohammed Morsi, da Irmandade Muçulmana, para a presidência egípcia em junho de 2012.
Em outubro, Morsi foi convidado a participar da convenção anual do AKP em Ancara, onde
declarou que os avanços do partido eram “admirados com respeito pelo mundo inteiro”
(HURRIYET, 2012, online, tradução nossa). Em novembro, Erdoğan voltou ao Cairo, onde
defendeu a política externa de Morsi de diversificar parcerias e sugeriu que uma aliança turco-
egípcia garantiria paz e estabilidade no Mediterrâneo – insinuando que constrangeria a
habilidade de Israel usar a força (CAGAPTAY; SIEVERS, 2015).
A despeito do desenvolvimento de laços significativos com o novo governo egípcio, foi
na Síria que o AKP investiu seu maior capital diplomático – e é na crise síria que a Turquia
encontrou seus limites, onde está envolvida até hoje. Durante os anos do governo AKP, a
relação com a Síria, historicamente marcada por hostilidade mútua10, foi redimensionada e o
país passou a ser o exemplo de sucesso da Doutrina de Zero Problemas com os Vizinhos.
Engajando a Síria em negociações econômicas e diplomáticas, a política externa turca
obteve inúmeras vitórias. Um acordo de livre comércio foi assinado em 2004 e implementado
em 2007, que fez as exportações turcas para a Síria crescerem de US$ 609 milhões em 2006
para US$ 1,86 bilhão em 2010, enquanto as exportações sírias para a Turquia cresceram de
US$ 187 milhões para US$ 662 milhões no mesmo período, tornando a Turquia a principal
parceira comercial da Síria (PHILLIPS, 2012). Em 2009, os países também assinaram um
acordo para implementar uma área de circulação de turistas livre de vistos. Bashar al-Assad
foi o primeiro presidente sírio a visitar a Turquia, em 2004, e desenvolveu posteriormente laços
próximos de Erdoğan, tendo ambos chegado a passar as férias juntos com suas famílias
(PHILLIPS, 2012). A parceria turco-síria também ajudou Assad a negociar a saída das tropas
da Síria do Líbano em 2005, após o assassinato do Primeiro-Ministro libanês Rafic Hariri, e
foi a Turquia a responsável pelas negociações indiretas entre Israel e Síria, encerradas em
2008 com os ataques israelenses em Gaza (PHILLIPS, 2012).
Nesse sentido, a opção do governo turco em tornar-se um dos principais opositores
ao governo de Assad, mesmo depois de tão intensa melhora nas relações, é representativa
do processo de abandono da Doutrina de Zero Problemas com Vizinhos e de adoção de uma
política externa assertiva em prol de novos grupos na região que pudessem seguir o modelo
turco. Há, nesse sentido, dois momentos de reação às manifestações na Síria, pelo menos
entre seu início e até 2014 com o surgimento do Estado Islâmico: o primeiro deles, de março
a agosto de 2011, quando a Turquia ainda preferiu pressionar o governo sírio a adotar
reformas, mesmo que já sinalizando apoio à oposição, e o segundo deles, de setembro de
2011 em diante, quando rompe relações oficialmente com o governo de Assad e passa a
apoiar os grupos políticos e a oposição armada contra o regime sírio (PHILLIPS, 2012).
10 Historicamente, a Síria e a Turquia mantiveram uma relação de antagonismo, principalmente graças ao alinhamento diplomático sírio com a União Soviética durante a Guerra Fria e o alinhamento turco com os Estados Unidos. Além disso, depois que a Turquia se envolveu em um conflito interno com o PKK, a Síria passou a acolher o estabelecimento de bases do grupo curdo em seu território, fomentando o conflito contra o Estado turco. O próprio líder do PKK, Abdullah Ocalan, residia na Síria. Em 1998, o Exército turco ameaçou realizar uma intervenção militar em território sírio caso o país não entregasse Ocalan, o qual eventualmente foi expulso da Síria e posteriormente capturado pela Turquia (CLEVELAND; BUTTON, 2009; FULLER, 2008).
Os protestos na Síria eclodiram em março de 2011, quando o governo de Bashar al-
Assad respondeu com força aos manifestantes, o que acabou por reforçar seu ímpeto contra
o regime. Enquanto os países ocidentais já passavam a criticar a conduta de Assad e a adotar
sanções contra seu governo, a Turquia adotou um discurso mais cauteloso. Clamava para
que o governo sírio ouvisse as demandas populares e impusesse reformas ao país, crendo
que poderia influenciar Assad a seguir um rumo de abertura – com Davutoğlu fazendo
diversas viagens à Damasco para tratar com Assad e a liderança síria (PHILLIPS, 2012).
Entretanto, buscando manter a nova ideia de liderança com base no apoio aos
movimentos populares que clamavam por mudança, a Turquia já sinalizava seu apoio em
relação à oposição e endurecia o discurso contra Assad. Em julho, defecções das Forças
Armadas da Síria formaram o Exército Sírio Livre (ESL), comandado por Riad al-Assad, antigo
coronel do Exército, e desde então o governo turco permitiu a operação do ESL na província
de Hatay na medida em que os primeiros refugiados sírios chegavam ao território turco
(PHILLIPS, 2012). Em agosto, enquanto Davutoğlu fez sua última viagem para encontrar
Assad, grupos políticos da oposição síria já se articulavam na Turquia. No dia 23 de agosto,
é formado o Conselho Nacional Sírio (CNS) em Istambul, oficializado no dia 15 de setembro
como corpo unificado político da oposição. Alguns dias depois, em 21 de setembro, a Turquia
oficialmente rompe relações com o governo de Assad (PHILLIPS, 2012).
Nesse sentido, o governo turco percebeu que só a retórica não será suficiente para
convencer Assad e que para atingir seus objetivos de política externa na região, seus meios
teriam de ser alterados: o país precisaria passar a apoiar diretamente à oposição ao governo,
entrando definitivamente junto de um dos lados do conflito, com a Turquia tornando-se uma
ferrenha opositora de Assad desde então. Inicia-se, assim, uma segunda fase do conflito, em
que o governo turco passa a trabalhar com seus aliados ocidentais e com outros países da
região, como Arábia Saudita e Catar, para estabelecer uma rede de apoio e suporte aos
rebeldes sírios. Recursos militares e financeiros eram enviados até o território turco, dentro
do qual haveria uma distribuição encoberta para os grupos de oposição dentro da Síria através
das fronteiras da Turquia – pelas quais também foi facilitada a entrada de pessoas que fossem
lutar no conflito sírio (BANDEIRA, 2013; COCKBURN, 2015).
Além disso, após China e Rússia vetarem, em 4 de fevereiro de 2012, uma resolução
no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) contra Assad, a então
Secretária de Estado estadunidense, Hillary Clinton, clamou pela criação de uma coalizão de
“amigos da Síria” para coordenar suas ações multilateralmente fora do âmbito da ONU. No
dia 24 de fevereiro, o Grupos Amigos da Síria é estabelecido pela primeira vez em Túnis, na
Tunísia, enquanto a segunda reunião do grupo ocorre em Istambul, no início de abril de 2012,
quando decidem reconhecer o CNS como representante legítimo do governo sírio (PHILLIPS,
2012). Além disso, o grupo passou a colaborar com a rede de apoio material à oposição síria,
segundo as fontes apresentadas no extenso trabalho de Bandeira (2013).
“A partir de Istambul, [o Grupo de Amigos da Síria] comandava a distribuição de
suprimentos vitais – fuzis Kalashnikov, metralhadoras BKC, foguetes propulsores de
granadas e munição – oriundos dos arsenais de Kadaffi, na Líbia, do Qatar e da Arábia
Saudita e transportados pelo serviço de inteligência da Turquia para os rebeldes e
mercenários nas fronteiras da Síria” (BANDEIRA, 2013, p. 390).
Bandeira (2013) complementa:
“Diversas cidades, entre as quais Antakya, ao longo da fronteira da Turquia com a Síria,
converteram-se em bazaar de material bélico, onde os rebeldes compravam
armamentos de shadowry intermediaries, negociantes de armas do Qatar, da Arábia
Saudita e do Líbano, em uma atmosfera caótica, difícil de identificar a identidade ou o
partido ao qual pertenciam” (BANDEIRA, 2013, p. 407).
Entretanto, com o desenrolar da crise na Síria, a política turca passou a encontrar
problemas que atestariam seus limites – os meios empregados pelos turcos não pareciam ser
suficientes para alcançar seus objetivos propostos. De um lado, diferentemente do esperado,
o governo de Bashar al-Assad não se encontrava perto do colapso e as forças da oposição
encontravam-se cada vez mais marcadas pela presença de jihadistas, resultado do apoio e
incentivo saudita a tais grupos e ao processo de facilitação de entrada destes através das
fronteiras turcas (BANDEIRA, 2013; COCKBURN 2015).
De outro lado, os curdos no norte da Síria adquiriram autonomia efetiva sobre o
território em que se encontram dada a incapacidade do governo em Damasco de se fazer
presente em todo o território em meio à guerra no país. Os curdos, representados pelo Partido
da União Democrática (PYD) e seu braço militar, as Unidades de Proteção Popular (YPG),
passaram a ser uma fonte de preocupação para o governo turco maior que o próprio regime
de Assad, visto que a Turquia temia ligações entre o PYD e o PKK (STRATFOR, 2015).
Ademais, a própria concepção de modelo político turco foi abalada a partir de 2013,
quando eclodiram manifestações populares em diversos centros urbanos do país e o governo
do AKP utilizou-se da força para reprimi-los. Desde então, aumentaram as denúncias
relacionadas a prisões arbitrárias e ao cerceamento da liberdade de expressão na Turquia
(PARK, 2015). Além disso, no dia 3 de julho de 2013, o governo de Morsi e da Irmandade
Muçulmana no Egito foi derrubado através de um golpe militar, o que pareceu sinalizar aos
outros movimentos islâmicos e democráticos – exatamente os grupos favorecidos pelos turcos
– a impossibilidade desses se garantirem no poder através de meios legais e institucionais
(BARKEY, 2016). Desde então a Turquia e o Egito romperam relações diplomáticas e Erdoğan
continua um opositor do novo presidente egípcio, Abdel Fatah al-Sisi.
Com a Turquia já envolvida em diversos conflitos na região, principalmente na Síria,
os novos desafios fizeram com que o país perdesse o protagonismo e a capacidade de
articular e definir uma agenda regional. O governo turco recuou para uma postura mais
defensiva de “contenção de danos”, buscando refrear o que considerava as principais
ameaças ao Estado turco – os movimentos curdos mais do que a proliferação de jihadistas
na Síria. Domesticamente, acirrou-se a clivagem política e os debates entre as vocações da
política externa turca – Kemalista e Islamista. Mais visivelmente, emergiam os problemas e
custos ligados à crise na Síria, como os refugiados que buscam a Europa, o problema curdo
interno com o PKK e mesmo a segurança regional de maneira mais ampla.
5. Considerações Finais
A Turquia, que historicamente favoreceu a tradição Kemalista de sua política externa,
privilegiando seus laços com o Ocidente e a Europa, passou a redimensionar seu papel no
Oriente Médio após a ascensão do AKP ao governo turco. Dialogou, assim, de maneira nova
e intensa com sua tradição Islamista de atuação externa. Em 2011, porém, o país passou por
uma inflexão ainda mais marcante em relação a seu papel no Oriente Médio: a Doutrina de
Zero Problemas com Vizinhos foi sendo deixada de lado em prol de uma atuação assertiva,
com a Turquia passando a envolver-se e a tomar lados em conflitos – principalmente na Síria.
As razões pelas quais a Turquia passou por tamanha inflexão em sua conduta externa
pós-2011 dizem respeito a fatores internos e externos. No âmbito doméstico, foi a
consolidação do AKP no poder que garantiu que sua concepção de política externa ditasse
os rumos das respostas aos desafios externos de 2011. A permanência de Erdoğan como
Primeiro-Ministro e o fato de Abdullah Gül ser Presidente e Ahmet Davutoğlu o Ministro das
Relações Exteriores garantiu um alinhamento geral entre os principais focos da burocracia
estatal relacionados à política externa. Ademais, graças às reformas domésticas ligadas aos
pacotes de harmonização legislativa da UE, os militares, algozes históricos dos partidos
islâmicos na Turquia, perderem seu poder de influência na política de maneira considerável,
permitindo ao governo agir mais livremente de acordo com seus objetivos.
Externamente, o gatilho para essa evolução da política externa turca foram as revoltas
árabes. O governo em Ancara, que julgava ver na região um desejo por mudança e maior
abertura de regimes, postou-se como exemplo de modelo político e buscou capitanear os
movimentos emergentes. Os Estados Unidos, principal parceiro securitário turco, se
encontrava em um processo de evitar novas intervenções que prostrassem o país novamente
no Oriente Médio. Nesse sentido, o governo em Washington influenciava que seus aliados
regionais assumissem reponsabilidades maiores, sendo a Turquia peça-chave da equação,
especialmente porque a administração Barack Obama também acreditava no poder do
modelo turco como exemplo regional.
Em conjunto, esses fatores contribuíram para a inflexão da política externa turca em
2011, cujo objetivo passa a ser apoiar os grupos que o governo julgava serem mais propensos
a emularem o modelo turco – o que poderia garantir um alinhamento com a Turquia assim
que estes chegassem ao poder. Entretanto, em 2013, os limites da nova postura turca já se
mostravam evidentes. Domesticamente, o AKP enfrentava pela primeira vez uma oposição
mais séria, frente a qual o governo respondeu com força e repressão e enfraquecendo nos
próprios meios ocidentais a ideia do modelo turco. Externamente, a obtenção de autonomia
por parte dos curdos sírios, a derrubada do governo da Irmandade Muçulmana no Egito e a
permanência de Assad no poder colocaram Ancara na defensiva. A estratégia turca parecia
ser incapaz de, com os novos meios empregados, alcançar os objetivos desejados.
A situação tornou-se ainda mais séria com o surgimento do grupo Estado Islâmico (EI)
na Síria e no Iraque, em junho de 2014. Com os avanços do EI sobre os territórios desses
países, os Estados Unidos criaram uma coalizão contra o grupo a fim de tentar parar seu
avanço. A Turquia não apenas negou-se a participar e a ceder sua base aérea em Incirlik,
próxima à Síria, como passou a se opor energicamente à parceria emergente entre os Estados
Unidos e as unidades curdas – que acabaram se tornando uma das forças militares terrestres
mais efetivas no combate ao EI. Surgia assim certas percepções de que o governo turco não
mais compartilhava das mesmas prioridades e objetivos que os outros membros da OTAN.
Nesse sentido, um aprofundamento da pesquisa buscará dar continuidade ao estudo
da política externa turca pós-2011 a fim de compreender os impactos dessa inflexão externa
para a região e para as alianças do país. Especificamente, há interesse em investigar as
divergências entre a Turquia e seus aliados ocidentais, principalmente Estados Unidos, a
partir da ascensão do EI. Um estado específico do problema curdo também é prospectado,
especialmente pelo transbordamento do conflito sírio, pelas relações entre o PYD com os
curdos turcos, e pela volta do conflito interno na Turquia com o PKK em 2015 – fatores que
colaboraram para que o governo AKP passasse a ver as unidades curdas sírias como uma
ameaça importante. Ademais, dada a força dos laços com a UE para a tradição Kemalista e
os avanços turcos frente ao bloco europeu nos anos 2000, somados à seriedade crescente
do tema dos refugiados sírios dada a crise europeia, é importante traçar uma atualização da
relação Turquia-UE frente aos novos acordos de imigração e sua relação com o conflito sírio.
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